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Pesquisa

O AMERÍNDIO E A NAÇÃO (RE)INVENTADA NA OBRA DO POETA E ESCRITOR JOAQUIM DE SOUSÂNDRADE: ALCANCES E LIMITES (1860 – 1900) Por Ramon Castellano Ferreira

O

presente artigo tem por finalidade discutir a vida e o obra do poeta e escritor Joaquim de Sousândrade. A partir de sua vivência e através de sua criação poética, pretendemos discutir como este personagem pensou a nação e o ameríndio dentro de um contexto de perda de poder simbólico por parte do Reinado de Pedro II e da implantação do regime republicano no Brasil de fins do século XIX. Para tal objetivo serão utilizados alguns fragmentos selecionados de sua principal obra: O

O Poeta e Escritor Joaquim de Sousândrade

Guesa, poema em construção escrito entre o final da década de 50 até a morte do autor no início do século XX, este épico nos permitirá fazer uma análise sobre as escolhas estéticas, políticas e ideológicas feitas pelo poeta maranhense dentro deste período histórico. Uma grande parte dos estudos historiográficos que trabalha com fontes literárias e poéticas costuma enfatizar somente o caráter histórico das mesmas, tratando-as como mera ilustração de um dado período ou contexto. Embora não conteste tal concepção e a sua validade como um todo, o presente artigo pretende seguir um caminho diferente, qual seja: seguindo proposta de Roger Chartier (2005), num primeiro momento iremos analisar o nosso objeto num caráter diacrônico, dando ênfase à ressignificação da nação e do ameríndio dentro da obra do poeta maranhense e a sua relação com seus referentes anteriores (assim como discutiremos o modo como o poeta se posicionou nesse espaço social de relações); num segundo momento iremos levantar algumas questões relativas à complexidade e heterogeneidade do sincrônico, mas com atenção maior na diferença, discutindo os alcances e limites das construções e escolhas feitas por Joaquim de Sousândrade. Com base na proposta de Maria Regina Celestino de Almeida acerca do diálogo entre antropologia e história para aplicabilidade na relação entre agência e estrutura, iremos focar na capacidade da ação humana, relacionando-a às possibilidades e alternativas de determinadas estruturas sociais e culturais (2011). Para


G N A R U S |6 tal fim, utilizaremos os conceitos de campo e habitus do sociólogo francês Pierre Bourdieu. E complementando este aparato metodológico, lançaremos mão de um outro conceito, qual seja: o da transdiferença, “campo conceitual de altíssima complexibilidade e mobilidade, capaz de enxergar os modos de experiência vivencial nas sociedades contemporâneas a partir de seus próprios modelos de representação” (Olinto, 2010:31). Assim, para a consecução de tais objetivos, organizaremos o presente artigo em duas partes. Na primeira delas, discutiremos as construções poéticas feitas por Joaquim de Sousândrade dentro do contexto de acirramento das contradições políticas, sociais e culturais do Segundo Reinado, mostrando como o poeta se posicionou em relação ao grupo que cercava D. Pedro II, ao indianismo romântico e à política indigenista do império. Na segunda parte, analisaremos a relação entre estas construções poéticas e as novas teorias raciais poligenistas (assim como a constância de formas de afirmação e de repetição), dando especial atenção à vivência do poeta maranhense e à noção de diferença. Em ambas as partes os aportes teóricos serão discutidos dentro do próprio processo de construção e apresentação do nosso objeto de estudo.

JOAQUIM DE SOUSÂNDRADE E O CORO DOS CONTENTES

“Reservado é o mundo, em que o homem é o selo com as armas do autor” (Sousândrade)

Nicolau Sevcenko, no livro Literatura como Missão, incluiu o romantismo num tempo inelástico, estanque. Dando-lhe a palavra: “O romantismo representou bem um modelo de sociedade estável, mantida sob um sistema homogêneo de autoridade, como o do Segundo Reinado no Brasil. Supunha, por isso, um sistema único de valores e uma perspectiva de contemplação social privilegiada e também exclusiva, que é a que se orienta do topo em direção à base da pirâmide” (2003:275). Esta passagem do autor surge como um incômodo para os fins deste artigo. O plano de construção do Estado moderno brasileiro no século XIX se assentou em bases contraditórias. A partir da década de 60, o Segundo Reinado começou a perder legitimidade junto

às classes que o sustentavam. O indianismo romântico, antes um importante suporte simbólico da Monarquia, se voltou contra ela dentro de um processo que culminou na queda do Império em 1889. Segundo David Treece: “O final do Império produziu, pois, um breve eco do Indianismo trágico e ultrajado dos primeiros românticos, na medida em que abolicionistas e republicanos lutaram para romper com a herança colonial que o Império havia preservado” (2008:16). Voltemos um pouco. Depois das duas primeiras décadas que seguiram o processo de independência e da consolidação problemática do Estado moderno no Brasil, forjou-se um programa sistemático de construção de identidade nacional que visava à conquista de autonomia cultural em detrimento da antiga metrópole, da Europa. Encabeçada por uma elite ilustrada interiorizada na província fluminense, na corte, esse plano de autonomização foi complexo e contraditório. Se por um lado proclamava as particularidades locais, por outro, almejava estar a par da civilização europeia. Somando-se a isso, tendo em vista o caráter que assumiu o processo de independência no país, a rejeição ao legado colonial foi bem pequena, principalmente, quando comparada aos outros países latino-americanos. Dentro dessa diretriz de conformação identitária, o IHGB ocupou lugar de destaque, importante centro de debate das questões nacionais. Fundado em 1838, seus membros faziam parte da elite literária e política fluminense. Propulsora do projeto cultural oficial, palaciano, a instituição se pautou pela tradição iluminista, no ideal de civilização e progresso. A partir da década de 50 se tornou polo ativo de discussão e difusão do conhecimento, recendendo ares de cientificidade. Foi também a partir desse momento que D. Pedro II passou a participar ativamente do instituto e da vida política e cultural do país. Atrelado a essa trama em torno da afirmação de uma cultura autônoma e de constituição de uma memória nacional estava o romantismo. Esse “movimento” congregou poetas, dramaturgos, historiadores, publicistas e romancistas. Importante instrumento de positivação da jovem nação, através da estética romântica, fatos históricos foram narrados, mitos e lendas, criados. A maioria dos membros do grupo, pelo menos até a década de 60, pertencia ao IHGB e aos altos escalões do governo imperial, o que endossa o seu caráter oficial.


G N A R U S |7 Dentro desse contexto de criação de uma literatura independente e de uma memória e histórias nacionais, foram ressaltadas as particularidades locais, a fauna e a flora, a natureza brasílica. Nesse quadro, o índio ocupou lugar de destaque. Para Afrânio Coutinho, “o nacionalismo romântico assumiu um caráter muito próprio no Brasil, sob a forma do indianismo” (2002:24). Tanto no IHGB quanto no movimento romântico, o índio assumiu importante papel nessa comunidade imaginada. Presente na iconografia oficial e nos rituais do Império, se no Instituto Histórico, ele foi incluído na história oficial que se forjou, na literatura romântica o ameríndio foi elevado ao patamar de mito nacional, de herói fundador da nação. No entanto, a literatura nacional exaltou o índio extinto ao passo que o contemporâneo foi visto como degradado e decadente. Nas palavras de Carneiro da Cunha: “Até por uma questão de orgulho nacional, a humanidade dos índios era afirmada oficialmente, mas privadamente ou para uso interno do país, a ideia de bestialidade, de fereza, de animalidade dos índios, era comumente expressa” (1992:134). Assim, o indianismo romântico desenvolvido no momento de consolidação do Reinado de D. Pedro II tomou um viés preponderantemente conservador. Dentro da política de consenso das primeiras décadas do Segundo Reinado, exaltou o índio guerreiro aliado dos portugueses, capaz do autosacrifício em nome do colonizador. Nesse caminho, estavam as obras de Joaquim Manoel de Macedo, José de Alencar e Gonçalves de Magalhães, sendo que este teve o seu épico A Confederação dos Tamoios patrocinado pelo imperador. No entanto, ainda que sem questionar a legitimidade do regime monárquico, vozes dissonantes como a de Gonçalves Dias denunciaram o processo colonizador, violento e desleal, e fizeram uma defesa humanitária do

índio. Nas décadas seguintes, mais independentes da órbita em que giravam os asseclas do Estado imperial, escritores e poetas parodiaram, satirizaram e criticaram de modo mordaz o regime monárquico e seu projeto de nação. Como muito bem frisou Bosi: “Esse vetor da cultura como consciência de um presente minado por graves desequilíbrios é o momento que preside à criação de alternativas para um futuro de algum modo novo” (1992:17). Assim, imerso em contextos sociais e históricos específicos, essa elaboração cultural e política da nação não foi estática. Numa perspectiva diacrônica, se durante as décadas de 40 e 50 gozou de uma aparente estabilidade, a partir da década de 60, com o amadurecimento de uma classe média urbana e com a gradativa perda de poder simbólico do Reinado de D. Pedro II, surgiram grupos menos dependentes do Estado e de suas instituições, e, por isso mesmo, mais críticos. Segundo David Treece: “É quase como se, ao revisitar mais uma vez a história genocida dos anos coloniais, esta última geração estivesse, à sua própria maneira, desmascarando o idealismo conservador da mitologia alencariana de Conciliação que ajudara a sustentar a auto-imagem e a legitimidade do Império”(2008:292). O Guesa foi escrito de 1858 até a morte do poeta em 1902. Essa obra representou um importante ataque simbólico à Monarquia. A estética romântica, antes um veículo utilizado para a consolidação da imagem do Império, foi usada para criticá-lo. Sousândrade se valeu do principal aporte da invenção simbólica da nação, o índio, para atacar o Reinado de D. Pedro II e sua política indigenista. Através da sátira, do anti-discurso, da quebra da convenção romântica, o poeta inverteu o signo do indianismo, instrumentalizando o ameríndio para fins republicanos.


G N A R U S |8 No que diz respeito ao tratamento dado ao índio em sua obra, Sousândrade se pautou por uma visão realista – e, como frisou Costa Lima, “a visualização da realidade é a condição prévia para a descoberta do correspondente estético pelo artista” (In Campos, A e H., 2002:478). Numa perspectiva pan-americana, fragmentada, trabalhou com as comunidades précolombianas assim como com o ameríndio contemporâneo. Através da “tese decadentista” (Kodama, 2009), de um indianismo trágico, denunciou abertamente a política indigenista levada a cabo pelo Estado imperial. Por um viés humanitário, de crítica social, inovou tanto no tratamento dado ao índio quanto no caráter linguístico e estético – nesse quesito, Sousândrade utilizou diversas línguas para a composição do seu épico assim como se valeu dos mais diversos referentes culturais, tais como: o clássico, o americano e o indígena. Vamos a uns trechos do Canto II do poema, o qual ficou conhecido como Tatuturema, uma espécie de ritual sagrado corrompido no qual aparecem diversas personalidades, inclusive o imperador:

“Ministro portuguez vendendo títulos de honra a brazileiros que não teem) Quem de coito damnado Não dirá que vens tu? Moeda falsa és, esturro Caturro, D’excellencia tatú!” “(Moral educação práctica) A mulher, é Jovita; O homem, Bennettetão: Oh! Faz Hudson-manbusiness, Freeloves; Amazonas, poltrão!” “(KONIAN-BEBE rugindo) Missionario barbado, Que vens lá da missão, Tu não vais à taberna, Que interna Tens-n’a em teu coração!” “(2o Patriarcha) Bronzeo está no cavallo Pedro, que é fundador; Ê! ê! ê! Tiradentes Sem dentes, Não tem onde se pôr!”

(Trechos selecionados, O GUESA, 45, 46 e 47)

Nestas partes ficam bem claras as intenções do poeta. Satirizando a figura do imperador, dos missionários, e, por conseguinte, a política indigenista imperial, Sousândrade alterou o estado adocicado em que pairavam os arautos do Segundo Reinado. Reação do indivíduo à cultura na qual vive, esses trechos

selecionados demostram muito bem o caráter dinâmico da vida social e cultural (BOAS, 2012) – e, como muito bem frisou Sahlins, “a continuidade da ordem cultural é um estado alterado produzido por contingências da ação humana” (2006:19). Ao jogar com a sátira e a crítica, não temos dúvida que Sousândrade atomizou a estética romântica (entendida enquanto política), assim como desestabilizou o círculo no qual planavam os cantores da jovem nação. Neste estágio do artigo, acreditamos poder tecer alguns comentários sobre o conceito de habitus desenvolvido por Bourdieu. Entendido como incorporação das estruturas mentais nos indivíduos, essa noção operatória não pode, no entanto, ser compreendida como um fado, e, acreditamos que a produção poética do poeta maranhense demonstra muito bem esse ponto. Para esclarecer a questão, citemos o sociólogo: “(...) o habitus não é um destino; em vez de um fatum – de acordo com a afirmação que me é atribuída -, trata-se de um sistema aberto de disposições que estará submetido constantemente a experiências e, desse modo, transformado por essas experiências. Contrariamente às afirmações que me são atribuídas, é na relação com determinada situação que o habitus produz algo. Ele é semelhante a uma mola, mas é necessário um desencadeador; e, dependendo da situação, ele pode fazer coisas opostas” (Trechos selecionados, 2011:62). Nestes trechos, Bourdieu deixou bem clara a sua posição em relação ao caráter dinâmico das estruturas sociais e culturais. Outra noção do sociólogo francês importante para a composição deste estudo é o conceito de campo. Tendo em vista que o nosso objeto de estudo se encontra na ordem da representação e da relação, fazse necessário considerar as diversas tomadas de posição que os agentes assumiram dentro deste espaço social e histórico específico. Levando-se em conta que a obra poética de Joaquim de Sousândrade foi produzida numa sociedade de corte minada por graves contradições, é preciso considerar a estratégia e a vivência deste sujeito histórico, a posição que ocupou neste espaço de tensão, suas escolhas políticas e estéticas. Vamos a mais um trecho da obra do poeta e vejamos como ele se posicionou nesse jogo relacional de poder e representação:


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“(Côro dos contentes, TYMBIRAS, TAMOYOS, COLOMBOS, etc., etc.; musica de C. GOMES a Compasso da sandalia d’EMPEDOCLES) A mui poderosa e mui alta ‘Magestad do Grande Senhor’ - Real! = ‘Semideus’! - São Matheus! = Prostou-se o Himavata, o Thabor!”

(Trecho selecionado, O GUESA, 257)

POR UMA POÉTICA DA VIVÊNCIA E DA DIFERENÇA

“Tudo aperto e nada abarco, cheio de razão ardente, descarregado de mim ando no mundo” (Waly Salomão)

Joaquim de Sousândrade nasceu na fazenda da Vitória, no Estado do Maranhão, em 1832. Proveniente de família abastada, sua trajetória foi bem diferente da maioria dos intelectuais do Segundo Reinado. O poeta teve uma vida atribulada e andou por diferentes paragens. Passou a juventude em São Luís, a Atenas brasileira, como era conhecida. Aí travou contato com

figuras renomadas como Odorico Mendes, poeta e tradutor de várias obras clássicas. Durante 1854 e 1856, Sousândrade peregrinou pelo continente europeu, tendo estudado engenharia na Sourbone (fato nebuloso de sua biografia). Entre 1858 e 1860, o escritor fez uma viagem pelo rio Amazonas, onde manteve contato direto com a dura realidade de diferentes comunidades indígenas (LOBO, 2005; RÊGO, 2007). Mas o seu périplo não parou por aí. Em 1871, partiu junto de sua filha para Nova Iorque, retornando ao Brasil em 1878, de onde saiu para visitar a América Hispânica (Chile e Peru). Depois desta viagem, o poeta retornou aos Estados Unidos, onde trabalhou como jornalista do periódico de linha positivista O Novo Mundo até 1885, ano no qual retornou a São Luís, cidade da qual foi prefeito durante alguns meses e na qual faleceu em 1902. Como pode se observar, o poeta não teve uma vida nada provinciana, tendo travado contato com diversas realidades, o que, acreditamos, refletiu na consecução de sua obra poética assim como nas suas posições políticas. Porém, vamos tornar a questão mais complexa. Como


G N A R U S | 10 dissemos na primeira parte, a cultura é dinâmica. A partir da década de 60, “ideias que explicitavam mais enfaticamente a relação entre a nação brasileira e a racialização” (KODAMA, 2009) ganharam força. O poligenismo e o seu prisma negativo em relação à identidade da nação viram um futuro nada próspero para um país preponderantemente mestiço. Mas, como muito bem mostrou Lilia Schwarcz, o modelo evolucionista pautado nos ideais de civilização e progresso continuou a ter grande força, convivendo aqui com as novas teorias raciais. Nas palavras da autora, “o resultado foi uma interpretação que, apesar de monogenista, recorreu a conclusões darwinistas sociais quando se tratava de justificar, por meio da raça, hierarquias sociais consolidadas” (Schwarcz, 1993).

nacional. Sua composição poética e a utopia nela intrínsica de uma democracia republicana pautada nas noções de civilização e progresso abarcou uma tensão interna irresolvida, na qual é possível enxergar uma pulsação permanente entre elementos díspares e plurais (CATTANI, 2007). Para finalizarmos esta parte, vamos a uns trechos do Canto X, que ficou conhecido como O Inferno de Wall Street, no qual o poeta escarnece da figura do imperador quando da participação do Brasil na exposição internacional que aconteceu nos Estados Unidos, mostra sua verve moralista e critica a teoria eugênica de branqueamento da sociedade:

Nesse contexto, a poesia de Joaquim de Sousândrade parece algo meio que fora do lugar. Para muitos, a obra do poeta é tida como multiétnica (BOSI, 2006; CAMPOS, 2002). Porém, como mostrou Cláudio Cuccagna ao analisar a carta-artigo O estado dos índios:

“(Comissarios em PHILADELPHIA expondo a CARIOCA de PEDRO-AMERICO; QUACKERS admirados) - Antediluvio ‘plesiosaurus’, Industria nossa na Exposição... = Oh Ponza! que coxas! Que trouxas! De azul vidro é os sol patagão! (Detectives furfurando em MAIN-BUILDING; Telegram submarine) Oh! cá está ‘um Pedro d’Alcantara! O Imperador está no Brazil.’ - Não está! christova É a nova, De lá vinda em Septe de Abril! (GENERAL GRANT e DOM PEDRO) - Fazei-nos os cabellos brancos... Um filho das leis do amanhan! = Com Romanos... Papa; Satrápa, Com Gregos; Napóleon, com Grant! (Photophonos-estylographos direitos sagrados de defeza) - Na luz a voz humanitaria: Odio, não; consciencia e rasão; Não pornographia; Isaias Em biblica vivisecção! (Consciencias perante a historia substituindo aos destruidos NATURAES) - Chumbando Booths aos rêis-‘gorilas’, A raça melhoraram de côr: E o negro Africano, Amer’cano Já é peau-rouge! será brancor!” (Trechos selecionados, O GUESA, 255, 256, 265 e 267)

“A crítica que Sousâdrade movia contra a conquista e a colonização do ameríndio não punha, na realidade, em discussão a validade e a legitimidade desses dois processos de intervenção ocidental. Também o poeta, com efeito, considerava necessário realizar a colonização e a cataquese do indígena. Com particular referência à situação do índio amazônico contemporâneo, tinha assumido empaticamente a sua salvaguarda, pois o poder imperial desenvolvia sobre ele uma política colonizadora errada que, ao contrário, devia ser empreendida segundo uma conduta diferente da então cumprida com incapacidade e descuido” (2004:156). Assim, percebemos que a singularidade do nosso personagem é muito mais problemática do que parece, não podendo ser entendida somente pelo viés dicotômico. Um conceito interessante que pode nos ajudar a pensar essa questão é o da transdiferença. Segundo Heidrun Olinto, esta noção questiona o pensamento binário e “afasta-se tanto da visão de grupos culturais, como portadores de determinadas identidades culturais claramente distinguíveis, quanto da compreensão da contingência cultural limitada à perspectiva diacrônica, dando relevo a uma complexidade e heterogeneidade do sincrônico” (2010:29). Pensamos que Joaquim de Sousândrade foi capaz de elaborar uma visão muito própria da realidade

CONSIDERAÇÕES FINAIS Em 1889, o império ruiu, fruto de um processo que durou no mínimo três décadas. Ainda no final da


G N A R U S | 11 década de 50, surgiram as primeiras fissuras entre as classes políticas que sustentavam a monarquia constitucional. Com o fim do tráfico negreiro, a escravidão e o problema da mão-de-obra tornaram-se o centro das atenções. Principalmente por conta disso, a questão indígena passou a ser muito discutida. De mais a mais, depois da guerra do Paraguai, o Reinado de D. Pedro II se enfraqueceu visivelmente. Somandose a estas questões, uma nova “onda liberal” pairou no ar e uma nova classe média formada por profissionais liberais ganhou espaço no plano político e cultural. O movimento abolicionista e o republicano cresceram e se organizaram. Numa outra ponta, uma contra-elite se formou: a militar. No entanto, a reforma eleitoral de 1878, levada a cabo por um gabinete liberal, restringiu sobremodo a participação política. As novas teorias raciais começavam a pensar a identidade da nação dentro de outros padrões hierarquizantes. É neste cadinho cultural e político que Joaquim de Sousândrade construiu sua obra poética e defendeu suas ideias. A visão multiétnica de sua obra foi com certeza algo novo, como que fora do lugar. No entanto, o poeta maranhense também se pautou por uma visão progressista e civilizacional. Assim, partindo de sua vivência e criação estética, procuramos apresentar neste artigo algumas questões relativas a este personagem no que diz respeito ao ameríndio e à nação, mostrando como ele se posicionou em relação às mais diversas questões de seu tempo, sendo capaz de elaborar uma visão política e uma obra poética muito peculiar e complexa. Ramon Castellano Ferreira: É Graduado em Licenciatura em História pelas Faculdades Integradas Simonsen e Mestrando do Programa de Pós-Graduação em História Social da UFF.

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"Moema" de Victor Meirelles (1866)


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