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A CAIXA também é uma das principais patrocinadoras da cultural brasileira, e destina, anualmente, mais de R$ 60 milhões de seu orçamento para patrocínio a projetos culturais em espaços próprios e espaços de terceiros, com mais ênfase para exposições de artes visuais, peças de teatro, mostras de cinema, espetáculos de dança, shows musicais, festivais de teatro e dança em todo o território nacional, e artesanato brasileiro. Os projetos patrocinados são selecionados via edital público, uma opção da CAIXA para tornar mais democrática e acessível a participação de produtores e artistas de todas as unidades da federação, e mais transparente para a sociedade o investimento dos recursos da empresa em patrocínio. A Mostra “Filmes-cartas:por uma estética do encontro”, pretende exibir ao público carioca filmes contemporâneos criados na década de 50/60 e de pouca circulação no mercado. Essas obras abordam a relação entre filme e carta elaborando a construção pessoal de cada realizador e levando o espectador aos limites entre ficção e realidade. Desta maneira, a CAIXA contribui para promover e difundir a cultura nacional e retribui à sociedade brasileira a confiança e o apoio recebidos ao longo de seus 152 anos de atuação no país, e de efetiva parceria no desenvolvimento das nossas cidades. No investimento e participação efetiva no presente, compromisso com o futuro do país, e criatividade para conquistar os melhores resultados para o povo brasileiro. CAIXA ECONÔMICA FEDERAL



06 RĂşbia MĂŠrcia Cezar Migliorin

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Consuelo Lins Fernanda Meireles

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Frederico Benevides

28 Isaac Pipano Juliano Gomes Manoel Ricardo Milena Travassos Philippe Dubois

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Filmes-carta| por uma (outra) estética do encontro Por Rúbia Mércia Não trate de assuntos generalizados: você pode escrever um artigo sobre os correios, mas deve fazer um filme sobre uma carta. Alberto Cavalcanti, 1948 Eu vos apresento uma breve nota sobre os encontros a partir do que podemos chamar de filmes-carta. Lembro-me de certos devaneios quando assisto ou encontro com algo que direciona o meu olhar a questões interligadas ao modo de estar do outro “dentro” de filmes que possuem a escrita de si1 como ponto de partida. Estas cartas, ou melhor, os filmes-carta aqui apresentados, partem de uma dimensão ensaística no gesto de realizar a obra. São certos apontamentos que direcionam a um determinado mapa afetivo de cada realizador. Neste caso, os filmes nos mostram horizontes delineados a partir do desejo da partilha, entendida como um gesto de endereçar ao outro uma imagem, um som, um desenho, um diário, um caminho, um sentimento. O filme-carta emerge como encadeamento de relações intersubjetivas que dialogam com o estar do autor. A escrita do filmecarta acontece para além da superfície plana de um papel em branco ou de uma timeline em preto. A mostra “Filmes-carta: por uma estética do encontro” busca os encontros mais fortuitos e mais fortes. As formas de se lançar ao outro, o risco da rasura, a ação da performance para a câmera são características deste panorama de filmes-carta. Os filmes nos apresentam formas pessoais de uma realização audiovisual do possível, do realizar com o que se tem “em mãos”, do entender o que a imagem quer dizer, de olhar para o som e perceber as nuances dos ruídos de uma rua que nos faz lembrar alguém. Um sempre lembrar. Um sempre trocar. Uma partilha, um certo efeito de real. 1 “Escrever é portanto se mostrar, se expor, fazer aparecer seu próprio rosto perto do outro. E isso significa que a carta é ao mesmo tempo um olhar que lança sobre o destinatário (ele se sente olhado) e uma maneira de se oferecer ao seu olhar através do que lhe é dito sobre si mesmo” (FOUCAULT, Michel. Ditos e escritos V: Ética, sexualidade, política. Rio de Janeiro-RJ: Forense Universitária, 2004).


Filmes que nos mostram mapas do visível, traços entre o que é visível e o dizível das relações apresentadas em cada filme, que nos falam de relações entre modos de ser, modos do fazer e modos do dizer2. Penso como estes filmes da mostra, assim como outros filmes-carta que estão presentes através do concurso “Eu Envio”3, demarcam um processo de construção de narrativas bastante intimistas, e também como nos fazem pensar através de uma realização audiovisual, que brinca com a imagem, que a repensa, que a problematiza e que move o som dentro da imagem e que reinventa o próprio fazer cinematográfico. Como pensar esses intercâmbios entre as linguagens? Que coreografia do gesto é posta em cada filme que tece a mostra? Acredito que este desenho se dá através do encontro entre pessoas e coisas. Que se dá entre a razão e a loucura. Entre nascer e morrer. Entre o real e a ficção. Entre o real e o alegórico. Entre a cidade e o que se desdobra a partir de um olhar pessoal para ela – a cidade. Por esses dias, em uma conversa com o amigo Isaac Pipano, ele me disse: “Fico achando que essa aposta nesse cinema leva a gente a pensar nas imagens mesmo, no encontro com o outro a partir do cinema. É uma aposta no pequeno, né? No menor, no íntimo, no privado que vai se desdobrando pro mundo... que não fala só sobre mim, sujeito particular e singular, mas sobre um sujeito que se constitui ao mesmo tempo que produz as imagens”. Depois e ao longo da conversa, respondo: “Sim, estes filmes sugerem relações que estão ao encontro e de encontro com algo que o sujeito percebe e transforma em filme”. Os filmes mobilizam um certo posicionamento de mundos, uma certa vontade de habitar determinados encontros. Um cinema próximo, um cinema que se tece com as fricções também do agora, de uma câmera que passeia e fabrica situações a partir do modo em que cada sujeito se posiciona e questiona o seu cotidiano e o do outro. Esse pertencimento direto do autor é algo que deslumbra, que palpita, e que ao mesmo tempo é político em suas indagações que se externalizam em um sentimento, em um filme. O que cada filme-carta evoca a partir dos encontros, é algo singular a cada filme. 2 RANCIÈRE, Jacques. A partilha do sensível: estética e política. São Paulo: Ediouro, 2005. 3

www.mostradefilmescarta.com

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Esse breve relato do que podemos encontrar num filme-carta é pouco, é quase “pequeno”, mas mostra os desdobramentos dos filmes que lidam algumas vezes com situações de partida, deslocamento e exílio, que muito me interessam. Em relação, parte dos filmes dialogam com a premissa da carta epistolar, missivas íntimas, que se dão através de relações com a distância, com a ausência, com os deslocamentos do outro, com a saudade, com os passados, com os presentes e possíveis futuros. Interessa-me nos filmes-carta o gesto de endereçar ao outro uma imagem, um bilhete, uma carta. Esse gesto desencadeia relações que se dão entre o espaço da carta e o espaço do filme, mostrando no ato da escrita, no ato de escrever com a imagem, as rasuras das relações, as brechas do acaso, a fenda que corta o tempo e o espaço (outro). O olhar neste recorte propõe compartilhar, além de subjetividades expostas pelos cineastas – realizadores – autores que dialogam com esta premissa, outros desdobramentos que são característicos do encontro entre realizador e mundo, entre vida e arte, entre cinema e fotografia, entre diário e carta. Estes encontros tecem relações entre memória e cinema, entre carta e a ramificação desta escrita em outros formatos. Em cima desta dobradura que podemos chamar de filme-carta, entendemos que a estética de si torna-se dispositivo para a realização fílmica. Neste contexto, uma das características que nos remete ao filme-carta é justamente a elaboração dos processos criativos, que partem inicialmente da carta literária e de relatos em primeira pessoa para compor a obra dentro de um ponto de vista específico do autor com o seu entorno, suas questões e suas correspondências com o mundo. Portanto, este traço singular referente ao filme-carta aqui esboçado, inscrito, constrói formas de visibilidade da subjetivação do sujeito enquanto personagem e autor que narra e se reinventa no filme. O que percebemos é que os deslocamentos imagéticos demonstrados nos filmes apresentados buscam espaços que estão para além de um espaço físico e, especificamente, de uma delimitação temporal, mas remete a uma certa construção de um mapa afetivo, que lança ao outro e ao espectador uma intimidade que se monta com o outro através do cinema. Em parte, alguns dos filmes da mostra nos mostram a relação de força entre as dobraduras da escrita imagética e a relação com o pertencimento às cidades mostradas em cada obra. São diversas cidades imbricadas que provocam neste corpo que viaja e se desloca o desencadeamento de percepções com o lugar deixado, com o lugar que muda, com o outro que muda, com o


lugar-cidade que se altera, com o possível estado de habitar os lugares e a relação do encontro, elemento principal da composição destes filmes. Em parte, os deslocamentos físicos disparam deslocamentos que são também estéticos, políticos e ao mesmo tempo perpassam por questões éticas no processo de constituição do sujeito. Deslocamentos que produzem um novo arranjo estético de uma nova forma de estar e habitar certos mundos. Portanto, observa-se neste tipo de escrita algo que se arrisca e se aventura, que se mostra e que se lança ao outro num gesto cadente de aproximação – aproximar de algo ou alguém. Uma busca afetiva pelo encontro. Um gesto aparente de criar através de um espaço íntimo, um diálogo com esta ação para um público diverso, outro, estranho, diferente (outrem). Um lugar de certa intimidade, um acontecimento de certas experiências artísticas. Talvez esta seja a premissa da mostra e os segredos que são revelados a partir dos filmes. Um certo tipo de criação que eleva a dimensão mais elementar e essencial do cinema; com uma câmera na mão, uma situação, algumas imagens, uma montagem, uma certa mise en scène e alguém do outro lado com vontade de receber notícias. Esse gesto propõe um encontro, aciona modos de realizar a escrita de um filme-carta. Talvez a metáfora das cartas exista não só para percebemos a questão do autor, do realizador e suas questões pessoais, mas nos serve também para pensarmos alguns processos da produção cinematográfica, o fazer de forma mais “simples”, “menor”, “possível”. Uma carta é um tipo de conversa, e o filme-carta também é um tipo de conversa que através do cinema possibilita essa [outra] forma do encontro. Extrapolam situações pessoais, que se tornam públicas. Há uma correspondência entre o que é de ordem pessoal entre o que é público que transborda no ato de fazer os filmes. Cada filme, um mundo singular que desenvolve a partir da experiência do cinema “privado” outra relação com as coisas que movem os mundos esboçados em memória, em escrita rasurada, em câmera-olho4, em câmera-corpo e câmera-caneta5. O deslocar-se dos filmes, digo, deslocar no sentido mais geral da palavra, como algo que se move, que muda de lugar, ou que é rebuliço dentro de si. Estes são trabalhados num momento em que a velocidade da comunicação e da 4 VERTOV, Dziga. Kino-Eye: The Writings of Dziga Vertov. Apud RENOV, Michael. Investigando o Sujeito: uma introdução. In LABAKI, Amir; MOURÃO, Maria Dora (orgs). O cinema do real. São Paulo: Cosac Naify, 2004. p.256. 5 Astruc traduz o movimento da escritura pessoal no cinema no sentido da caméra-stylo quando afirma que o cinema separar-se-á de um cinema apenas do entretenimento e da tirania da imagem pela imagem para tornar-se num meio da escrita flexível e sutil como o da linguagem escrita.

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transmissão de imagens sugere que tudo já foi mapeado e que num lampejo (outro) mostram uma intimidade exposta – intimidade essa que envolve questões de identidade, questões políticas, questões morais, questões artísticas e etc. Portanto, identifico no ato de escrever com a imagem algumas rasuras poéticas, algumas brechas e definições inacabadas. A escrita “ensaio” elaborada aqui se pautou principalmente pela impossibilidade como ponto de partida e, desta forma, se lançou ao encontro do outro desconhecido, se lançou aos riscos de permear campos ainda não frequentados, e que, por vezes, teve de se ater às representações e alteridades dela mesma para que fosse possível também se lançar como uma escrita que também é personagem das histórias relatadas nestes filmes-carta. No percurso da pesquisa e a realização da mostra, ainda persistem indagações e questões que não foram afinadas, mas que estão em aberto justamente para que sejam, posteriormente, tomadas e compostas por outras esferas de pensamento e articulações entre vida privada e cinema. Porém, vale ressaltar que aqui não se finda um discurso, mas sim finda um ciclo de pensamento em prol de iniciar um (outro) Breve nota dispersa dos filmes-carta:. Ligo a câmera, escuto, vejo, eu filmo. - O desenho da rua em Mauro em Caiena. - A Fortaleza desterro que pode estar num espaço do tão longe é aqui. - Uma cidade de lá em carta da Sibéria. Uma cidade de cá, em cartas ao Ceará. - Viagens que são precisas, um amor inventado que está para além de todas as montanhas. - Minha querida mãe, escrevo uma carta ao pai, através um diário que se busca – encontros. - Notícias de casa, notícias das crianças, notícias a sua camponesa. - Aos desassossegos, um canto da Terra d’Água. - Saudações, de Glauber para Jirges, eu te escrevo esta carta.

Rúbia Mércia é curadora, idealizadora da mostra “Filmes-carta: por uma estética do encontro”. É mestre em Comunicação pela PósEco (UFRJ). Atualmente coordena a Escola Pública de Audiovisual da Vila das Artes-Fortaleza. Tem atuado com projetos na área de cinema e educação, e em centros de formação livre. É realizadora, pesquisadora e produtora audiovisual.


Quase-carta para filmes-carta

Por Cezar Migliorin

Há uma carta que é escrita, colocada na garrafa e jogada ao mar, uma outra enviada por e-mail que chega instantaneamente. Nos dois casos há um destinatário, alguém que, talvez sem saber, faz parte do gesto do escritor: um leitor imaginário, um amante ou alguém que na orla pode descobrir algumas palavras e associar a elas a sorte de tê-las encontrado. Descobrir uma carta no caminho, na garrafa ou no cinema, é inventar um náufrago. Os filmes-carta que me interessam são como mensagens na garrafa. Cada palavra é acompanhada da sorte de termos nos encontrado – nós e a carta. Nesse sentido, uma mostra de filmes-carta é quase paradoxal. Como colocar tantas cartas juntas, tantos náufragos ou, no mínimo, tantos que estão distantes ou impossibilitados de olhar nos olhos, dizer ou ver o corpo do outro. Não seria estranho um filme-carta comentado pelo diretor? Mais um dos paradoxos que a máquina cinema nos reserva. Mas, para os náufragos, as cartas podem salvar. As cartas vêm nos salvar. Garantem que sempre poderemos falar, que o tempo será gasto com o outro, mesmo que ele não deseje, mesmo que o interlocutor não esteja presente, mesmo que estejamos ameaçados, mesmo que fisicamente sejamos apartados. A carta nos conecta e nos salva. Jogar uma carta ao mar é acreditar que o resto do mundo ainda existe, o que é provável, mas que, mesmo assim, nos demanda uma crença. O filme-carta força um limite do espectador. Se a carta é dirigida a ele, estamos tranquilos, somos o destinatário e quando estamos com o filme, estamos no lugar certo. Mas, por vezes, o filme-carta não é dirigido ao espectador, mas a um terceiro, a alguém que está fora da sala. A noiva distante, o amigo perdido, o pai falecido. E então? Em que lugar fomos colocados? Somos bisbilhoteiros que abrem as cartas alheias? Voyeurs que desejam os textos e afetos dos outros sem sermos chamados? Parece que não. Os filmes-carta, talvez, forcem um lugar complexo para o espectador. Entre ser e não ser o destinatário, entre poder e não poder compartilhar aquele gesto subjetivo. Nesse sentido, trata-se de filmes que transitam em uma tênue linha entre o público e o privado, entre o individual e o coletivo. E nessa linha se instala o potencial político dessas obras, uma vez que operam no desejo do sujeito se dirigir subjetivamente ao

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outro e, ao fazer isso com os meios do cinema, tornam o gesto pessoal imediatamente público. No filme-carta o problema pessoal perde as estribeiras – gosto do termo pois imagino um sujeito montado em um cavalo, sem contato com os estribos, podendo ser arremessado longe –, outra forma de se sair de algo! Pois, ao perder as estribeiras de uma questão intrinsicamente pessoal, o sujeito se vê desamparado – um desamparo necessário para se fazer algo comum, fazer algo que se adensa na comunidade. Digamos assim então: o filmecarta parte de uma urgência de comunicação, da impossibilidade do contato físico e da possibilidade de uma certa expressão ser lançada ao mundo. Com os meios do cinema, os filmes-carta não são apenas sobre deslocamentos e partidas, ou sobre distâncias físicas, mas filmes-deslocamentos ou filmes-partidas, filmes-cartas que apontam para distâncias que só são possíveis porque o filme existe. Mais do que um filme em que está presente um ponto de vista explícito do sujeito, trata-se de um sujeito em que o processo de produção da imagem, suas dificuldades e desafios – montagem, organização do tempo e do espaço, narrações, etc. – fazem parte de uma reflexão e construção de si. Repetindo: menos filmes sobre, mas filmes que são em si a possibilidade de estar longe, de deixar um lugar, de tentar uma conexão. Em tempos em que a carta, com seus envelopes, cheiros, selos e grafias parece ter sido relegada a fetiches vintage, o deslocamento e a atenção que o cinema pode dar ao gesto da carta renova o tempo que um sujeito se dedica a outro, traz a existência de alguns que se detêm diante de imagens e palavras com a gravidade que há em falar para o mundo, com a intensidade que há em escrever para um outro.

Escreva quando puderes.

Cezar Migliorin é pesquisador, professor e ensaísta. Membro do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da UFF e Chefe do Departamento de Cinema e Vídeo. Coordenador do Laboratório Kumã de pesquisa e experimentação em imagem e de projeto de cinema e educação com a Escola Livre de Cinema de Nova Iguaçu. Coorientador do Seminário Temático da Socine: Cinema, estética e política: a resistência e os atos de criação. Organizador do livro Ensaios no Real: o documentário brasileiro hoje. (Ed.Azougue, 2010) e doutor em Comunicação e Cinema (Eco-UFRJ/Sorbonne Nouvelle, Paris).


Breves observações sobre filmes em forma de carta: Chris Marker e Robert Kramer.

Por Consuelo Lins

Ruídos típicos de uma máquina de escrever nos créditos iniciais de Carta da Sibéria (1957), do cineasta francês Chris Marker, evocam de imediato o gesto da escrita e anunciam a primeira frase, hoje célebre, da narração do filme: “Eu vos escrevo de um país distante, seu nome é Sibéria”. Ao longo dos 62 minutos de duração, essa formulação epistolar é retomada para indicar novas direções ao que está sendo contado: “Eu vos escrevo do fim do mundo (...) escrevo essa carta da terra da infância (...) escrevo essa carta da terra da escuridão”. Cine-frases que tiveram o efeito de expandir os limites do documentário de então, que desconhecia, ou conhecia mal, inflexões subjetivas, contribuindo para retirar essa forma de cinema da paralisia em que se encontrava nos anos 50. Chris Marker é provavelmente um dos primeiros cineastas a integrar impressões pessoais nos próprios filmes e a explorar uma liberdade de tom para falar do que filmava. Mesmo antes de inventar a carta-filme com essa pequena obra realizada na Sibéria, ele já cria em Dimanche à Pekin (1955) um narrador que se manifesta na primeira pessoa, tecendo observações singulares sobre o mundo, dirigindo-se expressamente ao espectador, passando de um tema a outro de forma bastante livre, tal como em um diário de viagem ou um caderno íntimo de anotações. Registra momentos específicos do dia – “Onze horas. Mudei de bairro. (...) Meio-dia: retorno à rua” – em construções temporais que misturam ficção e documentário, memórias íntimas e imagens do mundo. Carta da Sibéria intensifica essas interlocuções através do texto em forma de carta, repleto de interpelações diretas dirigidas ao espectador – “decepcionante, não?”, “você esperava ver índios?” –, e observações pessoais sobre a história, curiosidades e a vida cotidiana dos habitantes de certas regiões da Sibéria. São também cartas que constituem as narrações de Sem sol (1982) e Elegia a Alexandre (1993). Em Sem sol, a narração em voz over pertence a uma personagem feminina que lê cartas supostamente escritas por um amigo cineasta que viaja pelo mundo filmando o que lhe dá vontade; em Elegia a Alexandre, é o próprio Marker que “assina” as seis cartas dirigidas ao amigo Alexandre Medvedkine, cineasta russo falecido poucos anos antes do filme.

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Recorrer à forma “carta” para realizar um filme foi o caminho escolhido por Marker para imprimir subjetividade à narração over do documentário, que até então seguia a fórmula clássica da “voz de Deus”, que transformava as imagens em meras ilustrações do que era dito pela narração. É como se o fato de poder falar por conta própria, de se colocar em cena, de se reinventar diante do mundo, liberasse o cineasta para conversas mais íntimas e francas com o espectador, articuladas a uma interrogação sobre o mundo e a uma reflexão sobre as imagens. Mesmo exprimindo um certo entusiasmo com as mudanças trazidas pelo regime comunista soviético a essa longínqua região do planeta – o questionamento dessa crença virá mais tarde na obra de Marker –, Carta da Sibéria contém a primeira grande crítica aos poderes e limites da locução clássica do documentário, advertindo o espectador das possibilidades de manipulação do cinema. Ao comentar as imagens que registra “o mais objetivamente possível” em diferentes locais da Sibéria, o narrador se pergunta a quem elas agradariam, “já que só se pode descrever comumente a União Soviética de dois modos: ou o paraíso dos trabalhadores ou o inferno na terra.” Faz então uma experiência inédita ao inserir três vezes no filme uma mesma sequência de imagens, montando-a cada vez com uma narração diferente. A primeira delas é um comentário favorável ao regime soviético, a segunda traz um conteúdo crítico ao comunismo e a terceira é uma narração mais descritiva, em tom mais neutro. Todas aderem sem problemas ao que vemos. É o “efeito Kulechov”1 aplicado ao cinema do pós-guerra – que podemos talvez renomear de “efeito Marker” –, efeito que explicita de forma contundente aquilo que de fato importa em toda e qualquer obra, documentário ou ficção: a posição de sons e imagens na composição final do filme em detrimento de eventuais méritos de um ou outro plano como registro do real. Marker reatualiza o “efeito Kulechov” reafirmando a importância da montagem na produção dos sentidos dos filmes, mas vai além porque chama atenção do espectador para os poderes manipulativos da montagem. Nessa sequência de Carta da Sibéria, o espectador experimenta o quanto a sua percepção pode ser orientada pela voz over; percebe como um certo

1 Nome da experiência mais famosa feita pelo grande teórico soviético da montagem. Nela, Kulechov justapõe “o mesmo plano de um ator, (...) primeiro, a um prato de sopa; depois, à porta de uma prisão; e, por fim, a imagens de uma situação amorosa”. O público acreditou serem planos diferentes do ator, eis o “efeito” obtido pela montagem da sequência. “Uma prova de que o sentido de cada elemento era dado por sua posição na montagem do filme.” Ver SARAIVA, L. Montagem soviética. In História mundial do cinema. Campinas: Papirus, 2006. p.116.


tipo de narração pode ser autoritária, contaminando o olhar e forçando a imagem a exprimir coisas que ela não exprimiria, caso não houvesse a locução. O espectador pode se dar conta de que é possível “provar” quaisquer aspectos da realidade utilizando essa fórmula estética. Em outros termos, Marker desconstrói no final dos anos 50 o que o documentário de feitura clássica e grande parte do telejornalismo continuam a fazer até os dias de hoje, sem qualquer tipo de reflexão crítica. E abre um campo de possibilidades para outros cineastas investigarem de modos diversos dimensões subjetivas e autobiográficas nas obras e experimentarem novas relações entre imagem e som, ampliando o repertório estético e narrativo do campo do documentário. *** Algumas décadas depois de Carta da Sibéria, o cineasta americano radicado em Paris Robert Kramer (1939/1999) realiza uma vídeocarta que tem como destinatário o amigo de longa data Paul McIsaac, companheiro de militância nos anos 60 e ator de três filmes do diretor. Ao refletir sobre seu método de trabalho nessa pequena obra, Kramer evoca o que ele define como uma “síndrome Chris Marker”, cujos principais sintomas seriam um confronto com o material de filmagem, um mergulho completo na história que queria contar, um isolamento radical: durante o período de feitura de Dear Doc (1991) Kramer decidiu que não atenderia ao telefone nem voltaria para casa, para ver o que aconteceria no processo.2 Em primeiro plano, sua relação com o ator Paul McIsaac, o trabalho em comum, as inúmeras conversas que tiveram ao longo dos filmes, a separação efetiva que ocorreu entre eles em Route One Usa (1989), último filme que fizeram juntos. Uma proposta de reflexão, um desejo de retomar questões passado um tempo, agora com uma certa distância, e de fazer o trabalho de luto do fim de uma trajetória em comum. Afinal, não foi pouco o que uniu ator e cineasta ao longo dos anos. Juntos militaram no Newsreel3 e fizeram Ice (1970); juntos, gestaram o personagem do médico inspirados em um dos guerrilheiros de Ice e fizeram com que ele ressurgisse em Doc’s Kingdom (1987) 17 anos mais velho, médico e doente ao mesmo tempo; juntos, fizeram Route One Usa, um documentário ficcional em que o personagem do médico retorna ao Estados Unidos para ser filmado por Kramer do norte ao sul do país, em contato com pessoas de todo tipo e origem. Tornar-se médico foi, de certo modo, fazer “política por outros meios”. 2 KRAMER, R. In Points de départ, Institut de l’image, Aix en Provence. p.101-102. 3 Organização de produção e distribuição alternativa de “atualidades cinematográficas revolucionárias” criada nos Estados Unidos em dezembro de 1967.

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Kramer sentiu necessidade de contar uma certa história que atravessou os dois filmes, “uma espécie de história de amor entre homens, que remontava a um passado longínquo”. Foi preciso muitos anos e muitos filmes para que Kramer pudesse se deparar com algo de que ele mesmo dizia ter medo e acionar sua subjetividade de forma até então inédita, dispondo de imagens como bem lhe aprouvesse na sala de montagem – mais um sintoma da síndrome Marker. Kramer exercita em Dear Doc procedimentos de montagem a partir de um material de diferentes origens, preservando o prazer da experimentação, que veio precisamente da incerteza quanto aos resultados, da fragilidade na sua feitura, da curiosidade e do desejo de ir até o fim. Cercado por máquinas variadas, fios, fitas, telas de monitores, toda uma parafernália ligada à edição eletrônica, Kramer revê, retoma e remonta as várias separações entre o personagem do médico e o personagem do cineasta, encenadas durante as filmagens de Route One Usa – entre as quais a que foi editada para o filme. Emerge nesses rituais de despedida uma certa amargura com a decisão real de Doc/Paul McIsaac de abandonar a filmagem de Route One Usa, mesmo admitindo que o personagem do médico não podia ganhar plenitude viajando o tempo todo, “(...) um médico precisa se enraizar para cuidar”4. A partida de Paul expressa um efetivo mal-estar entre eles, que nesse momento da viagem mal se falavam. Foi preciso um certo tempo para Kramer digerir essa partida – “provavelmente com muito mais amargura do que Route One Usa deixa transparecer, pois é também uma rejeição ao meu mundo e ao meu projeto”5. Há, contudo, no final da vídeocarta, uma sensação de apaziguamento e reconciliação com o amigo. Uma carta de amor, de acertos e de despedida: talvez só assim o cineasta tenha tido condições de se desprender de si mesmo, iniciar outros projetos e inventar novas possibilidades para o seu trabalho. *** Como muitas cartas filmadas, Dear doc não deixa também de ter uma dimensão ensaística, servindo como “máquina do pensamento”, que imprime rupturas, resgata continuidades, reflete experiências, aproximando-se de alguns filmes de J.-L. Godard – e não são poucas as cartas que o cineasta francês escreveu e filmou. O vídeo como exercício de pensamento, como 4 KRAMER, R. L’autoportrait du cinéaste en marcheur. In Cahiers du Cinéma n.426, p.30. 5 KRAMER, R. In Libération, 21 e 22 abr. 1990, p.43.


lugar e o meio de uma reflexão sobre o cinema. Lettre à Freddy Buache6 (1982), mas também Scénario du film Passion (1982). Certas sequências se parecem: o cineasta trabalhando, sozinho na sala de montagem diante de suas imagens. Certos gestos se assemelham: as mãos abertas diante na tela branca (Scénario du film Passion), a mão tocando a tela da televisão (Dear Doc). A relação com os atores está em questão tanto em Scénario du film Passion quanto na carta filmada de Kramer. Tal como a carta endereçada a Freddy Buache, Dear Doc tem destinatário, mas trata-se em ambos os casos de uma carta aberta, de uma correspondência menos íntima do que pública. Cartas ao mundo, de certo modo, mesmo quando endereçadas a um destinatário específico. Filmes que colocam em prática o ideal da “câmera-caneta”, apregoado por Alexandre Astruc no seu manifesto de 1948: “Nascimento de uma nova vanguarda: a caméra-stylo. O cinema como um “meio de escrita tão flexível e sutil como o da linguagem escrita”, na qual “o cineasta deverá dizer ‘eu’ como o romancista e o poeta”, e a obra só será válida se expressar a “paisagem interior” do diretor. A “síndrome Marker” foi apropriada por cineastas como Godard e Kramer, que lhe deram novas direções, e também por tantos outros jovens cineastas contemporâneos que não param de imprimir dobras inéditas a esse modo de fazer cinema.

Consuelo Lins é professora da UFRJ. Doutora e pós-doutora pela Universidade de Paris III, com pesquisas sobre a produção documental. Publicou O documentário de Eduardo Coutinho: televisão, cinema e vídeo (2ª ed. 2007) e Filmar o real: sobre o documentário brasileiro contemporâneo (2008), este último em parceria com Cláudia Mesquita, ambos pela editora Jorge Zahar. Dirigiu entre outros Lectures (2005), Leituras cariocas (2009) e Babás (2010).

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Filmado em vídeo, Lettre à Freddy Buache foi kinescopado em 35 mm.

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Ao sair do cinema, me escreva uma carta

Por Fernanda Meireles

Enquanto essa carta não chega, te descrevo umas paisagens que vejo daqui. Uma carta é um mapa, te levarei até lá. De onde você me escreve? Escrevi uma carta inteira para você, na minha cabeça, enquanto via aquele filme. Leio sua carta e vejo um filme passar na minha cabeça. Se uma carta tem cheiro e textura, um filme-carta tem som/música e gesto. É uma carta que não se lê com as mãos. Ambos têm peso. Um filme-carta é uma carta-aberta? Ou não, ou seria ainda mais fechada e subliminar? Será que há mensagens ocultas para apenas um entre tantos destinatários? Ou seriam essas mensagens ocultas invenções de cada leitor/ espectador? Rasgo o envelope com os dentes, enquanto você deslinda minha carta escrita com a luz. Piscamos. Corta.

Minha amiga e seu amante. Segredo, ela me disse. Ela queria escrever-lhe uma carta, mais uma entre tantas, diferente desta vez. Uma que levasse aos olhos e aos ouvidos do amante – e assim reverberasse por seu corpo –, as ondas quebrando nas pedras da beira-mar, cenário de seus encontros. Foi até lá no fim do dia, apoiou a câmera em algum lugar com luz o suficiente para dar conta de seu plano e pensou: ação. E lembrou do gesto. E filmou as ondas nas pedras. Depois, no tempo de uma carícia, mostrou com as mãos, apenas, o texto do que queria lhe dizer, manuscrito em pequenas fichas de papel que se sucediam. Lembro de suas unhas muito vermelhas. Do som nas pedras e do suceder das fichas, com decisão e delicadeza. Não lembro de uma só palavra do que estava escrito. Era segredo. Que bom que esqueci. Minha amiga pôs o vídeo numa conta privada/anônima no YouTube e para o amante enviou a senha. E para mim, dizendo: Lê esta carta, mas não mostra pra ninguém.

Então, o primeiro filme-carta que vi era nascido de pura paixão. A paixão que demanda tempo, que ganha o tempo dos apaixonados, que é matériaprima das transformações. Aonde eles querem nos levar? Agnès Varda à sua Cuba, Chris Marker à sua Sibéria, as crianças de Ikpeng às suas casas, Gláucia Soares às suas ex-casas, Karim Aïnouz aos seus percursos, minha amiga aos seus encontros e todos os envolvidos no filme-carta Desassossego


à escrita-floração. E por aí vamos, juntos-separados. Ao construir suas narrativas, eles constroem uma porta/portão/portal e silenciosamente dizem: Atravessa e te encontro lá.

Os esquizoanalistas franceses Gilles Deleuze e Félix Guattari trocavam cartas. Pensavam e conversavam entre si escrevendo-se. Fundiam as linhas de suas escritas criando rotas de fugas e de encontros sobre um mapa batizado de rizoma1, onde tudo é concomitante, flui e pulsa, tornando essas linhas mais importantes que seus pontos de partida ou chegada. Sobre esse mapa de múltiplas entradas ambos configuraram a emergência das subjetividades, aplicável a qualquer (sur)realidade. Através de suas escritas, buscavam e celebravam o encontro de intercessores, ou seja, do que ou de quem os ajudava a pensar. Correspondentes e mensagens como disparadores de um processo criativo: escrevo porque quero te dizer isso, escrevo porque essa folha em branco é irresistível e te espero, escrevo porque quero te mostrar isso e tenho uma câmera, escrevo porque quando penso em você, penso nisso.

Penso em você e ouço as ondas quebrando, diria minha amiga a seu amante. ... Após traçar tantas linhas com Deleuze, no início dos anos 80 Guattari conheceu o Brasil ao lado de Suely Rolnik e com ela selou esta viagem através da transmutação em um livro de tantas linhas escritas em forma de conversas partilhadas. Cartografaram o desejo2. É de lá que nos contam dos territórios existenciais: situações/elementos concretos ou abstratos que nos cercam – e com os quais podemos nos cercar, criando um lugar em que podemos nos sentir em casa. A ponta da caneta na superfície do papel é a chave que toca o buraco da fechadura. O instante em que a chave e a caneta estão em suspenso, imóveis, dá margem a um roteiro que se desenha internamente. Após criar tais territórios existenciais, vamos atravessálos ao encontro ao outro. E enquanto tudo, descobrimo-nos seres plenos de atravessamentos pois, caminhando com Jorge Larrosa Bondía, eis o sujeito 1 2

Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. São Paulo: Ed. 34, 1995. Cartografias do desejo. Rio de Janeiro: Vozes, 2011.

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da experiência3, aquele que padece e é por ela atravessado, transformando a si mesmo em carta-mapa de acontecimentos partilhados. Lá vamos nós, transpassados pela flecha do cupido, mesmo quando ela ainda não é feita do amor, mas antes, da urgência e necessidade de transbordamento.

Não sei onde vamos parar, mas miro as ondas e a história segue. ... O filme-carta é então um mapa ilustrado. E nele tudo move-se, um caleidoscópio que já não cabe na palma da mão, mas grava-se em pedaços coloridos nas nossas retinas. O filme-carta continua a ser lido mesmo depois que as pálpebras se fecham. Henri Bergson nos fala de uma memória disparada pelo gesto. O que sentem estes realizadores ao empunharem suas câmeras? Ao afundarem os pés nas areias que foram uma vez locação? Ao apertarem os olhos debaixo de tanto sol – o mesmo sol daquele dia em que gravaram? Bergson reconectou a memória ao corpo4, para além da alma ou o que quer que fosse. Foi além, sobrepôs temporalidades e disso emergiu o conceito de duração. Se toda escrita quer reter o tempo, uma carta ou filme-carta são passagens nem tão secretas assim para espaço de atravessamentos permeados por aquilo que dura.

As ondas continuam quebrando nas pedras daquela praia. Eles já não se amam mais.

A carta, objeto-súbito e objeto-dádiva, passa a ser escrita com a luz, mas ainda pode seguir pelo correio e ser entregue em mãos. Mas em geral não será. Inunda outros planos, abre-se em telas pequenas ou grandes, sobre mesas ou paredes, de novos aparelhos cada vez mais novos, feitos para ampliar o raio de reverberação da mensagem.

3 Notas sobre experiência e o saber de experiência. In: Revista Brasileira de Educação, n.19, p.20-28. São Paulo, 2002. 4 Matéria e memória: ensaio sobre a relação do corpo com o espírito. São Paulo: Martins Fontes, 1990.


Michel Foucault volta aos gregos para tratar das cartas5 como uma forma do cuidado de si, da governança de si, compondo uma micropolítica tão poderosa quanto discreta. Para ele, ao voltarmo-nos para nós, confrontamos o Estado. Enquanto a ordem é consumir e adequar-se, os autores de si seguem transbordando e escapando pelas dobras do mapa. Sejam estes mapas/ direções/ordens/normas dados ou criados por eles mesmos.

Escrita de si é contínua invenção de si, ao escrever, transbordamos. Os escritores de filmes-carta repartem sua intimidade abrindo-a ao público, criando uma carta que não só vai passear sob tantos olhos, mas ser fio de uma rede de experiências partilháveis, fios estes que poderão criar laços, alguns fortes, outros nem tanto, mas tecidos entre o público e o privado.

Como escolhemos nossos correspondentes/intercessores? Talvez nem seja exatamente uma escolha. Deleuze, em Abecedário, nos conta da amizade baseada numa pré-linguagem. Aqui e agora nos fala: Por que se é amigo de alguém? Para mim, é uma questão de percepção. Não o fato de ter ideias em comum. O que quer dizer “ter coisas em comum com alguém”? Vou dizer banalidades, mas é se entender sem precisar explicar. Não é a partir de ideias em comum, mas de uma linguagem em comum, ou de uma pré-linguagem em comum. Há pessoas sobre as quais posso afirmar que não entendo nada do que dizem, mesmo coisas simples como: “Passe-me o sal”. Não consigo entender. E há pessoas que me falam de um assunto totalmente abstrato, sobre o qual não posso concordar, mas entendo tudo o que dizem. Quer dizer que tenho algo a dizer-lhes e elas a mim. E não é pela comunhão de ideias. Há um mistério aí. Há uma base indeterminada... É verdade que há um grande mistério no fato de se ter algo a dizer a alguém, de se entender mesmo sem comunhão de ideias, sem que se precise estar sempre voltando ao assunto. (...) Alguém emite signos e a gente os recebe ou não. Acho que todas as amizades têm essa base: ser sensível aos signos emitidos por alguém. A partir daí, pode-se passar horas com alguém sem dizer uma palavra ou, de preferência, dizendo coisas totalmente insignificantes. 5

O que é um autor? Col. Passagens. Lisboa: Vega, 1992.

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Em geral, dizendo coisas... A amizade é cômica.6

Como pode o amigo responder ao outro que lhe escreve com a luz? Em silêncio, em ondas de reverberação que se criam lentamente e com os mais improváveis materiais. A rede tecida abrange pessoas, objetos, situações, estados de espírito. São memórias, brisas, rascunhos encontrados dentro de livros, bilhetes de partidas e chegadas, lentes, palavras repetidas, horizontes, fios, gruas, linhas tortas, planos, realizados ou não e energia, muita energia concentrada e dispersa. Os filmes-carta, assim como as cartas/mapas são bilhetes de viagens, notas escritas em trânsito e documentos que comprovam, permitem e convidam ao deslocamento. São modos de existência partilháveis.

Eles buscaram outros litorais. Começaram outras histórias.

Te falo de outro jeito, em outro tempo. Limite o tempo, amplie o espaço, ou o contrário. Levo seu filme-carta detrás dos meus olhos fechados. Ele não amassa, não se apaga, reverbera em outras linhas.

Então, ao sair do cinema, me escreva uma carta.

Fernanda Meireles é escritora, artista visual e zineira. Vive em Fortaleza, de onde escreve cartas a missivistas de perto e de longe. Graduada em Letras - Literatura Inglesa pela UECE, especialista em Arte-Educação pelo IFCE e mestre em Comunicação pela UFC, pesquisou a correspondência física entre zineiros de Fortaleza como componente fundamental desta peculiar rede de comunicação. Criadora da Loja sem Paredes, com a qual viaja.

6 L’Abécédaire de Gilles Deleuze. DVD e vídeo. Filmagem produzida e realizada por Pierre-André Boutang da entrevista concedida a Claire Parnet em 1988. Paris: Éditions Montparnasse, 2004. No Brasil, foi divulgado pela TV Escola, Ministério da Educação. Tradução e legendas, Raccord.


“ Meu querido, com esta carta, já é a terceira desde abril.” (Canto da Terra d’Água1) Por Frederico Benevides

A carta parte de um lugar. Cumpre uma trajetória até alcançar o seu destino, um outro lugar. Existem então dois lugares – duas localidades geográficas que alguém preencheu de sentido – e uma trajetória. Dentro do envelope viaja um código, que será compartilhado entre remetente e destinatário. Esse código é composto de uma série de indicações gerais e particulares, por vezes cifradas. Pode levar ao tesouro assinalado com um “x” ou abrir mais uma série de bifurcações.

As palavras carta e mapa possuem uma ancestralidade comum. Ambos os nomes derivam do tipo de material que serviu de primeiro suporte ao que depois viria a tornar-se objetos autônomos: carta (charta, no latim) vem de folha de papiro; mapa (também do latim, mappa), de toalha de mesa, material onde viajantes (comerciantes, navegadores) rabiscavam rotas e caminhos durante encontros em espaços públicos para negociar expedições.

Chega aos nossos dias um uso comum para as duas palavras: carta e mapa podem ser utilizadas para designar documento de representação espacial (como é comum pensarmos a respeito do mapa), sendo a carta definida como “mapa de finalidade especial destinado, em geral, à navegação ou outros fins particulares, em que a informação cartográfica essencial se combina com diversos elementos decisivos ao uso proposto”2.

1 Adriano Smaldone e Francesco Giarrusso, Itália, 2009. 2 Glossary of Mapping, Charting, and Geodetic Terms. Estados Unidos: Army Topographic Command, Dept. of Defense.

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Cartas enviadas por correspondência são mapas em movimento, misturando coordenadas objetivas e subjetivas, inventários de um tanto de elementos dispersos pelo planeta que em algum instante cruzaram o raio da nossa percepção (Cidade desterro3) e invenção. Talvez mapas da interioridade.

Entre o remetente e o destinatário podemos estar diante de um ensaio ou de um esboço de ensaio. Isso acontece com mais frequência quando as duas pontas da correspondência se estranham. Esse estranhamento é invenção constante do lugar de onde se fala e de onde se escuta.

Isso é waiman. Eu não sei como o branco chama. (...) Estamos comendo mangaba e depois vamos mostrar nossa aldeia. Vocês vão mostrar a aldeia de vocês também? (Marangmotxingmo Mïrang - Das crianças Ikpeng para o mundo4)

Em algum fragmento de conversas intermináveis5 a esse respeito, surgiu uma possível diferenciação entre a realização de uma ficção e um documentário cinematográficos: tanto na ficção quanto no documentário, escolhemos de onde partir. Prever onde se pretende chegar seria um privilégio do filme de ficção6.

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Gláucia Soares, Brasil, 2009.

4 Kumaré, Kanaré, Natuyu Txicão, Brasil, 2001. 5 Na ocasião, o interlocutor era Ivo Lopes Araujo, diretor (Sábado à noite, 2007) e fotógrafo de cinema. 6 Considerando que a realização de um filme supõe o risco do contato com o real e que as imagens podem se rebelar e apontar outras conexões no momento da montagem, não é incomum que também a ficção chegue em lugares não premeditados. As possibilidades de leitura, quando chega ao espectador, essas são infinitas.


O ensaio fílmico fica situado em uma zona de indiscernibilidade entre várias categorias da invenção, mas é geralmente exibido em lugares dedicados à exibição de documentários7. Talvez por sua necessidade de um maior descontrole ou de fricção com o real. Vamos então pensar como essa diferenciação simples que apresentamos pode nos ajudar a entender uma certa disposição a ser instaurada pelo ensaísta na conexão com o real: não julgar de antemão o que pode surgir do encontro, mas re-olhar, reouvir, re-sentir (e evitar ressentir)8. Fazer um esforço para não eleger caminhos que sejam apenas internos a circuitos já conhecidos ou legitimados e, nesse movimento, tomar posição em relação ao mundo e às imagens do mundo – essa talvez seja a maior tarefa que o ensaísta se coloca. Para empreender essa tarefa, talvez seja necessário agir como quem opera em um novo laboratório, reconhecendo e testando seus materiais. Entretanto, precisamos partir com algo. Na verdade, já partimos: o laboratório é o mundo e os materiais, as imagens do mundo. Imagens que podem ser visuais, sonoras, verbais, conjuradas para refletir sobre o mundo (ou refletir “um” mundo possível?). O que pode garantir que exista essa reflexão é a montagem, e a montagem conta com a memória, compondo e recompondo fluxos, evitando a nostalgia pura e simples. “A invenção implica tempo. Ela não se faz contra a memória, mas com a memória, como indica a raiz comum a ‘invenção’ e ‘inventário’9.”

Entre tantos, esse é mais um filme sobre a memória. (Carta ao pai10)

7 Apesar de poder se apresentar como forma de uma maneira radicalmente distante: um ensaio fílmico pode parecer uma lista caótica, uma enciclopédia, um tratado, um álbum de família. Pensemos nas cinematografias de Harun Farocki, de Jean-Marie Straub e Danielle Huillet, de Arthur Omar, de Chris Marker, de Agnes Varda. Radicalmente diferentes e próximas por um certo “desejo ensaístico” presente em vários filmes. 8 Re-sentir, diferente e quase oposto a ressentimento, jogo verbal que o português permite. O ressentimento, concordando com Nietzsche, é negação da vida, impossibilidade de esquecer e aceitar a diferença. 9 KASTRUP, Virgínia. A invenção de si e do mundo. São Paulo: Autêntica, 2007. p.27. 10 Ythallo Rodrigues, Brasil, 2010.

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Podemos pensar a memória como uma das principais fontes provedoras de imagens desse conjunto de filmes, ao mesmo tempo que podemos considerá-la o campo de batalha onde esses filmes lutam pela sua possibilidade de ser concretizados, enviados ao remetente. Entre dores e amores, sempre em meio, alternando distâncias e tempos. O ensaio ajudaria a instaurar uma ontologia do presente, uma nova presentificação, que vai variar durante toda a projeção. Recusa-se a ser reduzido às verdades constituídas como memória universal, mas também não se contenta com as memórias privadas, ou “hábitos da casa”11.

O ensaio assume: a) o lugar é uma invenção b) a memória é uma invenção c) o ensaio monta um lugar com a memória e monta uma memória com o lugar d) as conexões que já estão dadas não são as únicas possíveis, é preciso desconfiar delas

1992, 10 de dezembro (Yama no Anata / Para além das montanhas12)

Te escrevo essa carta de uma terra distante. Seu nome é Sibéria. (Carta da Sibéria13)

11 “(...) se estivesse aí, seria com o tempo uma coisa, uma coisa mais, uma das vaidades ou hábitos da casa; agora é ilimitado, incessante, capaz de qualquer forma e qualquer cor e a ninguém vinculado. Existe de algum modo...” BORGES, Jorge Luis. The Unending Gift. In Elogio da sombra. Rio de Janeiro: Globo, 1985. 12 Aya Koretzky, Portugal-Japão, 2011. 13 Chris Marker, URSS-França, 1957.


O ensaio estranha inclusive (e principalmente) o conhecido. O respeita e não se exime de fustigá-lo, interrogá-lo. Respeito, do latim, re–specto, olhar novamente. Re-olhar para estranhar e verificar os pertencimentos, as conexões. Ao tomar para si um fluxo e segui-lo, é necessário permitirse desvios, compor com outros fluxos, sempre testando a resistência dos elos enquanto os constrói, não descartando de cara elos muito frágeis, mas buscando até o limite suas conexões. A qualidade dessas conexões também vai depender, sem que possamos fixar seu grau, da qualidade das conexões internas ao próprio filme. Afinal, aqui trata-se de luz e som, de movimento e narrativa.14 Movido por uma intensa curiosidade, o ensaio cria uma forma fílmica para interrogar o mundo. Essa forma, mutante, vez por outra nos surpreende através de filmes que, esgarçando os limites das competências, saciam ao mesmo tempo que aguçam nossa própria curiosidade sobre o mundo.

Frederico Benevides faz filmes, pesquisa e participa de conversas sobre imagem, vez por outra na forma de aulas, oficinas, debates ou curadoria. Como diretor, realizou alguns curtas: https://vimeo.com/user841852/ videos. Como colaborador em filmes de outros diretores, atua como montador, assistente de direção, roteirista e/ou colorista: As vilas volantes: O verbo contra o vento e Linz, onde todos os acidentes acontecem, de Alexandre Veras (entre outras várias colaborações com o diretor); Sábado à noite, de Ivo Lopes Araujo; Uma encruzilhada aprazível, de Ruy Vasconcelos; Brasil S/A (em processo), de Marcelo Pedroso; Luzeiro volante e púrpura, de Tavinho Teixeira; Verona,de Marcelo Caetano; Tremor, de Ricardo Alves Júnior; Frineia, de Aline Portugal entre outras companhias. Graduado pela UFC em Comunicação e mestre no PPGCOM da UFF com pesquisa sobre cinema brasileiro contemporâneo realizado por grupos de artistas. 14 Podendo ser mais ou menos abstrata, vale lembrar dos brilhantes ensaios fílmicos de Joris Ivens, Bert Haanstra, Artavazd Peleshian, entre outros.

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12 etapas e uma lição para se fazer um filme-carta (em tempos de whatsapp) Por Isaac Pipano

1.

pense em alguém que você ama muito e não vê há tempos. se não se lembrar de ninguém, procure num livro. ou, se não houver amor, faça o mesmo exercício e lembre-se de alguém que detesta (é importante estar comovido).

2.

escreva uma carta para esse alguém.

3.

lembre-se: uma carta exige, necessariamente, a presença de um outro. ainda que o outro possa ser você mesmo. por isso de algum modo escrever uma carta é a um só tempo um gesto solitário e solidário.

4.

com a carta escrita, pegue uma câmera (leia em voz alta e confira se há erros gramaticais. caso os encontre, mantenha-os. se não houver, invente alguns: ninguém confia numa carta sem erros, escrita assim tão verdadeiramente sem rasura).

5.

não se esqueça de assinar antes de fechar o envelope.

6.

agora que sua carta está pronta, leve-a até o lixo mais próximo e rasgue-a. você também pode queimá-la se assim lhe convir.

7.

pegue uma câmera (ou o celular. peça o de um amigo, diga que não vai levar quase nada).

8.

confira se tem bateria ou pilhas, cartão de memória ou negativo. por um descuido pequeno desses alguns dos instantes do nosso imaginário poderiam ter se perdido para sempre (o que nos faz pensar, necessariamente, na fragilidade do cinema, das imagens e da memória diante do mundo. esta aí a sua salvação).


9.

lembre-se de tudo o que escreveu naquela carta, àquela pessoa. o modo como selecionou as palavras, o ritmo e a intensidade que conferiu à narrativa. lembre-se de como inventou os cheiros, os passos, os gostos, as lembranças. como descreveu o novo corte de cabelo, como contou do dia em que esteve chateado e, para afastar a tristeza, caminhou melancólica e solitariamente pela orla de Boa Viagem ou do Leblon. lembre-se de como transformou em palavras o trágico episódio do roubo de sua carteira; a felicidade que foi ver seu filho formado; a saudade que sente daquele beijo.

10.

esqueça o que escreveu. esqueça as frases, os períodos, as vírgulas, as aspas, os pontos. vá esquecendo as formas da escrita e de todas as letras, do a ao z, decompondo mentalmente uma a uma até o papel voltar a se tornar branco. é importante ligar a câmera quando o papel estiver branco. primeira e única lição: não há papel em branco.

11.

filme o mundo com a mesma paixão com a qual você escreveu aquela carta para aquela pessoa.

12.

aprenda a escrever com a câmera - esta etapa não se conclui jamais. quando se sentir seguro com essa escrita, encontre outra. busque formas de escrever como quem aprende um novo idioma. olhe para o mundo como se ele fosse um dialeto impronunciável. nunca deixe de ver o mundo como um dialeto impronunciável.

Isaac Pipano é mestre em Comunicação pela UFF e professor substituto da mesma casa, onde leciona disciplinas nas áreas de fotografia e documentário. Tem atuado como docente em projetos ligados ao ensino do audiovisual em escolas públicas e centros de formação livre.

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Lições da Escuridão Por Juliano Gomes A expressão filme-carta parece unir dois termos, dois meios, de naturezas bem distintas a princípio. Uma carta: há alguém que escreve e alguém para quem se destina o escrito. No mínimo, só há o último, no caso das cartas sem nome. É um meio de comunicação entre duas pessoas. Um filme, em geral, não funciona no modelo remetente-destinatário. Ao mesmo tempo que a pergunta “para quem se faz um filme” permanece inesgotável e relevante justamente por sua falta de respostas definitivas, sua resposta dificilmente seria, apesar das razoavelmente frequentes dedicatórias em filme (como grande parte dos filmes aqui exibidos durante a mostra), um destinatário específico. Entretanto, é notável o quanto essas figuras, esses dois extremos de uma relação comunicativa se presentificam nas obras escolhidas como foco dominante. Há um desejo, guardadas as devidas particularidades de cada obra, de restabelecer este tipo de ligação através do filme. No fundo, parece visível um desejo de ligação, talvez de comunhão, como um hífen mesmo, nestes filmes-carta. É esta paixão, se é que posso assim chamá-la, que gostaria que fosse o centro desse texto. Uma vontade de correspondência. Primeiro, alguém que dispare. Uma primeira pessoa. Assim, como um diário, uma carta é escrita por um alguém, é uma ferramenta de subjetivação que em muitos casos corresponde a um indivíduo, que existe fora daquela escrita, fora do gesto que inaugura esta figura de linguagem. Há em comum entre estas duas formas, diário e carta, uma série de características. Mas o que mais importa aqui talvez seja sua finalidade. Uma escrita diarística e epistolar quer dar palpabilidade, relevo a uma presença. Um nome que se torna próprio a partir do momento do gesto que o inaugura. Não só a assinatura mas o conjunto de marcas gráficas que são também um sismógrafo de emoções, intensidades, relevos, tatos e contatos. Essa geografia tem só um fim: durar. Em um caso, para um outro, uma oferta de um momento, de um tempo marcado na folha, e no outro, diretamente, uma investida direta no tempo, dobrado em direção a si. Um diário é uma escrita baseada nos dias, que se apropria desta estrutura, dessa sucessão de noites, de sua contagem, para lhes dar margem, contorno. É isso que o distingue da anotação simples, da nota. Porém, este parâmetro dos dias e da pessoa é bastante presente nas cartas em forma de filmes ou filmes em forma de cartas aqui em questão.


Maurice Blanchot dirá que: “O diário íntimo, que parece tão livre de forma, tão dócil aos movimentos da vida e capaz de todas as liberdades, já que pensamentos, sonhos, ficções, comentários de si mesmo, acontecimentos importantes, insignificantes, tudo lhe convém, na ordem e na desordem que se quiser, é submetido a uma cláusula aparentemente leve, mas perigosa: deve respeitar o calendário. (...) Escrever um diário íntimo é colocar-se momentaneamente sob a proteção dos dias comuns, colocar a escrita sob esta proteção, e é também proteger-se da escrita, submetendo-a à regularidade feliz que nos comprometemos a não ameaçar” (O livro por vir). Pensemos em Carta ao pai de Ythallo Rodrigues. Há um destinatário, um remetente, uma data e, inclusive, uma hora. O filme, cujo título alude diretamente à sua estrutura, apresenta-se assim de forma absolutamente cristalina. A tal carta é dividida em algumas porções apresentadas na tela, alternando-se com imagens de um lugar escuro, num pequeno cômodo que é o único espaço que nos é dado a ver. Ao mesmo tempo que temos esta estrutura que parece completa de correspondências: alguém que existe fora do filme “escreve” a obra para alguém que também não foi inventado arbitrariamente para o filme. Por mais que estas possam ser pistas falsas, pois é a obra que está ao nosso alcance aqui, há este espelhamento das formas. Porém persiste a intrusão de uma imagem, escura, indefinida. O momento, não por acaso, em que realmente ela nos mostra alguma coisa é no relógio. E ele parou. Na hora da morte. Ythallo encena a morte e esta interrupção na escritura do filme. A comparação parece não proceder. Por mais que o filme aponte para que acreditemos que ali é o local onde ocorreu a tal morte do pai, o filme deixa sempre uma grande reserva de escuridão. É quase um lugar nenhum, um lugar para onde vão os mortos. Assim, não um lugar do passado, mas um lugar do futuro, onde o tempo do relógio se interrompe. Se por um lado, este desejo de enfretamento do tempo como fluxo único inexorável se materializa como embate, por outro lado, parece não haver sobrado nada. Os corpos estão fora do filme. Se a morte é o problema central, o corpo fica de fora. Por mais que haja nomes, persiste o vazio, neste trajeto que contém um pedido de salvação, é esta a ligação que a voz do filme quer fazer e se ressente de não mais podê-lo. O destinatário não

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pode mais ouvir. Este é o centro vazio do filme e o que impulsiona e que talvez o justifique como filme, pois sua chave está em justapor essa grande literalidade (dos personagens, datas, lugares, ênfases musicais) com uma espécie de rumor em forma de imagem, de quase nada, de quase luto, de uma recusa em significar. Há regularidade, proteção, mas ao mesmo tempo seu reverso, ameaça. O filme se estrutura sobre estes dois polos, de maneira pendular. Na Carta do Ceará 02, de Marcelo Ikeda, há também esta oscilação entre este enraizamento na estrutura reiterativa de seus elementos, “de”, “para”, e uma espécie de ameaça da escuridão, de um apagamento dos contornos. Diferente de Carta ao pai, temos aqui um corpo. Na verdade, o supomos, pois há uma parca luz que vem do monitor de um computador, que ilumina o rosto do rapaz que canta baixo na penumbra uma canção de amor. A imagem dominante do filme é de uma escuridão profunda que é quebrada sutilmente por formas geométricas pequenas e claras que percebemos como janelas depois de alguns segundos. A performance do personagem, aquele que escreve, aquele que assina a “carta”, corresponde uma porção menor do filme e parece de fato ter uma função de assinatura, de inscrição, de ligação entre um corpo, um gesto e um nome, uma autoria, enfim. Por outro lado, é um filme que tende a esta situação de inexistência de algo a ver, de uma persistência da escuridão, de uma indefinição de propósitos. Não há trauma. E o papel da música acaba sendo o de narrar este desejo, este movimento de comunhão de ligação com aquele que não está presente ali, que está longe, como as janelas, inacessíveis, misteriosas, quase coisas, quase formas. O vazio é interrompido por essa irrupção do corpo-rosto. Rosto que é marca, produtor de identidade, superfície de assinatura e de captura. Há uma ligação direta entre este que “escreve” e este que se faz presente no filme, que atesta sua existência e presença física, fazendo coincidir estas duas figuras, rodeado de vazios, metaforizando uma espécie de invisibilidade causada por esta distância. Pois os destinatários são pessoas (Luiz, Mari) e um lugar (Ceará), e o autor está presente. Talvez, esse lugar sem rosto esteja ali, quase que em negativo, também numa oscilação de presença e invisibilidade, atravessada por um desejo de ligação ainda não consumada, ou lamentada, entre as partes. Há fixação, preservação e perda. O porto seguro do corpo parece rodeado de água por todos os lados. Querida mãe, de Patrícia Cornils, já se estrutura numa espécie de rede de espelhamentos através do texto original: as cartas da mãe da diretora


para a avó de Patrícia. As cartas são revividas, reenviadas, pela voz da filha agora. O intuito aqui é de refazer o itinerário da mãe, das cartas, conhecer, iluminar seu passado no presente, verificar, enfim, os vestígios e as lacunas, testar o presente deste caminho, deste trânsito que se deu através das cartas mais de 40 anos antes. Aqui o dado da comunhão, como desejo, ainda que presente, se dá numa chave desestabilizante. Por mais que a diretora faça seu “próprio papel” no presente, o filme produz um curto-circuito através dessa leitura em off das cartas. A filha se torna mãe (o filme reafirma a semelhança entre elas), mas ao mesmo tempo, ainda é filha, pois conhecemos sua voz das cenas com som sincronizado com a imagem. Há um centro autobiográfico, mas ele é abalado pela ação e duplicação da voz. Patrícia, como voz, é mais de uma, ela encena justamente essa diferença que também é uma diferença de tempo. Por mais que o tom de grande parte dessa narração busque uma certa neutralidade (falta de ênfases e intenções claras no dizer), a cena-chave, do túnel, na qual se lê sobre a doença da mãe e o choro de Patrícia, produz uma explosão na fixação dos lugares. O choro é de Patrícia, hoje, mas também é de sua mãe, de seu sofrimento, também de toda a distância que as separa e que o filme se depara como evidência. É da ordem do irreconciliável a situação entre as duas protagonistas, entre a presença e ausência. Os documentos são virtualidades, só existem em relação, em produção, performados, montados, articulados, solicitados pelo presente. O túnel escuro é a metáfora desta separação, é a imagem possível da imagem que falta, da filha e da mãe juntas, que é centro propulsor, e oculto, do filme. Querida mãe ecoa entre a avó, a mãe e a filha. Cada uma em seu tempo e espaço específicos. O que o filme faz é possibilitar esse embaralhamento, parar o relógio e instaurar este ambiente de trocas, onde mesmo a ligação primordial não pode ser estabelecida, pode-se reencenar essa impossibilidade. E nessa situação os lugares só podem se confundir e coexistir, em devir, uns nos outros. O filme Outra carta ou o amor inventado, de Leonor Noivo, começa recolocando o problema, decretando ao mesmo tempo sua solução e sua infinitude: “Pois toda a literatura é uma longa carta a um interlocutor invisível, presente, possível, ou futura paixão que liquidamos, alimentamos ou procuramos. E já foi dito que não nos interessa tanto o objeto, apenas pretexto, mas antes a paixão; eu acrescento que não interessa tanto a paixão, apenas pretexto, mas antes o seu exercício.”

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A frase está em um livro, Novas cartas portuguesas, escrito a partir de outras cartas, talvez reais, talvez fictícias, de uma freira portuguesa do século XVII, Mariana, que teria escrito as primeiras “cartas portuguesas”. Tal declaração de princípios permite diversos movimentos que interessam aqui. A aproximação entre carta e obra de arte pela via desse interlocutor “invisível, presente, possível” parece um horizonte fértil para se pensar essa união paradoxal, que quer buscar os mortos, outros tempos e lugares, que quer, quase cegamente, unir. Porém, ao seu fim, mais do que ao interlocutor, o trecho aponta para algo que descreve como exercício desta paixão que dá corpo às obras. Há um certo trajeto em si mesmas, uma viagem que só se dá em movimento, em ato e justaposição de elementos. Uma imagem é sempre um deslocamento, uma distorção, um desajuste em relação à presença. Parece caber aos filmes, às cartas, praticar essa distância, essa separação irreparável, ocupando, fazendo seu traçado justamente nessa margem escura que separa. Chris Marker, em 1957, parece plenamente consciente dessa condição, dessa forma de dirigir-se e de conduzir seus fluxos de imagens, sem se fiar nem em um excessivo desejo de correlação, de organização e regularidades, e nem numa escrita abstrata e completamente opaca. Em Carta da Sibéria há uma voz, sem nome, que nos dá notícias da terra distante”, onde há “nativos de uma terra que não existe”. O tom irônico e quase surrealista é dado por uma fina modulação de um mecanismo tradicionalmente reiterativo: a ilustração. A onipresente voz fala quase sempre do que estamos vendo, porém há uma condução para a margem do sentido, para essa virtualidade dos elementos, para essa reserva de não dito que quase nunca é acionada nos narrações informativas. A Sibéria é uma “terra de escuridão”. Marker vai ao deserto para produzir um tratado sobre a composição de uma noite estrelada sob a luz do sol. Marker procura as zonas escuras para lhes dar um novo colorido, muitas vezes, niilista, e destruidor, mas sempre abrindo as imagens, criando novas vias de ver. Assim como o garimpeiro, Marker procura a lama, deixando o ouro de lado, para dela fazer ver seu ouro, justamente pela forma abordá-lo. Se há uma centralidade e predominância aqui, do ponto de vista, dessa voz que invade tudo e se interpõe entre nós e o visível, por outro lado é por sua evidência mesmo e excesso que podemos perceber justamente seu descentramento, sua deriva, evidenciada na clássica montagem da mesma sequência de imagens com três narrações em off diferentes. Marker vai buscar na matéria da imagem mesma ressuscitar suas possibilidades, exercitar sua paixão, seu pretexto, encenar sua separação na escritura mesma do filme (entre texto e imagem), a separação


como condição primeira, ou a urgência da construção e da composição dos materiais. Busca a língua que ninguém fala. Enfim, o que se pode observar como regularidade neste pequeno conjunto é justamente essa força de um buraco negro, de uma antimatéria contra e com a qual os filmes se digladiam ou mergulham. Parece haver uma espécie de “problema de base” no cinema em sua forma epistolar, em que uma distância específica precisa ser percorrida, colocada em fluxo, encenando esse dirigir-se, engajado e desinteressado. Se há uma presença evidente por expedientes de salvação, comunhão e estabelecimento de laço afetivo, essa força muitas vezes é dobrada em direção à matéria do filme, revertendo seu fim inicial, colocando em curso outros vetores que adensam e transformam essas buscas, e fazem este trajeto duplicar-se sobre si mesmo, circundando essas ausências à maneira de cada caligrafia específica. Pois os arredores de um segredo são mais secretos do que ele próprio. Quanto mais esses trabalhos parecem se aprofundar em suas órbitas, mais parecem se direcionar para esse horizonte abstrato e disforme, caótico, impessoal até, onde se pode experimentar essa borda, afastando-se afinal do que ela narra para uma experiência direta do narrado, atingindo nossos sentidos em lugares ainda sem nome e sem luz.

Juliano Gomes é crítico de cinema, diretor, programador e professor. Formado em Cinema, Jornalismo e Publicidade pela PUC-Rio. Mestre em Comunicação pela UFRJ. É redator da Revista Cinética. Publicou em diversos livros e catálogos de mostras e festivais. Participou de comitês de seleção de festivais como o Curta Cinema e Mostra do Filme Livre, entre outros. Fez a concepção audiovisual de diversos espetáculos de teatro e dança desde 2010 (Os inocentes [2010] e Obituário ideal [2011] de Rodrigo Nogueira e Rebeldes [2012] de Yasmin Reza), além de tremsemnome# em parceria com o músico Mário Cascardo, em 2011. Dirigiu o curta “...” em 2007, exibido e premiado em alguns festivais no Brasil. Programou a Sessão Cinética no Instituto Moreira Salles-Rio (2010- 2011) e o CinePUC – cineclube da PUC-Rio (2005-2008) . Realizou a montagem do curta Laranjeiras (2013) de Gustavo Beck e colaborou no argumento e roteiro de O Rio nos pertence de Ricardo Pretti.

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Uma acrobacia: “Eu volto amanhã!” Por Manoel Ricardo de Lima “Fechar uma carta é fechá-la.” Maria Gabriela Llansol

Rubem Braga, numa proposição política radical com a vida, insere a figuração da carta como potência e armadilha construída num vaivém deliberado e inventivo da imaginação afetiva. Ou seja, como imagem e jogo entre desmesura guardada, esquecimento e testemunho. Toda carta é um corte, logo é também uma côrte, uma cortesia; mas é também uma quête: justa, disputa, aventura e uma forma de coragem. “Coragem é entrega ao perigo que ameaça o mundo” e “para a pessoa corajosa o perigo existe e, no entanto, ela não o trata com consideração” (BENJAMIN, 2011, p. 44). Coragem é esta atitude que “quanto mais profundamente é compreendida, torna-se menos uma característica do que uma relação do homem com o mundo e do mundo com o homem” (Idem, p.43). Braga diz, pois, que

cada um de nós morre um pouco quando alguém, na distância e no tempo, rasga alguma carta nossa, e não tem esse gesto de deixá-la em algum canto, essa carta que perdeu todo o sentido, mas que foi um instante de ternura, de tristeza, de desejo, de amizade, de vida ñ essa carta que não diz mais nada e apenas tem força ainda para dar uma pequena e absurda pena de rasgá-la. (1998, p.44-45).

A questão é que, para ele, a carta é uma espécie de casa que viaja no tempo, algo como toda carta é e tem também um rosto. E, se assim, um fantasma. O que pode nos remeter, quase diretamente, à cena final do documentário Só tenho um norte:1 sobre Cleber Teixeira e a editora Noa Noa. Cleber era um editor de livros singulares feitos em prensa manual. Nessa cena ele conta de uma imprecisão sua, apressada: uma ida a certa loja de ferragens. Fim de tarde, as portas abertas, mas os homens 1 Documentário dirigido por Alexandre Veras, Demétrio Panarotto, Júlia Studart e Manoel Ricardo de Lima. Realizado entre 2006/2007, em Florianópolis, na casa do Cleber Teixeira e na oficina de prensa manual da Noa Noa.


que atendiam ali já se encontravam do outro lado da rua, conversando. E, quando abordados por ele, não relutaram em dizer, com um sorriso expandido, “expediente encerrado”. Com este pequeno relato, Cleber desvela as brechas de nossa pressa diante da “via da vida”. E solta, com a ciência da alegria dos homens, da porta aberta e do expediente encerrado a frase doce: “Tudo bem, eu volto amanhã!”.

Esta frase-imagem2 permite, numa síntese, um mínimo contato com a temporalidade perdida da carta, com o sentido às avessas da carta contra a guerra fascista do é preciso (il faut). Ela, assim, como é e em sua demora, desfaz toda a ideia do é preciso e do é preciso ver (il faut voir). E, vagarosamente, estabelece uma temporalidade falhada, inaudita e incomum, quase a tarefa da arte, a de reexpor o resto frente ao horror, um resta a ver (il reste à voir). Uma des-possessão entre a superabundância e a fraqueza (défaillance) do que se coloca como imagem, se apenas como visível, entre o demasiado, o demasiado pouco, o excesso e a falência (faillite). Derrida fala de uma “gratidão do receber antes de ver” (2010, p.37), a carta como uma hospitalidade incondicional quando a razão do coração é a razão da política ao lado da vida. E este, me parece, é também o apontamento e o inexpresso amoroso da carta falada do narrador-escrevente no filme de Karim Aïnouz e Marcelo Gomes no acento vigoroso da leitura de Irandhir Santos: Viajo porque preciso, volto porque te amo (2009).

No filme, quase sempre classificado como um road-movie (que como toda classificação esgota-se num didatismo empobrecedor e irrelevante), tão simples e tão bonito talvez porque acidental, é possível entender, brevemente, que toda imagem só é antes e depois do visível porque falada ou, de outro modo, que todo texto (falado, escrito) só é antes e depois da palavra porque invisível, porque é uma memória e fatalmente uma imagem de nosso próprio espectro. A carta no filme ou o filme com a carta, o filme2 Jacques Rancière define a frase-imagem como: “Pelo termo frase-imagem entendo a união de duas funções esteticamente por definir, isto é, pela maneira como desfazem a relação representativa da imagem pelo texto. No esquema representativo, a parte do texto era a do encadeamento ideal das ações, a parte da imagem era a do suplemento de presença que lhe dá carne e consistência. A frase-imagem derruba essa lógica. (...) É a unidade que desdobra a força caótica da grande parataxe em potência frásica – de continuidade – e em potência constitutiva de imagens – de ruptura–” (2011, p.65).

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carta (uma classificação?), tem uma divisa amorosa que é, ao mesmo tempo, vazia e expressiva, como diz Barthes: “Nada tenho a dizer a você, senão que este nada é a você que o digo” (2003, p.46).

A especulação da estrada é intensiva e extensiva, tem a ver com fragmentos da letra da canção que acompanha os primeiros travellings no filme, “Sonhos”, do Peninha (1977). Principalmente a linha que diz: “Quando o meu mundo era mais mundo”. Isto tem a ver com o que este personagem é: uma ambivalência entre viator e faber. Não há a carta se não houver antes a viagem. E tudo começa, no filme, num inventário de preparação para a viagem enquanto que na primeira parada, “para mijar”, o personagem já ex-creve o paradoxo: “Eita! Vontade de voltar!” Há aí algum empenho muito próximo daquilo que Llansol sugere entre a “vida da carta” e a afrontalidade com a “via da vida” para interromper o gesto simplório da biografia ou, grosso modo, a geografia amorosa que é composta radical e minimamente com UM OUTRO: um choque entre um terreno vago no mapa e a geografia do há dois mundos. Diz ela:

A vida da carta faz um relato minucioso dos acontecimentos presenciáveis, tentando a biografia. Eu esquivo-me a essa maneira de pensar, e tento outra via_________________ des-dato e reúno numa estreita proximidade os nós do visível para que a sua força se não disperse. Se a via da vida me esquecesse_______________ e eu, para finalizar encontrasse outra perspectiva, esta morada não seria, como todas as vidas, um terreno vago no mapa, mas um lugar na geografia do há dois mundos, essa carta das cores onde se pode ver o contorno de um país que uma dada luz realça. (LLANSOL, 1996, p.88)

Há uma leva de dias de distância de si mesmo, numa região árida de pedra seca e ferrugem, margem e contorno de um país absurdo, tanto faz se no encontro com um casal de velhos que vive junto há cinquenta anos


e que nunca brigou, sem nenhuma ferida antiga, ou se enquanto registra anotações de uma consciência partilhada do impenetrável – “Galega, bom dia! Bom dia, meu amor!”, “Chega me canso de tanto pensar em ti!” e “Fico olhando só para flores e pessoas. Não aguento mais tentar te esquecer.” –, a carta passa a ser o desespero de uma geologia enformada nas falhas das rochas e na “linguagem das flores”, como desajusta Bataille. O que sobra, na carta, num outro inventário, são invenções de nomes e jeitos de mulheres para dizer uma só coisa: “Penso em você”. Isto é instintual, ou seja, é uma restauração dos sentidos do corpo que despertam para o esquecimento e, instantaneamente, para a correspondência que se desdobra num apetite de vínculos que, por sua vez, anula o esquecimento. É assim, que ele anota, ao final, que precisa “voltar a viver” (estamos de volta ao imperioso do é preciso) ou, numa acrobacia das frases-imagens, que “Minha vontade agora é mergulhar pra vida!”. Esta última frase vem junto às cenas de mergulho dos homens de Acapulco, no México, que saltam de cima dos rochedos traçando acrobacias no ar próximos demais da morte; o que não é, senão, também, uma tauromaquia: uma coragem.

Daí, um último ponto, porque estamos diante de uma carta de amor: espera-se uma resposta, porque “toda carta de amor impõe implicitamente ao outro que responda, sem o que sua imagem se altera, torna-se outra”, diz Barthes (2003, p.47). A imagem da carta no filme de Karim Aïnouz e Marcelo Gomes resvala na imagem de carta do livro de Carlos Augusto Lima, Manual de acrobacias n.1, que é também uma carta de amor a alguém que vai embora porque hesita frente ao abismo da vida mas, que sem o saber, leva consigo todo seu vínculo amoroso sentado no banco de trás (o que traça acrobacias seguindo apenas o ritmo daquele que dirige). A carta desse manual convulso é escrita 72 vezes, com mínimas e singulares alterações, e começa numa ex-crição: “eu sou o acrobata do banco de trás / e só você me vê. vou deixar as / duas mãos no vidro e me contorcer / amarrado a este cinto que me livra / do mal, toda sorte ruim, acaso, / quebranto e freadas bruscas / (...)”. (LIMA, 2009, p.01). Ou seja, como disse Borges, “Escribo ‘imágenes’ y no dejo de saber lo traicionero de esa palabra” (1998, p.75) e “La etimología ampara ese error: imago vale por simulacro, por aparecido, por efigie, por forma, a veces por vaina (que es la apariencia de la hoja de acero que está en acecho en ella) aunque también por eco - vocalis imago - y por la concepción de una cosa. Eso dice la biografía de esa palabra y esa biografía non es aconsejadora de aciertos” (1998, p.76). Como não há acerto ou erro algum na acrobacia

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insana que ainda insistimos em chamar de carta de amor.

Referências bibliográficas BARTHES, Roland. Fragmentos de um discurso amoroso. Trad. Márcia Valéria Martinez de Aguiar. São Paulo: Martins Fontes, 2003. BENJAMIN, Walter. Escritos sobre mito e linguagem (1915-1921). Trad. Susana Kampff Lages e Ernani Chaves. São Paulo: Editora 34, 2011. BORGES, Jorge Luis. La simulación de la imagen. In El idioma de los argentinos. Madri: Alianza Editorial, 1998. BRAGA, Rubem. A traição das elegantes. Rio de Janeiro: Record, 1998. DERRIDA, Jacques. Memórias de cego – o autorretrato e outras ruínas. Trad. Fernanda Bernardo. Lisboa: Gulbenkian, 2010. LIMA, Carlos Augusto. Manual de acrobacias n.1. Florianópolis: Editora da Casa, 2009. LLANSOL, Maria Gabriela. Inquérito às quatro confidências - diário III. Lisboa: Relógio D’água, 1996. _______. O sonho de que temos a linguagem. In Colóquio/letras, nº.143/144, p.7-18, Lisboa, jan./jun. 1997. RANCIÈRE, Jacques. O destino das imagens. Trad. Luís Lima. Lisboa: Orfeu Negro, 2011.

Manoel Ricardo de Lima é poeta, professor da Escola de Letras e do PPGMS (UNIRIO). Publicou, entre outros, Entre percurso e vanguarda – alguma poesia de P. Leminski; Quando todos os acidentes acontecem; As mãos e Jogo de varetas.


Sobre montanhas e saudades

Por Milena Travassos

Um lugar entre esse mundo e o outro, rastros de memórias, em Yama no Anata / Para além das montanhas, de Aya Koretzky. Corpos e rochas sedentários, parcimônia de gestos, em Canto da Terra d’Água, de Francesco Giarrusso e Adriano Smaldone. Os dois filmes nos chegam com imagens de paisagens: montanhas, e transcorrem com outras: águas, campos, cidades, espaços vazios, cotidiano, encenações, leituras de cartas, narrações de histórias, entoações de cantigas. Aya faz um catálogo de suas memórias, da saída do Japão aos primeiros anos em Portugal. O seu filme expõe um caleidoscópio de lembranças. Francesco e Adriano erigem paisagens. Suas imagens de rochedos, de casas, de rostos ou de corpos, são todas paisagens. Cartas recebidas no primeiro, cartas enviadas no segundo. Deslocamento e permanência. Fazeres, atenções e hábitos. Aya, em Para além das montanhas, reúne e dá forma às suas memórias de infância. Parte dela vivida em seu país de nascimento, Japão (Tóquio), outra parte vivida no estrangeiro, Portugal (Mondego), sua nova morada. Essa específica experiência de transição, conservada em seu arquivo pessoal, motivou a feitura desse documentário intimista. Um inventário afetivo, uma afirmação reavivada da sua experiência com a origem, a distância e o estranhamento. Suas imagens presentificam lonjuras espaciais, temporais e culturais. Fotos e vídeos que, reunidos, embaralham a sua infância. Fragmentos de tempos capturados na eminência da partida e no frescor da chegada. Imagens caseiras se unem às recentes imagens que a realizadora constrói já com o desejo de fazer esse filme. Leituras das cartas recebidas por ela, questões postas aos seus pais, – “Pai... Porque decidiram deixar o Japão?”, também povoam esse inventário. Momentos vividos, o almoço entre colegas na escola, um passeio em família em Tóquio dialogam com momentos encenados, o almoço em campo aberto com seus pais, pai e mãe com cabeças de animais, ave e felino, a conversar sobre corvos, lixo e consumismo. As trocas de cartas são elementos fortes nesse filme. Elas referenciam a distância instituída com algo no ato de partir. O comum é enviarmos cartas a alguém distante de nós, o endereço deve ser outra rua, cidade,

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país que não o nosso. Nesse caso, Japão e Portugal. Aya trocou cartas com amigos e familiares, a ouvimos ler algumas das cartas recebidas. O cotidiano de um amigo de escola, o elogio feito por sua professora à sua bem escrita carta, a notícia da morte de um amigo e da avó paterna ficaram impressos nessas cartas. No urbano de Tóquio, e nas altitudes de Mondego, o tempo passa, a vida se transforma e realça ausências permanentes. A casa da família de origem japonesas e belga está situada em meio à natureza, todo o filme evidencia isso, “junto a ela a solidão não existe”, pensa seu pai. “(...) este é um lugar maravilhoso”, afirma sua mãe. Olhamos para as montanhas que rodeiam a casa de Aya e somos convidados a refletir acerca do modo de vida capitalista, acerca da existência real de “um lugar entre este mundo e o outro, mais próximo do outro”, como fala o pai, o arquiteto paisagista que escolheu ser agricultor. Nunca vamos embora completamente, nem ficamos completamente. Somos corpos que partem e presenças que insistem em ficar. Se as cartas escritas por Aya são objetos latentes, esse filme é a sua resposta visível, estética e expandida. Declaração de respeito e de vida. Interrogações à memória, meio, e não instrumento, em que se é possível explorar o passado. Ainda em Portugal, ainda cercados por montanhas, entramos em outro filme: Canto da Terra d’Água. Aqui esses altos relevos têm mais peso, assim como seus habitantes. Os dois personagens, a cantora de cantigas e o escultor de máscaras, possuem corpos pesados. São como duas antigas rochas cheias de fissuras. Ela canta histórias de amor, fia sisal e afunda no escuro de sua casa. Ele narra histórias bíblicas, esculpe máscaras de madeira e afunda entre árvores. Essa gravidade manifesta em suas imagens diz da sobriedade que eles portam. É densa, mas repleta de ranhuras que deixam passar vozes e gestos parcimoniosos. Essa sobriedade, captada por Francesco e Adriano, faz com que esses corpos sejam capazes de ocupar mais do que o lugar que lhes é próprio. Suas vozes e gestuais são enviados a novos espaços. Rodeados por pedras, a senhora canta e o senhor esculpe uma madeira. A paisagem é palco e oficina. A ação é descolada do entorno. O gesto é afetivo e produtor. Tais gestos, cantar e esculpir, estão sedimentados nas vozes e mãos dos dois anciões, neles a atenção se transformou em hábito. Um corpo acomodado fez a atenção caminhar em direção ao hábito, um corpo em movimento fez a atenção estorvar o hábito. Canto da Terra d’Água trabalha com este ondular de estados, desloca a quietude inerente aos gestos dos personagens para outros territórios. As canções entoadas são antigas


conhecidas dessa senhora, ela as canta em inusitados lugares, um deles é ao lado de um escuro burro tal qual as vestes dela. É provável que o velho homem tenha herdado o ofício que executa, e, da máscara por ele esculpida, faz sua mortalha. Ondas foram geradas nesses corpos e contagiaram o “mar” calmo do filme. É com Walter Benjamin que converso: “Atenção e hábito, assim como repulsa e aceitação, constituem cristas e depressões de ondas no mar da alma”1.

Da atenção emerge o hábito; do rito, o calendário. Nas cartas lidas por uma voz feminina, da qual nunca vemos o corpo, está a presença do calendário, do tempo. Festa de São João, São Valentin e Páscoa são datas mencionadas nas leituras. Exemplos da permanência de rituais não racionalizados. No interior de uma casa abandonada ouvimos a resignada mulher: “Meu querido”, é assim que as cartas sempre começam, “não sinto dores nem nada, é como se não houvesse nada...”, “eu já tenho saudades de ir a esta festa contigo”. Ritos, afetos e saudades impressos em um papel oculto a nós. Cartas remetidas das quais ignoramos as respostas. Unida às paisagens, ao interior de casas desabitadas, essa voz revela os escritos de Maria Virgínia Miranda do Douro, nome que assina a última carta. É a mesma voz que, no início do filme, escutamos recitar um poema que fala, “(...) reino de silêncio, luz e pedra...”. Ele anuncia algumas imagens que estão por vir, como a do rosto-castelo. Remeto-me ao rosto em perfil da senhora que canta em frente a uma antiga edificação, um castelo em pedras. Rosto-castelo erguido, forte e com catacumbas. Viu muitas mortes e lá, em pé, canta mais uma, a morte da amada de Dom Fernando. Ele abriga, defende e prolifera histórias de amor. Ele canta uma canção de amor. É sempre uma canção de amor. Por fim, David, o artesão, que já anunciara seu nome, também em pé, estático, de costa para nós, sem rosto e frente a uma grande árvore, se despede da sua máscara: “Enfim, cá estais minhas máscaras, (...) aqui agora estais como as pedras antigas. (...) agora vou e deixo-vos aqui, a vigiar o meu eterno repouso”. Os dois personagens têm realmente os rostos constituído por pedras antigas. Aya e seus pais foram até as montanhas, a cantora de cantigas e o escultor sempre estiveram lá.

1 BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas II – Rua de mão única. Trad. Rubens Rodrigues Torres Filho. São Paulo: Brasiliense, 1995. p.247.

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Quem alguma vez escalou sozinho uma montanha e chegou esgotado ao topo para em seguida descer com passos que abalam todo o seu esqueleto sabe que, para ele, o tempo se desagrega, as paredes divisórias em seu interior desabam e, através dos cascalhos dos instantes, ele caminha trotando como num sonho. Por vezes tenta parar, mas não consegue. Quem sabe se são pensamentos que o abalam ou o áspero caminho? Seu corpo se tornou um caleidoscópio que, a cada passo, lhe apresenta figuras cambiantes da verdade.2

Milena Travassos (Recife-PE/ Fortaleza-CE) vive e trabalha em “Guapi”, cercada por montanhas. Doutoranda em Comunicação e Cultura (UFRJ-ECO). Pesquisadora e realizadora em audiovisual. Publicou o pequeno livro, Reconfigurações do alegórico no contemporâneo. Realizou o projeto de artes visuais, O animal habita um quarto. 2

Ibidem.


Chris Marker : a carta e a fotografia. Por Philippe Dubois

(correspondências implícitas em Si j’avais quatre dromadaires) “Com seus quatro dromedários Dom Pedro d’Alfarrobeira Correu o mundo e o admirou. Ele fez o que eu gostaria de fazer.1 Tema: um fotógrafo amador e dois de seus amigos comentando imagens feitas em diversos lugares do mundo.” Chris Marker2

De Chris Marker – o mais célebre dos cineastas desconhecidos, o mais fascinante dos criadores inapreensíveis – sabemos que é tanto escritor ou fotógrafo quanto realizador de filmes ou artista instalacionista ou multimídia e, sobretudo, que definiu a si próprio antes de mais nada como um viajante e uma memória. Uma espécie de placa sensível e receptora que passeia em todo os lugares do mundo, observa os seres e as coisas (não sem uma distância gracejada), registra suas impressões e nos as restitui (a carta é também uma transmissão) como pensamentos soltos. Sob todo tipo de formas: livros, fotos, filmes ou memórias informáticas – sempre enviadas. Pensamentos soltos, mas eminentemente subjetivados. E subjetivados, e, portanto, transmitidos. A preocupação com o envio, a circulação e a passagem é constante em Marker. Transmitir é tão importante quanto registrar vestígios do mundo e das pessoas. Nesse sentido, poderíamos

dizer que para ele tudo é carta, de certa maneira. Pensamentos, imagens, palavras, tudo acaba em correspondência(s), para além das separações e clivagens. Para ele, as diferenças de suporte em si não têm o menor sentido. Por exemplo, ele faz filmes tratando o cinema como se fosse fotografia (imagens-objetos, fixas ou não), com um texto (uma anotação, um “comentário”, uma narração off) ou sem texto nenhum. Ou então publica seus

filmes (rodados ou não) sob forma de livro, intitulando-os Comentários. E entrega suas imagens, assim como seus textos, em dispositivos tecnológicos circulatórios cada vez mais up to date e abertos a todo mundo: hipermídias interativas (Immemory), sites enigmáticos e complicados na internet (O.W.L./Optional World Link), criações virtuais no Second Life, etc. Toda essa mistura de imagens e palavras é sempre, de uma forma ou de outra, um testemunho, um relato de viagem, uma missiva com imagens-lembranças 1 2

APOLLINAIRE, Guillaume. “Le Dromadaire” [O dromedário]. Si j’avais quatre dromaires. In Commentaires 2. Paris: Seuil, 1967.p.83-87.

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e alguns comentários. Esteja ele no Japão, na Sibéria, em Israel, em Cuba, em Pequim, em Bornéu, em Paris, na África ou na América, esteja onde estiver (mas sempre conectado), Marker de tempos em tempos nos dá notícias, por livros, fotos ou filmes. A “carta” é, assim, uma das formas privilegiadas do discurso de Marker, o que faz dele, sem dúvida alguma, um dos primeiros a ter praticado sistematicamente o “documentário subjetivo” sob a forma de “cinema epistolar”. A carta como memória, como autobiografia, como imagem, como correspondência e como transmissão personalizada. Quem não se lembra da famosa abertura de Carta da Sibéria (1957) – tirada de um livro do escritor Henri Michaux: “Eu vos escrevo de um país distante...”. Tal é a forma epistolar explícita em Marker. Ela junta-se ao projeto documental global do cineasta da subjetividade reivindicada, inscrevendo-a na personalização da destinação direta (“eu” nos escreve, ele fala “comigo”, me envia sinais do outro lado do mundo). Desse ponto de vista, Carta da Sibéria é um filme exemplar, porque a enunciação epistolar é frontal, imediata e aparente.

Mas gostaria de mostrar aqui que essa forma epistolar explícita de Carta da Sibéria talvez seja uma máscara. Algo que esconde, dissimula e recobre, na verdade, um campo mais vasto, mais subterrâneo e mais onipresente. Algo que existiria em toda parte em Marker, além da aparência frontal do “filme-carta”. Em outras palavras, gostaria de mostrar que a “forma-carta” (com tudo o que ela implica) existe também em seus filmes de uma forma implícita e que ela corresponde a um campo muito genérico de todo o seu cinema – assim como a dimensão subjetiva e autobiográfica existe também de forma indireta, dissimulada, mais ou menos secreta ou desviada na maior parte de seus filmes. Se os filmes de Chris Marker não são todos filmes-cartas ou relatos de sua própria vida, eles talvez sejam todos moldados subterraneamente por este vasto modelo mental que eu vou tentar descrever.

É efetivamente uma obviedade dizer que os filmes de Marker estão longe de parecerem “relatos de si” no sentido das autobiografias documentais, como Les Années déclic, de Raymond Depardon, Ulysse, de Agnès Varda, o tríptico de Robert Frank (Conversation in Vermont, Life Dances On..., Home Improvements), alguns ensaios de Alain Cavalier (Ce répondeur ne prend pas les messages, Irène, Libera me) ou de Chantal Akerman (primeiro News from Home, depois D’Est e Sud), e tantas outras experiências autobiográficas filmadas que às vezes pegam “a carta” como refém ou pretexto. De forma assumida, Marker fala primeiro dos outros, do mundo, das pessoas e das paisagens que ele encontra, dos animais que ele venera e das sociedades cujos espetáculos ele observa. É a forma com que ele fala e o tipo de olhar que ele lança sobre essa aparente


exterioridade, um olhar feito de ironia e de fascinação, de amor e de distância, de simpatia e de crítica, um olhar de sábio e de partidário ao mesmo tempo, que constitui toda a incomparável personalização assumida (o “Eu”) da abordagem “documentarista” de Marker. Mas para ir mais longe na minha análise, vou me concentrar em um filme menos comentado dele, menos “mítico”: Si j’avais quatre dromadaires, um filme em que nem a forma epistolar nem a proposta autobiográfica são aparentes, mas em que a relação entre cinema e fotografia ocupa todo o espaço e, por assim dizer, “substitui” implicitamente a forma-carta e o relato de si.

De todos os seus filmes do início (não falo das obras digitais como

Immemory), Si j’avais quatre dromadaires é sem dúvida o mais fotográfico de seus filmes documentais (com a inesquecível ficção La Jetée, que é de um outro mundo). O filme é de 1966 e se apresenta como um passeio pelo nosso “pequeno planeta” (título da célebre coleção de pequenos livros de viagem criada e dirigida por Marker na editora Seuil), a partir de uma vasta seleção de fotografias tiradas por ele ao longo de toda a sua vida itinerante. Esse “álbum de fotos de viagem”, trabalhadas em truca, constitue, literalmente, o filme, que é composto, assim, apenas de imagens fixas. Filme de fotos, no sentido mais materialista do termo, tal é o dispositivo-imagem de Si j’avais quatre dromadaires. Bastante anticinematográfico em aparência. Um relato de viagem cuja figura visual é a imagem fixa que se apresenta como uma pausa (da imagem)3. O que quer dizer, na verdade, o distanciamento de um objeto de memória. Pois essa presença exclusivamente fotográfica do mundo confere uma realidade objetal à memória: não lembranças, mas a imagem dessas lembranças, não o movimento fluido e ininterrupto (da vida, do cinema, do presente), mas a pausa distanciada do tempo nesse mesmo movimento. O afastamento (ligeiramente de lado, sobre a faixa de acostamento) a partir do qual ver e falar é possível. Decalagem fundamental que confere todo o valor singular da estratégia da (fo/au)tobiografia markeriana. E que se repete no comentário que vem dublar (e duplicar)4 as imagens fixas encadeadas.

Esse comentário é, efetivamente, tão essencial quanto a figura da pausa fotográfica das imagens na constituição do efeito-distância. Em sua trilha sonora, Marker nos “conta” em off – e ao seu modo – suas fotos, isto é, suas “impressões” de viagem (seu amor pelos rostos e pelas mulheres russas, sua visão da Coreia, de Cuba ou da Islândia, sua 3 “[...] arrêt (sur image)”, no original. Aqui o autor emprega um jogo de palavras entre arrêt (parada em uma viagem) e arrêt sur image (pausa ou congelamento da imagem). (N.T.) 4 Aqui o autor emprega uma só palavra, doubler, em itálico, para ressaltar seu duplo sentido: dublar e duplicar. (N.T.)

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descoberta da África negra, suas reflexões sobre a sociedade francesa, etc., com base nas fotos). As imagens se seguem sem serem ordenadas por uma sucessão cronológica (a história da vida de...) ou por uma distribuição geográfica (a volta ao mundo no sentido dos ponteiros de um relógio). Elas simplesmente se encadeiam, totalmente livres, por recorrências ou desvios, por aproximação ou contraste, com efeitos de lembrete e de retomada, ao sabor do discurso que os acompanha e os “autobiografiza”. Esse comentário não é efetivamente nem narrativo nem descritivo nem anedótico, e nem mesmo temático, mas ele subjetiva seu objeto; ele remete os objetos-imagens a esse sujeito distanciado e defasado que os observa de través, um sujeito “decomposto”5 (um “ fotógrafo amador dialogando com dois amigos”) – figura de enunciação que ele retoma em Sem sol –, sempre com esse efeito duplo, tão inimitável, de amor e de distância, de fascinação e de inteligência gracejada que caracteriza o seu cinema. Por isso as fotos adquirem uma espécie de força interior: nomeadas e faladas, elas têm, ao mesmo tempo, em linguagem benjaminiana, um grande valor de exposição, que se converte em valor de culto pela estratégia do distanciamento. Sua aura muito singular é fundada nesse dispositivo de inversão, nessa valorização quase cultual da própria exposição.

É fácil reconhecer nessa formulação a famosa terminologia utilizada por Walter Benjamin quando ele evoca a “Pequena história da fotografia” e “A obra de arte na época de sua reprodutibilidade técnica”. Lembramos em particular da celebríssima definição da aura que ele propôs mais de uma vez: “O que é propriamente a aura? Uma trama singular de espaço e de tempo: a manifestação única de algo distante, por mais próximo que esteja”. Nessa definição genérica de uma noção que permite medir o valor simbólico de uma obra de arte, Benjamin destaca, portanto, um verdadeiro princípio de distância, que ele afirma como irredutível e fundamental, já que é operante até a maior proximidade possível do objeto. A aura seria assim produzida como um efeito dialético na percepção da obra de arte, um efeito surgido dessa tensão entre o distante e o próximo, ou melhor, do distante mais essencial, mantido e conservado no próximo mais incidental. Definindo assim a essência da aura, Benjamin, segundo suas próprias palavras, apenas “transpõe a fórmula que designa o valor cultual da obra de arte: o que é essencialmente distante é o inatingível, e a qualidade principal de uma imagem que serve ao culto é a de ser inatingível. Por sua própria natureza, ela está sempre ‘distante, por mais próxima que possa estar’”. Em outras palavras, uma obra de arte, tal como uma grande pintura clássica (digamos, os afrescos de Giotto 5 “Détriplé”, no original. O autor brinca com a morfologia da palavra détripler (que, interpretada literalmente, remete à algo como “desfazer em três”), dizendo que o sujeito se “decompõe” em um fotógrafo amador somado a dois amigos. (N.T.)


narrando a vida de São Francisco na Basílica de Assis), é dotada, em seu contexto histórico, de um grande “valor de culto” (tudo o que faz dela um objeto único, considerado no ritual de um culto; tudo o que faz dela um objeto de crença tanto quanto de visão), mas esse valor original, gerador de aura, tende a se diluir à medida que essa obra é reproduzida, divulgada, banalizada (pela fotografia, por exemplo), isto é, à medida que seu “valor de exposição” aumenta. Tal é a versão, elementar, que retém-se frequentemente do texto de Benjamin. Esquece-se com ainda maior frequência que ela só diz respeito, na verdade, a um problema de utilização particular da mídia: a fotografia como ferramenta de reprodução das obras de arte. É um erro considerável querer remeter essa análise limitada à fotografia como um todo, ou ao seu princípio. É uma contradição até. Pois no lado oposto dessa concepção restritiva, acredito que o “valor cultual” da imagem encontra no dispositivo fotográfico uma realização de fato bem mais plena do que na maioria das outras formas de imagem. De todas as artes da imagem, a fotografia é, efetivamente e sem dúvida, aquela em que a representação está ao mesmo tempo mais próxima, ontologicamente, de seu objeto – pois ela é sua emanação física direta (a impressão luminosa) e cola-se literalmente em sua pele (eles são intimamente ligados) – e aquela em que, também ontologicamente, a representação mantém totalmente a distância com o objeto; em que ela posa, obstinadamente, como um objeto separado. E é exatamente isso que o filme de Marker coloca em jogo.

Pois a separação é o que funda todo efeito de olhar sobre uma foto. É ela que induz os movimentos perpétuos do sujeito espectador, que não cessa, à visão da imagem, de passar do aqui-agora da foto ao distante-anterior do objeto, que não cessa de olhar intensamente essa imagem (indubitavelmente presente, como imagem) e de se imergir nela para melhor experimentar seu efeito de ausência (espacial e temporal), a parte de referencial intocável que ela oferece à nossa sublimação. A fotografia como instrumento da viagem no tempo e na memória. Ver (algo que necessariamente esteve lá – um dia, em algum lugar – e que tornase ainda mais presente imaginariamente quando se sabe que atualmente desapareceu de fato) e nunca poder tocar, pegar, abraçar, manipular essa coisa em si, definitivamente evanescida, trocada para sempre por um substituto metonímico, um simples vestígio de papel que ocupa o lugar de única lembrança palpável. Frustração ainda maior porque o substituto indiciário, ao ratificar a ausência efetiva do referente, se oferece, por sua vez – enquanto representação –, como um objeto concreto, material e dotado de uma consistência física real (todo o fetichismo da imagem fotográfica vem dessa dupla postura – a foto como objeto: toca-se, enquadra-se, coleciona-se, encerra-se, queima-se, rasga-se, beija-se, mesmo que ela só nos mostre o intocável, o inacessível, a memória e a ausência). Em fotografia, nunca há, portanto, apenas uma imagem, separada,

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defasada, trêmula em sua solidão, assombrada por essa intimidade que ela teve, por um instante, com um real evanescido para sempre. É essa assombração, feita de distância na proximidade, de ausência na presença, de imaginário no real, de virtualidade memorial na efetividade de um vestígio, que nos faz amar as fotografias e lhes confere toda a sua aura: manifestação única de algo distante, por mais próximo que esteja.

É nesse sentido que Si j’avais quatre dromadaires é – tanto quanto uma viagem no espaço de nosso pequeno planeta – também uma viagem no tempo. E na memória. Isto é, no e pelo pensamento. Exatamente como La Jetée, que fez disto o próprio tema de sua ficção “futurista”: “é a história de um homem marcado por uma imagem de infância” – mas aqui, pois, no terreno autobiográfico. Um pouco também como O fundo do ar é vermelho (mas aí no terreno da memória das lutas políticas e sociais). Em suma, trata-se de uma das grandes figuras de toda a obra de Marker, em qualquer “gênero”. E a distância necessária para que essa viagem no tempo possa acontecer só é encontrável a partir da imagem-objeto, pausada e observável de fora, como um pensamento palpável sobre o qual podemos nos fixar. Tal é a função da imagem fixa fotográfica em Si j’avais quatre dromadaires (assim como em La Jetée). Olhar seu próprio pensamento em imagens. E poder viajar no tempo. Trabalho da memória e da distância. A foto feita filme, mas que permanece sempre fotográfica (o filme de imagens fixas como o inverso do fotograma, como “cinematograma”), porque a fotografia é, em seu fundamento, o próprio instrumento da distância psíquica. É exatamente o valor de exposição inerente ao fotográfico que é aqui reinvestido no e pelo cinema de imagens fixas, ao ponto de marcar uma recuperação do valor cultual sobre essas próprias imagens, ex-postas, retomadas como imagens-pensamentos, imagens auráticas, veneradas pelo culto da memória e da fixação. “A história de um homem marcado por uma imagem de infância.”

Philippe Dubois é professor do Departamento de Cinema e Audiovisual da Universidade Sorbonne Nouvelle – Paris 3, onde é titular da disciplina “Teoria das formas visuais”. Ele publicou uma dezena de livros e mais de uma centena de artigos sobre fotografia, cinema e vídeo, incluindo L’Acte photographique, seu primeiro livro, em 1983 (traduzido em muitas línguas, incluindo português – publicado pela Papiro) e seu mais recente livro La Question vidéo. Entre cinéma et art contemporain (ed. Yellow Agora, 2012 - também traduzido para o português e publicado pela Cosac e Naify sob o título Cinema, video, Godard). Foi crítico (fotografia, cinema e vídeo), editor da Revista Belga de Cinema.

Tradução: Tatiana Monassa

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FILMes


Canto da Terra D’água Direção: Adriano Smaldone e Francesco Giarrusso. 32 min. Digital 2009. Portugal Exibição em DVD Classificação indicativa: 10 anos As pedras, os campos, a vegetação que devora as casas desabitadas e que se apropria novamente do que lhe foi tirado. O trabalho do tempo sobre o homem e do homem sobre as coisas, os seus gestos e a sua memória. David, escultor de máscaras de madeira, e Adélia, cantora de cantigas, são os protagonistas deste filme que decorre na região fronteiriça de Trás-os-Montes. Eles testemunham a condição de abandono desta terra em cujo chão raivoso sobrevivem vestígios de um antiquíssimo oceano. FICHA TÉCNICA Companhia produtora: Terratreme filmes Produção executiva: Miguel Neves e Joeri Proot Produção: Susana Nobre Roteiro: Adriano Smaldone e Francesco Giarrusso Fotografia: Adriano Smaldone e Francesco Giarrusso Som: Adriano Smaldone e Francesco Giarrusso Montagem/edição: João Rosas Edição de som: Nuno Carvalho Música: Tradicional transmontana Elenco: Adélia Garcia, David Afonso, Ângelo Arribas, Aureliano Ribeiro e Maria Virgínia Rodrigues


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Carta ao/do Ceará Direção: Marcelo Ikeda. 10 min. Digital 2009. Rio de Janeiro Exibição em DVD Classificação indicativa: 14 anos Quando estive em Muniz Freire, me lembrei de alguns de vocês. Dois caminhos. Entre o campo e a cidade. Entre os passos e as roldanas. Cartas ao Ceará é uma série de seis vídeos realizados por Marcelo Ikeda em 2009. Na época, o autor morava no Rio e encontrou no formato das videocartas uma possibilidade de diálogo audiovisual com os realizadores de Fortaleza, em especial os membros do coletivo Alumbramento. Em 2010, quando Ikeda passou a morar em Fortaleza, muitos de seus amigos passaram, curiosamente, a morar em outras cidades. Essa série, então, passou a se chamar Cartas do Ceará. Em todas as cartas, o autor desenvolve os temas da proximidade e da distância, sem o uso de palavras.


CARTAS AO CEARÁ #03 compõe uma série de seis vídeos que Marcelo Ikeda realizou em 2009 entre o Rio de Janeiro e Fortaleza. Na época, morava no Rio e mandava cartas audiovisuais a amigos que moravam em Fortaleza. Mais sobre o projeto bit.ly/JIcSBq. CARTA DO CEARÁ Direção: Marcelo Ikeda. 7 min. DVD 2010. Ceará Quando saí de lá, me lembrei de vocês e deixei uma janela aberta. Uma despedida. CARTA DO CEARÁ é um contracampo. Um complemento a uma série de vídeos que fiz entre 2008 e 2010, chamada CARTAS AO CEARÁ. Na época, morava no Rio e mandava cartas audiovisuais a amigos que moravam em Fortaleza. Em 2010, o projeto simplesmente acabou porque passei para “o lado de lá”, vindo morar em Fortaleza. CARTA DO CEARÁ foi integralmente filmado no dia de minha solitária despedida do Dona Bela, minha primeira casa em Fortaleza. Um filme de ficção (posado), um registro documental e uma performance. Um gesto de abrir uma janela e de fechar uma porta. CARTA DO CEARÁ #02 Direção: Marcelo Ikeda. 3 min. DVD. 2013. Ceará. Ivo e seus amigos se reuniam para tirar um som, e eu os observava.

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Carta ao pai Direção: Ythallo Rodrigues. 12 min. Digital 2010. Ceará Exibição em DVD Classificação indicativa: 10 anos Pai, esta é a primeira e última vez que te escrevo, adeus. FICHA TÉCNICA Companhia Produtora: Alumbramento e Filmes de Alvenaria Imagens, textos, direção e montagem: Ythallo Rodrigues Trilha sonora: Daniel Batata


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Carta camponesa| Lettre paysanne

Direção: Sofie Faye. 98min. 35mm. 1975. Senegal Exibição em DVD Ngor e Coumba habitam em uma pequena vila do Senegal. Eles querem se casar há algum tempo, mas neste ano a colheita está fraca. As chuvas são bastante irregulares para o amendoim, única opção comercial herdada da colonização. Como poderão eles ter renda o suficiente para se casar e sobreviver? De Sofie Faye. Com Assane Faye, Maguette Gueye. 98 min. Documentário, drama. Preto e branco. Roteiro: S. Faye. Fotografia: Patrick Fabry. Música: Charles Diouf, Maya Bracher Edição: Andrée Davanture •Vencedor do prêmio Georges-Sadoul, 1975 •Vencedor dos prêmios FIPRESCI e OCIC no Festival de Berlim, 1976

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Cidade desterro Direção: Glaucia Soares. 15 min. Digital 2009. Ceará Exibição em DVD Classificação indicativa: Livre Depois de 11 anos resolvi mudar de Fortaleza. Fazer um filme foi o jeito que encontrei pra dizer adeus. FICHA TÉCNICA Companhia produtora: Alumbramento Produção e produção executiva: Gláucia Roteiro: Gláucia Fotografia: Gláucia, Mari, Rafa, Rubia e Ivo Montagem: Gláucia Som e edição de som: Gláucia Música: Fernando e Gláucia

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Dear Doc Direção, fotografia e montagem: Robert Kramer 35 min. 16mm + vídeo. 1989. França Exibição em blu-ray Classificação indicativa: 12 anos

(...) Em Route One Usa, vivíamos uma aventura – não de Doc e de Robert, mas de Robert e de Paul, uma espécie de história de amor entre homens que vinha de muito tempo, quando éramos militantes juntos, e tínhamos encontrado um ponto de fixação na experiência de dois filmes. Para além das histórias que eles contavam, os filmes eram a história não dita da nossa relação. Tudo aquilo podia ser visto, descrito e vivido de uma maneira completamente diferente. Comecei a tatear: “Vou dizer tudo o que quero dizer sobre a nossa relação, e o material – todas as pessoas que você encontra em Route One Usa, os artifícios de Doc’s Kingdom – vai passar para o segundo plano. Em primeiro plano, haverá as conversações intermináveis que tínhamos durante esses filmes, e que tinham implicações em todos os aspectos de nossa vida real. Sempre tive medo do que podemos chamar de síndrome Jonas Mekas. Pensei muito nisso vendo seu filme em Locarno. Era realmente um prazer, e o prazer consistia nisso, na síndrome Jonas Mekas, que significa: “Abraço toda a minha subjetividade”. Tinha decidido ir até o fim, ia dizer tudo. Mostrar tudo, pelo menos dessa vez. E depois, existem todas as formas de não mostrar nem o que achávamos que íamos mostrar. Eu tinha muita vontade de atingir um outro nível. Queria atingi-lo trabalhando 24 horas. Poderíamos também chamar isso de síndrome Chris Marker. Eu ia mergulhar completamente. Não responderia ao telefone, não voltaria pra casa, e veria o que aconteceria. O que aconteceu é Dear Doc. Robert Kramer


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De Glauber para Jirges Direção: André Ristum. 18min. 35mm 2005. Rio de Janeiro | São Paulo | Roma Exibição em DVD Classificação indicativa: 12 anos Por meio de trechos de cartas enviadas por Glauber Rocha ao seu amigo e colaborador Jirges Ristum, na metade dos efervescentes anos 70, descobrimos um pouco da relação de Glauber com a Itália e com o cinema, bem como sua perspectiva sobre as condições sóciopolítico-culturais brasileiras naquela época. O filme também traz um pouco da intimidade de Glauber, contida nas cartas ao amigo, que é reconstruída mediante escritos, filmes Super 8 antigos e poesias. Uma homenagem do diretor a seu pai, Jirges, e a Glauber Rocha, ambos falecidos nos primeiros anos da década de 80. FICHA TÉCNICA Companhias produtoras: Gullane Filmes, Latinamerica Entretenimento e Sombumbo Filmes Produção executiva: Caio Gullane e LG Tubaldini Jr. Produção: Caio Gullane, Fabiano Gullane, Lg Tubaldini Jr. Roteiro: André Ristum Fotografia: Toca Seabra e Vladan Radovic Som: Felype Quinto Arte: Guta Carvalho Montagem: Eryk Rocha Edição de som: Ricardo Reis e Miriam Biderman Música: Marcos Levy Elenco: Milhem Cortaz e Nicola Siri

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Desassossego Direção: Grupo do desassossego (Felipe Bragança e Marina Meliande (coord.) Karim Aïnouz, Marco Dutra, Juliana Rojas, Gustavo Bragança, Helvécio Marins Jr, Clarissa Campolina, Raphael Mesquita, Leonardo Levis, Ivo Lopes Araújo, Carolina Durão, Andrea Capella e Caetano Gotardo. 63 min. Digital 2010. Rio de Janeiro | Belo Horizonte | Ceará | São Paulo | Berlin Exibição em blu-ray Classificação indicativa: 14 anos Baseados em uma carta inspirada em um bilhete escrito por uma menina de 16 anos, 14 cineastas do Rio, de Minas, do Ceará e de São Paulo dirigiram os fragmentos de aventura, utopia e explosão reunidos neste filme. Terceira parte da trilogia Coração no fogo. FICHA TÉCNICA Companhia produtora: Duas Mariola, Teia, Blum Filmes, Alumbramento, Filmes do Caixote, Karim Ainouz, Felipe Bragança Produção executiva: Lara Frigotto Montagem: Marina Meliande

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Diário de uma busca Direção: Flavia Castro. 105 min. 2010. Rio de Janeiro Exibição em DVD Classificação indicativa: 10 anos

Outubro, 1984. Celso Castro, jornalista com uma longa história de militância de esquerda, é encontrado morto no apartamento de um suposto ex-oficial nazista, onde entrou à força. A polícia sustenta que se trata de um suicídio. O episódio, digno de um filme de suspense, é o ponto de partida de Flavia, filha de Celso e diretora do filme. É uma viagem no tempo e na geografia: o filme percorre os cenários do exílio familiar, dos ideais e do fracasso de um projeto político. As vozes imbricadas de Celso (de suas cartas) e de sua filha constroem um retrato íntimo de uma relação marcada pela história.


FICHA TÉCNICA Produção: Les Films du Poisson Tambellini Filmes e Flavia Castro Produtores associados: Yaël Fogiel e Laetitia Gonzalez Produção executiva: Estelle Fialon, Flavia Castro e Flavio Ramos Tambellini Roteiro: Flavia Castro Fotografia: Paulo Castiglioni Som: Valéria Ferro Montagem: Flavia Castro com a colaboração de Jordana Berg Edição de som/mixagem: Eric Rey Leitura das cartas: João Paulo M. Castro

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Carta da Sibéria| Lettre de Sibérie Direção e roteiro: Chris Marker 57 min. 35mm. 1957. França Gênero: Documental Exibição em 35mm Classificação indicativa: 12 anos “Escrevo-vos de um país longínquo. Chama-se Sibéria. Para a maioria de nós, ele não se parece com nada além de uma Guiana gelada e, para o general czarista Andreievitch, era ‘o maior terreno vago do mundo’. Felizmente há mais coisas entre o céu e a terra – sejam estes siberianos – do que sonharam todos os generais. Ao mesmo tempo que vos escrevo, sigo com os olhos a franja de um pequeno bosque de vidoeiros, e lembro-me que o nome dessa árvore, em russo, é uma palavra de amor: Biriosinka.” FICHA TÉCNICA Companhia produtora: Argos Films e Procinex Distribuidora: New Yorker Films

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Marangmotxíngmo Mïrang - das crianças Ikpeng para o mundo Direção: Kumaré Ikpeng, Karané Ikpeng e Natuyu Yuwipo Txicão 35 min. Digital. 2001. Xingú | Mato Grosso Exibição em DVD Classificação indicativa: livre Quatro crianças Ikpeng apresentam sua aldeia respondendo à videocarta das crianças da Sierra Maestra em Cuba. Com graça e leveza, elas mostram suas famílias, suas brincadeiras, suas festas, seu modo de vida. Curiosas em conhecer crianças de outras culturas, elas pedem para que respondam à sua videocarta. FICHA TÉCNICA Produção: Vídeo nas Aldeias Montagem: Mari Corrêa


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Mauro em Caiena Direção: Leonarno Mouramateus 18 min. Digital 2012. Ceará Exibição em blu-ray Classificação indicativa: 12 anos Admiro pra caramba essa capacidade, Mauro. De se transformar em outra coisa. Como um dinossauro ou uma lembrança. FICHA TÉCNICA Realização: Leonardo Mouramateus Roteiro e montagem: Leonardo Mouramateus e Salomão Santana Som: Leonardo Mouramateus, Lucas Coelho de Carvalho e Rodrigo Fernandes


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Notícias de casa| News from home Direção: Chantal Akerman. 90 min. 16mm 1977. França | Bélgica Exibição em 16mm Classificação indicativa: 12 anos Cartas da mãe de Akerman são lidas ao longo de uma série de planos elegantemente compostos da Nova Yorque de 1976, para onde a nossa realizadora e protagonista (que não se vê) se mudou. A inesquecível cápsula temporal de Akerman da cidade é também uma meditação deslumbrante acerca da alienação urbana e do desligamento familiar pessoal. FICHA TÉCNICA Companhia produtora: Paradise Films Roteiro: Chantal Akerman Fotografia: Babette Mangolte Som: Dominique Dalmasso e Larry Haas Montagem: Francine Sandberg

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Outras cartas ou o amor inventado

Direção: Leonor Noivo. 51 min. Digital 2012. Portugal Exibição em blu-ray Classificação indicativa: 16 anos Outras cartas ou o amor inventado parte da obra literária Novas cartas portuguesas, escrita em conjunto pelas Três Marias nos anos 70, como pretexto para um pequeno inventário cinematográfico, um documentário que cruza esse legado literário com diferentes situações, contextos e interlocutores; ligando material de arquivo do processo de tribunal (a que as autoras foram sujeitas quando o livro foi publicado) a uma procura muito pessoal e labiríntica sobre o amor.


FICHA TECHNICA Realização: Leonor Noivo Assistentes Realização: Isabel Dias Martins e Joana Cunha Ferreira Imagem: Leonor Noivo Som: Joana Pinho Neves Misturas de som: Elsa Ferreira FICHA TÉCNICA Música: António Pedro Noivo Realização: Leonor

Montagem: JoãodeDias, João Braz Isabel e Karen Dias Akerman Assistentes realização: Martins e Joana Cunha Ferreira Correcção de cor: Paulo Américo

Imagem: Leonor Noivo

Direcção de Produção: João Matos e Joana Ferreira

Som: Joana Pinho Neves

Produção: Joana Ferreira, Isabel Machado e Misturas Reeh de som: Elsa Ferreira Christine

Música: Antônio Pedro Montagem: João Dias, João Braz e Karen Akerman Correção de cor: Paulo Américo Direção de produção: João Matos e Joana Ferreira Produção: Joana Ferreira, Isabel Machado e Christine Reeh

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Querida mãe Direção: Patrícia Cornils

26min. Digital. 2010. São Paulo Exibição em DVD Classificação indicativa: 16 anos


FICHA TÉCNICA Direção: Patrícia Cornils Roteiro: Patricia Cornils e Tina Hardy Produção: Claudia Priscilla Produção de set: Rose Caetano e Marcelo Lacerda Fotografia: Julia Zakia Montagem: Tina Hardy Som: Lucas Gervilla Desenho de som: Livio Tragtenberg Arte: Leticia Capanema Realização: PaleoTV

Uma conversa entre cartas escritas por uma mãe e os sentimentos que provocam, 44 anos depois, em sua filha. Que não a conheceu.

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Saudações, cubanos! | Salut les Cubains Direção: Agnès Varda. 27 min. Digital 1963. Cuba | França Exibição em DVD Classificação indicativa: 16 anos Agnès Varda traz de Cuba 1.800 fotos em preto e branco e faz com elas um documentário didático e divertido. Fidel e os músicos, socialismo e chá-chá-chá. FICHA TÉCNICA Companhia produtora: Ciné Tamaris Produção: Agnès Varda Roteiro: Agnès Varda Fotografia: J. Marques, C. S. Olaf e Agnès Varda Montagem: Janine Verneau Música: Cantos afrocubanos, cha-cha-cha, órgano de Manzanillo e Benny Moré (tangos y boleros) Narrador: Michel Piccoli

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Tão longe

é aqui

Direção: Eliza Capai. 76 min. digital 2013. São Paulo | África Exibição em blu-ray Classificação indicativa: 10 anos A partir de memórias guardadas de uma longa viagem, uma carta é enviada para o futuro. Sozinha, longe de casa e às vésperas de completer 30 anos, uma brasileira parte em uma jornada pela África. Na carta para sua filha, ela conta dos encontros com mulheres que vivem em suas culturas e tempos. Um diário, um road movie e um convite a todas as pessoas que lideram seus próprios caminhos. FICHA TÉCNICA Roteiro: Daniel Augusto e Elisa Capai Produção: Eliza Capai Produção executiva: Clarissa Guarilha Coordenador de pós-produção: Julio Matos Fotografia: Eliza Capai Desenho Sonoro: Kira Pereira Som: Dolby SR 5.1 Idioma original: Português, Inglês, Francês e Espanhol Legendas: Português, Inglês e Espanhol Montagem: Eliza Capai, Eva Randolph (edt) Mixagem: Damião Lopes Ilustração: Juliana Scheid Design: Arthur Amaral


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Viajo porque preciso, volto

porque te amo Direção: Marcelo Gomes e Karim Aïnouz 75min. Digital. 2009 Exibição em DVD Classificação indicativa: 14 anos Recém-separado da mulher, o geólogo José Renato é enviado para realizar uma pesquisa de campo em que terá que atravessar todo o sertão nordestino. O objetivo é avaliar o possível percurso de um canal que será construído a partir do desvio das águas do único rio caudaloso da região. Para muitos dos habitantes, o canal será uma solução, uma possibilidade de futuro e esperança. Mas para aqueles que moram próximo ao novo canal, ele significa desapropriação, partida, perda. Muitos lugares por onde José Renato passa serão submersos; muitas famílias que ele encontra serão removidas. O geólogo começa a se identificar com o vazio, o abandono e o isolamento dos locais por onde passa. FICHA TÉCNICA Companhia produtora: Rec Produtores Associados e Daniela Capelato Produção: João Vieira Jr., Daniela Capelato Roteiro: Marcelo Gomes, Karim Aïnouz Fotografia: Heloísa Passos Montagem: Karen Harley Edição de som: Waldir Xavier Música: Chambaril Elenco: Irandhir Santos

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Para além das montanhas| Yama No Anata Direção: Aya Koretzky. 59 min. Digital 2011. Portugal | Japão Exibição em DVD Classificação indicativa: 16 anos “Submerjo nas paisagens do Mondego para onde vim morar com os meus pais em criança, deixando para trás Tóquio, a cidade onde nasci. Através da leitura de cartas que troquei com os amigos e a família que permaneceram no país, reflito sobre a nossa vinda para Portugal e relembro o passado na tentativa de reter a memória efêmera, numa viagem com os espíritos que permanecem comigo.” FICHA TÉCNICA Companhia produtora: Andar Filmes Produção executiva: Ariana Couvinha, Tita Guedes, Raquel Morte e Natália Alves Produção: Miguel Clara Vasconcelos Roteiro: Aya Koretzky Fotografia: Aya Koretzky Som: Aya Koretzky Montagem: Tomás Baltazar Edição de som: Pedro Góis Música: Aya Koretzky Elenco: Anuta Koretzky, Jiro Koretzky e Ayan Koretzky

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Ficha Técnica Idealização e curadoria | Rúbia Mércia Produção executiva e coord. de produção | Kennya Mendes Produção | Mirabilias Realização | Casa Gira Mundo Tráfego de cópias | Isabel Veiga, Kennya Mendes e Rúbia Mércia Identidade visual e arte | Clara Moreira Projeto gráfico | Zzui Ferreira Coordenação editorial | Rúbia Mércia Website | Criação | COPA estúdio criativo

Steffania Paola e Rodrigo Moreira Desenvolvimento | Raphael Ramos

Trailer | Elisa Mendes e

Gabriel Saavedra - Jardim Móvel

Vinhetas | Irene Bandeira, Caratapa filmes,

Vivi Rocha, Euzébio Zloccowick e Rúbia

Revisão de cópias | Rúbia Mércia Revisão de textos e catálogo | Rachel Ades Tradução de texto | Tatiana Monassa Assessoria de imprensa | Ana Claúdia Peres e Júlia Cassoti Estagiário de produção | Pedro Félix Registros fotovideográficos | Elisa Mendes Debatedores |Cezar Migliorin, Consuelo Lins,

Fred Benevides, Isaac Pipano, Juliano Gomes, Manoel Ricardo de Lima e Milena Travassos.

Textos | Cezar Migliorin, Consuelo Lins,

Fernanda Meireles, Fred Benevides, Isaac Pipano, Juliano Gomes, Manoel Ricardo, Milena Travassos e Philippe Dubois

Programação | Rúbia Mércia Colaboração e mediador | Juliano Gomes Comitê de seleção do concurso “Eu envio”|

Juliano Gomes e Rúbia Mércia


Agradecimentos Maria Vilacy Ferreira Mendes, Aline Portugal, Isabel Veiga, Bia Paes, Joel Pizzini, Felipe Ribeiro, Fabrício Walter, Fernanda Omelczuk, Siclinda Omelczuk, Mauro Luiz, Maria Luciene, Rômulo Anderson, Ana Paula Medeiros, Carol D’avila, Luiz Garcia, Isaac Pipano, Rafael Dupim, Luiz Giban, Consuelo Lins, Manoel Ricardo de Lima, Cezar Migliorin, Fernanda Meireles, Juliano Gomes, Philippe Dubois, Fred Benevides, Milena Travassos, Euzébio Zloccowick, Irene Bandeira, Vivi Rocha, Nataly Rocha, Ethel de Paula, Márcio Caetano, Lívia Guerra, Otávio Ortega, Victor Furtado, Anderson Silva, Natália Viana, Raisa Christina, Cláudia Pires, Natasha Faria, Ton Almeida, Lis Kogan, Michelle Pistolesi, Thomas Sparfel, Américo Santos, Nitrato Filmes, Miolo Produções Gráficas, Keja Ho Kramer, Lore Gablier / Notícias de casa (Paradise Films), Clementine Deblieck / Notícias de casa – Cinemateca da Bélgica (News from home), Camille Calcagno/ Carta da Sibéria - Tamasa distribution, Caratapa Produções, Escola Pública de Audiovisual da Vila das Artes, Ricardo Lisbôa (dj famoso) e Wanessa Malta (dj famosa).

Agradecimento especial à equipe e colaboradores – juntos conseguimos concretizar a mostra. Agradecimento a todos que enviaram seus filmes-carta através do concurso “Eu envio” – esses filmes também fazem parte da mostra.






www.mostradefilmescarta.com


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