17 prática religiosa brasileira

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Artigo:

PRÁTICA RELIGIOSA BRASILEIRA: ENTRE O PÚBLICO E O PRIVADO Por Pedro Tavares

O

termo cultura é mais amplo e denso do

construindo assim uma nova forma de viver e

que pensamos, uma vez que este

explicar a vida. Contudo, Brustolin (2010) observa

conceito permeia diversas áreas como

que o ser humano não tem total domínio da

no caso a Filosofia que apresenta dois conceitos de

natureza uma vez que não tem controle sobre os

iluminista.1

fenômenos naturais e a morte, esses fatos

Antropologia ressalta as qualidades cognitivas do

constituem “a ordem do não-sentido”, ou seja, o

ser humano, uma vez que o mesmo tem uma série

que não pode ser explicado. Esta busca frustrada

de posturas e reações que não estão presentes em

por significados faz com que o ser humano busque

outros animais somando a isto a noção de

no transcendente a resposta para aquilo que

comportamento

pertence à “ordem do não sentido”:

cultura,

um

clássico

e

ensinado

outro

e

aprendido

em

detrimento do intuitivo utilizado pelos animais de

“Os fatos naturais deixam os seres humanos desamparados. Em decorrência, nasce a necessidade de cultivar uma relação com o transcendente, com o que está além da realidade visível e que não pode ser controlável. Nesse sentido, toda cultura tem, na essência, um sentido religioso.”3

um modo geral. Essa teoria nos leva à psicologia analítica de Freud que defende que o ser humano evoluiu distanciando-se da natureza, e esse fato se deu quando o homem “começou a cultivar, a criar,

A partir desta relação entre ser humano e

a cultuar, a fazer cultura.”2 Segundo esta corrente a “separação” ocorre quando o humano consegue dominar a natureza

1

“(...) No primeiro sentido, a Cultura é o aprimoramento da natureza humana pela educação em sentido amplo, isto é, como formação das crianças não só pela alfabetização, mas também pela iniciação à vida da coletividade por meio do aprendizado da música, dança, ginástica, gramática, poesia, retórica, história, Filosofia, etc. (...) No segundo sentido, isto é, naquele formulado a partir do século XVIII, tem início a separação e, posteriormente, a oposição entre Natureza e Cultura. Os pensadores consideram, sobretudo a partir de Kant, que há entre o homem e a Natureza uma diferença essencial: esta opera mecanicamente de acordo com leis necessárias de causa e efeito, mas aquele é dotado de liberdade e razão, agindo por escolha, de acordo com valores e fins. (...)” (CHAUÍ. 2000, p.372) 2 BRUSTOLIN, LEOMAR A. Religião e Cultura. São Paulo, 2010.Pp.03

transcendente levantasse a questão: a religião é a base última da cultura? Apesar de não ser consenso, intelectuais como Toynbee, Dawson e Tillich defendem o conceito de que a religião seria, entre diversos fatores, elemento último da cultura.

3

Ibid, P.03


G N A R U S | 142 privada no período colonial e como a mesma se inverte durante o Império. Anos antes de o Brasil ter sido “descoberto” (1500) por Cabral, a Igreja já havia concedido ao rei de Portugal o direito de “Padroado”, que fora dado ao monarca ibérico devido ao grande envolvimento do Estado português com a conversão de “infiéis”. O Papa concedeu à Coroa É necessário, portanto, que se entenda que a

lusa o direito de administrar as novas igrejas,

religião não é fruto da cultura, mas sim, elemento

tendo para isso, o rei de Portugal o dever de

central da mesma, constituindo a sua estrutura

converter novas almas e implementar um sistema

elementar e vital. Porém, assim como a religião

eclesiástico que ia da edificação de templos à

exerce influência direta sobre a cultura, a mesma

nomeação e remuneração dos clérigos nas novas

também influencia a religião.

terras.4

Este

fato

evidencia-se

ao

analisarmos

a

Este acontecimento nos ajuda a compreender o

religiosidade no período colonial, onde se buscava

fato de o Brasil, primeiramente como colônia e

reproduzir na América portuguesa os cultos de

depois como Estado soberano, se manter católico

forma idêntica aos praticados na Europa. Estes

por quase quatrocentos anos.

encontraram nos trópicos, muitas dificuldades para serem proferidos devido ao abismo existente entre a realidade da colônia e a corte lusitana.

O cristianismo enquanto religião sistematizada nos apresenta uma dualidade litúrgicana que diz respeito à necessidade de rituais públicos e

O século XIX reservou muitas transformações ao

privados a fim de alcançar o almejado reino dos

Brasil; estas vieram de diversas partes e não se

céus. Esta dualidade litúrgica parte do próprio

deram exclusivamente pelo fato de em menos de

Jesus, que em diversas passagens da sua vida se

um século termos coroado um rei e dois

alternou entre rituais individuais e coletivos. Essa

imperadores. Mas advêm de o fato do nosso país

tradição é perpassada de geração em geração até

receber influência de uma série de povos que

cruzar o oceano e aportar na colônia portuguesa

vieram para o Brasil, uns com viajantes em busca

na América.

de conhecimento (americanos e europeus) e outros de forma compulsória para servir de mão de obra (africanos). Essas culturas, em diversos pontos

No início da História cristã já é possível observar essa dualidade. “Primitiva igreja cristã, tal como podemos vislumbrar nos Atos dos Apóstolos, desde seus primórdios, reuniu essas duas posturas na prática religiosa: a contemplation, ou a oração pessoal, privada, e a liturgia, que no latim eclesiástico medieval equivalia a “ culto público e oficial instituído pela Igreja.” ”5

opostas, interagiam no cotidiano e se misturaram até formarmos o que conhecermos hoje como Brasil. Não me debruçarei sobre os diversos festejos ocorridos no Império, pois a proposta central deste breve trabalho é analisar de modo geral como se professavam a religiosidade predominantemente

4 5

PIERUCCI in GAARDER 2010, P.300. MOTT In: NOVAES, F.A e SOUZA, L. de M.1998. Pp. 159.


G N A R U S | 143 As obrigações do ser católico iam muito além das orações diárias e individuais “convinham alimentar sua vida espiritual privada e comunitária”6. Os rituais

religiosos

Portuguesa

como

funcionaram “um

na

América

contrapeso

social

significativo para compensar a dispersão espacial e isolamento social dos colonos”.7 No âmbito colonial muitos dos rituais que na metrópole eram realizados nas ruas e praças aqui tiveram de ser relidos ou seja foram levados para dentro de igrejas e mosteiros, devido aos perigos que rondavam os espaços públicos e à aridez climática8 no período inicial da colônia. No que concerne aos rituais individuais existiam instruções bem definidas quanto às obrigações individuais dos fiéis. Na concepção medieval existiam horas no dia de melhor comunicação com o transcendente (horas canônicas) iniciando à meia noite com a oração de matinas e a última às

da gentalha de cor, isolando-se por de trás de

oito da noite com a completas9. Nos trópicos essa

balaustradas e colunatas próximas ao altar-mor.”12.

concepção fora adotada apenas nos templos mais tradicionais. Em geral costumava se rezar em três momentos do dia, as “principais horas litúrgicas”10, que eram marcadas pelas badaladas dos sinos das igrejas e mosteiros espalhados pela colônia11. No Brasil, diferente de Portugal onde não existia

Os mais ricos membros da elite colonial afim de não se misturar com essa “arraia-miúda” e “gentalha de cor”, mandavam construir templos dentro de suas residências ou nos arredores afim de que os mesmos atendessem sua família, escravaria e agregados.

um precipício tão grande entre as classes sociais, “a

elite

branca,

acastelada

e

minoritária

demograficamente, protegia-se da arraia-miúda e

Esses templos eram construídos próximos à casa grande e lá eram realizados atendimentos religiosos prestados pelo pároco local ou oriundo de uma região próxima.

6 7 8

Ibid. Pp160 Ibid. Pp 160

“muita poeira no verão e lama na estação chuvosa, as praças ameaçadoras pela presença inesperada de animais selvagens, índios e negros indômitos” (MOTT In: NOVAES, F.A e SOUZA, L. de M.1998. Pp.163) 9 Entre essas duas orações existiam outras seis oração “de laudes às três da madrugada, às seis da manhã a prima, às nove a terça ,oração de sexta ao meio dia, noa ás três da tarde, vésperas quando surge a estrela vespertina” (MOTT In: NOVAES, F.A e SOUZA, L. de M.1998. Pp.163) 10 I Ibid 11 “às seis da manhã- hora de ângelus-, ao meio dia- a hora que o diabo está solto- e às seis da tarde, hora das Ave Marias” (MOTT In: NOVAES, F.A e SOUZA, L. de M.1998. Pp.164)

O principal argumento para a construção destas capelas era de que a tentação rondava as igrejas e podiam atentar “as mulheres de famílias de respeito”13. Porém havia membros da elite que repudiavam tal atitude, pois afirmavam que os templos se esvaziavam ou, como afirmou Moniz 12 13

MOTT In: NOVAES, F.A e SOUZA, L. de M.1998. Pp.161

Ibid


G N A R U S | 144 Barreto, “o não procurar igreja para ouvir a missa,

Esta religiosidade, que na colônia, buscou

mas sim o seu oratório, e isto é mais vulgar nos

refúgio

nacionais do que nos da Europa(...)”14.

oferecidos ora pela vontade de uma elite colonial

Devido a isto, grande parte dos recém-chegados da metrópole tinham de diminuir sua regularidade religiosa, o que fez com que o desapego dos colonos para com as práticas religiosas fosse maior

Igreja perde parte de seu controle sobre os cultos interior

das

propriedades

particulares, o que abriu “espaço para desvios e heterodoxias”15. Com o crescimento da colônia o número de

pelos

perigos

favorecidas, no Império foi “para a rua”,17 saindo do âmbito privado e indo para o público por meios das diversas festas.

marcada pelo víeis político, vez que deveria produzir simpatia dos súditos ao regime visando à manutenção

progressivamente ao passo do desenvolvimento da colônia. Com o findar do período colonial, a chegada da modernidade trazida pela corte recém-chegada

posteriormente o império de elementos culturais africanos somaram-se elementos da cultura indígena que já interagiam com os europeus desde

forma

os

As festas religiosas não só congregavam diferentes classes sociais, mas também colocavam o povo que na colônia e mesmo no império nas festas cívicas era apenas expectador, assumindo um papel atuante. Estas

festividades

congregavam

nobres

e

plebeus, senhores e escravos, mães de santo e padres, sendo possível ver no interior de celebrações

cristãs

fortes

elementos

da

religiosidade africana. “Percebe-se a coexistência entre monarcas (reis oficiais e reis populares) como se a festa suspendesse por algumas horas o conflito e congregasse autoridades de ordens diferentes: padres e mães de santo, senhores de escravos e seus cativos.”19

como elemento fundamental desta cultura que foi constantemente reinventada ao longo de todo o século XIX também se reinventou.

Dessa forma, a religiosidade do Brasil foi se recriando a cada novo elemento agregado a mesma, desta vez com expressiva participação não 17

Apud MOTT In: NOVAES, F.A e SOUZA, L. de M.1998. Pp.161. 15 MOTT In: NOVAES, F.A e SOUZA, L. de M.1998. Pp.163 16 SCHARCZ 1998, P. 247

Desta

represente máximo do Estado.18

a chegada dos mesmos em 1500. A religiosidade,

“(...) estamos falando de uma série de personagens que lideravam as festas populares e que, proveniente de reinos distantes- presente na memória dos escravos africanos ou nas lembranças dos saudosos colonos portugueses(...)“16

mesmo.

quase como uma entidade longe do rei como

fugida das tropas francesas, a intensificação do fluxo do tráfico negreiro, que inundava o reino e

do

imperadores passavam a ser vistos pelos populares

capelas e oratórios particulares foram diminuindo

14

ora

A religiosidade no Império foi fortemente

Com o aumento da vida religiosa, privada a no

residências

de não se misturar com as classes menos

do que o dos lusitanos.

realizados

nas

“as ruas inóspitas pela muita poeira no verão e a lama nas estações chuvosa, as praças ameaçadoras pela presença inesperada de animais selvagens,índios e negros indômitos, muito das suas celebrações religiosas que no Velho Mundo tinham lugar ao ar livre, na América portuguesa ou foram abandonadas ou tiveram de se transferir para dentro dos templos ou ainda ficaram restritas as celebrações domesticas” (MOTT In: NOVAES, F.A e SOUZA, L. de M.1998. Pp.161) 18 Ibid, P. 248 19 SCHWARCZ 1998, P. 248 e 249.


G N A R U S | 145 só da elite colonial, mas também das classes menos abastadas da população. Conclusão.

Referências Bibliográficas:

Um dos traços lusitanos mais fortes na cultura brasileira se dá no tocante á fé católica que fora trazida nas caravelas lusas que rasgavam o oceano em busca não só de novas rotas comerciais, mas também na lógica do padroado da conversão de novos povos á fé cristã. Fé cristã que apresenta seu caráter dual desde sua raiz mais profunda, o próprio Cristo, que em diversas passagens de sua vida, defendera por vezes ora rituais individuais de ligação com o Deus criador, ora cultos públicos de contemplação da fé. Esta dualidade fora trazida pelos europeus na proa das naus portuguesas para a colônia e aqui através do choque deste cristianismo europeu com a realidade dos trópicos, fora constantemente reinventada a partir das necessidades dos colonos. No período colonial buscava-se a segregação das raças visando uma não “contaminação” das elites coloniais. Já no Império, essa relação foi constante nos festejos religiosos, servindo como um instrumento de interação social. O que vale observar nessa mudança de pensamento e da prática religiosa, é o fato da ritualística religiosa se moldar á realidade sociopolítica

e

principalmente

cultural

da

sociedade na qual que a mesma está inserida.

Pedro Tavares é Licenciado em História pela Faculdades Integradas Simonsen e Aluno da Pós Graduação Lato Sensu em Ciências da Religião pela Faculdade de São Bento do Rio de Janeiro.

BRUSTOLIN. LEOMAR A. Religião e Cultura. São Paulo, 2010. CHAUÍ. Marilena. Convite a Filosofia. São Paulo; Ed. Ática: 2000. GAARDER, J. HELLERN, V. E NOTAKER, H. O Livro das Religiões. São Paulo; Cia das Letras, 2010. MOTT, In: NOVAES, F.A (direção) e SOUZA, L. de M. e (org.). História da Vida Privada no Brasil. Volume 1. São Paulo; Cia das Letras:1998. SCHWARCZ, Lilia M. As Barbas do Imperador. São Paulo; Cia das Letras. 1998. Para saber mais:


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