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Artigo

A BUSCA PELA GEOMETRIZAÇÃO DA MATÉRIA Por Adílio Jorge Marques

Resumo: Os gregos da Antiguidade, em contraposição a outras culturas, fizeram uma notável descoberta advinda da razão: a natureza obedece a leis universais e eternas, e que podem ser investigadas pelos homens. O objetivo deste texto é mostrar a tentativa inicial de se estabelecer uma correspondência entre a forma e as propriedades e a estrutura da matéria desde a ideia dos sólidos de Platão. A ideia persistiu ao longo dos séculos, a partir da premissa de que, na natureza, as formas complexas se originam de entidades simples. Palavras Chave: História das Ciências. Platão. Geometrização. Química.

Platão e os sólidos geométricos

M

esmo que as leis do movimento

assim o ordena, ou deseja, mas porque existe uma lei

expressas pelos filósofos gregos se

natural da qual depende o comportamento dessa

tenham mostrado equivocadas, como

pedra, e à qual os próprios deuses estariam sujeitos.

no caso da Física aristotélica, a descoberta da

Tal proposta grega foi uma ruptura notável com os

regularidade da natureza e da possibilidade de que

padrões de pensamento vigentes nas outras

os homens possam penetrar seus segredos foram

civilizações da Antiguidade, nas quais o mito

descobertas monumentais, cuja importância, num

predominava, e introduziu uma nova forma de pensar

mundo como o de hoje, em que isso é considerado

o mundo.

corriqueiro, nunca é demais enfatizar. Sabemos que

Dentre as muitas cogitações da Filosofia grega

uma pedra cai não porque determinada divindade

sobre o mundo natural, uma das mais importantes foi


GNARUS |6 aquela da constituição da matéria, sobre a qual

corresponde ao tetraedro, associado à forma de uma

inúmeros filósofos tiveram algo a dizer, muitos dos

chama, o ar ao octaedro, com a possibilidade de

quais com profundas implicações sobre a ciência de

movimento ascendente e descendente, enquanto a

nosso tempo. Talvez o mais profundo deles tenha sido

água, moldável e fluida, corresponde ao icosaedro. A

Platão de Atenas (428/427 - 347 a.C.).

terra, associada à noção de solidez e estabilidade,

Discípulo

de Sócrates, fundou a conhecida Academia de

corresponde ao sólido de faces quadradas, o cubo. O

Atenas, sendo posteriormente mestre de Aristóteles

quinto sólido platônico, o icosaedro, com doze faces

(384 - 322 a.C.). A sua teoria sobre a constituição da

pentagonais, corresponde à quintessência, ou

matéria foi formulada na magistral obra “Timeu” (ou

elemento celeste (MARQUES & SENRA, 2008, 725-

“Diálogo sobre a natureza”), pertencente à chamada

730).

fase final ou da maturidade de Platão, na qual mostra os seus pensamentos sobre a physis, ou natureza.

O pensador ateniense busca, também, estabelecer uma cosmologia que parte da distinção entre dois

Platão utiliza os quatro elementos de Empédocles

mundos: o mundo mutável do devir (baseado no “vir-

(495 – 430 a.C.), ou seja, terra, água, ar e fogo,

a-ser” heraclitiniano1) e as formas que existiriam de

associando-os aos sólidos constituídos por faces de

maneira eterna. Ele reconhece a mudança constante

polígonos regulares, para criar o seu quinteto

do mundo sensível em oposição ao mundo das ideias,

geométrico, conforme a Figura 1 abaixo. Três desses

este estabelecido na permanência e na estabilidade

sólidos têm faces triangulares, o tetraedro, o

proposta por Parmênides (cerca de 530 a.C. - 460

octaedro e o icosaedro. Nesta classe o fogo

a.C.).

Figura 1. Os cinco sólidos platônicos (Timeu, 54-56): 1 – tetraedro; 2 – octaedro; 3 – icosaedro; 4 – cubo; 5 – dodecaedro. Imagem da obra Timeu e Crítias ou A Atlântida. São Paulo: Hemus, 1990, p. 49. 1

Heráclito de Éfeso (540 - 470 a.C.).


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A construção dos sólidos

associou ao elemento fogo pela sua forma pontiaguda e ascendente.

Para Platão a figura geométrica que engloba todas

Ainda, considerando os sólidos geométricos

as formas possíveis é a esfera. Da esfera podemos

regulares simples, é possível unir quatro triângulos

inferir a simetria entre dois lados de algo que foi

equiláteros, cuja soma dos ângulos internos

criado (PLATÃO, 1990). Usando a simetria (VLASTOS,

adjacentes nos vértices é 240º, formando o octaedro,

1987) pode-se obter qualquer outra forma possível,

associado ao elemento ar, lembrando a Platão o

pois as formas harmoniosas do espaço (logo,

movimento ascendente e descendente. Com cinco

simétricas) são as chamadas classes de simetria

desses triângulos num vértice, a soma é 300º, ainda

(PLATÃO, 1990, 84): “Por isso, Deus tornou o Todo em

inferior a 360º, surgindo o icosaedro, figura de 20

forma esférica e circular, sendo todas as distâncias

faces, que foi relacionada por Platão ao elemento

iguais, do centro à extremidade. ” (Timeu, 33).

água e à sua fluidez e possibilidade de ser moldável

Da perfeita simetria da esfera (representação platônica

do

mundo

ideal)

obtemos

(VLASTOS, 1987).

as

A partir de seis triângulos equiláteros surge um

representações mais simples da natureza, assim como

problema matemático. A soma dos ângulos internos

os movimentos lineares e circulares que os antigos

adjacentes unidos pelos vértices, neste caso, é 360º,

observavam nos céus nas órbitas dos planetas visíveis.

o que não permite fechar a figura por esse mesmo

A partir do formato esférico, todas as outras formas

vértice (ou seja, não permite formar um ângulo

podem ser derivadas, como classes particulares e

sólido). Também não é possível um número maior de

finitas de simetria, a partir do caso geral e infinito da

triângulos equiláteros em torno de um vértice para a

esfera (REALE, 1993). A natureza busca uma

construção de um outro poliedro. Logo, com quatro

ordenação interna que possibilite a ligação das

vértices, Platão verifica que a geometria o obriga a

formas umas com as outros. As relações entre as

partir para o cubo, que para ele tinha a estabilidade

formas e sua simetria pode ser de variados graus,

do elemento terra (PLATÃO, 1990, 109): “Pois a terra,

formando sistemas mais ou menos complexos

das quatro espécies, é a mais difícil de mover e é, de

(MARQUES & SENRA, 2008, 725-730).

todos os corpos, o mais tenaz” (Timeu, 55).

Na construção dos sólidos platônicos devemos

Passando às figuras de cinco lados, os pentágonos,

utilizar apenas polígonos regulares congruentes, ou

apenas é possível construir o dodecaedro, figura de

seja, aqueles para os quais a razão de 360 pela soma

12 lados, que Platão associou diretamente à

dos ângulos internos é um número maior que 1. Se

quintessência, da qual o próprio Cosmos seria

esta razão for 1, não é possível a construção de um

derivado. Com pentágonos, cada vértice possuirá

ângulo sólido. Vejamos, então, como Platão

108º. Com hexágonos não é possível construir sólidos

estruturou os sólidos.

platônicos (MARCONDES, 2000).

Partindo-se da forma mais simples do triângulo

Há uma relação dual geométrica entre os sólidos

equilátero constrói-se um tetraedro, que Platão

propostos por Platão, e que pode ser verificada na substituição de faces por vértices e de vértices por


GNARUS |8 faces. Por exemplo, as 12 faces e os 20 vértices do

no qual faces e vértices são de mesmo número

dodecaedro são transformados nas 20 faces e 12

(quatro). Ver Tabela 1 abaixo (TRINAJSTIC, NIKOLIC,

vértices do icosaedro. O mesmo pode ser verificado

MIHALIC, 1994, 62).

nos outros casos, com exceção do tetraedro, poliedro

Tabela 1 Sólidos de Platão Tetraedro Cubo Octaedro Dodecaedro Icosaedro

Faces 4 6 8 12 20

A correspondência química

Vértices 4 8 6 20 12

Arestas 6 12 12 30 30

traduzir o livro do filósofo grego do texto original para o alemão, como um exercício para aprender a

A tentativa de estabelecer uma correspondência

língua grega, que seu pai lecionava em Munique. Ele

entre a forma e as propriedades e a estrutura da

confessa

que

ficou

matéria persistiu ao longo do tempo, a partir da

(HEISENBERG, 1972, 8-9):

perplexo

a

princípio

premissa de que na natureza as formas complexas se originam de entidades simples. Esta questão está relacionada à busca pela ordem imanente na natureza, em que o caos aparente das formas macroscópicas na verdade encobre o cosmos, ou ordem, existente em microescala. É proposital aqui o uso dessas duas palavras de origem grega, que são antônimas em sua acepção de origem. As propriedades de simetria da matéria, tão importantes na Química e na física atuais, como mostra o pensamento de um dos fundadores da mecânica quântica, Werner Heisenberg (1901 – 1976), remetem-nos às cogitações de Platão. Heisenberg, em seu livro de memórias Physics and

Beyond confessa a perplexidade que lhe causou a leitura de Platão no Timeu. A provocação de Platão nunca o abandonaria. Em 1920, quando ainda um estudante na Universidade de Munique ele se pôs a

“A coisa toda parecia uma especulação absurda, perdoável talvez pelo fato de os gregos não possuírem o conhecimento empírico necessário. Contudo entristeci-me de ver um filósofo da perspicácia de Platão sucumbindo a fantasias desse tipo. Procurei um princípio que me pudesse ajudar a encontrar alguma justificação para a especulação de Platão, mas por mais que tentasse, não conseguia descobrir nada. Mesmo assim, eu estava fascinado pela ideia de que as menores partículas de matéria devem reduzir-se a alguma forma matemática. Afinal, minha tentativa de desenrolar o denso novelo de fenômenos naturais dependia da descoberta de formas matemáticas, mas a razão de Platão ter escolhido os corpos regulares da geometria sólida, entre tantas coisas, permanecia um completo mistério para mim. Eles não pareciam ter qualquer valor como explicação. Se continuei, todavia, a ler os Diálogos, foi simplesmente para melhorar meu grego.... Continuei pensando, por que um grande filósofo como Platão teria imaginado que podia reconhecer ordem nos fenômenos naturais, quando nós próprios não podíamos?”


GNARUS |9 Os estudos de simetria realmente se mostraram

aquela do conjunto das moléculas que formam a rede

cruciais na ciência moderna, começando com uma

cristalina do sólido molecular. A nova abordagem

visão macroscópica desde o estabelecimento da nova

evidenciou uma geometrização muito mais ampla e

mineralogia na virada do século XIX. Aqueles estudos

interessante da matéria, ao mostrar as razões de

ganharam muita força após o estabelecimento da

muitas propriedades não aparentes a partir do

teoria do carbono tetraédrico por Jacobus H. van’t

conhecimento

Hoff na década de 1870. Duas décadas depois um

individuais. Esta geometrização mais ampla, com

tratamento análogo foi efetuado por Alfred Werner

todas as suas consequências, faz-nos refletir sobre a

para compostos de coordenação octaédricos,

profundidade da intuição platônica ao querer

quadráticos e tetraédricos.

descobrir os segredos da estrutura íntima da matéria

Ao longo do século XX, a espectroscopia e a

das

estruturas

de

moléculas

a partir da geometria.

cristalografia por difração de raios X consagraram

Por exemplo, quando se estudam os sólidos iônicos,

definitivamente o papel fundamental da simetria no

covalentes e metálicos, isto é, aqueles em que todas

entendimento da constituição da matéria. Contudo,

as partículas estão unidas umas às outras por forças

durante a maior parte do século XX, a preocupação

iguais, obtêm-se em geral estruturas para os

maior dos químicos e outros investigadores da

conjuntos

estrutura dos materiais foi sobretudo a geometria de

correspondendo

moléculas individuais. Nas últimas décadas, os

platônicos ou a eles relacionadas (SHERDEN &

estudos se ampliaram consideravelmente no sentido

ALLAN, 2005). Algumas dessas estruturas podem ser

de que, para se conhecer a estrutura de uma

vistas na Figura 2, a saber, dois cubos e a estrutura de

substância molecular, é necessário estudar não só a

um octaedro metálico.

estrutura da molécula individual como também

A)

B)

de

partículas

que

frequentemente

se aos

repetem, sólidos


G N A R U S | 10

C)

Figura 2 – a) Estrutura de um cubo iônico, NaCl. b) Sólido covalente cúbico, diamante. c) Forma dos orbitais ligantes (bolas azuis) ao redor de um íon metálico com seus orbitais d em um octaedro metálico.

As estruturas dos sólidos iônicos, exemplificados na

também para o entendimento das interações

Fig. 2, foram obtidas por difração de raios X de

intermoleculares, cujo papel é crucial para o

monocristais daqueles materiais. A descrição da

conhecimento das propriedades da substância.

estrutura de sólidos moleculares, contudo, teve um tratamento diverso. Tradicionalmente se dava uma ênfase muito maior à estrutura da molécula, ficando

Conclusão

a estrutura do cristal, de que a molécula é o bloco fundamental, em segundo plano. Nos últimos anos,

Ao fazer um estudo da estrutura cristalina dos

percebeu-se que ambos os aspectos têm peso

sólidos moleculares nas ciências físicas e químicas,

considerável

sólidos

curiosamente retornam, com grande frequência, as

moleculares, ou seja, é necessário conhecer a

imagens dos sólidos platônicos e outros deles

estrutura da molécula individual, mas também a

derivados, assim como acontece nos sólidos iônicos,

maneira em que as várias moléculas se agrupam

covalentes e metálicos. Desta maneira, podemos

formando o retículo cristalino do sólido. Isto é

dizer que essas estruturas têm enorme importância

importante não só do ponto de vista estrutural como

para o estudo dos sólidos em geral, qualquer que seja

no

entendimento

dos


G N A R U S | 11 a forma de ligação entre os átomos que constituem o sólido. A Química necessita estudar os sólidos de Platão, assim como a área da cristalografia, para melhor entender a natureza íntima da matéria. Adílio Jorge Marques é Doutor em História e Epistemologia das Ciências pela UFRJ e Professor Adjunto da UFF/INFES.

Bibliografia HEISENBERG, W. Physics and Beyond. New York: Harper Tochbooks, 1972. KAUFFMAN, G. B. Coordination Chemistry – a Century of Progress. Washington, D.C.: American Chemical Society, 1994.

MARCONDES, D. Iniciação à História da Filosofia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2000. MARQUES, A. J. & SENRA, A. V. D. Scientiarum Historia. Livro de Anais. Rio de Janeiro: UFRJ, 2008. PLATÃO. Timeu e Crítias ou A Atlântida. São Paulo: Hemus, 1990. REALE, G. História da Filosofia Antiga. São Paulo: Loyola, 1993. SHERDEN, Nat & ALLAN, Kevin. The Platonic Solids. 2005. In http://www.3quarks.com/GIFAnimations/PlatonicSolids/. Acesso em 03 jun 2016. TRINAJSTIC, Nenad; NIKOLIC, Sonja; MIHALIC, Zlatko. On the Complexity of Platonic Solids.

Bulletin of the Chemists anf Teclmologists of Macedonia. vol. 13, no. 2, 1994. VAN´T HOFF, J. H. Stéréochimie. Paris: Georges Carré

Éditeur, 1892. VLASTOS, G. O universo de Platão. Brasília: EdUnB, 1987.

A Academia de Platão em Atenas Mosaico em Pompéia, ca. século I


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