15 gnarus6 os sete pecados capitais amanda basilio santos

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Artigo

DA DOUTRINA À PAREDE: OS SETE PECADOS CAPITAIS REPRESENTADOS EM PINTURAS PARIETAIS INGLESAS. Por: Amanda Basílio Santos Resumo Neste trabalho, o que se pretende é investigar, ainda que introdutoriamente, sobre os padrões representativos em pinturas parietais inglesas que versam sobre a temática dos Sete Pecados Capitais. Para tanto, serão usadas como base as pinturas murais moralizantes que abordam a temática do pecado, localizadas na Inglaterra. Devemos ter em mente que os Sete Pecados foram primeiramente concebidos em modo doutrinário filosófico, para depois passarem a ter representações iconográficas. Foram selecionadas duas árvores do pecado para análise.

Introdução

E

ste artigo trata-se de um recorte da

período, em particular as imagens do pecado, que

pesquisa

serviam como guia moral para os fiéis.

que

se

encontra

em

desenvolvimento na Especialização em

Embora tenhamos uma imensa gama de produção

Artes, pela Universidade Federal de Pelotas

iconográfica durante o medievo, nos primeiros

(UFPel), que resultará em um trabalho monográfico

passos do cristianismo a imagem ficou condenada

que conta com a análise iconográfica de dezesseis

diante da filosofia, pois a produção de imagens era

pinturas parietais inglesas, que versam sobre as

vista com suspeita, por perigo de idolatria de ídolos

virtudes e os vícios medievais.

imagéticos, que deste modo colocaria a prática

Como bem sabemos, para muito além da

cristã muito próxima de uma adoração pagã, sendo

documentação escrita, a iconografia serviu como

assim, a iconografia era vista como inconveniente e

veículo de informação e instrumento pedagógico no período medieval, levando em consideração uma população massivamente analfabeta e desconhecedora da língua latina. Por este motivo, é relevante o estudo das imagens murais deste


G N A R U S | 121 desviante da forma maior de adoração à Deus, que

temáticas e possuem distintos propósitos dentro do

seria através da contemplação filosófica.1

espaço religioso. Na Inglaterra há poucas pinturas

Como divisor de águas nesta questão há a carta

preservadas de um período anterior à conquista

que o Papa Gregório Magno escreveu ao Bispo

normanda, porém temos um número considerável

Sereno de Marselha2, que passou a influenciar

de pinturas preservadas do século XII até a Reforma

profundamente a ideia da função da arte medieval

Protestante no século XVI, sendo que muito

que temos até os dias atuais. Nesta carta, ele

material se perdeu exatamente pelo ideal

destaca a função didática3 do uso das imagens,

iconoclasta que acabou fazendo parte das

permitindo à massa de iletrados compreender a

propostas reformistas.

doutrina, ensinando-os através de imagens o que

Sobre as pinturas parietais na Inglaterra, Anne

eles não podem ler. Embora, na própria carta, ele

Marshall observa que é provável que as paredes das

destaque outras funções para a imagem - elas

igrejas devem tenham sido pintadas desde que

servem de lembrança dos dogmas, e possuem um

começou o hábito de as cobrir com estuque,

poder sobre os fiéis, pois cumprem um papel de

incluindo as igrejas anglo-saxãs, embora pouco

sensibilização destes e fazem com que eles se

tenha restado para afirmar-se tal fato. A maior

arrependam de seus pecados - o papel didático

parte das pinturas parietais que restaram são do

acabou se sobrepondo na literatura aos outros,

período normando em diante, tendo algumas do

colocando a iconografia medieval como a bíblia dos

século XI que foram preservadas. É possível verificar

iletrados

pensamento

uma dinâmica transformação estilística até o

propagado na historiografia através da obra do

advento da Reforma Protestante, quando muda

historiador da arte, Émile Mâle4. No entanto, se a

radicalmente a postura para com as pinturas

função fosse puramente ensinar a doutrina aos fiéis

parietais. Em questões técnicas, os materiais

não haveria função para a abundância de imagens

utilizados, são em geral, bastante simples, sendo

circunscritas nos coros e nas absides das igrejas,

dominante pigmentos terrosos, como o amarelo

locais de acesso restrito ao clero, que ao menos na

ocre e o vermelho, o que nos demonstra a sua

sua massiva maioria, era letrado.

grande disponibilidade. Estes tons ganhavam

(SCHMITT,

2006),

A pintura parietal medieval inglesa ainda é muito

diversas variações em misturas com o preto e o

pouco estudada no Brasil, porém, é uma vasta fonte

branco, formando uma paleta bastante rica. Os

da iconografia medieval e, portanto, importante

pigmentos azulados são raros, e eram muito caros,

para a compreensão do período e das funções desta

considerando que o azul oriundo do lápis-lazúli

arte dentro do contexto de sua produção. As

custava mais que folhagem de ouro, e mesmo os

pinturas

diferentes

azuis mais escuros e comuns, eram caros. O verde

Tal visão sobre a produção de imagens religiosas já remontam a críticas desde Platão, o qual salientava que as imagens cívicas são desviantes para uma forma maior e mais profunda de contemplação religiosa que se dá através da compreensão filosófica. (BESANÇON, 2006, p. 32) 2 GREGORIO MAGNO, Epistulae ad Serenus, XI, 13, (Patrologia Latina 77, col. 1128-1130).

3 “O que os escritos proporcionam a quem os lê, a pintura

1

parietais

versam

sobre

fornece aos analfabetos que a contemplam porque assim esses ignorantes vêem o que devem imitar; as pinturas são a leitura daqueles que não sabem ler, de modo que funcionam como um livro, sobretudo entre os pagãos. ” (GREGÓRIO MAGNO, apud PEREIRA, 2006, p.2). 4 MÂLE, Émile. L'art religieux au XIIIe siècle en France. Étude sur l’iconographie du Moyen Âge et ses sources d’inspiration. Paris: Armand Colin, 1910.


G N A R U S | 122 também é raro, mas por vezes é encontrado, feito a

redescobertas no século XIX e no início do século

partir do sal de cobre, e também é possível

XX, e este processo continua em andamento.

encontrar o vermelho escarlate. (MARSHALL, 2000,

(ROSEWELL, 2008).

disponível

em

Antes de analisarmos as pinturas em si, é

<http://www.paintedchurch.org/introduc.htm>,

fundamental que se reflita sobre o papel que a ideia

acessado em 4 de novembro de 2015).

de pecado exercia no contexto em que tais pinturas

Estas questões técnicas e econômicas limitam as

foram feitas. A noção do Pecado era algo que

representações iconográficas que encontramos em

norteava constantemente a mentalidade cristã no

solo inglês, mas é provável que pinturas parietais

período medieval. Segundo Carla Casagrande e

estivessem presentes assim que se começou a ter

Silvana Vecchio:

Os homens e as mulheres da Idade Média aparecem dominados pelo pecado. A concepção de tempo, a organização do espaço, a antropologia, a noção do saber, a ideia do trabalho, as ligações com Deus, a construção das relações sociais, a instituição de práticas rituais, toda a vida e a noção de mundo do homem medieval gira em torno da presença do pecado. (CASAGRANDE;

uma base para pintar. Podemos, deste modo, ver que as imagens sempre possuíram um papel central dentro da arquitetura religiosa, e por consequência na vida social, sendo não apenas um patrimônio material, mas um patrimônio que resguarda elementos culturais do passado, sendo ao mesmo tempo um patrimônio imaterial. As igrejas

VECCHIO, 2006, p. 337).

medievais eram coloridas por belas pinturas em suas paredes. Como Geofrey Chaucer ressaltava, elas possuíam um papel nuclear na passagem dos conhecimentos

e

dos

costumes

católicos,

auxiliando aqueles que não podiam ler os textos sagrados a compreenderem a doutrina através das Porém, seu estado atual é de bastante desgaste. deve-se

das árvores que os e apresentam alegoricamente, os acontecimentos e a consequência dos atos pecaminosos estão sempre presentes como lembretes. Nas imagens das igrejas medievais, seja em cenas da morte do homem, da morte de Cristo,

imagens. Isso

As representações dos pecados vão muito além

a

alguns

fatores

específicos:

primeiramente as pinturas parietais inglesas não se tratam (em sua massiva maioria) de afrescos, portanto elas começam a craquelar e desgastar-se muito mais rapidamente do que outras pinturas, pois são feitas sobre um estuque seco, que acaba por fazer com que a tinta depositada não se integre ao suporte. Em segundo lugar, exatamente por conta deste desgaste, muitas pinturas foram cobertas por estuque, pois não se encontravam em um estado esteticamente atraente. A maioria das pinturas parietais inglesas se encontravam sob camadas de estuque e começaram a ser

do Juízo Final, do Céu e do Inferno, a ideia do pecado e as consequências dos atos pecaminosos estão disseminados. Lembretes visuais instigavam os fiéis ao entrarem em uma igreja, lembretes do que os pecados humanos foram responsáveis, pelo sofrimento que Cristo, que enviado por Deus para redimir os pecados humanos, teve de sofrer. Construções visuais como estas que podem ser vistas,

por

exemplo,

nos

chamados

“Os

Instrumentos da Paixão”, vistos ainda hoje nos azulejos medievais da Igreja do Priorado em Great

Malvern do século XV e que também estão retratados em seus vitrais, desta forma tornando constante o sofrimento que se pode impor a Cristo


G N A R U S | 123 ao pecar, fazendo com que ele esteja eternamente

deve-se sempre analisar a constituição visual dos

sofrendo pelos pecados dos homens.

mesmos em um conjunto, nunca isolando um

Os Sete Pecados Capitais não estão organizados

pecado do outro.

na Bíblia Sagrada, apesar de serem parte

Na Inglaterra, há diversas pinturas murais que

fundamental da episteme medieval. Estes foram

tratam diretamente dos Sete Pecados, porém,

compilados pelo Papa Gregório, o Grande, em

neste artigo, iremos nos concentrar em duas

torno de 590 d.C.5, baseado nos oito pensamentos

pinturas, uma que se localiza na Igreja de St.

pecaminosos elencados por Evagrius Ponticus6, um

Ethelbert, localizada em Hessett, em Suffolk, do

monge cristão que viveu em meados de 375 d.C,

século XIV e outra na Igreja de St. Peter localizada

que após passar por um período de privação auto

em Raunds, Northants do século XIII. Foram

imposta no deserto egípcio organizou os piores

selecionadas estas duas por conta de seu estado de

sentimentos e tentações que o abateram.

conservação, assim como por termos dois tipos

A lista de Evagrius não foi muito difundida até sua reorganização no século VI, porém em torno de 400

representativos clássicos que cada uma é capaz de elucidar.

d.C, seu contemporâneo Prudêncio, um advogado, escreveu uma obra intitulada Psychomachia7

Pinturas Murais Moralizantes

(Batalha da Alma), que foi de fundamental

Durante o medievo as igrejas eram coloridas, e

importância para o ocidente, com uma lista

suas paredes repletas de pinturas, que hoje

semelhante de pensamentos e ações terríveis e

encontram-se sob o estuque branco moderno. A

boas, uma alegoria da ambiguidade humana entre

importância que estas pinturas tinham podem ser

o vício e a virtude, que ficou muito popularizada,

compreendidas através da afirmação de Migne:

It is good to represent the fruits of humility and pride as a kind of visual image so that anyone studying to improve himself can clearly see what things will result from them. Therefore we show the novices and untutored men two little trees, differing in fruits and in size, each displaying the characteristics of the virtues and the vices, so that people may understand the products of each and choose which of the trees they would establish in themselves.8 (MIGNE,

pois cada vício e virtude é um ser que fala e sente, muito próxima da realidade e das pessoas para quem se destinava, tornando a obra realística através da personificação. Traço muito importante desta obra é que não é apenas uma batalha das pessoas pela sua alma, é em essência uma batalha entre os valores do cristianismo e o paganismo. Para que seja possível o entendimento da

apud CAIGER-SMITH, 1963, p.50)

concepção dos pecados é necessário compreender a relação simbiótica que estes têm entre si, por isso, Epístola, Moralia on Job (esp. XXXI.45). Evagrius Ponticus, De octo spiritibus malitiae (PG 79: 1157). Documento disponível em grego no site: <http://www.documentacatholicaomnia.eu/04z/z_0345 0399__Evagrius_Ponticus__De_octo_spiritibus_malitiae_ _MGR.pdf.html>, acessado pela última vez em 5 de novembro de 2015. 7 Poema disponível em latim no site: < http://www.thelatinlibrary.com/prudentius/prud.psych o.shtml>, acessado pela última vez em 4 de novembro de 2015. 5 6

Tradução da Autora: “É bom representar os frutos da humildade e do orgulho como uma espécie de imagem visual de modo que qualquer pessoa estudando para melhorar a si mesmo possa ver claramente que coisas vão resultar a partir deles. Portanto vamos mostrar aos noviços e aos homens ignorantes duas árvores pequenas, diferindo em frutas e em tamanho, cada uma exibindo as características das virtudes e os vícios, para que as pessoas possam compreender os produtos de cada uma e escolher qual das árvores que irão estabelecer para si mesmos” 8


G N A R U S | 124 O que veremos nas imagens abaixo são construções visuais de ideias doutrinárias, de modo que fosse possível exemplificar aos fiéis as atitudes correspondentes aos

pecados

representados.

Através do método de Panofsky pretendemos dar destaque às alegorias9 iconográficas criadas para representação dos Pecados Capitais. Em Hessett, Suffolk, temos uma árvore do pecado bastante tradicional, pintada no século XV. A distribuição dada aos pecados ao longo da árvore é bastante representativa de um padrão da construção visual para o pecado, podendo ser vista na maioria das árvores encontradas. Em seu topo vemos o pior dos pecados, o pecado da Soberba, com um homem elegantemente vestido, com uma longa pena em seu chapéu, quase como se exibindo em seu topo. A Soberba é considerado o maior dos pecados – inclusive sendo responsável pela rebelião e queda do anjo Lúcifer. Ao verificar outras pinturas murais, é visível a recorrência da Soberba sendo representada por alguém muito bem vestido, o que indica um status social

elevado,

nem

sempre

da

nobreza

necessariamente, mas podendo ser pertencente a uma classe burguesa, que começava a se formar no século XII. Os aspectos de representação social

Imagem 1: Árvore do Pecado em Hessett, século XV. Fonte: http://paintedchurch.org/hessds.htt, acessado em 5 de setembro de 2015.

estão sempre presentes nas árvores do pecado ou

dos Soberbos sempre são fortes, e com boa

das virtudes.

diversidade coral, o que indica uma vida e

O pecado da Soberba é centrado em pessoas com

personalidade leviana, de alguém com pouca

posses, o que indica que se pensava ser mais

atenção às atitudes e comportamentos virtuosos,

suscetível a este pecado aqueles que vivessem uma

levando em consideração que a Virtude para a

vida abastada, onde se possuísse um juízo de

Soberba era a Humildade. Como destaca Evagrius,

superioridade entre outros homens, o que levaria

“a soberba é um tumor da alma, cheio de pus. Se

ao sentimento de superioridade. As cores das vestes

maduro, explodirá, emanando terrível fedor. [...]. A

Uma alegoria é aquilo que representa uma coisa para dar a ideia de outra através de uma ilação moral [...]. Etimologicamente, o grego allegoría significa "dizer o outro", "dizer alguma coisa diferente do sentido literal" [...] Na arte medieval, o processo de construção das grandes catedrais, como a de Chartres, por exemplo,

obedece também a complicados esquemas alegóricos, pois acredita-se que tudo na Natureza significa algo mais do que o simplesmente observável. (CEIA, C. Sobre o Conceito de Alegoria. Matraga, nº10, p. 1-7, agosto de 1998. p. 1-4).

9


G N A R U S | 125 alma do soberbo alcança grandes altitudes e, daí, cai no abismo.”10 Como podemos ver nesta frase, há uma clara conexão entre a questão simbólica, onde a “alma do soberbo alcança grandes altitudes”, pois na imagem em Hessett, o soberbo ocupa o topo da árvore. O fato deste desabar no abismo é visto pelos pequenos demônios que serram a árvore, o que o Um galho abaixo estão duas representações, à esquerda do homem ao topo temos a Ira, com um homem com uma arma em posição de combate, visivelmente irado e aparentemente jovem, em uma mão uma adaga e na outra um chicote. A Ira reveste-se de importância por seu caráter destruidor de homens, que os coloca diretamente e fatalmente um contra o outro. Enquanto na posteriormente

estabelecida

pelo

cristianismo da soberba como o maior dos pecados, para Evagrius, era a Ira o mais preocupante, pois a Ira cega o homem para Deus e para os outros homens, por seu malefício direto à convivência humana a qualifico como um pecado social. Uma de suas definições está no desejo de vingança, e vingança no código próprio dos homens medievais era um mal necessário e regulamentador da sociedade, utilizada para manutenção da honra e dos privilégios. Assim sendo, a violência compreendida dentro do sistema social medieval como imperativa e até mesmo como um direito pessoal ou comunitário, afasta o conceito de vínculo com o pecado da Ira. Segundo Claude Gauvard:

Para ela11, a violência é o resultado de um encadeamento de fatos necessários à manutenção da honra ou do renome, qualquer que seja a procedência social dos indivíduos, sejam eles nobres ou não nobres. Tradução do De Octo Spiritibus Malitiae de Evagrius Ponticus, por Carlos Martins Nabeto. Disponível em: <http://www.apologeticacatolica.com.br/cocp/fixas/oit 10

(GAUVARD, 2006, p. 606)

Na sequência, à direita, temos um casal de namorados que sem inibição se abraçam e se beijam apaixonadamente, representando a Luxúria, à esquerda o homem, à direita a mulher, ambos

fará cair no Inferno.

tradição

A violência não está então ligada a um estado moral condenável em si; é o meio de provar a perfeição de uma identidade.

bem vestidos. Esta é uma forma clássica que iremos encontrar nas árvores do pecado, a luxúria é sempre representada por um casal jovem, com um homem e uma mulher, que se entregam aos prazeres de sua relação. Abaixo,

à

esquerda

temos

um

invejoso,

simbolicamente representado em verde, que segura seu cinto e aponta, como que desdenhoso do que possui, sua face é cadavérica, pois a inveja nada produz, ela consome o pecador, sendo que o invejoso se torna um peso na sociedade em que vive, e que possui em seu cerne um desejo predatório, melhor definido como Schadenfreude. (NEWHAUSER, 2000). No mesmo nível, à direita, temos a Preguiça, representado por um homem que está deitado, podendo estar dormindo, e seu rosto, como o da Inveja, tem aparência cadavérica, resultado da falta de atividade do preguiçoso que se deixa na inércia, mesmo que isso o custe a própria vida, um ser que também não produz, e por sua falta de entusiasmo pela vida demonstra profunda ingratidão à Deus. Os preguiçosos também estavam associados às atitudes suicidas, o que não era admissível de perdão no período medieval. Apesar da aparente inocência da preguiça, dela provém sofrimentos, a fome, as necessidades, e a falta de vontade para alterar esta ovicios.htm>, acessado pela última vez em 5 de novembro de 2015. 11 Referência à Idade Média.


G N A R U S | 126 realidade, sendo deste modo, considerada uma

exigente ou se preocupar em excesso com o sabor

aversão ao trabalho e ao esforço, e o trabalho é um

ou modo de preparo de um alimento, lhe

demando de Deus, após a expulsão do Paraíso. O

dedicando muita atenção; apetite excessivo que faz

ócio é um mal para o homem, e para o

com que os pensamentos estejam sempre voltados

desenvolvimento da sociedade e seu êxito.

para a comida, ou seja, apenas o desvio do

No próximo nível temos a Avareza, representada

pensamento se tornava um pecado em fato.

por uma mulher que segura em suas mãos sacos de

Em última instância, tratava-se de uma violação

dinheiro. Este é um pecado interessante por possuir

ao corpo, que seria a morada divina da alma. A

uma forte característica dualística, pois embora

comida tornava os homens menos humanos e mais

seja um pecado tanto quanto os demais, há um nível

animalescos, e para Santo Agostinho apenas gostar

de tolerância, pois a avareza pode ser oriunda de

de comer seria uma ofensa a Deus. Embora seja

um profundo estado de pobreza e necessidade,

dada tanta atenção à comida, na iconografia, a

portanto, os desprovidos do básico para sua

forma mais comum da representação da Gula é

sobrevivência se tornam avarentos pela dificuldade

através da bebedeira e não de comilança.

de sobreviver e a dor de suas privações. O mal da Avareza

reside

que

século XV, o tronco central é o próprio pecador,

possuindo mais do que o necessário para si, negam

que é novamente o destaque do pecado da

aos

sua

Soberba, ao seu redor, como que originado deste,

comunidade que poderia viver de sua abundância,

surgem os demais pecados apoiados em bocas

o que o faz ser comparável a um assassino. Um

infernais. De dentro das bocas das figuras

avarento não contribui com a Igreja e não é

demoníacas, semelhantes a dragões, saem os outros

caridoso, o que causa danos tanto à sociedade

pecados. Na parte superior esquerda, temos a

quanto à instituição.

representação da Avareza, que apesar de estar

outros,

basicamente

ou

acabam

naqueles,

Quanto à imagem de Raunds, Northants, do

prejudicando

Por fim, há uma representação da Gula que já não

muito apagada, guarda resquícios de já ter tido em

é muito aparente e não dá margens confiáveis para

mãos sacos de dinheiro. Abaixo deste vemos a Ira,

interpretação. De qualquer forma o demônio

um homem com o peito ensanguentado por

representativo da Gula é Belzebu, sempre retratado

ferimentos auto infligidos, tamanha a sua raiva. A

com uma aparência repugnante, que chega a

figura abaixo da Ira, possivelmente representa a

inspirar asco, exatamente pela ligação que foi

Inveja, onde a pessoa se encontra com as mãos

estabelecida entre o alimento em descomedimento

cruzadas no peito como em sinal de frustração.

com um aspecto ascoso. O Papa Gregório Magno,

Ao lado direito, o primeiro a ser representado de

ao organizar a lista dos Sete Pecados Capitais,

cima para baixo, é possivelmente a Preguiça, abaixo

também elaborou maneiras precisas pelas quais

temos uma representação clara da Luxúria, com um

estes são cometidos e havia algumas maneiras de se

homem e uma mulher deitados sobre uma espécie

tornar um glutão: comendo em excesso; comer em

de sofá, como em ato de formicação. Por último,

períodos do dia que não deveriam ser destinados à

vemos um homem vomitando em uma tigela, sendo

comida,

pré-

uma clara representação do excesso advindo do

determinados, sem o controle devido; ser muito

pecado da Gula, aqui representado na iconografia

ou

seja,

em

períodos

não


G N A R U S | 127 pelo ato de vomitar que resulta do exagero do

o auxílio do fiel, através de situações que lhe sejam

glutão.

familiares. (SCOMPARIM, 2008).

Refletindo sobre as formas pelas quais os Pecados

O ato de condenação, na iconografia das árvores

foram representados, apesar de haver um certo tom

dos pecados, ainda se encontra em suspenso, as

de ameaça, de aviso do que espera o pecador, há

pessoas estão nos galhos da árvore que por toda a

ironia e um pouco de graça ao utilizar situações

Idade Média teve uma conotação simbólica

corriqueiras, alertando, acima de tudo, ao cuidado

extremamente positiva, ligada à prosperidade,

com as atitudes mais triviais, aos comportamentos

abundância. A importância de ser uma árvore o

Imagem 2: Árvore do Pecado em Hessett, século XV. Fonte: http://paintedchurch.org/raundsds.htm acessado em 5 de setembro de 2015.

mais mundanos, através de ações que podem ser

suporte dos Pecados é fundamental, pois mesmo

cometidas inocentemente se não houver uma

quando a árvore é substituída por uma pessoa, a

constante vigilância das próprias atitudes. É

pintura é feita de modo a lembrar uma árvore, com

estabelecido que para um pecado ser considerado

a formação de animais que seguram as pessoas

capital são necessários três elementos: ser de uma

semelhantes a galhos de árvores. Isso nos leva a uma

imensa

o

consideração interessante de compreensão, e

conhecimento de que se trata de um pecado e, por

chance de redenção, ao invés de uma condenação

fim, ser cometido com total consentimento e

irreversível. No livro de Caroline Walker Bynum,

consciência pelo pecador. (Rom. 5:12; 6:23). Assim

vemos uma mudança no seio da fé cristã, na busca

sendo, é fundamental constituir a iconografia para

e na concepção de um Deus que não apenas

gravidade,

ser

cometido

com

castiga, mas compreende e perdoa. Isso podemos


G N A R U S | 128 ver refletido na iconografia dos pecados, um Deus mais próximo, que alerta sobre o mal, que condena se necessário, mas que também deixa uma oportunidade para o perdão. Conclusão Considerando a iconografia como fruto de uma intenção e de um envolto cultural, a imagem dos pecados, ao tentar exemplificá-los de forma simples e acessível à “leitura” deste código visual, podemos concluir que seu objetivo final seja didaticamente doutrinar os fiéis, com base em ilustrações que retratam a simplicidade de atos humanos, auxiliando ao entendimento das ações que levam ao pecado e incitando a não cometê-los, sendo que há um incentivo para que não pequem, já que há uma promessa de sofrimento, de que ao cruzar certos padrões e normas divinas, as consequências advindas serão severas. Podemos observar um contraste nítido entre as imagens dos pecados em si e as imagens das consequências dos pecados cometidos. Os pecados são

retratados

com

certa

inocência,

com

naturalidade, como se não fossem em fato tão terríveis, mostrando como o ato pecaminoso pode ser

traiçoeiro,

porém

as

implicações

são

aterradoras, e as suas imagens tendem a inspirar medo e horror. Há a intenção da formação de um caráter vigilante dos atos aparentemente mais inocentes que levam a sofrimentos terríveis, pois escondem no dia-a-dia das atitudes humanas a sua verdadeira natureza. Amanda Basilio Santos é Bacharela mestranda em História (PPGH – UFPel) com Especialização em Artes em andamento (PPGA – UFPel). Membro do LAPI (Laboratório de Política e Imagem da UFPel). E-mail de contato: amanda_hatsh@yahoo.com.br

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