21 gnarus7 a heresia dos valdenses a pregação não autorizada (1173 1206)

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Artigo

A HERESIA DOS VALDENSES: “A PREGAÇÃO NÃO AUTORIZADA” (1173-1206) Por Flávio Henrique Santos de Souza Resumo: O tema de nossa pesquisa é relativo à heresia dos Valdenses, também conhecida como dos “pobres de Lyon”. A origem desse grupo tido como herético é atribuída ao comerciante Pedro Valdo de Lyon que após sua conversão ao cristianismo (em 1173) decidiu viver em pobreza apostólica pregando o Evangelho. Em 1179, O Papa Alexandre III entrou em contato com esse movimento de pregadores e teria gostado da postura dos mesmos, entretanto, fixou que os Valdenses só deveriam pregar com a autorização eclesiástica. Inicialmente, o grupo decidiu obedecer à norma da Igreja, mas não por muito tempo. Pois mais tarde, o movimento rompeu com a obediência e voltou a pregar sem o aval do clero. Assim, em 1184, os Valdenses foram declarados hereges no Sínodo de Verona pelo Pontífice Lúcio III. Nessa conjuntura, levantamos os seguintes questionamentos: por que os Valdenses não obedeceram às ordens papais? E o que caracterizou o movimento como herético? Palavras-Chave: Valdenses, Cristianismo, Pregação não autorizada, Heresia.

Introdução

É

período moderno, foram incluídos na categoria de

interessante notar que até os dias de hoje quando ouvimos o termo heresia, associamo-

hereges as “bruxas”, os praticantes do paganismo etc).

lo de imediato com relação a algum “infiel”

Segundo o historiador Nachman Falbel, “a palavra

que começou a pensar e proferir um ideário

heresia (do grego hairesis, hairein, que significa

diferente do que é ensinado em alguma instituição

escolher) acompanhou a vida da Igreja desde os

religiosa, mas, a palavra herege só pode ter a

inícios, e para os escritores eclesiásticos o termo

conotação negativa apropriada quando aplicada

designava uma doutrina contrária aos princípios de

aos grupos cristãos. Pois em outras tendências

fé oficialmente declarada”1.

religiosas como, por exemplo, no judaísmo ou no islamismo,

existem

sistemas

de

crenças

diferenciados em relação ao cristianismo. Portanto, o herege se tornou um inimigo interno no próprio seio do cristianismo (já na Baixa Idade Média e FALBEL, Nachman. Heresias Medievais. São Paulo: Perspectiva, 1976, p. 13. 1

Mas, a terminologia heresia em sua raiz não se remete a uma doutrina contrária, essa definição foi sendo construída ao longo da história da Igreja pelos escritores eclesiásticos. De acordo com o


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Dicionário Bíblico de João Batista Ribeiro Santos,

Assim, analisaremos a perspectiva dos Valdenses

no verbete heresia, é elencado as gradações que

de pregar o Evangelho sem autorização clerical que

ocorreram na concepção da palavra:

foi arbitrariamente tida como herética.

“Este nome deriva de uma palavra grega, que primeiramente queria dizer o ato de tomar (uma cidade, por exemplo); depois teve o sentido de escolha e eleição, de inclinação ou preferências; e a significação da própria coisa escolhida; e por fim veio significar um princípio filosófico ou sistema, as pessoas que seguem esses princípios, uma seita ou uma escola de pensamentos.”2

Objeções à prédica valdense A heresia dos Valdenses (movimento também conhecido como os “pobres de Lyon”) é considerada como uma seita por Nachman Falbel

Então, observando à concepção do termo heresia, podemos visualizar que ele foi sendo erigido ao longo de um processo histórico, porquanto desde a Antiguidade

até

a

Baixa

Idade

Média

a

terminologia foi ganhando matizes e sentidos

que diz que “ela foi fundada pelo rico comerciante Pedro Valdo ou Valdes de Lyons que, segundo o testemunho

algo sobremodo “espiritual”, isto é, o herético tornou-se alguém que é influenciado pelo diabo para dividir comunidades cristãs. Com isso, o indivíduo passa a não aceitar mais as doutrinações e tradições da Igreja que antes aceitava. Assim como sublinha a historiadora Tereza Aline Queiroz: “É preciso lembrar, também, que a definição de heresia foi se modificando gradativamente durante a Idade Média. Por certo, esteve sempre relacionada com o cristianismo e a revelação, segundo a fórmula de Isidoro de Sevilha: é herético aquele que não mais aceita, ou critica os dogmas cristãos, e recusa o magistério da Igreja romana que antes reconhecia.”3

de

Laon,

ficou

profundamente abalado pela leitura das Escrituras

Sagradas, por volta de 1173”5. Em 1173, após Pedro Valdo se converter ao

diferenciados. O termo que em sua etimologia grega significa escolha, se tornou posteriormente

Anônimo

cristianismo teria começado a pregar o Evangelho de forma itinerante na cidade de Lyon, e, conseguiu reunir em torno de si um grupo de homens e mulheres que aderiram à pobreza voluntária. Todavia, essa pregação posteriormente geraria problemas com relação ao papel dos sacerdotes (“mediadores” entre Deus e os homens) que eram os únicos autorizados à preleção. Por causa da insistência do grupo na questão da prédica, os Valdenses doravante foram tidos como heréticos. O movimento dos Valdenses surgiu na cidade de Lyon, que teria sido fundada pelos romanos em 43 d.C. e sua localização ficava às margens do rio Rhône. “Desde a época de Augusto até Diocleciano

Destarte, a pessoa e a imagem do herege foram

foi a capital política, econômica, militar e religiosa

sendo construídas por quem se achava “ortodoxo”, ou seja, pelos sacerdotes. Logo, “todo herético tornou-se tal por decisão das autoridades ortodoxas. Ele é antes de tudo um herético aos olhos dos outros”4.

SANTOS, João Batista Ribeiro. Dicionário Bíblico. São Paulo: Didática Paulista, 2006, p.207. 3 QUEIROZ, Tereza Aline Pereira de. As Heresias Medievais. São Paulo: Atual, 1988, p. 11. 2

BARROS, José D´Assunção. Papas, Imperadores e Hereges na Idade Média. Petrópolis, RJ: Vozes, 2012, p.56. 5 FALBEL, Nachman. Heresias Medievais. São Paulo: 4

Perspectiva, 1976, p. 61.


G N A R U S | 23 das três Gálias (...)”6. Hoje, Lyon é considerada a

Evangelho.

segunda maior cidade da França.

circunscrita ao clero, de modo que só se poderia

Já na segunda metade do século XII, o controle da cidade de Lyon estava nas mãos do poder condal que fazia parte do reino da Borgonha, isto é, os condes de Forez e de Roanez a dominavam e o Imperador tinha apenas um “controle nominal” do território. Isso porque o mesmo estava distante da região e o poder, de fato, pelo controle da cidade estava sendo disputado pelos condes e os arcebispos. Esse embate entre os poderes se

O recorte temporal da nossa pesquisa fica entre os séculos XII e XIII (que se convencionou abarcar pela historiografia como Baixa Idade Média) e foi o cenário do surgimento de novas questões espirituais, pois segundo Brenda Bolton, teria ocorrido uma crise religiosa no século XII que fez com que os clérigos fizessem uma reforma medieval na estrutura da Igreja. De sorte que com a crise em termos religiosos, as novas práticas e propostas de espiritualidade estavam se avolumando pelo fato de algumas pessoas estarem descontentes com a

a

prédica

estava

pregar quem fosse sacerdote. A Igreja se posicionava como quem tivesse o monopólio da pregação, mas de acordo com alguns textos do

Novo Testamento, podemos visualizar que no século I d.C., a prática de pregações daquilo que Jesus de Nazaré teria chamado de evangelho do Reino de Deus era comum aos que criam e recebiam a fé. No Evangelho atribuído a Lucas7, está relatado o caso do “endemoninhado” da Jesus foi apregoando por toda a cidade sobre as benesses que Jesus o teria feito. Já em 1ª aos Corintíos8, o apóstolo Paulo exortou a comunidade cristã de Corinto sobre a necessidade de ordem no ajuntamento. Pois a mesma estava em grande desordem no que tangia à organização da adoração. Dessa forma, Paulo asseverou que todos da comunidade cristã poderiam partcipar do culto, mas cada um na sua vez. Retroagimos, agora, a nossa análise para os Valdenses na Baixa Idade Média. Desde a eleição papal de Gregório VII (1073-

moral da Igreja institucionalizada. Nesse contexto, muitos grupos que buscaram uma forma de “espiritualidade alternativa” foram tidos como ortodoxos (os franciscanos, os dominicanos etc.), como também, muitos grupos que aspiravam uma nova forma de vida espiritual foram classificados como heterodoxos pela Igreja (os Valdenses, os

1085), se buscou tomar medidas para reformar a Igreja e redefinir seu papel ante a sociedade. Isso porque a Igreja estava vivendo as raízes de uma grande crise, porquanto “a Igreja tornara-se negligente e mundana nas suas actividades. Reinava a simonia, isto é, o abuso do tráfico de dignidades eclesiásticas, e os leigos exerciam uma

humiliati etc.) das

porque

cidade de Gadara que após ter sido exorcizado por

estendeu por um longo período.

Uma

Isso

características

dos

Valdenses

estigmatizada como heterodoxa pela Igreja foi a

influência desproporcionada na nomeação de dignitários da Igreja”9.

renitência do grupo leigo em querer pregar o

THOMÉ, Laura Maria Silva. Da Ortodoxia a Heresia: os valdenses (1170-1215). Dissertação de mestrado em História, Curso de Pós-Graduação em História, Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes, Universidade Federal do Paraná. 2004, p. 87. 6

7

Lucas, 8: 26-39. 1 Coríntios, 14: 26-33. 9 BOLTON, Brenda. A Reforma na Idade Média. Lisboa: Edições 70, 1983, p. 20. 8


G N A R U S | 24 Os Valdenses surgiram como uma proposta nova

mesma vivia de forma totalmente antagônica

de espiritualidade que tinha o desejo de evocar e

daquilo que dizia (nem todos os clérigos se

retomar os princípios de vida espiritual que teriam

encaixavam nesse dilema), ou seja, havia um imenso

sido desenvolvidos pela Igreja primitiva, onde a

abismo entre a fala sacerdotal e a prática dos

fraternidade, humildade, pobreza e altruísmo

mesmos naquela sociedade. Por isso, para os

grassavam na vida da comunidade cristã. Segundo

Valdenses:

o historiador André Vauchez, “a vita apostolica, enfatizando a comunidade dos bens, abolia a distinção entre ricos e pobres”10. E Vauchez ainda diz que: “O ideal da Ecclesiae primitivae se tornou a referência obrigatória da nova espiritualidade, que, de maneira aparentemente paradoxal, procurava, em uma fidelidade intensificada no testemunho dos apóstolos e na mensagem evangélica, a resposta para os problemas levantados por uma sociedade em mutação.”11

“Seguir o modelo da Igreja primitiva não era pois unicamente viver em comunidade, sem propriedade privada, mas também ir até outros homens. Essa abertura para o mundo exterior tomou formas muito diversas segundo os casos, desde o desenvolvimento da hospitalidade e da assistência até o ministério da pregação”13

Após o grupo dos Valdenses ter pregado a pobreza voluntária e a penitência por seis anos (1173-1179), e conseguir formar uma pequena comunidade, o sacerdote Guichard de Lyon o

Logo, os Valdenses se idenificavam com a vida

proibiu de continuar. Pedro Valdo conjuntamente

simples de Jesus e dos adeptos iniciais da fé cristã.

com o grupo “(...) desejavam o reconhecimento

Com isso, visualizaram uma enorme incongruência

papal e achavam que a interdição que lhes fora

entre a vida abastada do clero e a simplicidade com

imposta pelo bispo Guichard de Lyon estava em

que Jesus de Nazaré vivia. E por conseguinte,

contradição com a exortação bíblica para pregar e

atacaram rispidamente a instituição eclesiástica

viver uma vida apostólica”14.

com seus discursos:

Assim, em 1179, os Valdenses participaram do III Concílio de Latrão15 e conseguiram ter seu modo de

“As heresias dos séculos XII-XIII foram essencialmente movimentos sociais contestadores, que assumiam forma religiosa por ser, é óbvio, produto de seu tempo. Noutros termos, o discurso ideológico dominante, clerical, só poderia ser negado por um discurso que partisse dele. Só poderia ser quebrado por dentro. Eis o sentido das heresias.”12

Sendo assim, as preleções dos Valdenses buscavam debelar o discurso oficial da Igreja que ressaltava a simplicidade para os outros, pois a

VAUCHEZ, André. A Espiritualidade na Idade Média Ocidental (séculos VIII a XIII). Rio de Janeiro: Zahar Editor, 10

1995, p. 74. 11 Ibid., p. 71. 12 FRANCO JÚNIOR, Hilário. A Idade Média: Nascimento do Ocidente. São Paulo: Brasiliense, 2001, p. 67. 13 VAUCHEZ, André. A Espiritualidade na Idade Média Ocidental (séculos VIII a XIII). Rio de Janeiro: Zahar Editor, 1995, p. 72.

vida parcialmente aceito pelo Papa Alexandre III (porque ainda não eram tidos como heréticos) entretanto, ao regressarem para a cidade de Lyon receberam orientações papais de que não deveriam pregar sem antes ter a autorização eclesiástica local. Pois logo após a conversão de Pedro Valdo ao cristianismo,

houve

uma

radicalização

de

pregadores leigos que proclamavam uma forma alternativa de se conceber a vida espiritual.

14 BOLTON, Brenda. A Reforma na Idade Média. Lisboa: Edições

70, 1983, p. 65. 15 Este foi o décimo primeiro Concílo Ecumênico da história da Igreja e foi presidido pelo Pontífice Alexandre III. O escopo do Concílio foi remover os vestígios ainda existentes do Grande Cisma (em 1054), como também condenar os Valdenses e os Cátaros que foram considerados heréticos, e, pressionar por uma restauração da disciplina eclesiástica. BOLTON, Brenda. A Reforma na Idade Média. Lisboa: Edições 70, 1983. p. 112-114.


G N A R U S | 25 Inicialmente, os Valdenses obedeceram às ordens

foram bastante utilizados em termos de memória

de não fazerem preleções e até ajudaram a Igreja

pelos eclesiásticos, e segundo Jacques Le Goff o

no combate à heresia cátara16 que estava

registro por escrito tem algumas funcionalidades:

atormentando os clérigos pondo em perigo o prestígio do sacerdócio católico, pois o catarismo tinha tendências anticlericais e dualistas. Porém, mais tarde os Valdenses romperam com a obediência e reiniciaram suas pregações.

“Neste tipo de documento a escrita tem duas funções principais: Uma é o armazenamento de informações, que permite comunicar através do tempo e do espaço, e fornece ao homem um processo de marcação, memorização e registro; a outra, ao assegurar a passagem da esfera auditiva à visual, permite reexaminar, reordenar, retificar frases e até palavras isoladas”18

A desobediência clerical dos Valdenses se deu pelo fato de o grupo querer buscar viver uma

Então, é coerente afirmarmos que esse tipo de

espiritualidade de acordo com a vita apostólica, ou

documentação escrita (a bula papal) serviu para

seja, um estilo de vida onde privilegiavam os

comunicar através do tempo e do espaço questões

exemplos deixados por Jesus de Nazaré e pelos

políticas e religiosas relacionadas à Igreja, e,

apóstolos como falamos anteriormente. Pois para

estigmatizar grupos que foram considerados

os Valdenses, a Igreja se tornou assaz preocupada

transgressores na perspectiva do clero, como

com o poder temporal e por isso negligenciou a sua

também, delimitar e fixar a doutrina da Igreja para

missão espiritual. Vauchez pontua que:

as futuras gerações engendrando, assim, um avanço nas reflexões teológicas. Dessa forma, se postulava

“Em uma época em que a Igreja, pelo menos no nível do seu clero, escolhera claramente agir sobre o mundo e colocá-lo sob sua tutela, para torná-lo de acordo com o plano de Deus, muitos fiéis quiseram protestar contra essa evolução, afirmando sua fidelidade a um paleocristianismo, baseado na simplicidade evangélica e na recusa do mundo”.17

uma advertência, a fim de que outros indivíduos não incorressem nos mesmos erros dos que foram tidos como heterodoxos no prisma clerical. Nesta bula, aparece a primeira menção aos Valdenses (pobres de Lyon) como hereges que foram condenados à excomunhão e também foram

Com isso, em 1184, os Valdenses foram declarados heréticos no Sínodo de Verona pelo Papa Lúcio III (o sucessor de Alexandre III) que publicou um decreto condenando também outras heresias. O documento que oficializou a condenação dos Valdenses foi a bula Ad abolendam promulgada pelo Papa Lúcio III no Sínodo de Verona. De uma

anatematizados19 perpetuamente. O intuito do decreto era abolir não só o ideal dos Valdenses, mas também alcançava diversas heresias existentes no período. A bula também “impôs a plena categorização legal da heresia como crime capital e público, razão suficiente para legitimar diversas ações de marginalização e expropriação dos acusados, antes mesmo da formalização da

forma geral, as bulas eram decretos papais que

16 Grupo de heréticos que tinha a perspectiva de que no mundo

existia um grande embate entre as forças do Bem e do Mal, isto é, uma batalha entre o espírito e a carne. Para os Cátaros, tudo que era material advinha do demônio. LOYN, H. R. Dicionário da Idade Média. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1997, p, 202. 17 VAUCHEZ, André. A Espiritualidade na Idade Média Ocidental (séculos VIII a XIII). Rio de Janeiro: Zahar Editor, 1995, p. 103-104.

18 LE GOFF, Jacques. História e Memória. Campinas, SP: Editora

da UNICAMP, 1990, p. 433. 19 Anátema no grego (anáthema) significa votado à maldição. Esse termo quando empregado no Novo Testamento pode significar “alguém que não compartilha da mesma doutrina (Gl, 1:8)”. Assim, por não partilhar do mesmo ideário doutrinal o indivíduo é tido como amaldiçoado. SANTOS, João Batista Ribeiro. Dicionário Bíblico. São Paulo: Didática Paulista, 2006. p. 33.


G N A R U S | 26 princípio gerador de todos os pensamentos e ações, segundo as normas de uma representação religiosa do mundo natural e sobrenatural, ou seja, objetivamente ajustados aos princípios de uma visão política do mundo social.”22

sentença”20. Pode-se dizer que esta bula foi um dos “textos fundadores da Inquisição”. A relevância de se estudar as heresias dos séculos XII e XIII (sobretudo a dos Valdenses) na perspectiva da Igreja ocidental, se encontra no fato

Com isso, não se pode perder de vista as relações

de que nesse período os discursos dos intitulados

de poder contidas em dado campo simbólico.

hereges deixaram de ser sobremaneira teológicos

Porque o poder político age imiscuído na mediação

como na Antiguidade e na Alta Idade Média,

dos sistemas simbólicos que passam a existir através

porquanto os mesmos se tornaram instrumentos de

de linguagens específicas e que encobre os

resistência dos descontentes contra a instituição

objetivos materiais do poder constituído. Desse

clerical. Pois “a heresia medieval desencadeia-se

modo, o autor discute as origens e a estrutura do

por razões de ordem moral e infiltra-se em todos os

campo religioso fazendo uma associação direta

meios sociais”21.

entre religião e política. Mostrando que o

Analisaremos, agora, o porquê da Igreja não

“produto” religioso se torna em uma oferta para

querer facultar a pregação para grupos leigos (isso

atender às demandas dos clientes de diversas

somente até o pontificado de Lúcio III).

camadas sociais. Pois: “Assim, o capital de autoridade propriamente religiosa de que dispõe uma instância religiosa depende da força material e simbólica dos grupos ou classes que ela pode mobilizar oferecendolhes bens e serviços capazes de satisfazer seus interesses religiosos, sendo que a natureza destes bens e serviços depende, por sua vez, do capital de autoridade religiosa de que dispõe levando-se em conta a mediação operada pela posição da instância produtora na estrutura do campo religioso. ”23

Embate pelo monopólio dos bens da salvação Segundo o sociólogo francês Pierre Bourdieu, existem formas de dominação simbólicas em cada sociedade e os mecanismos para subjugar têm por escopo legitimar os grupos dominantes. O autor mostra que existe uma esfera simbólica que busca ordenar o mundo natural e social através de discursos, mensagens e representações. Esses elementos simbólicos são alegorias que querem se passar por realidade, mas na verdade são questões ideológicas que se tornam o bastião do sistema de dominação. Como salienta Bourdieu: “Em função de sua posição na estrutura da distribuição do capital de autoridade propriamente religiosa, as diferentes instâncias religiosas, indivíduos ou instituições, podem lançar mão do capital religioso na concorrência pelo monopólio da gestão dos bens da salvação e do exercício legítimo do poder religioso enquanto poder de modificar em bases duradouras as representações e as práticas dos leigos, inculcando-lhes um habitus religioso, RUST, Leandro Duarte. Bulas Inquisitoriais: Ad Abolendam (1184) e Vergentis in Senium (1199). Revista de História, São Paulo, n. 166, p. 129-161, jan./jun. 2012, p. 135. Disponível em: http://www.revistas.usp.br/revhistoria/article/view/48532/52 451. Acesso em: 11/12/14. 20

A religião que faz parte da esfera cultural é vista por Bourdieu como uma espécie de mercado de bens simbólicos. Logo, a funcionalidade da religião se encaixa na lei da oferta e da procura, e, é adaptada entre as camadas sociais existentes. Nessa conjuntura, a querela pelo monopólio do exercício do poder religioso sobre o laicato e o embate administrativo pelos bens da salvação, encontra-se em ebulição entre a Igreja, o profeta e sua seita.

QUEIROZ, Tereza Aline Pereira de. As Heresias Medievais. São Paulo: Atual, 1988, p. 23-24. 22 BOURDIEU, Pierre. A Economia das Trocas Simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 2007, p. 57. 23 Ibid., p. 58. 21


G N A R U S | 27 assegurando a manutenção da ordem no interior do corpo de especialistas) e pela delegação do corpo de sacerdotes (funcionários do culto intercambiáveis e, portanto, substituíveis do culto do ponto de vista do capital religioso) do monopólio da distribuição institucional ou sacramental e, ao mesmo tempo, de uma autoridade (ou uma graça) de função (ou de instituição).”25

E foi justamente isso que ocorreu com os Valdenses, o grupo que foi considerado herético se enveredou em querer pregar a “Palavra de Deus” sem autorização eclesiástica, logo, o bispo Guichard de Lyon proibiu que pregassem. Pedro Valdo apelou para o Papa Alexandre III e lhe foi permitido comparecer ao Terceiro Concílio de Latrão (em 1179). O Papa decidiu que o grupo pregaria somente com a autorização da Igreja (permissão essa que na prática não se concretizaria, porque a Igreja só facultava a pregação para os que fossem ordenados ao sacerdócio) e os Valdenses obedeceram durante um curto período de tempo às ordens papais, pois mais tarde, se estribaram no texto de Atos dos Apóstolos que é um pronunciameto atribuído a Pedro e outros apóstolos que teriam dito que o “mais importante seria obedecer a Deus do que aos homens”24. Destarte, os Valdenses foram excomungados pela

Em relação ao herege e sua seita, eles são caracterizados

contexto,

vão

ser

ordenado.

conseguinte, surgiu uma nova categoria de heresia. Tendo feito isso: “(...) A Igreja visa conquistar ou preservar um monopólio mais ou menos total de um capital de graça institucional ou sacramental (do qual é depositária por delegação e que constitui um objeto de troca com os leigos e um instrumento de poder sobre os mesmos) pelo controle do acesso aos meios de produção, de reprodução e de distribuição dos bens de salvação (ou seja, 24

Atos, 5: 29. BOURDIEU, Pierre. A Economia das Trocas Simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 2007, p. 58. 25

angariando

adeptos

de

uma

maneira

“A força de que dispõe o profeta (empresário independente de salvação) cuja pretensão consiste em produzir bens de salvação de um tipo novo e propensos a desvalorizar os antigos – tarefa para a qual conta exclusivamente com sua “pessoa” como única caução ou garantia na falta de qualquer capital inicial –, depende da aptidão de seu discurso e de sua prática para mobilizar os interesses religiosos virtualmente heréticos de grupos ou classes determinados de leigos, graças ao efeito de consagração que o mero fato da simbolização e da explicitação exerce.”26

fosse

Por

os

pontua Bourdieu:

excomungou e rotulou como heréticos os que sem

que

transformação do status quo da Igreja. Como

questionada. Por isso, a bula Ad abolendam os pregar

pontuarmos

totalmente voluntária com uma promessa de

“Palavra de Deus” fez com que a exclusividade da

quisessem

coerente

questionam a Igreja institucionalizada, e com isso,

Essa atitude dos Valdenses de querer pregar a Igreja

é

subjetivas, e após divulgarem essas experiências,

e à assistência pastoral.

da

grupo

considerados heréticos surgem com experiências

viver de forma itinerante dedicando-se a pregação

sacerdotes

um

doutrinários ou institucionais da Igreja. Nesse

Papa Lúcio III. Apesar disso, o grupo continuou a

dos

aparece

antagônico a todos ou a alguns aspectos

desobediência em 1184 no Sínodo de Verona pelo

mediação

quando

Dessa forma, os chamados heréticos fundadores das seitas são dotados de um carisma pessoal que pode até denotar uma forma revolucionária de buscar um cisma nas estruturas tradicionais. Com isso, oferecem uma mensagem de mudança e salvação que são contrárias ao discurso das autoridades tradicionais.

BOURDIEU, Pierre. A Economia das Trocas Simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 2007, p. 60. 26


G N A R U S | 28 monopólio total dos instrumentos de salvação consiste na oposição entre a ortodoxia e a heresia. (...) O conflito pela autoridade propriamente religiosa entre os especialistas (conflito teológico) e/ ou o conflito pelo poder no interior da Igreja conduz a uma contestação da hierarquia eclesiástica que toma a forma de uma heresia do momento em que, em meio a uma situação de crise, a contestação da monopolização do monopólio eclesiástico por parte de uma fração do clero depara-se com os interesses anticlericais de uma fração dos leigos e conduz a uma contestação do monopólio eclesiástico enquanto tal.”29

Nesse ínterim, Bourdieu sublinha que para a Igreja se consolidar em relação ao herege, precisa reprimi-lo fisicamente ou simbolicamente: “(...) Quando as relações de força são favoráveis à Igreja, a consolidação dessa depende da supressão do profeta (ou da seita) por meio da violência física ou simbólica (excomunhão), a menos que a submissão do profeta (ou do reformador), ou seja, o reconhecimento da legitimidade do monopólio eclesiástico (e da hierarquia que o garante) (...).”27

Assim, o heresiarca será sempre associado como alguém que quer promover bruscas mudanças em relação à instituição tradicional. E a ruptura causada por ele separa a tradição e a burocracia. Na

Desse jeito, o embate entre a Igreja e os hereges se dá para buscar a legitimidade no campo religioso e político, visando manutenir, sobretudo, o monopólio dos bens da salvação.

perspectiva do herege, a “verdade” da fé está com ele e seu objetivo sempre será retroagir a um estado

Considerações finais

“genuíno” dessa fé, isto é, haverá um suposto regresso aos ensinos dos idealizadores da mesma. Como afiança Falbel:

Os Valdenses preferiram seguir às ordens atribuídas a Jesus de Nazaré e por isso desobedeceram às ordens papais no tocante à

“Na verdade, podemos ver na crítica herética, ou melhor dito, em parte desta crítica, uma tentativa de apontar os erros e os desvios da instituição eclesiástica, da sua intervenção no poder secular à custa de sua missão espiritual; enfim, uma tentativa de alertar a sociedade cristã de que os seus representantes desvirtuaram a verdadeira imagem da religião fundada por Cristo.”28

pregação do Evangelho. Rompendo assim, com o monopólio da pregação da Igreja. Portanto, queriam estribar seu estilo de vida fundamentado nos ensinos e no modelo da Igreja primitiva, ou seja, queriam viver uma forma mais “pura” de cristianismo. Foram utilizados pelos Valdenses três textos do

Com as novas propostas de espiritualidade trazidas

pelos

heresiarcas,

eles

Novo Testamento que corroboravam a busca de um

conseguem

paleocristianismo. O primeiro texto se encontra no

seguidores que estão insatisfeitos com a religião

livro de Atos dos Apóstolos30, onde se descreve o

tradicional e assim iniciam uma seita. Para a Igreja,

exemplo de uma vida simples e compartida da

a seita é um grupo de pessoas “influídas” pelo mal

comunidade de Jerusalém. Para os Valdenses a vita

que buscam semear a desordem com seus ensinos

apostólica não significava apenas a pregação da

danosos e desvirtuadores da “verdade”. Esse

“Palavra de Deus”, mas também compartilhar os

embate se dá pelo fato de a Igreja ter o monopólio

haveres com todos aqueles que atravessavam

da salvação e de não querer perdê-lo:

momentos de necessidades. O segundo texto está

“Uma forma particular da luta pelo monopólio que se instaura quando a Igreja detém um 27

Ibid., p. 62. FALBEL, Nachman. Heresias Medievais. São Paulo: Perspectiva, 1976, p. 14. 28

BOURDIEU, Pierre. A Economia das Trocas Simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 2007, p. 62. 30 Atos, 4:32. 29


G N A R U S | 29 no Evangelho arrogado a Lucas31, onde Jesus de

Referências bibliográficas

Nazaré teria evidenciado aos discípulos a observância da pobreza, e, no seu discurso fez uma

Documentação

ilustração de uma grande colheita. Isso sugeriria

DECRETAL del papa Lucio III Ad Abolendam.

aos

discípulos

que

deveriam

proclamar

a

mensagem do Evangelho, ou seja, Jesus teria instituído uma missão local de proselitismo. E o terceiro texto está no Evangelho atribuído a Marcos, onde teria sido salientado por Jesus: “ide por todo mundo, pregai o evangelho a toda criatuara”32. O objetivo dessa suposta alegação de Jesus, seria a expansão universal de seus ensinamentos através da pregação. Em 1207, Pedro Valdo faleceu e o grupo dos Valdenses se dividiu ainda mais. Isso porque desde 1200, o próprio Valdo tinha alijado grupos discrepantes no Languedoque e na Lombardia. Logo depois da morte de Valdo, dois grupos decidiram regressar à tutela da Igreja, porém, a maioria continuou na desobediência clerical. Com isso, os grupos dos Valdenses que se fragmentaram começaram a questionar os dogmas e sacramentos da Igreja, assim, fundaram suas Igrejas e liturgias próprias. Sendo assim, os Valdenses posteriores à morte de Pedro Valdo se distanciaram bastante dos ideais dos primeiros Valdenses, que só tinham por escopo desmonopolizar a prédica do clero romano, viver uma nova proposta mais “pura” de cristianismo (isso na perspectiva deles), proclamála através das pregações vernáculas de forma itinerante e ajudar os necessitados. Flávio Henrique Santos de Souza é Licenciado em História pela Universidade Castelo Branco (UCB) e Pósgraduado em História Antiga e Medieval pelo Núcleo de Estudos da Antiguidade da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (NEA-UERJ). E-mail: flaviofever@hotmail.com

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Lucas, 10: 1-12.

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Marcos, 16:15.


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Estátua de Pedro Valdo no Memorial Lutero em Worms , Alemanha (1868)


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