17 a gnarus6 um olhar sobre o magreb medieval josé wilton santos fraga universidade federal de sergi

Page 1

G N A R U S | 147

Artigo

PREMISSAS, HIPÓTESES E EVIDÊNCIAS: UM OLHAR SOBRE O MAGREB MEDIEVAL1 Por: José Wilton Santos Fraga RESUMO: O presente artigo tem como objetivo apresentar uma proposta de investigação no qual é destacada a importância do estudo da história das sociedades africanas, especificamente, as que atuaram na região do Magreb entre os séculos XI e XIII. Tendo como foco um contexto no qual, a partir da entrada islâmica em solo Ibérico, em meados do século VIII, pode-se observar o contato com a África se tornar mais constante para os medievais ocidentais e como consequência, a ocorrência de trocas culturais entre o mundo cristão o islâmico. Como na historiografia existiu um debate acerca de um possível “feudalismo islâmico” e o período referido, compreendido como Idade Média Central, foi onde se deu o processo de consolidação das relações senhoriais na Península Ibérica, a investigação levanta como matéria de estudo, a possibilidade da existência de práticas senhoriais no norte da África. Desse modo, aqui se faz uma breve e simples explanação, bem como um breve panorama apontando as nossas primeiras impressões, tais como: algumas características e elementos do cenário abordado, as dificuldades em que se enquadram fontes e bibliografias (bem como alguns nomes que trabalham o Magreb na Idade Média), o caráter interdisciplinar do campo de pesquisa dentro do espaço recortado, o debate teórico acerca do feudalismo e a riqueza da problemática a ser explorada. Contudo, o mais importante é notar a necessidade de voltar-se para uma área há tempos negligenciada, convergindo assim, com o desejo da nova historiografia que se dedica ao assunto, contribuindo com a tentativa de trazer para o cenário acadêmico local abordagens desse campo. Palavras - chave: Idade Média; Feudalismo; Senhorio; Islã Medieval; Magreb.

A

sustentar esse interesse. Primeiro, as trocas intenção de investigar uma possível

culturais entre os mundos do Islã e o da

existência de práticas senhoriais no norte

Cristandade.

Segundo,

do continente africano (domínio do

historiografia

de

Império Islâmico) entre os séculos XI e XIII via

uma

a

existência

hipótese

sobre

na um

“feudalismo islâmico”.

contato com ocidente cristão pela Península Ibérica, está baseada em dois fatores que poderiam

Este artigo está associado ao projeto de pesquisa de iniciação científica Conexões entre a África e a Península Ibérica na Idade Média Central: Um estudo sobre a possibilidade de presença de relações senhoriais em território africano (262014), 1

financiado pelo Programa Jovens Talentos para a Ciência 2015 -2016 /Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) e coordenado pelo Prof. Dr. Bruno Gonçalves Alvaro.


G N A R U S | 148

Cidade Medieval no Magreb (Toscana) - Ilustração para a Oxford University Press Sabe-se

que

o

mundo

islâmico

foi

um

contraponto ao Ocidente e sua expansão implicou

muçulmanas”. Já a respeito do lado mulçumano, ele afirma:

em contados por muitas vezes conflituosos, como as Cruzadas e as guerras de Reconquista, dada a ênfase em ambas as religiões dos dois mundos. Queira quer não, o choque entres as duas culturas foi inevitável e isto deve ser levado em conta. No entanto, não devemos reduzir as relações entre o ocidente e o mundo mulçumano apenas a conflitos de ordem religiosa e/ou militar, apesar do lado cristão ter quase se limitado a isso. Segundo Will Durant (2002, p. 307), “provavelmente dos cristãos resultaram o misticismo, o monasticismo e o culto de santos do maometismo. A figura e a história de Jesus tocaram a alma islamita a apareceram de maneira simpática na poesia e arte

A influência do Islã sobre a cristandade foi variada e imensa. Do Islã, a Europa cristã recebeu alimentos, bebidas, drogas, medicamentos, armadura, heráldica, motivos e gostos artísticos, artigos e técnica industrial e comercial, códigos e métodos marítimos e muitas vezes palavras para designar essas coisas: laranja, limão, açúcar, xarope, sorvete, julepo, elixir, jarro, arcabuz, algodão, sofá, musselina, cetim, fustão, bazar, caravana, cheque, tarifa, tráfego, aduana, magazine, azeite, chalupa, gabarra, chafariz, almirante. (DURANT, 2002, p. 307). Isso apenas a título de exemplos em contextos muitos mais amplos como os da filosofia, da ciência, da literatura, língua e arte. Sem falar da relação comercial apoiada em tratados, os quais favoreciam importações e exportações e até mesmo permitiam


G N A R U S | 149 que os comerciantes ibéricos se instalassem em

Ainda se inclui aos fatores, a deteriorização do solo

albergues (funduk) nos portos e no interior do

que perdera fertilidade por ser explorado ao

território mulçumano no Magreb. Essas trocas entre

máximo e a escassez de mão de obra, a qual era

as duas culturas foram favorecidas por um período

incapaz de recuperar a produção anterior e

de grande tolerância que, de acordo com

encontrava-se escassa pelo fato das pessoas

Mohamed Talbi, tinham como motivos “uma

estarem abandonado as terras, fechando assim uma

simpatia

estratégia

espécie de círculo vicioso. Esse fato nos indica uma

espiritual” (2010, p. 78). Portanto, nenhum era

característica predominante na região no que diz

“estranho” ao outro.

respeito à mão de obra utilizada pela agricultura:

desinteressada

e

uma

essas pessoas não viviam em regime de servidão. A época em análise compreende o período de domínio dos Almorávidas (do século XI a meados do

Sobre as propriedades onde trabalhavam e as

século XII), dos Almóadas, que estenderam um

relações jurídicas do uso da terra no período após a

império de Trípoli à Sevilha entre 1147 e 1269,

queda dos Almóadas, Hady Roger Idris comenta:

constituindo uma civilização ibero-magrebina, e

ocidente cristão. Visto que um dos elementos que

Alguns indivíduos poderosos tinham grandes propriedades, mas a grande maioria dos habitantes do campo vivia e trabalhava em propriedades coletivas. Muitos lotes eram habous privados ou públicos cultivados pelos próprios adjudicatários ou por eles arrendados. Frequentemente, se não na maioria dos casos, a terra era cultivada segundo um contrato concluído com o proprietário: as plantações eram arrendadas a diversos agricultores, e havia várias formas de arrendamento e parceria, sendo o quinto a mais comum. (IDRIS, 2010, p. 118).

marcaram esse panorama foi a dissidência de forças

Por outro lado, a configuração jurídica da grande

de “membros de famílias reinantes, chefes de tribos

propriedade fundiária criada no seio da sociedade

nômades, mercenários cristãos, xeques sufi,

feudal e que no geral determinava os laços de

xarifes”, todos em busca do poder; além da

dependência de indivíduos sob outros, era um

problemática do declínio das terras cultivadas que

fenômeno íntimo do ocidente ligado ao uso da

levou à baixa densidade demográfica da região

terra, e num primeiro momento, não se assemelha à

(abandono das terras), atribuída por Ivan Hrbek

encontrada no norte da África. Pois o que foi posto

(2010, p. 111) ao que ele chamou de “regime feudal

como objeto de investigação e modelo a ser

e instabilidade generalizada”.

encontrado, foi aquela relação dada entre os ditos

posteriormente, a queda desse império e sua fragmentação dividindo o Magreb em três estados governados por dinastias diferentes (a dos Haféssidas, a dos Zaianidas, e a dos Marínidas). O interessante aqui seria tentar compreender as forças dinâmicas internas que levaram ao declínio do poderio político, militar e econômico desses estados dentro do contexto das relações com o

Esse abandono também é associado à invasão dos nômades árabes, a partir do século XI, que passaram a utilizar terras antes cultivadas como pastagens, rompendo um equilíbrio secular entre seu modo de vida e o modo de vida sedentário dos camponeses. 2

ALVARO, 2013, passim;

senhores e camponeses2 (ou “vilões”, os habitantes da vila ou da aldeia, de acordo com a concepção da época no contexto ocidental). Onde os primeiros adquirem a sua condição ao receberem de outros senhores com mais poderes que os seus (isso dentro


G N A R U S | 150 das chamadas relações feudo-vassálicas) uma

sociedade dita feudal, é um mundo muito

propriedade na forma de feudo, o qual deve ser

diferente.

considerado como “a concessão de um poder senhorial, que pode dizer respeito a uma terra e

A historiografia espanhola desde a década de 70

seus habitantes, mas pode também limitar-se a um

vem discutindo sua existência na própria Península

direito particular, por exemplo, o de exercer a

Ibérica com configurações que possam sustentar

justiça, de recolher uma taxa ou cobrar um

essa ideia e consequentemente a de práticas

pedágio” (BASCHET, 2006, p.123). Já os segundos,

senhoriais nesse território que fora tempos antes

são aqueles que habitam na propriedade do senhor

posses dos mulçumanos. Obras de historiadores e

e dependem dela para produzir, concretizando

de arqueólogos produzidas em bom número a

assim um laço que lhes atribuem uma série de

respeito da problemática de aldeias fortificadas e o

obrigações.

acastelamento

na

região

são

avanços

na

historiografia que serviram de modelo para Isso são apenas linhas gerais de intrincadas e complexas dentro

relações de

rearranjo

um sócio

trabalhar o espaço rural no norte da África, assim afirmam

Mohamed

Ouerfelli

e

Élise

Voguet (2009).

espacial (o senhorio) onde pode-se ainda

Campo

este,

destacar a figura do

mundo

castelo (e também das

ocidente mulçumano

fortificações)

no medievo, muito

como

do

carente de estudos.

elementos constituintes

rural

o

desse

Porém

as

poucas

cenário. Porque além

iniciativas

nos

de ser a residência, o

proporcionam a noção

castelo era também a fortaleza de um senhor3. Ele

de que se trata de uma área com possibilidades de

controlava todas as terras circunvizinhas por meio

abordagens, pois fizeram e estão a fazer o uso de

de uma tropa montada nele aquartelado4.

fontes diversificadas e agregando pontos de vistas novos com a contribuição de outras áreas do

Sendo assim, não é demais lembrar ou esclarecer que a proposta de investigação colocada aqui

conhecimento como a arqueologia, a antropologia, a sociologia, a geografia e o direito.

apoia-se na discussão do feudalismo como uma “categoria de análise”, visto que para onde se

Mesmo considerando todos esses elementos

pretende levar esse modelo teórico que define

enunciados, à primeira vista, tentar considerar que

relações entre homens e o uso da terra inserido no

puderam ter existido práticas senhoriais ou

conjunto de elementos que constituem uma

elementos de uma sociedade feudal iguais ou

ZAHAR, 1997, passim; Em Portugal, a configuração política e social não permitiu que o uso do castelo fosse o mesmo do restante da Europa. Interessante então, procurar no Magreb se

havia uma configuração própria e se havia algo que desempenhasse o papel estratégico do castelo como o reduto do senhor, de acordo com os trabalhos referidos logo à frente.

3 4


G N A R U S | 151 semelhantes ao que ocorreram na Europa em domínios mulçumanos, não passa apenas de uma dose de eurocentrismo. Pelo contrário, o método comparativo e uma análise sincrônica desses elementos em conjuntura são plausíveis. Na historiografia já ouve caso similar. Lógico que só amparando-se em fontes é que se pode desenvolver

o

ofício

do

historiador

com

credibilidade. Enquanto isso ainda não é possível, vale o intuito de buscar novas linhas de investigação promovendo o estudo de áreas negligenciadas baseando-se em trabalhos já realizados. Em virtude disso, é essencial citar um debate historiográfico iniciado na década de 30 pelo

contestada posteriormente. As pesquisas pioneiras de Claude Cahen sobre o iqṭāˁ Oriental, incluindo o Egito, têm demonstrado os limites dessa correlação. O autor distingue quatro características básicas do sistema oriental, suficientes para dissociar claramente do feudalismo ocidental. São elas: - O controle do Estado sobre a aquisição da renda do iqṭāˁ; - O aspecto não hereditário da concessão; - A raridade de concessões atribuídas a uma pessoa para toda a vida; - O fato dos muqṭaˁ-s não desfrutarem de uma autoridade local independente do governo central. (BENHIMA, 2009, p. 28-29, tradução nossa).

historiador israelense Abraham Poliak. Ele tentou um estudo comparativo avançando a hipótese de

É bem verdade que a dissolução desse equívoco

um "feudalismo islâmico". O debate não teve muito

configura um rumo diferente na investigação por

fôlego e logo foi questionado por estudos do

retirar como evidência o uso do iqṭāˁ equivalente a

historiador francês Claude Cahen na década de 60.

um feudo. Porém, sabe-se que as sociedades

Dentre outros aspectos, o interesse em torno de

mulçumanas formadas no norte da África, mesmo

uma forma de concessão territorial/administrativa

herdando

praticada pelos estados mulçumanos com o

sociedades genuínas com seus próprios interesses

objetivo de obter a lealdade das suas elites e

políticos

consolidar sua autoridade, foi um ponto em

aprofundamento nos argumentos que levaram a

questão. O termo em árabe para essa forma de

esses historiadores a defenderem essa hipótese.

concessão dentre outras é iqṭāˁ. E foi muitas vezes confundida ou mal comparada com o feudo das sociedades ocidentais.

historiográfico

e

econômicos.

do

Oriente,

Cabe

eram

então,

um

Desse modo, essa proposta que se apresentou converge com o desejo da nova historiografia que se debruça sobre o espaço rural do Magreb

Yassir Benhima simplifica a explicação do equívoco

características

cometido

por

historiadores a respeito da concessão iqṭāˁ:

O termo iqṭāˁ designa "uma forma de concessão administrativa” praticada pelos Estados muçulmanos, que foi muitas vezes confundido, injustamente, com o feudo. Esta aproximação praticamente excessiva entre o sistema iqṭāˁ e o feudalismo Ocidental, certamente motivado pelo eurocentrismo de alguns orientalistas ou até mesmo por pressupostos marxistas, felizmente foi

medieval, que é sair de uma espécie de comodismo intelectual, o qual utiliza as informações contidas nas poucas fontes existentes de maneira repetitiva e estereotipada, limitando novas abordagens, dificultando um entendimento melhor das relações que as populações locais possuíam com o uso da terra. “Se a identidade da tribo ou da aldeia se forja, por exemplo, sobre a manutenção de uma mesquita, a apropriação da terra também é crucial para a construção de comunidades rurais”, é assim


G N A R U S | 152 o pensamento de Mohamed Ouerfelli e Élise Voguet (2009). Enfim, o que esses poucos parágrafos escritos acima trazem um pequeno esforço, porém não menos importante, de trazer para o cenário acadêmico

local

abordagens

desse

campo,

reconhecendo a importância da necessidade de voltar-se para uma área há tempos negligenciada, mas que vem, cada dia mais, tomando fôlego e espaço não só na África e Europa, como também no nosso país. José Wilton Santos Fraga é graduando em História pela Universidade Federal de Sergipe; Bolsista do Programa Jovens Talentos para a Ciência/ Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) e integrante do Vivarium: Laboratório de Estudos da Antiguidade e do Medievo (Núcleo Nordeste). Contato: josewilton55@hotmail.com

Referências Bibliográficas ALVARO, Bruno Gonçalves. As Veredas da

Negociação: Uma análise Comparativa das Relações entre os Senhorios Episcopais de Santiago de Compostela e de Sigüenza com a Monarquia Castelhano-Leonesa na Primeira Metade do Século XII. p. 31. Tese (Doutorado em História) – Programa

de Pós-Graduação em História Comparada, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2013. BASCHET, Jérôme. Ordem senhorial e crescimento feudal. In:___. A Civilização feudal: Do ano mil à colonização da América. São Paulo: Globo, 2006. p. 122-137. BENHIMA, Yassir. Note sur l’evolution de l’iqṬaˁ au maroc medieval. L’Institut historique allemand. Paris: 16, 2009, p. 27-44. DURANT, Will. Grandeza e decadência do Islã. In: ______. A idade da fé: História da civilização Medieval, cristianismo, islamismo, judaísmo, de Constantino a Dante. 3. ed. Rio de Janeiro: Record, 2002. Cap. 24, p. 278-309. HRBEK, Ivan. A desintegração da unidade política no Magreb. In: NIANE, Djibril Tamsir (Ed.). História geral da África, IV: África do século XII ao XVI. 2. ed. rev. – Brasília : UNESCO, 2010. Cap. 4, p. 89-115. IDRIS, Hady Roger. A sociedade no Magreb após o desaparecimento dos Almóadas. In: NIANE, Djibril Tamsir (Ed.). História geral da África, IV: África do

século XII ao XVI. 2. ed. rev. – Brasília : UNESCO, 2010. Cap. 5, p. 117-131. OUERFELLI, Mohamed. VOGUET, Élise. Introduction: Le monde rural dans L’Ocident musulman medieval. REMMM: Revue des mondes musulmans et de la Méditerranée, França, n. 126, nov. 2009. Online: disponível na internet via http://remmm.revues.org/6359. SAIDI, O. A unificação do Magreb sob os Almóadas. In: NIANE, Djibril Tamsir (Ed.). História geral da África, IV: África do século XII ao XVI. 2. ed. rev. – Brasília : UNESCO, 2010. Cap. 2, p. 17-63. SILVA, Kalina Vanderlei; SILVA, Maciel Henrique. Feudalismo. In:___. Dicionário de conceitos históricos. 2. ed., 2ª reimpressão. – São Paulo: Contexto, 2009, p.150-154. TALBI, Mohamed. A expansão da civilização

magrebina: seu impacto sobre a civilização ocidental. In: NIANE, Djibril Tamsir (Ed.). História

geral da África, IV: África do século XII ao XVI. 2. ed. rev. – Brasília : UNESCO, 2010. Cap. 3, p. 65-87. ZAHAR, Jorge (Ed.). Castelos. In:___. Dicionário da Idade Média. [s.n.] Rio de Janeiro: 1997, p. 78-80.


Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.