16 irmandades de homens pretos no brasil colonial

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Artigo:

IRMANDADES DE HOMENS PRETOS NO BRASIL COLONIAL

Por: Luis Tadeu de Farias Goes

A

s irmandades de homens pretos foram um

África, bem como nas tradições portuguesas. O

dos poucos espaços de associação

presente artigo tem como foco tentar compreender

permitidos aos escravos. Era através

a relação dos africanos e seus descendentes com

dessas irmandades que africanos e descendentes

essas irmandades de homens pretos no Brasil

alcançariam uma maior integração e aceitação na

colonial.

sociedade colonial. Apesar dos maus tratos dos senhores e do trabalho excessivo, esses africanos construíram uma cultura religiosa bastante rica, com base em suas tradições culturais oriundas da

Por volta de 1496, em Lisboa, os negros tinham formado suas próprias irmandades em torno da devoção a Nossa Senhora do Rosário. As irmandades já nasceram com a preocupação


G N A R U S | 136 especial em cuidar do corpo após a morte, ou seja,

apoio da Coroa portuguesa no Cap. 17, art. 43 do

era de suma importância nessas irmandades cuidar

Compromisso da Irmandade de Nossa Senhora do

dos enterros e das preces destinada às almas após a

Rosário e São Benedito dos homens pretos do Rio

morte. Com a presença portuguesa em costas

de Janeiro (1759/1760)

africanas, a devoção ao Rosário de Maria também

Estão estas duas Irmandades unidas em huã, e creadas na Capela de Nossa Senhora do Rozário e Sam Benedito cuja Igreja foi feita à custa dos membros irmãos, ajudados com fervorosa devoção do Governador que foi desta praça, Luiz Vahia Monteiro, e dela são os ditos irmãos padroeiros, como o tem declarado Sua Majestade fidelíssima de El Rey Nosso Senhor que Santa Glória haja por provisão de 14 de janeiro do anno 1700 firmada por sua real mão expedida pelo seu Tribunal da Mesa da Consciência e Ordens, registrada no Arquivo do Senado da Câmara no livro décimo de Ordens Reais a folha 118.2

se fez presente na África, o que fez surgir irmandades em Angola. Logo, muito dos escravos que aqui chegavam, já estavam familiarizados com a devoção a Nossa Senhora do Rosário. Sendo assim, as irmandades aqui estabelecidas, se tornavam atrativas e despertavam uma certa sensação de “lar” nesses escravos.1 Apesar de serem comandadas por negros, como veremos, as Irmandades do Rosário, em especial, tinham total apoio do Coroa portuguesa e da Igreja Católica, pois, era um instrumento de conversão dos africanos escravizados. Podemos perceber esse

Era de responsabilidade dessas irmandades ajudas diversas àqueles que a pertenciam: assistência quando doentes, famintos, ajuda na compra de suas alforrias e principalmente no que se refere à morte de seus membros. Aliás, uma das mais importantes, senão a mais importante atribuição dessas irmandades era proporcionar, aos associados, funerais, sepultamentos dentro das capelas, missas e cortejos fúnebres. Analisando o Compromisso da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito dos homens pretos do Rio de Janeiro (1759/1760), podemos perceber o quão importante é a questão da morte. O cap. 19, art. 45 discorre sobre a morte dos membros da irmandade. Quanto maior for o grau hierárquico do irmão, mais próximo da capela mor o corpo será sepultado e mais missas terão em auxilio à sua alma: “He esta irmandade obrigada a mandar dizer pella alma de qualquer irmão que tiver servido de Juiz ou Juíza, tanto de Nossa Senhora como de Sam Benedito 24 missas, e morrendo no tempo em que actualmente estiverem servindo, como depois, serão sepultados na Capela Mor junto aos presbíteros, e os que tiverem servido de Escrivão, Thesoureiro e Procurador e Juízas do Ramalhete, dezesseis missas, e serão sepultados abaixo do

Para saber mais

1

KARASH, 2010

2

Arquivo Histórico Ultramarino de Lisboa – AHU/CU. Códice 1950


G N A R U S | 137 arco Cruzeiro e os Reys e Raynhas terão 26 missas e o serão logo na boca do Arco Cruzeiro, e os que não tiverem ocupado cargo algum se lhe dirão dez missas por sua alma, e serão sepultados no corpo da Igreja; Também gozam de huã missa que se diz aos sábados de todo o anno com sua ladaynha a Nossa Senhora do Rozário, e outras que se dizem dia de Nossa Senhora da Conceição, da Purificação, da Anunciação, Sam Domingos, da Assumpção da Senhora, da Natividade e de Senhora do Rozário, e as três de dia de Natal, e a estas devem acestir os irmãos com suas opas brancas vestidas, e tochas acesas e recomendamos muito ao irmão Juiz a acistencia destas missas principalmente os que forem de meza, e gozão do benefício de huã indulgência [...] na hora da morte, e das mais concedidas a esta irmandade.”

O Cap. 20, art. 46, também nos demonstra a preocupação da irmandade com a questão da morte: “Logo que se fundou esta irmandade, e se foi estabelecendo o aumento dela, pella summa

pobreza dos irmãos por serem além de pretos, pobres e escravos atendendo ao reparo e utilidade dos corpos dor irmãos que falecião principiarão a ter o seu esquife o qual o conservarão sempre no tempo de mais de secenta e seiz anos, sem dele pagarem contribuição alguã; o que ordenamos nos fique perpetuado na mesma forma que do seu princípio estipularão, atendendo ajusta caridade que devemos usar com os cargos dos nossos irmãos defuntos sem que em tempo algum por nenhum motivo haja de se contribuir com o mais mínimo estupendio por cauza do referido esquife, mas antes sem penção ficaçe sempre servindo à Irmandade.”

Segundo João. J. Reis, “a irmandade representava um espaço de relativa autonomia negra, no qual seus membros – em torno de festas, assembleias, eleições, funerais, missas e da assistência mútua – construíram identidades sociais significativas no interior de um mundo às vezes sufocante e sempre incerto.”3 Dentro dessa

Estatutos da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário (Manuscrito - Lisboa 1768) Acervo da Biblioteca Nacional 3

REIS, 1996.


G N A R U S | 138 “autonomia” negra, podemos perceber que os

Rosário. Esta é apenas uma das correntes que

negros recriavam suas identidades africanas,

justificam a associação de negros nas confrarias e

readequando-as a um novo modelo, uma vez que

irmandades do Rosário.

lhes eram incorporados à fé católica.

Marina de Mello e Souza,5 em seu livro,

A participação dos brancos dentro dessas

levanta a hipótese de José Ramos Tinhorão que

irmandades estava também, ligada à política de

conclui que os negros elegeram Nossa Senhora do

controle sobre os negros. Essa presença branca foi

Rosário

aceita por diversos motivos, como por exemplo,

estabelecido uma relação direta entre o seu rosário

cuidar dos livros (uma vez que os negros não sabiam

e o “rosário de ifá”, usado por sacerdotes africanos.

ler, escrever e contar), receber ajuda financeira desses brancos ou até mesmo por imposição do próprio branco. Na maioria das irmandades, era exigido que o tesoureiro fosse branco e que tivessem bens.

para

objeto

de

culto

por

terem

A Igreja Católica teve um importante papel social no Brasil colônia, uma de suas atribuições, era a inserção dos “homens de cor” no interior da Cristandade. Para promover esta inserção, a Igreja usava como exemplos de virtudes cristãs a serem

Segundo o jesuíta Antônio Vieira, um dos

seguidos, os santos pretos, tais como, Santo

primeiros a refletir sobre a questão, os negros

Elesbão, São Benedito, Santa Ifigênia dentre outros.

deveriam ser gratos pelo fato de terem sido trazidos

Esses santos pretos auxiliavam, e muito, na

para o Brasil e terem sido inseridos na fé católica,

conversão de africanos e seus descendentes, ao

pois, na condição de escravos, estes estariam

catolicismo. A partir deste método de conversão ao

melhores do que estivessem continuados no

catolicismo, as irmandades de homens pretos

gentilismo dos reinos africanos. Vieira, defensor da

começaram a cultuar seus oragos, que na maioria

escravidão, dizia que a glória dos pretos residia na

das vezes eram negros tais como os africanos

condição de escravos e na devoção a Virgem do

devotos. Para muitos, na época, a cor negra é quase

Rosário, que fez dos pretos, seus filhos prediletos,

que um castigo divino, porém, uma vida levada nos

pois, eles mais que todos os outros povos,

moldes da cristandade superaria este castigo.

vivenciavam a paixão de Cristo através do Imitatio

Anderson José Machado de Oliveira, em seu artigo

Christus, que no caso dos africanos, estava

diz que:

relacionado ao cativeiro e os mistérios dolorosos da

“Apesar da cor, Elesbão e Efigênia não estariam inferiorizados na corte celeste, em função de suas almas cristãs. Aqueles que seguissem seus exemplos, apesar do acidente da cor, seriam atingidos também pela graça divina.”6

paixão, porta de entrada para a Salvação. A Imitatio

Christus, foi um grande modelo usado pela igreja católica que tem suas origens na Idade Média

A partir daí, podemos observar claramente o

central com o surgimento das ordens mendicantes. Logo, a força para os africanos suportarem a dor do cativeiro e redimir seus pecados, seria através da devoção do Rosário de Maria.4 Isso explica a grande

discurso da Igreja católica para a conversão dos negros africanos e seus descendentes. Porém, muito embora esses negros tenham se convertido à

devoção que os pretos tinham pela Senhora do 4 5

VAINFAS, 2011. SOUZA, 2002

6

OLIVEIRA, 2006


G N A R U S | 139 fé católica, esse catolicismo, principalmente o que acontecia dentro das irmandades, era um catolicismo miscigenado. Podemos perceber uma singela semelhança entre o Cristianismo e as religiões africanas, ou seja, ambas creem em um “outro mundo” e em seres que promovem o intercâmbio entre este mundo e o mundo invisível. Com base nessas semelhanças, não foi difícil ver nascer dentro das irmandades o conhecido sincretismo religioso, uma vez que os africanos se apropriaram dos santos católicos sincretizando-os com divindades tribais ou espíritos ancestrais,

Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Pretinhos (A atual Igreja do Rosário foi construída em 1767 pela irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos de Sobral-CE)

rogando a estes, a solução de problemas de toda

das igrejas os escravos cultuavam seus deuses

sorte.7

através do sincretismo, se organizavam através de Uma das obrigações dos irmãos devotos, era

suas etnias e seus reinos de origem, recriavam suas

servir aos santos. Servir deve ser entendido no

hierarquias e de uma forma ou de outra, faziam com

sentido de dar assistência ao santo através das

que sua cultura fosse perpetuada. Uma vez dentro

esmolas, participar das celebrações e festas e

das igrejas, estes negros não poderiam apresentar

principalmente seguir os exemplos de virtudes

um problema para a sociedade, logo, eles eram

cristãs de seus padroeiros. Os irmãos deviam seguir

“livres” para que pudessem recriar em novos

os exemplos da vida do santo que escolhia para

moldes a fé, a cultura e a hierarquia longe dos olhos

cultuar.

de seu senhor.

Estas irmandades reuniam em volta de si,

Toda uma política de negociação entre

grupos étnicos específicos. Os angolas pertenciam

senhor e escravo era e sempre foi usada ao longo da

a uma determinada irmandade, os minas a outras, e

escravidão. João José Reis, entende que se só o

por assim por diante. Os escravos acabaram

chicote e outras formas de coerção tivessem

recriando em suas confrarias identidades étnicas

vigorado, o regime escravocrata não teria durado

trazidas da África. O principal critério de

tanto tempo. Era preciso definir limites, negociar

identidade dentro das irmandades foi a cor da pele

com os negros suas autonomias para que

e seu local de origem. Haviam irmandades de

celebrassem seus festejos, sua cultura e assim,

brancos, pardos, negros e mulatos. Podemos

dentro dessa constante negociação, evitar revoltas.

entender que essas associações, eram quase um

Essa quase “autonomia” negra pode ser vista

parentesco étnico.

perfeitamente dentro das irmandades de devoção

Devemos perceber também, a importância que estas irmandades tiveram como forma de resistência negra ao longo da escravidão. Dentro

7

Idem

aos santos católicos.


G N A R U S | 140 João José Reis: “É incontestável o valor que tiveram (as irmandades) como instrumento de resistência. Permitiram a construção ou a reformulação de identidades que funcionaram como um anteparo à desagregação de coletividades submetidas a imensas pressões.”8

O ingresso dentro de uma irmandade, era para o negro, a principal forma de ser inserido na organização social da colônia, além de ser uma oportunidade de se organizarem, festejarem e cultuarem seus padroeiros com a aprovação dos senhores e da administração da colônia. Para os negros que eram aprisionados em suas aldeias e comercializados nas Américas, as confrarias foram rapidamente

identificadas

como

forma

de

MAURICIO, Augusto. Templos históricos do Rio de Janeiro, 2.ed. Rio de Janeiro: Gráfica Laemmert, 1946. OLIVEIRA, Anderson José Machado. Devoção e

identidades: significados do culto de santo Elesbão e Santa Efigênia no Rio de Janeiro e nas Minas Gerais do setecentos. Rio de Janeiro:

Revista tempo, v.7, 2006, p.60-115. ______ . Igreja e escravidão africana no Brasil Colonial. Rio de Janeiro: Cadernos de Ciências Humanas – Especiaria, vol. 10, n.18, dez. 2007, p. 355-387. KARASCH, Mary. Construindo comunidades: As irmandades dos pretos e pardos no Brasil Colonial e em Goiás. Goiânia: Revista da faculdade de História e do Programa de Pósgraduação em História, vol.15, n.2, jul/dez.2010, pp. 257-283. SOARES, Mariza de Carvalho. O império de Santo Elesbão na cidade do Rio de Janeiro, no século XIII. Rio de Janeiro: Topoi, mar. 2002, pp. 59-83.

construção de laços de solidariedade, encontros e afirmação de suas culturas. Podemos concluir que, nos espaços das irmandades foram recriados os

Para saber mais:

laços sociais quebrados pelo tráfico.

Luis Tadeu de Farias Goes é graduando em História pela UNESA (Univ. Estácio de Sá)

Bibliografia SCARANO, Julita. Devoção e Escravidão: A

Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos no Distrito Diamantino no Século XVIII, 2.

edição. São Paulo: Editora Brasiliana,1976. SOUZA, Marina de Mello e. Reis Negros no Brasil

Escravista: história da festa de coroação de Rei Congo. Belo Horizonte: UFMG, 2002. REIS, João José; SILVA, Eduardo. Negociação e Conflito: a resistência negra no Brasil escravista.

São Paulo: Companhia das Letras, 1989. ______ . A Morte é uma Festa: Ritos fúnebres e revolta popular no Brasil do século XIX. 3 ed. São Paulo: Companhia das Letras. 1999. ______. Identidade e diversidade étnicas nas irmandades negras no tempo da escravidão. Rio de Janeiro: Revista tempo, vol. 2, n.3, 1996, p.733. VAINFAS, Ronaldo. Antônio Vieira. São Paulo: Companhia das letras, 2011. 8

REIS, 1996

Os convidados para a ceia do Senhor: as missas e a vivência leiga do catolicismo na cidade do Rio de Janeiro e arredores (17501820) de Sergio Chahon.


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