Zona de Encontro - Volume 1 - Texturas - Org. Idylla Silmarovi

Zona de Encontro

Volume Um

Texturas

Org. Idylla Silmarovi

Zona de Encontro Volume Um Texturas

texturas

Texturas TexZona de Encontro

Volume Um - 2ª ED.

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Volume Um - 2ª ED.

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Volume Um - 2ª ED.

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Org. Idylla Silmarovi

Encontrar, restabelecer laços, construir outros, elaborar pensamentoprática-escrita Processos criativos que encruzilham no territóriocorpo-multicultural Nosso continente. Espaço.

Tempo. Mapa Nossa terra Elaboração de conteúdo, escrivinhança de vida, fazer artístico.

Arte, Memória e Ancestralidade regada à luta sangue e suor Hoje. Agora.

Nosso presente Trabalho Corpo-terra Raíz-forte Nossas ações transformadas em texto.

Zonas de Encontro Idylla Silmarovi

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09/ 12/ 43/ 78/ 91/ 131/ 158/ 183/ 202/ 204/

Apresentação _das Idealizadoras

1. Comida de Cerca _Zora Santos

2. Memória e Teatro _ Elisa Santana

3. Ginga, Mulher Negra e Produção _ Karú Torres

4. Espelhos e Representatividades _Brisa Alkimin

5. Ensino do teatro, Encruzilhadas poéticas _Eneida Baraúna

6. [Po]éticas da [re]existência _Nina Caetano

˜ Ka’ok - Mulheres Fortes 7. Un _Xoeni Maxakani

De objeto para sujeitas _Juhlia Santos

Texto dito por Avelin Buniacá Kambiwá

_para o espetáculo GLÓRIA, do Coletivo Toda Deseo

Zona de Encontro

Apresentação Apresentação

Volume Um

Texturas

O que nós artistas, produtoras técnicas, educadoras, polÍticas, indígenas, kilombolas, mães e LGBTQIA+ do universo feminino produzimos enquanto conhecimento no campo da arte? Como transformamos nossos saberes em fazeres?

Como nossas práticas se conectam? Qual a importância da nossa memória? Como nos alinhar em nossas diferenças e atravessamentos? Como nos fortalecer e criar redes?

nesta sociedade. A partir de conversas e práticas que permeiam as representatividades, as memórias, e os notórios saberes e re-existências femininas, feministas e transfeministas é instaurado um espaço aberto e democrático de debate ético e estético acerca das artes.

Zona de Encontro é um projeto de encontros e de pesquisa que possibilita a realização de processos criativos para produção de conhecimento e de memória. Surge com a proposta de facilitar encontros protagonizados por todas aquelas que se reconhecem nas mulheridades, para trocas e registros de vivências artísticas, encruzilhando os processos criativos em artes às interfaces de invisibilização histórica étnica, racista, machista, misógina e LBTQIA+fóbica que vivemos pelo fato de estarmos no universo feminino e das artes,

O que nós artistas, produtoras técnicas, educadoras, polÍticas,

Pensar nossas interseccionalidades e como somos afetadas, atravessadas, acumuladas umas pelas outras em nossas diferenças é uma forma de lutar e de sobreviver. Uma possibilidade de avançar em nosso devir político e “levantar a poeira” reivindicando espaço, não apenas como corpos femininos, mas sobretudo enquanto artistas, formadoras de opinião e construtoras de pensamento. Isso é revolucionário.

Reivindicamos a presença dos corpos femininos em suas diversidades, o resgate da nossa memória coletiva a partir da arte e não apenas nela.

Reivindicamos nossa memória por considerar fundamentalmente importante para nós

nesta sociedade. A partir de conversas e práticas que permeiam

A palavra texturas vem como diretriz desta primeira edição, tendo em vista a importância de conversarmos sobre aquilo que emerge das várias camadas e universos que pertencemos. Textura é aquilo que sentimos ao tocar. Textura de texto, de linha, de palavra, imagem, suporte, pele.

Tem relação com o que nos toca e como toca, com as vozes que ressoam e que viram outra coisa.

das Idealizadoras

rência da Juventude de Belo Horizonte (CRJ-BH), espaço aberto, público, democrático e diverso da cidade.

Durante uma semana aconteceu uma série de encontros temáticos conduzidos por mulheres da cena artística e política mineira - Zora Santos, Elisa Santana, Karú Torres, Brisa Alkmin, Eneida Baraúna, Nina Caetano e Xoeni Maxakani - a quem chamamos de mediadoras. Tal série foi regida por diferentes propostas metodológicas, como rodas de conversa, mini-oficinas, realização de performances, exibição de filmes e preparo de alimentos, dispositivos para produção do conteúdo apresentado nesta publicação.

conta com textos de duas colaboradoras: Juhlia Santos e Avelin Buniacá Kambiwá. Daí surge a Revista Zona de Encontro #1 - Texturas. Uma revista produzida de forma aberta, colaborativa e coletiva, que conta com o protagonismo feminino, feminista e transfeminista na criação de textualidades para publicação, sejam elas palavras, textos, imagens, manifestos, movimentos, dentre outras formas de construção e compartilhamento dos saberes. Desse modo, devolvemos para a cidade, para o público, e demais pessoas interessadas essa Revista: um tanto manifesto, um tanto filosofia, um tanto mandinga, um tanto comida e canto, memória de tantas mulheres, performance escrita de leitura em ação.

A Zona de Encontro #1 - Texturas teve sua etapa de encontros e residências em junho de 2019, em parceria com o Centro de Refe-

As palavras, frases e sentidos compartilhados nesta revista tem sua gênese na conversa falada, na oralidade e na memória. Parte do material é fruto da transcrição dos encontros gravados em áudio, outra parte são poesias, histórias, canções, cosmovisões e dramaturgias escritas ou apresentadas pelas mediadoras. A publicação também

conhecermos a própria história, partindo dos afetos para as políti-

rência da Juventude de Belo Horizonte (CRJ-BH), espaço aberto,

Experimentação dos limites da publicação de oralidades. Corpo-matriz-como-sul.

Texturas é um convite para provar sua próxima página. Conhecimento bordado, alimento. Desfrute!

conta com textos de duas colaboradoras: Juhlia Santos e Avelin

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das Idealizadoras

conhecermos a própria história, partindo dos afetos para as políticas, da ancestralidade para o agora. Uma Zona que alinha conhecimentos e constrói texturas, a partir das diferenças, compreendendo que nossas narrativas e referências não precisam mais ser as do homem cis-hétero branco europeu, mas sendo umas referências vivas das outras, descolonizando e despatriarcalizando a criação, a escrita e as relações.

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01/ 01/ Eu sempre penso uma coisa muito perigosa e que é bom que eu não saia dizendo por aí.

Eu descobri que gastronomia não existe, muito menos comida.

A verdade é que um manjar nele mesmo não diz nada, o que diz é o pacto estabelecido entre quem faz e quem degusta.

Não basta fazer um prato maravilhoso para que ele realmente exista, é preciso que alguém o aprecie, do contrário é um amontoado de ingredientes cuidadosamente preparados que vai se deteriorar rapidinho e virar no máximo um bom adubo.

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Cansanção é daquelas comidas que o povo que

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inventa a pรณlvora todos os dias chama de PANC.

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Quando existe essa aliança a mesa está posta, quando esse tratado se quebra não existe mais nada, mesmo usando os melhores produtos.

A gastronomia é uma roupa de grife que se veste quando a intenção é impressionar, com a desculpa de matar a fome, saciar o paladar e manter a saúde. Ninguém está nu porque fez sua própria veste.

Se pensarmos em civilizações que só co-

mem iguarias in natura e vivem plenamente saudáveis por anos poderemos compreender que o termo gastronomia é uma invenção da modernidade, para movimentar um mercado que nem sempre é benéfico.

Algumas pessoas lançam mão de matéria prima precária e elaboram uma boa comida. Outros usam fantasia (condimentos) em excesso e chegam a anular quase todos os sabores. Existem os que jogam fora o que nutre, pior são

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os que exageram e caem em desarmonia, quem pode consome produtos caros, poucos elaboram arte culinária com especiarias raras e até em extinção. E os que nunca provam? Ainda existem as pessoas que só se alimentam com o que é feito por outros. A maioria não sabe o que consome, os que sabem, fingem que não. E tem quem nunca percebeu que pode existir um prato para cada ocasião. É

brilhante quem se ajeita bem com pouca coisa, mas há também quem se enrole num emaranhado de informações gastronômicas importadas e confundem tudo que a cultura de um povo levou anos para elaborar. E você se encanta com sabores que nem sempre agradam o seu paladar, formado há anos por experiências culturais muitas vezes preservadas com muita dificuldade, em nome de sei lá o que!?

A m

2.

Aquela mulher

Ricard

1.

Ricardo Aleixo

Aquela mulher que devora a própria ninhada.

Um por um, todos: para livrá-los do pior.

Aquela mulher que conta a mesma lendalenga para qualquer pessoa de fora que chegue em Jkghçsd, numa noite de raios e trovões, à procura de um prato de sopa, lençóis limpos e paz.

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quem vai consumir, o primeiro ingrediente deve ser responsabilidade. Se encantar por ofertas coloridas e industrializadas e de fácil preparo, nem sempre é a melhor escolha para alimentar quem se ama.

Aí eu cometi uma receita: Já que a função de quem está no fogão é manter a saúde de

Depois, pensar em explosões no céu da boca que acariciem

Talvez, somente talvez se olharmos com mais cuidado e carinho uns pros outros, consigamos alcançar o que acredito ser muito maior do que nos é imposto como gastronomia.

Aquela mulher. Aquela que fala pela voz de outras. Aquela mulher todas e nenhuma, talvez você.

8.

Aquela mulher que certa noite, nua em pelo, fez o mar ficar plano e andou sobre ele, de um lado para outro, até desaparecer sem jamais ser vista outra vez.

9.

Aquela mulher, giganta, que faz o que quer porque é quem é. Aquela menina que acredita ser uma mulher-giganta.

no verão ou uma cumbuca de caldo fumegante no inverno. Uma boa comida precisa alimentar a alma (não por acaso a canja de galinha cura qualquer perrengue).

7.

Aquela mulher que não existe. Sua respiração forte, contínua, pausada, que faz navios se perderem no meio do mar oceano.

6.

4.

Aquela mulher que diz ter escapado de 3 ou 4 fogueiras, só pela força dos versos que entoou, no momento exato, olhando para dentro até alcançar o olhar da pequena mulher que ela esconde, há séculos, no ventre.

a necessidade diária do ser humano de se sentir pleno e de ter prazer à mesa. Pensar em cada pessoa que vai se deliciar com uma partícula de ingrediente que ficou durante horas em suas mãos. Suas vivências, suas ansiedades, suas expectativas de momentos prazerosos.

Nada melhor que um prato de frutas frescas

5.

3.

Aquela mulher quase. A menor de todas - menos um pouco e seria invisível. A que nunca não morre.

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Aquela mulher que fala tão perto do ouvido da pessoa com quem conversa, numa língua que só tem vogais.

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Aquela mulher que não existe. Que ainda bem que não existe.

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Aquela mulher que tem o dom de ouvir as pedras do caminho desde o porto até o lugar onde ela, mais uma vez, se transformará em planta.

22.

Aquela mulher. Os olhos dela, que não se gastam com pequenezas como as árvores frutíferas, os prováveis suicidas, as intermináveis guerras no país vizinho e o sol de cada dia. Ela inteira.

23.

Aquela mulher sem origem, protegida pelos bichos noturnos, que caminham sempre ao lado e atrás dela. Em silêncio. Lenta como um giro completo da lua, no rumo da trilha de óleos que ela mesmo espalhou pelo chão quando passou por aqui da outra vez.

Aquela mulher que já não lembro de que jeito veio. Isso, aquela.

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Aquela mulher que cega toda a paisagem em torno dela assim que faz nascer mais um dia. Aquela que ninguém nunca vê de onde vem. Aquela.

21.

19.

Aquela mulher fera.

Olhos de fera que chispam no breu, mas qual fera? A dona de tudo que medra no breu.

Aquela mulher, a mais velha de todas, que ainda não nasceu. Não a outra.

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Aquela mulher abismo.

Sua fala em abismo. O abismo que se abre no entendimento de quem a ouve sem estar devidamente preparado.

Aquela mulher, qualquer, que não ia a lugar algum só para que não reparassem em sua sombra.

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11.

Aquela mulher, a de ontem. A de já nem sei quanto tempo antes da primeira. A próxima.

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Aquela mulher que pare nuvens. E que as desfaz com um sopro bem leve, assim que elas ganham forma mais ou menos definida.

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Aquela mulher que só para mim tinha a voz que ninguém mais tem.

Voz de tarde morna, água doce e trilha de nuvens entre nuvens, garras, vozes, folhagem, desvios para onde deveria ser o céu.

Aquela voz de mulher.

Aquela mulher, a única, em toda a aldeia, capaz de decifrar a língua das serpentes. E a cantar com elas sua estranha bela música sem sílabas.

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Aquela mulher que não vejo como poderia ser outra. Que está, ao que tudo indica, condenada a ser para sempre ela mesma, em constante mudança, tão inesperada quanto dentesde-leão que brotem na rachadura de um túmulo.

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Aquela mulher que o marido, os filhos e os vizinhos sabem que, aconteça o que acontecer, voltará para casa hoje à noite. Porque essa mulher, aquela, acredita, no fundo escuro e quente do seu coração, que viver junto com quem espera por ela todo santo dia é mil vezes melhor do que, digamos, tomar por distração outros rumos e acabar perdida, alheia, confusa, incapaz de pergunta ou resposta, no mapa das ruas do puro inferno.

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Vão cozinhar!

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E vão cozinhar então, né?

Vão cozinhar!

O cardápio de hoje é Urtiga. Sim, Cansanção era Urtiga, eu digo era porque está em extinção. Urtiga que serve de cerca viva e bicho nenhum entra na horta porque não é bobo e não quer coçar.

Cansanção é daquelas comidas que o povo que inventa a pólvora, todos os dias chama de PANC - produto alimentício não convencional.

Não convencional pra quem, cara pálida?

Gente preta come comida da cerca todo dia!

A gente come, Bertalha, Maria Gondó, Broto de Samambaia, Picão, Folhas de Assa Peixe empanadas e fritas sempre, gente preta principalmente aqui em Minas sempre comeu comida da beira da cerca e é isso que vamos comer hoje.

Angú de fubá com leite, sem sal e com galhinho de alecrim pra dar um cheiro de casa de vó. Estamos fazendo o cansanção com carne defumada.

Parece aquela história:

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- Esta é uma receita de família.

- Que bom, de qual família? Da que prepara ou da que devora?

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Mulheres negras sempre tiveram que usar muito a criatividade pra alimentar seus filhos de forma saudável. Não existe escassez quando se preserva o aprendizado.

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A simplicidade e a sofisticação da comida de minha mãe eram comoventes. Tínhamos horta em casa e qualquer cantinho servia pra plantar. Brotos de Batata Doce e Abóbora eram refogados ligeiramente e servidos com Angú de Milho Verde e Frango. Flores de Abóbora empanadas.

Saladas de folhas de Beterraba e Cenoura.

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Tanchagem lá em casa se chamava Transagem. Era equivalente a Própolis nos anos 80.

Lembram do Vidrex, no filme Casamento Grego? Era que nem.

Dor de ouvido, garganta inflamada, infecção intestinal, problema urinário e por aí vai. Me lembro que pra garganta, que era o meu caso, fazia-se o chá com a raiz e as folhas novinhas eram refogadas na manteiga de garrafa.

Dia 27 de Setembro lá em casa era oficialmente, dia das crianças, menos por religiosidade e mais por tradição. A guloseima sempre era a mesma, a famosa bala de coco da minha mãe. É uma receita simples mas era a marca do Cosme e Damião.

O leite de coco era feito com o coco cortado em pedacinhos e colocado no liquidificador com água quente.

Depois de triturado, passava-se em um coador de pano de saco alvejado feito só pra essa finalidade. Esse leite ia ao fogo com açúcar e a magia do ponto certo só minha mãe sabia.

Salve Cosme e Damião!

Salve as boas lembranças!

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Ela despejava essa calda grossa em uma pedra de mármore, branquinha, que fora isso só era usada pra fazer macarrão. E nesse momento minha mãe roubava a cena.

Juntava em suas mãos a calda grossa marrom, ainda quente e começava a bater, passando de uma mão pra outra e nós com os olhos arregalados esperando a mágica da calda mudar de cor. Quando ficava branquinha, minha mãe fazia várias “cobrinhas” que cobriam a mesa toda.

Daí com as tesouras em punho as tias mais velhas cortavam as balas, todas do mesmo tamanho.

Depois toda a meninada ajudava a embalar em papéis coloridos e guardar em caixas até o dia da festa.

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Pão de sal é coisa recente, na minha infância o café da manhã, que não era café porque criança tomava era chá de folhas, várias variadas, alfavaca (aquela que a semente tempera saladas que é uma beleza), erva cidreira, hortelã, folhas de laranja, casca de limão com gengibre. E pra acompanhar, inhame ou mandioca com manteiga e mel, quentinho.

Vitamina de cará cozido batido no liquidificador com leite e rapadura.

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Variava também com a broa de fubá, só que lá em casa tinha uma peculiaridade: O torresmo era guardado em latas de 5k usadas originalmente pra transportar manteiga, mergulhados em banha. No final do mês quando a banha estava acabando e no fundo da lata só ficava uma borra de torresmo, minha mãe não tinha dúvidas, metia a concha no fundo e

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Adoro abóbora. colocava na broa, no lugar da manteiga. A broa ficava doce, com queijo e raspas de torresmo.

Recentemente criei uma broa salgada com ervas e torresmo que chamo de broa Maria Queiroz, em homenagem a minha mãe.

De todas as formas: purê, caldo com gengibre, refogada com carne de sol, recheada e por aí vai, doce de abóbora então...

Meu pai sempre me contou que em sua infância, (ele era sobrevivente do extinto instituto joão pinheiro, uma instituição que nos anos trinta se “empenhava” muito pra “dar um jeito” em meninos negros), eles colhiam abóboras e recheavam com leite e rapadura. Faziam um buraco, onde colocavam fogo em pedras até ficarem “vermelhas”.

Daí enterravam as abóboras e no final da tarde comiam.

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Tudo devidamente misturado em bacias de alumĂ­nio

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o plĂĄstico ainda nĂŁo tinha vencido a guerra.

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Adoro falar de jiló.

Desenvolvi uma receita, em homenagem a ele, que costuma ser o carro chefe dos poucos eventos que ainda faço.

Sabe as mini abóboras?

Pois é.

Acho que esse legume caiu na boca do povo de uma forma muito maldosa e equivocada.

Depois de bem higienizadas com escova, faço uma “tampa” na parte do cabinho e reservo.

Com uma colher retiro toda a semente.

Lá em casa, enquanto os figos cresciam, faziase um doce maravilhoso com jiló.

Coloco em uma panela com água e um pouco de açúcar (as “tampas” junto) e deixo ferver por uns cinco minuto.

Escorro e deixo esfriar. À parte, bato no liquidificador uma receita de pudim de leite condensado onde acrescento coco fresco ralado.

Passo açúcar mascavo por dentro de cada abóbora, vai se transformar na calda.

Minha mãe cortava a ponta do cabinho e marcava com a faca, bem afiada, como se fosse uma cruz.

Em seguida despejo o pudim e coloco de novo a tampinha da abóbora.

Coloco todas em um tabuleiro e cubro com papel laminado.

Levo ao forno por mais ou menos meia hora, ou até o pudim assar.

O ideal é servir gelado.

Pão e macarrão minha mãe sempre fez em casa.

No caso do macarrão o fantástico ficava por conta dos molhos.

O que mais fazia sucesso era o de feijão roxinho (que nunca mais vi), batido no liquidificador e refogado com bastante alho e cebola, bem temperado com pimenta e flores de alfavaca.

O queijo era o Minas curado e ralado fartamente sobre cada prato.

Aferventava por uns cinco minutos e a seguir deixava de molho por quatro dias, trocando a água duas vezes por dia.

Com açúcar e água ela fazia uma calda (tendo o cuidado de ir “clareando”, descartando a espuma que se formava).

Cravo, canela e os jilós ferviam nessa calda por aproximadamente uns dez minutos.

Depois de frio o doce era colocado em compoteiras lindas.

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Depois veio o hambúrguer, o cachorro quente, o katchup, a mostarda e os natais nunca mais foram os mesmos.

Lembro-me muito bem quando a maionese virou moda por aqui.

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A tal da maionese entrou lá em casa junto com o pé palito nos móveis e o Cuba libre.

As festas e encontros já não eram os mesmos.

As tias velhas que antes se reuniam para cozinhar ao som de Cascatinha e Inhana, agora ouviam Nat King Cole.

O cheiro da costelinha cozinhando foi substituído por aroma de batata que quando cozinha produz no máximo cheiro de terra mal molhada.

Alguém sempre se sentava em algum canto do quintal munido de uma travessa de louça com algumas gemas de ovos crus e cozidos, uma lata de óleo de soja ( a embalagem eram latas cilíndricas) e uma xícara de vinagre. Durante horas com a ajuda de um garfo mexia até a vasilha se encher de um creme amarelado.

Creme esse que era temperado com sal, pimenta do reino e muita salsa.

Nesta altura as tias já tinham picado montes de batatas, cenouras, vagens e cebolas. Tudo devidamente misturado em bacias de alumínio, o plástico ainda não tinha vencido a guerra.

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Daí começava a cerimonia da finalização da internacional maionese.

Tia Terezinha, muito baixinha mas com toda a perícia do preparo, aprendida com a patroa viajada, subia num banco munida de uma colher de pau enorme e misturava delicadamente a grande novidade.

Tempero aprovado era hora de servir acompanhada de uma farofa riquíssima e nacos gêneros de pernil assado.

E a festa rolava até a madrugada ao som de Bienvenido Granda é claro.

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mória eatro Só desmemória quem tem memória Não falo da desmemória de quem vaga Mas de quem voa De quem pousa De quem pausa

Da desmemória do deslugar A desmemória de quem re-vê Re-conhece Re-forma Re-nomeia Retorna Não falo da desmemória morta

Mem e Te Elisa Santana

Mas daquela de quem Ao se re-ver Ressuscita.

Então, vamos levantar?

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Vou começar aqui primeiro. Coluna ereta.

Relaxa testa sobrancelha, maçã do rosto, pálpebras, narinas, queixo, orelhas. Vamos visitar os pés, deixar que eles fiquem paralelos, perceber se eles estão de acordo com a largura do quadril e do ombro.

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Bom, todo esse encontro é sobre memória.

Tenho 62 anos e quase 43 anos de cena. 43 anos de teatro. Comecei aos 19 anos e aí como é que é isso, né?

43 anos. E o que aconteceu desde que eu vim para Belo Horizonte...

Eu sou de Santa Luzia, nascida e criada lá.

Pés são raízes pra poder segurar essa árvore.

Inspirar pelas narinas e soltar pelas narinas.

Brincar que seu corpo é um grande balão.

Aproveitar e abrir os ouvidos. Atentar para os sons mecânicos, os humanos se houver, os naturais se houver. Escutem o som grave, o agudo, o quê ou quem o produz? De onde será que ele vem? De qual direção? Sempre inspirando e soltando pelas narinas. Aos poucos vamos abrir os olhos e... voltando a se assentar no chão.

O teatro é feito de memória, aliás não existe nada sem memória.

A nossa identidade, a identidade do teatro é memória. Eu aprendi assim, teatro é uma coisa do homem. Os bichos, as árvores cantam e dançam, assim como nós também, mas; ouvir, pensar e falar é o movimento do homem, e o teatro é isso, por isso ele é considerado uma arte eminentemente humana.

Aqui hoje eu pensei em contar um pouco da minha história que visceralmente está ligada ao teatro e a parte do teatro de Belo Horizonte.

Acho que o teatro começou na minha vida quando eu tinha 9 anos de idade.

A televisão chegou em minha casa no início dos anos 60, eu menina assistia ao primeiro programa “A Praça é Nossa”, e quando eu chegava na escola imitava os personagens para os meus amigos e eles morriam de rir.

Descobri cedo que aquela era uma maneira de eu ser vista, de eu tentar ser amada, por que na minha casa éramos 12 filhos, e eu

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era a oitava, imagina, quem tinha tempo pra mim? Então, de certa forma, essa era uma maneira de eu deixar de ser invisível. Me lembro também que aos 9 anos tive um contato mais intenso com a poesia, na terceira série do fundamental fundava-se o” Clube de Leitura”, uma atividade que se escolhia como patrono um poeta e você ia passar o ano, durante as seções deste clube, lendo ou declamando

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poesias. Isto na frente de todo mundo, decorado ou não. E aí era um clube mesmo, tinha presidente, tesoureiro, bibliotecária, secretário, vice- secretário, e todo final de mês a gente se reunia para falar poemas.

O primeiro clube de leitura tinha que ser poemas do patrono, me lembro que nosso primeiro patrono foi o Castro Alves. No decorrer do ano podiam ser poemas do poeta que você quisesse. Se você visse uma poesia bonita e queria ler, podia. Tínhamos dentro da pasta um livro de poesia que

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se chamava “Poesia na Escola”. Aquilo era uma festa para mim. Eu acho que essas coisas foram me chamando e alimentando o gosto que eu fui pegando pelas palavras. No inicinho da quinta série do fundamental, meu professor de português pediu pra abrir o livro de leitura na página cinco, sei lá. Era um soneto.

Ele perguntou quem queria ler, eu levantei a mão e quando eu acabei de ler ele me disse: “Menina, você devia fazer artes dramáticas!”. Acho que aí começou um vaticínio...rsrsrs… Poesia e teatro, tudo a ver.

Santa Luzia na minha adolescência se tornou uma cidade muito efervescente. Aos 15 anos assisti minha primeira peça, que foi: “Seis personagens à procura de um autor” do Pirandello.

Não entendi nada da montagem, mas toda aquela movimentação, os atores, me tocou de certa forma. Achei lindo...rsrs... Daí eu comecei a falar que eu ia ser atriz. E um dia conversando com um amigo ele virou para mim e falou assim: “Olha, vai lá no Palácio das Artes e procura Márcio Machado, fala para ele que eu falei para você ir lá, e que você quer fazer teatro com ele”.

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Eu passei Óleo de Peroba na cara cheguei e aí começa uma história.

Era 77, parte do Palácio das Artes estava em construção. Ele foi construído em 70 e era só o palco, platéia, e as dependências anteriores. Quando eu cheguei as salas do fundo estavam em construção.

Eu me lembro que subi uma grande escadaria, cheguei em uma sala que tinha um senhor na máquina de escrever, no chão batido, ainda no cimento grosso, e eu falei: “Eu queria falar com o Senhor Márcio Machado”. Aí ele já olhou pra mim meio rindo e me disse que era ele mesmo. Aí eu falei: “Eu quero fazer

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teatro com cê”. Ele me olhou, riu mais um pouquinho, e perguntou: “E aí minha querida, você quer fazer teatro por quê?”. Contei minha história desde menina e falei que quem tinha me mandado era um amigo, que era amigo dele. Ele me disse: “olha, vai abrir uma nova turma no TESC” – Teatro Escola - Foi uma das primeiras escolas livres de teatro em Belo Horizonte e funcionava embaixo do Teatro Marília, na avenida Alfredo Balena. Ele me contou que era professor de lá e que uma turma ia abrir no ano seguinte, e era pra eu vir.

Era Dezembro de 76.

Uma coisa que eu me lembro era de uma Belo Horizonte de ruas muito sujas, o Parque Municipal não

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tinha grades, então eu passava por dentro do Parque, vinda da Praça da Estação, ia para o TESC. Eu fiz o primeiro semestre no TESC com Márcio Machado, Priscila Freire... Lembro que no final do primeiro semestre a gente montou uma tragédia grega, Medéia. Ítalo Mudado, meu professor, era maravilhoso, mas foi a primeira vez que eu sofri um certo incômodo, e uma certa menos valia, já que por ser considerada uma boa aluna ficava no coro, o que para gente, era pouco. Na época achei que podia ser só ego meu. Mais tarde cheguei a considerar que talvez eu não tivesse feito nenhum papel relevante por ser negra.

Naquele tempo não

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havia quase nenhum negro em cena, muito menos fazendo tragédia grega e com bons papéis.

Aos 19 anos, tive o primeiro contato com minha cor. Eu não sabia que eu era negra.

Meu pai era descendente de índios, um caboclão, e minha mãe uma Sarará, descendente de pretos e branco. Por eu viver bem, ter estrutura, eu não era vista como negra, minha família não se considerava negra, e era aceita em todos os meios sem que ninguém me desconsiderasse pela minha cor.

Isto nunca tinha sido problema para mim.

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Meu pai era um homem de bem e de posses.

Até hoje, preto rico sofre menos preconceito. Então, eu achava que eu era da “cor morena”...rsrs... Santa Luzia se dividia em Rua Direita e Rua de Trás.

Na Rua Direita ficava a elite, eu morava (a casa da minha mãe ainda está lá) exatamente numa confluência entre o bairro chamado São Geraldo, bairro negro, e a rua direita, onde sempre ficaram as pessoas de maior poder aquisitivo, obviamente brancas. Naquela rua, as casas tinham eira e beira. Escolhi subir a rua direita. Naquele tempo, interiorana e ingênua, eu adivinhava, mas não percebia com clareza as perversidades sociais. Passei grande parte da minha infância em quintais e todos os meus amigos estudavam no mesmo grupo escolar, junto comigo. Eu percebia a pobreza, mas não percebia como ela era produzida, e nem que ela tinha cor. Não aprendi com meu pai, com minha mãe a me segregar ou segregar

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ninguém pela cor, mas pela moral e pelo caráter, e o teatro que fiz, e faço, me ajudou a entender que meu lugar é em todo lugar.

E por que eu tô fazendo o Coro?

Porque na tragédia grega não tinha negro.

No segundo semestre de 77 eu fui fazer teatro no Palácio das Artes, na primeira turma que abriu. Ainda não era o CEFAR. Como professores encontrei Alcione Araújo, Paulo César Bicalho, Roberto Fabel, Márcio Machado...

Minhas primeiras peças profissionais foram o “Mágico de Oz”, direção de Márcio Machado, e “Viva o Cordão Encarnado”, com um diretor do RJ, chamado Luiz Mendonça, com produção do Palácio.

Foi também a época em que eu comecei a

me aproximar de João das Neves, que mais tarde seria um dos meus caros mestres, amigo e companheiro de questionamentos e viagens teatrais, através da montagem da peça infantil, de sua autoria, intitulada: “A Lenda do Vale da Lua”, que eu e amigos do curso montamos, em 78.

A reviravolta na minha vida se deu em 1980, quando eu fiz uma peça chamada “Dona Beja”, escrita sob encomenda para o Palácio das Artes, por Mário Prata, e dirigida por Paulo César Bicalho.

Foi minha primeira peça nua. Imagina isso em 1980? Foi uma coisa.

Foi “uma coisa” para mim, para minha família, para a cidade, tanto de Santa Luzia, “porque a filha de Duca tá nua no teatro”, - e correu todo mundo pra ver - quanto

para Belo Horizonte, e pro Palácio das Artes, pelo processo e ousadia da montagem.

Já naquela época, influenciada por uma pintura do Ticiano, eu queria trabalhar o sacro e o profano em cena.

Para mim era importante para eu mesma poder entender minha nudez cênica. Mas a maioria da platéia ficou só com a “menina bonita nua”. Eu vinha de uma família mineira, patriarcal, católica, machista, completamente estruturada.

Imagino que minha mãe deve ter se perguntado: “A quem será que esta menina puxou, gente?” ...rs. A história da nudez no teatro sempre incomodou, principalmente em Minas. Eu comecei a fazer teatro ainda em um tempo em que uma mulher que fazia teatro era considerada puta, vadia, só por estar em cena. Imagina ir para a cena nua?

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Nesta época, acho que a maioria das pessoas me viam como a “morena”, a “mulata”, ou a “neguinha” boa de comer, não é assim?

Fui uma das primeiras atrizes, principalmente negra, a ficar, nua em cena. A partir daí continuei no teatro por pura coragem e porque dois dos meu irmãos, Maya e José Carlos Santana, na época jornalistas, me deram apoio em casa.

No início da década de 80, o teatro não era subvencionado e quase inexistente como profissão. Não havia leis de fomento à cultura. O

Memória e Teatro

sindicato ainda era uma associação chamada APATEDEMG, e da qual cheguei a fazer parte. O presidente era o Javert Monteiro e toda a papelada da associação ficava numa caixa de sapato debaixo da cama dele...rsrs.

Não raro, as pessoas trabalhavam de dia e faziam teatro a noite. Eu mesma fui professora primária durante uns 8 anos, mas não seguidamente, quando a coisa apertava de grana, voltava para a sala de aula.

Em 80 eu já morava fora de casa e já me sustentava, não dava para viver sempre de teatro.

Em 81 eu fiz “A história é uma história”, escrita por Millôr Fernandes,, em 76, com direção de José Roberto Alvarenga. Eu fazia uma personagem que logo que eu entrava em cena falava pras pessoas:

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“a história é como um idiota, se repete, se repete, se repete”.

Era Millôr, esfregando na nossa cara de maneira lúdica, crítica e irônica a nossa falta de memória enquanto nação, e falando do homem como um animal inviável. E aí eu começo, ainda que meio inconsciente, a me interessar pelo destino humano neste mundo de meu Deus. E, ao contrário de Millôr, por ingenuidade ou por costume vindo de não sei onde, passei a acreditar no humano como uma possibilidade de um ser menos imprestável... rsrs.Tá difícil, mas não desisti ainda não... rsrs. A década de 80 foi a década do surgimento dos grupos e do Movimento de Teatro em Belo Horizonte. No teatro, trabalhei com Carmém Paternostro, fazendo “Lulu e a Caixa de Pandora”. Tive o prazer de fazer duas peças seguidas com Wilsinho de Oliveira: “A Lira dos 20 anos”, com a qual ganhei meu

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primeiro prêmio de atriz revelação, e também “Besame Mucho”. Uma outra guinada acontece na minha vida profissional quando vi a montagem de “Grande Sertão Veredas”, da Sonho & Drama, dirigida por Carlos Rocha – outro dos meus mestres. Foi a primeira peça que mexeu comigo, depois de ter visto a inesquecível “Macunaíma”, dirigida por Antunes Filho, em 79. A linguagem cênica saia do realismo e mergulhava numa forma de representar sem representar dos atores, personagens metáforas muito maiores que eles mesmos, aquela nudez literal e metafórica de Cida, o trabalho dos atores, o cenário minimalista, mas que nos levava a milhões de lugares. Para mim, até hoje, ninguém transportou o sertão de Guimarães Rosa para o palco com a magistralidade que eu vi a Sonho & Drama fazer; a direção sobre o trabalho, o trabalho dos atores, a cenografia, o texto, a iluminação, tudo era chocante para o público comum e para atores que queriam dizer mais em cena, e que acreditavam que o teatro era um meio de transforma-

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ção do ator, do público e, conseqüentemente, da sociedade sobre a qual ele e o público estão inseridos. No ano de 86 pedi pra entrar pro grupo. Fiquei lá 28 anos, em um casamento que considerei mais que bem sucedido. A sonho & Drama, através de Carlos Rocha, foi o primeiro grupo a trabalhar de maneira sistematizada o corpo e voz para o ator. Carlão

era um diretor metódico e incansável, na busca de uma linguagem cênica que traduzisse melhor o que queríamos dizer em cena. Em 86 fiz a peça “Antígona”, de Sófocles, onde fazia a personagem Ismênia e uma entidade que representava a Guerra.

Ela tinha na mão um tridente de Exu, uma

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espada de Iansã, uma máscara de couro que tinha os chifres e um falo de cobre. Tinha também os seios nus.

Era uma entidade belíssima e arquetipal. Com os papéis em Antígona ganhei o prêmio de atriz coadjuvante. A última peça dirigida por Carlão com o grupo Sonho & Drama foi a peça infantil ”Vida de cachorro”, de Ivana Andrés.

Cria-se o FIT, e começa também o fomento das leis de incentivo à cultura, mas, antes que elas existissem, nós trocamos nove espetáculos para apresentar nessas regionais por uma grana pra gente montar “A casa do girassol vermelho”. Na Sonho & Drama, no final dos anos 80, princípio de 90 os homens se afastam e as mulheres tomam conta: eu, Cida Falabella, Simone Ordones, que depois foi pro Galpão. Entraram nesta época Epaminondas, Chico Aníbal, Carlos Henrique, Rita Clemente, mais tarde entram Adelaide Cristina, Glicério Rosário, e Yara Brant. Neste tempo, e com o primeiro grupo, adaptamos Murilo Rubião para cena. “A casa de girassol vermelho,” que viajou para vários lugares, acabou fazendo muito sucesso na Venezuela. O realismo

Vamos construir aqui?

Eu digo, Vamos Em 1990, Belo Horizonte é dividida em regionais. Berenice Menegalli era a Secretária de Cultura, Patrus Ananias era prefeito, e o céu se abriu para a cultura.

Tempo de crescimento e expansão cultural.

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fantástico de Murilo estava mais em casa lá, do que aqui. Até 2003, éramos um grupo sem teto. Habitamos vários espaços. Ocupamos primeiro a FAFICH, começamos no oitavo andar e acabamos no subsolo. Brincávamos que dali só pra rua.

E fomos. A prefeitura precisava do espaço para que escolas municipais o ocupasse. Em 97, levamos a Sonho & Drama para Santa Luzia, minha cidade, onde fomos muito bem

Memória e Teatro

recebidos. Ocupamos a estação de trem. Nossa presença trouxe um fervilhamento cultural para a cidade. Fizemos um festival de inverno maravilhoso e levamos várias oficinas, uma porção de grupos e gente bacana para se apresentar, até que o poder mudou e o prefeito pediu o espaço.

Ainda a velha história, o que um governo faz, no caso o prefeito, o outro destrói.

Dois anos depois, voltamos para Belo Horizonte sem casa.

A família de Cida tinha um lote no bairro Serrano, ela me chama para ver o terreno e me pergunta: “Vamos construir aqui?” Eu digo: - Vamos.

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Por que estar em cena?

Pra quê?

Pra quem?

Como?

Primeiro vem a ética e depois você começa a pensar na estética.

Quando voltamos, em 2003, sentíamos que o centro já não nos cabia mais. Depois de dar oficinas por anos a fio em espaços que não eram nossos, fomos em busca da construção do nosso espaço, no bairro chamado Serrano. Trocamos nosso nome fantasia de “Sonho e Drama” para “ ZAP 18 – Zona

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de Arte da Periferia”, porque achávamos que havíamos mudado não só de espaço, como de trajetória. Carlão, junto com outras pessoas, havia criado a Sonho & Drama, A ZAP 18 foi criado por mim e Cida, Chico Aníbal e Yara Brant, que logo depois saíram, deixando eu e Cida coordenando um espaço de teatro na periferia de Belo Horizonte. Na escolha do nome, tivemos um debate muito importante entre ser “na” periferia ou “da” periferia, o que faria muita diferença.

“Da” periferia você estaria junto com as pessoas, “na” periferia pareceria que a gente estava levando cultura a uma comunidade, ao invés de somarmos conhecimentos. A gente sempre teve pavor de ser colonizador.

Mas antes de mudar-

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mos, ainda passamos por um período de transição de linguagem.

Para uma estabilização do grupo, montamos “Sonho de uma noite de Verão”, do Shakespeare. Foi nossa última experiência com a dramaturgia fechada. Ao chegarmos na periferia

e inaugurarmos nossa casa, reunimos com grupos e associações locais, para nos apresentarmos e trocarmos figurinhas. Começamos fazendo oficinas, acolhendo crianças, jovens e adolescentes, trabalhando histórias, jogos e parlendas da nossa cultura, até que chegamos ao projeto de trabalhar Teatro x Realidade, que trabalharia uma dramaturgia aberta, onde

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traríamos à cena as mazelas da comunidade, e de nossa realidade cotidiana. Em 2006, definitivamente o teatro Épico entra para a ZAP 18. A partir daí a gente começou a trabalhar com Brecht, idéia vinda de um mestrado de Cida na Universidade Federal, que juntamente com Hildebrando, traz seus alunos das Artes Cênicas para trabalhar junto com a gente, em um projeto que leva à cena a peça: “Essa noite, Mãe Coragem”, baseada livremente na peça do Brecht. Foi a mudança de paradigma da nossa linguagem cênica, do nosso

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conteúdo. É aí que, de fato, a gente começa a trabalhar junto à periferia. Posso afirmar que esse trabalho influenciou muitos atores, e a linguagem cênica que brotou a partir daí. Depois fiz a peça “1961-2009”, onde eu pontuava a peça cantando. Em “Esta Noite, Mãe Coragem”, eu já cantava muito. Eu fiquei na ZAP18, antes Sonho e Drama, por 28 anos, dos meus 43 anos de teatro. Saí porque achei importante para mim dar vazão à outras vozes dentro de mim, como cantar e escrever, e isso eu consegui fazer fora dela.

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Eu sou atriz Eu não tenho a menor dúvida que nesses 43 anos o que eu mais sou é ser atriz.

Quando eu fiz 50 anos, outros lugares onde eu posso depositar minha arte, falar do meu feminino, do meu ser mulher, aconteceram na minha vida. Comecei a escrever e lancei um livro de poemas, que intitulei: “Os peixes de pano de prato”. Tenho escrito muito. E eu estou gostando desse lugar, escrever é um ato de solidão, que me é necessário no tempo em que estou. Sempre fui muito ‘coletiva’, coisa que o teatro sempre me atendeu. Agora eu tenho momentos em que quero fazer coisas onde estão só eu e a escrita, ou só eu e a música. Esses lugares são completamente distintos para mim. Come-

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O Ki “Beija-flor toma conta do jardim Vou predir pra nossa senhora tomá conta de mim...”

cei também a escrever minhas músicas. Gravei meu CD, são 10 músicas das quais 8 são minhas, e duas não. Uma, “Voz de Mulher”, é da Sueli Costa, e “Soneto 88” que é um poema do Shakespeare, que eu musiquei. Estar nesses lugares múltiplos hoje me amplia, inclusive para estar em cena.

Eu sou atriz. Estive professora, Diretora de Teatro na PUC, junto com os “filhos da PUC”, por vinte anos. Estou cantora, compositora, poeta, mas não tenho a menor dúvida de que, nesses 43 anos, o que eu mais sou é ser atriz.

Ouvi dizer que nascer dói Que viver dói mais ainda Eu cá comigo entendo isto tudo E acho que a vida já dói mesmo É inhantes de nascer Pois como é que pode A alma O Ki A energia Vital O espírito Caber nesta materiazinha de nada?

Passarinho cabe em qual gaiola?

Daí é que o homem inventa na vida Algo que diariamente Assopre a ferida Apascente a loucura Ritime o coração Passarinho tem o canto.

O homem?

Tem a arte.

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Refiro-me e baseio essa luta atravĂŠs do amor (...)

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O Ăşnico capaz de suportar todas as mazelas.

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Projetos como o Zona de Encontro são de extrema importância para o cenário artístico/cultural/político de Belo Horizonte, pois pensam nas mulheres como protagonistas de suas histórias.

Somos, a cada dia, as principais agentes de transformação da sociedade!

Poder falar da minha trajetória, de memórias, experiências, desafios, conquistas, aprendizados e ideais me deixa feliz, mas ao mesmo tempo reflexiva em como temos ainda que nos impor num meio machista, lgbtfóbico, racista e preconceituoso.

Karú Torres

Estar em meio aos grandes projetos e incluir cada vez mais negros, transgêneros e periféricos me mostra que ainda há muito o que se discutir, lutar e estudar, para que possamos ter uma equidade de tratamento, chances honestas e propositivas de trabalho. Meus anos de carreira me conotam que precisamos, sim, criar redes de afeto, apoiando e compartilhando conhecimentos, e que precisamos lidar acima de tudo com o capital humano que é o bem mais precioso dos eventos.

Atuar na cultura e ter o trabalho voltado para esse público exige resistência, empenho e amor.

Refiro-me e baseio essa luta através do amor, que ao meu ver

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é o único capaz de suportar todas as mazelas sociais e impulsionar quem ainda não conquistou seu espaço.

Viver de cultura Negra em tempos atuais é um privilégio e eu me sinto extremamente grata.

Assim, procuro inserir novos profissionais nesse meio: pessoas que possuam vontade e conhecimento, mas, que por diversos motivos, ainda não puderam ou não tiveram oportunidades.

Qualificar pessoas, respeitar a individualidade, compartilhar sonhos e acreditar que todos somos capazes talvez sejam as características que me fizeram estar hoje nesse espaço, e minha maior forma de agradecer é retribuir a sociedade o que meus ancestrais me deram.

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sedadivitat tativi

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airómem ed sohlO euq rezid me osuO oãn siatigid sasse ,adan mezid eugnas esse ,adan zid oãn emonerbos esse ,adan zid oãn zevlat elep asse .adan agid oãn adacoloc iuF .arof arap mu é oproc ueM odargim oproc odargimsnarT ,lecnip mu ,sipál mU -uga amu ,atnit amu oãn ue aroga euq ahl ratlos siam ogisnoc .oreuq men E megami ed osicerP a raircer arap .edaditnedi

onrotnoc mu uos uE euq levárepucerri matnet soãm sahnim raçnacla radlom-eR ratnevni-eR resiuq êcov euq o-eR

airómem ed augníL em oãn euq airómeM reviv maritimrep ,adabuor edaditnedI adajrof ,artuO me marahlugrem eM .satrom saugá .rasicerp es erohC

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Olhos de memória Ouso em dizer que essas digitais não dizem nada, esse sangue não diz nada, esse sobrenome não diz nada, essa pele talvez não diga nada.

Fui colocada para fora.

Meu corpo é um corpo migrado Transmigrado Um lápis, um pincel, uma tinta, uma agulha que agora eu não consigo mais soltar E nem quero.

Língua de memória Memória que não me permitiram viver Identidade roubada, Outra, forjada Me mergulharam em águas mortas.

Chore se precisar.

Eu sou um contorno irrecuperável que minhas mãos tentam alcançar Re-moldar Re-inventar Re-o que você quiser

Preciso de imagem para recriar a identidade.

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Ah! Meu mundo não é aqui.

Esse sequer é o meu quilombo.

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Se um quilombo surge na revolta, na crise Eu digo, cada corpo é um quilombo.

Na crise, Aquilombei a mim mesma Na solidão, tão imposta, forçada Eu sou a minha própria aldeia.

Eu sou a minha própria Criadora

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Sigo tentando aprender a ouvir a voz do silêncio Silêncio me apavora, me incomoda Me tira da zona de conforto?

Silêncio me deixa nervosa Silêncio na casa Silêncio entre pessoas Silêncio de mensagens não respondidas Silêncio entre eu e você Silêncio no ambiente...

Eu durmo com o rádio ligado E não consigo descansar no silêncio Ele me aflige Silêncio me engole sem mastigar Silêncio salva?

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Existe uma distância entre eu, pessoa, e ele, ausência de som As vezes me pergunto se ele é testemunha de um trauma de criança

O silêncio me abusou

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Por isso eu escrevo gritando Escrevo chorando

Canto

Porque o silĂŞncio e eu ainda nĂŁo nos fomos apresentados da maneira correta.

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Eu gostaria que vĂ­ssemos o espelho nĂŁo apenas como um instrumento da vaidade, mas como uma arma de guerra.

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Meu nome é Brisa, tenho 24 anos. Eu trouxe um espelho para dialogar com o tema da nossa mediação e eu gostaria que víssemos o espelho não apenas como um instrumento de vaidade mas como uma arma. Dentro da cosmovisão africana o espelho é também um instrumento de guerra.

Então vamos tentar ver esse espelho não só como um reflexo que nos mostra o rosto, a boca, um par de olhos, orelhas mas entender que somos condutores das nossas histórias e como as histórias externas afetam também a nossa própria história e as nossas vivências.

Quando eu pego o espelho assim e olho para além do meu rosto, do meu cabelo, da maquiagem que eu uso para tentar esconder alguma coisa ou realçar outra, eu vejo uma mulher cansada, uma mulher que sente que no momento está um pouco farta de lutar e de ter que carregar justamente o espelho o tempo todo para conseguir lutar, para seguir em uma sociedade que é completamente transfóbica, racista,

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intolerante em relação às matrizes africanas.

Mas, olhando para o espelho, também consigo entender que por mais que eu tenha que camuflar certas coisas com essa maquiagem que eu passo, talvez acabe realçando isso, e só acaba dizendo quem eu sou, de onde eu venho, o que eu faço, o que eu deixei de fazer, o que eu preciso fazer, o que eu preciso melhorar.

Acaba que é basicamente isso esse espelho, o que reflete não só o que tá no meu rosto, mas as minhas dores, minhas angústias, minhas perdas, meus prazeres, minhas alegrias. Quando eu tava entrando na puberdade eu travei uma luta muito grande com o espelho, tinha um muito grande no meu quarto, mas eu deixava ele virado pra parede, ou colocava um pano cobrindo, porque o reflexo me trazia muita angústia. Eu não queria

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E o que o seu olhar quer dizer?

ver o gogó crescendo, a barba desenvolvendo, eu queria ver outro corpo sendo desenvolvido ali. Hoje, quando eu olho no espelho e vejo refletido a pessoa que eu realmente sou, que sempre fui, mas que foi obrigada a ser interiorizada, me dá conforto ao mesmo tempo em que me dá revolta por eu pensar que estou no corpo errado, passando pelos processos certos, no tempo errado. Essa coisa do olhar define muita coisa pra gente, sabe, porque o corpo muda o formato do seu rosto, muda mas seu olhar permanece o mesmo.

Boa noite, meu nome é Madu Costa. O espelho pra mim é um marcador de tempo, eu olho pra ele e vejo as marcas do meu rosto que vão me contando e me denunciando: que eu já não sou mais aquela garotinha, mas, por dentro de mim, eu insisto em ser uma garotinha levada, essa que sobe em árvore,

que faz o que quiser e que de vez em quando dói as juntas, mas né, o espelho me revela assim, cimento da carcaça, mas ao mesmo tempo revela a minha energia, o meu erê, a minha criança interior que não quer crescer.

E nessa dualidade eu às vezes quero quebrar o espelho, porque ele tá me contando coisas que eu não acredito, que eu insisto em não ver, então eu fico um bom tempo na frente do espelho passando base, pó compacto, batom, pra tentar, para ver fora a juventude que eu sinto dentro.

Mas eu tô bem, né, eu estou ótima, com 66 anos de idade. Mas tem esse conflito que reflete no espelho, o que é refletido dentro de mim.

Meu nome é Rodrigo Carizu, tem um negócio engraçado... quando eu me olho no espelho eu presto atenção no meu olho.

Quando eu olho meu olho, que tem uma coisa meio de criança, sabe? Que eu acho que é bom, parece que é a única coisa que eu tenho, que fica em mim desde que eu me entendo por gente. De memória. Não é uma coisa de criança infantil, mas que eu carrego em mim. E aí eu acho que ele carrega muita, não sei, meu olho é meio pesado, não no sentido ruim. Mas eu acho que é um ponto muito forte meu, no geral. Aí dá vontade de pular aqui dentro!

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Nhem - nhen - nhen Nhem - nhen ô xorodô Nhem - nhen - nhen Nhem - nhen ô xorodô É o mar, é o mar Fé - fé xorodô (Ponto de Dandalunda)

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Mergulhar Através do espelho, dentro do espelho, por dentro do reflexo...

Dentro da lâmina que corta, que estilhaça, que faz o contato consigo mesmo ser o mais profundo, Interno Mergulho de criança indefesa, curiosa.

Onde não existe um marcador de tempo além de cada traço desse rosto.

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Uma memória atravessada e transpassada.

Entendendo também que dentro desse rio de pertencimento, essa memória também é uma construção.

Uma dualidade entre luz e cinzas, cansaço e vigor, morte e vida.

Atravessar o espelho permite vivenciar uma escuridão em meio ao clarão.

O mergulhar-se nesse interior não é o ver, é o refletir.

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Juhlia O espelho é muito simbólico pra mim. Eu sou uma pessoa que conheci Dandalunda aos 15 anos de idade e, para quem não conhece, na Nação de Angola Dandalunda é a Nkisiana que mais se aproxima de Oxum, que não é a mesma energia, mas que também carrega um Abebê, que é o espelho. E nós acostumamos dizer que o espelho que Dandalunda carrega nunca se olha, se reflete. Eu nunca tive uma intimidade com espelho, mas não é porque eu não me via nesse corpo,

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nessa corpa, é porque eu não gosto de ver a minha imagem refletida. Eu consigo me maquiar no espelho sem me ver. Durante anos eu trabalhei com produção de moda, em salão de beleza, e já teve dias que eu entrava e saía do trabalho e não me via no espelho. Não é uma aversão, mas uma falta de costume de me olhar de fato. Talvez porque eu não acredito nessa imagem que é refletida, porque eu acredito que eu sou muito mais do que essa imagem que é refletida e, quando eu me olho no espelho, parece que essa

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imagem me prende, me captura. Eu tenho muita dificuldade, por exemplo, com vídeo.

Fiz alguns vídeos para exorcizar isso, porque a impressão que eu tenho é de que realmente captura parte de mim, e quando vejo, raramente acredito nele, porque eu acho que eu sou muito mais do que o que está refletindo ali. Me incomoda ver que o tempo passa. A gente vai perdendo o viço da pele, já começa a sentir enrugando ali, incomoda muito, de tal forma que eu não falo a minha idade. Até que eu falei, eu tenho 35 anos, eu tenho que me orgulhar disso.

Tenho 35, vou fazer 36, superando a expectativa de vida das minhas. E que a cara

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tá enrugando? Sim, mas é um processo da vida e, como as mulheres que eu tenho referência na minha vida estão com a cara enrugando também, o peito caindo, a bunda caindo, eu acho isso é maravilhoso. Viver essas fases da vida. Mas ainda assim eu tenho muita dificuldade em ver essa, esse reflexo ali capturado.

Eu conheci uma pessoa que falou que eu tenho olho de água, eu não entendi aquilo naquele momento, mais tarde eu fui entender o porquê desse “olho de água”.

Eu carrego até hoje.

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Eu sou Simone, mais conhecida como Simone de Oyá, e eu, quando olho o espelho, realmente me olho, sim, sou uma mulher muito bonita, muito vaidosa. Quando... depois que eu ultrapasso o espelho eu olho o meu passado, o tempo que eu fui criança.

Quando venho passando da criança que fui, e muito feliz, criança que caía de cima em baixo de uma casa, curava o pé, brincava de papagaio, de tudo, aí eu ultrapassei o tempo... voltei para adolescência, nessa adolescência eu passei por processo de, como vocês disseram, de

terreiro, de filha de Santo, e desse processo saí e fui mãe, rejeitando muita coisa. Não querendo não, meus senhores e minhas senhoras, não querendo responsabilidade, e hoje em dia eu me vejo no meu espelho e reflito a mulher que me criei, que me tornei. Aí eu volto pro passado e digo, assim mesmo, às vezes de verdade, no espelho: -Simone, tu era uma criança, tu foi adolescente. E na minha adolescência eu nunca pensei que estaria aqui, que me tornaria a mulher que sou hoje, mãe carnal e

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mãe espiritual também.

Agradeço todo dia a Oyá, que é minha mãe, e que amo tanto, que é a minha vida, que é tudo pra mim, mas que também olha o espelho. Fui iniciada por uma mulher de Oxum, amo minha mãe Oxum também, mas o espelho também reflete a guerra que eu tenho de travar todo dia contra o preconceito religioso, a intolerância religiosa, contra o preconceito LGBT.

Texturas

Todo dia você tem que travar uma guerra, mas hoje em dia, olhando o espelho, faço como Oxum: reflito. Sempre olho a beleza, mas lá na frente eu coloco o espelho acima, pra refletir meus inimigos, olhar para eles, eles estão chegando.

Mas eu estou aqui para me proteger.

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Gabby O espelho para mim é uma coisa interessante, ao mesmo tempo bem difícil, porque eu não tenho uma relação muito boa, não posso dizer que eu sou uma pessoa vaidosa, não posso nem dizer que olho tanto para os meus olhos. Quando eu olho para o espelho, as poucas vezes na verdade... eu olho

Espelhos e Representatividades

pouquíssimo para o espelho. Venho olhando mais, e eu venho há pouco tempo gostando mais do que eu vejo, mas, ainda assim, o espelho me lembra não tanto do tempo, mas dos olhares que eu recebo todos dias.

Ele me lembra, sim, que é isso que as pessoas vêem, isso não necessariamente é um processo fácil, porque sempre achei que sou muito mais do que minha aparência

Brisa Alkimin

externa. Eu não tenho desgosto nem nada não, mas também não me apego tanto. Então, eu venho há poucos anos, principalmente conhecendo ainda mais a energia de Oxum, reconciliando com isso, porque para mim espelho é trabalhar minha relação com a autoimagem, como um exercício de amor próprio, que eu acho que é o tipo de amor Oxum ensina mais pra nós. Então o espelho é uma ajuda, é uma arma, mas é também uma ferramenta para mim. Ainda é confli-

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tuoso, os olhares de todo dia que a gente recebe, o que carregam esses olhares.

Então vou olhar mais para o espelho, mas vai ser um processo, e de certa forma eu cheguei também a entender porquê eu não gosto muito de receber olhares, eu não sei lidar com pessoas me olhando, não gosto, gosto de ficar bem discretinho, mas eu venho trabalhando também nisso, porque às vezes eu olho para os outros, principalmente nos olhos que a gente conecta, né. Mas é isso ou autoimagem.

Zona de Encontro

Eu tenho tentado durante muitos anos abstrair.

Por mais que esses incômodos existissem muito mais no dentro, não necessariamente na consciência...

E quando a gente começa a trabalhar na consciência, do quanto e porquê, que esses olhares de fato incomodam... Lidar como e por quê. Porque de fato tu incomoda, atravessa porque tem a ver não só com imagem, tem a ver com tratamento. Eu tive uma briga com uma amiga, ficou me ignorando tipo durante meses, passava no corredor, bem aqui perto de

mim, eu era transparente, eu me ofendo muito com isso, porque querendo ou não eu quero, no fundo, que as pessoas me vejam como eu sou, não como eles e elas querem que eu seja. É por isso que nos atravessa tanto, porque a gente quer que as pessoas enxerguem nossa existência, e não necessariamente só o que elas projetam.

Eu quero me conectar com pessoas do jeito que eu sou.

Do jeito que eu sou é legítimo, é lindo, é válido. Eu escolhi isso, eu escolhi essa vida dessa forma.

Volume Um

Texturas

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Espelhos e Representatividades

Rafaela Servius-Harmois

o espelho que ajudou a mostrar verdadeiramente a identidade negra, a afrodescendência e o orgulho de ser negra. Eu me dei conta olhando no espelho que meus filhos nunca me conheceram com meu cabelo natural.

Isso foi uma dor, uma grande dor, em saber que tinha sido mãe e que meus filhos nunca me conheceram de verdade. Então mamãe Oxum e a energia dela, tão potente nessa vida em momentos que a gente nem espera,

Para mim espelho nunca fui aquele objeto que eu gostava de usar, até digamos assim, cinco anos atrás, em que ele foi um instrumento de libertação. Na verdade, sobre identidade porque aquele espelho conseguiu me mostrar a minha identidade, através do cabelo.

Esse cabelo tinha sido alisado desde os quinze anos de idade e foi

Brisa Alkimin

nem pensa que pode acontecer, como a nossa ancestralidade ainda com a gente…

E nos ajuda mais do que sobreviver, mas existir de verdade, e a se erguer na frente de todo mundo para dizer: -não, eu sou quem eu sou, me amo tal como eu sou.

E esse cabelo foi quem me permitiu realmente me conhecer, me amar.

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Zona de Encontro

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Brisa Alkimin

Caindo em mim mesma Desatando nós, caindo em mim mesma Nós na garganta, Alma Cabelo Desamarrada Caindo em mim mesma Dourada, vermelha, negra Entendendo meu caminho como um caminho de nós Laços não cortados Histórias mal resolvidas Quase esquecidas Caindo em mim mesma

Olhando a mim mesma Enxergando minha mão antes de enxergar esse reflexo Caindo apenas em mim mesma Mergulhada Atravessada em mim mesma Sendo meu próprio quilombo Sendo minha própria aldeia Sendo minha própria imagem e semelhança Sendo o meu próprio sagrado Caindo em mim mesma, vendo que eu posso ser a minha própria referência Caindo Molhada, mergulhada Me entregando ao risco da morte para ter vida.

Brisa Alkimin

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Nina Caetano

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Eneida Baraúna

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Ensino do Teatro, Encruzilhadas Poéticas

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E d E d

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Corpo, silenciosos poros que guardam existências polifônicas.

Estação encruza, trilhada por atravessamentos dissonantes consonando encontro e despedidas - vozes por nós ecoadas.

Nessa estrada, po-éticas desvelam paisagens.

Estas - partículas experienciais - inscrevem em nossos corpos o renascer, o revirar, o reaver, o ressonar.

Fragmentos do ser e estar em um lugar de inscrição – o corpo.

Em nossa viagem transcendental, nem todas as estações estão abertas.

Mas para nosso gozo existencial, aquelas que nos abrem seu portais, são dimensões fabulares trafegadas por tensões e fluídos. ao reembarcar, não somos mais os mesmos.

Vozes que ecoam em novos portos.

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Eneida Baraúna

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La Laroye Laroye Exú Lá Laroye Exú... Camará!

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Nessa noite de hoje eu peço licença aos mais velhos para que eu mulher, negra, periférica, esteja aqui, num espaço de governo onde, outrora, os meus ancestrais não puderam estar. Se eu estou aqui hoje é que de fato muitos caminhos foram abertos. Eu tenho gratidão aos mais velhos que vieram abrindo os caminhos ao longo dos anos com força, resistência, resiliência, com persistência. Peço licença também aos mais jovens. Está vindo uma geração cada vez mais forte, mais potente, com reverberações que trazem o novo e também renova.

Daqui a pouco a minha geração será uma geração de ancestrais e é preciso que os mais jovens, mais novos venham com essa força para transformar, para construir, para criar.

Eu peço licença aos que estão aqui presentes, pois, ao começar preparar esta noite, ao mergulhar e trazer minhas memórias - emocionei. Se essa emoção vier aqui hoje em forma de Rio, não se preocupem; as donas que regem a minha morada também são donas das águas. Então, nada mais real de que as minhas memórias venham como Rios.

Quando preparei este momento, pensei num momento de trocas, momento de saberes compartilhados. Assim, façamos girar a circularidade dos saberes, presente nas filosofias dos meus ancestrais.

Eu sou tri neta de Chica dos Patos, mulher Negra, escravizada no país, rainha Perpétua do Congado de Dores do Indaiá. Eu não

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Texturas

sabia o porquê do meu corpo reverberar uma sensação de nostalgia, alegria, “emoção de rios” quando eu via o congado. Mas, vim saber que minha ancestralidade também era uma ancestralidade congadeira. Chica dos patos cantava e tocava violão na sua existência material. Eu não sabia de onde vinha esse desejo grande com as artes. Eu ficava me perguntando de onde vinha essa vontade, se não tive incentivo artístico oriundos de pai e mãe. Chica dos Patos não está aqui presente em materialidade mas, está presente aqui no meu corpo – sou descendente de uma Rainha Perpétua de Dores do Indaiá. Chica dos Patos criou minha bisavó Epifânia Francisca - também conhecida como Dindinha.

Não registrada como filha legítima, Dindinha foi fruto de uma relação (sem afeto) com o senhor da Fazenda. Naqueles tempos e, nas histórias da minha família (até os tempos atuais) existem essas reverberações de violências contra as mulheres. Mas Dindinha foi mandingueira como todos os nossos corpos negros, aprendeu na vida a adocicar as pessoas, começou a fazer quitutes. Criou os filhos fazendo docinhos para sociedade. Por onde passava, adoçava a boca dos senhores que, naqueles tempos, a discriminavam por sua cor da pele.

A minha avó, Dona Alzira, também aprendeu com a minha bisa a adocicar a vida.

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Eneida Baraúna

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Zona de Encontro

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Texturas

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Ensino do Teatro, Encruzilhadas Poéticas

Aprendeu esse ofício das mãos, alquimia que alimentava a todos e, criou a família assim.

Minha avó casou com meu avô José Carvalho, madeira bruta.

Ela, também mandingueira, criou os filhos

na força do lapidar a vida e repassar isso para os netos. Aprendi com ela, também, a ter respeito pelo Congado.

Beaaaata! Era devota de Nossa Senhora do Rosário e de Santo Antônio. Meu pai

Eneida Baraúna

chama Rosálio Antônio em homenagem a sua espiritualidade.

Tenho minha mãe Celeida, uma mulher forte, guerreira que me ensinou muito e que ainda ensina.

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Somos diferentes e, só pude compreender isso com o passar dos anos. O tempo faz a gente entender nossas relações familiares e, entender que elas não são tão românticas como nos

Zona de Encontro

Volume Um

livros - mas trazem poesia. Minha mãe aprendeu a reverberar a família, criar família, de buscar o melhor para família, através da “falta” – veio de um seio familiar com muitas ausências. E,

só hoje mais velha, fui entender essa relação - a nossa relação de diferença. Essa é minha avó materna – Aidê - veio do estado do Espírito Santo.

Texturas

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Mulher forte! Mesmo idosa limpava 14 andares de um edifício no centro de Belo Horizonte. Eu ficava pensando: ela nunca se cansa! Mesmo com nossos afetos dizendo: “vó descansa um pouquinho” – ela nos xingava e continuava movimentando a vida.

Uma mulher de persistência.

Para finalizar trago Dona Fininha.

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Eneida Baraúna

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Eu nasci no Novo Glória, bairro que teve origem nos anos de 1975 em Belo Horizonte. No mesmo ano em que foi criado loteamento do Bairro Novo Glória, nós ganhamos um vizinho – presente da cidade. Surge o Aterro Sanitário da cidade de Belo Horizonte. Aí a gente entende hoje que o governo naquela época destinou aquela região a ser uma região periférica, em deixar conosco apenas o descarte da cidade com poucas políticas públicas.

A gente aprendeu a conviver com Aterro.

Nas brincadeiras e dramaturgias da infância, para disfarçar o cheiro azedo do Aterro Sanitário, a gente criava subterfúgios com a imaginação.

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Volume Um

Texturas

De vez em quando o Senhor Aterro aparecia para brincar conosco até o anoitecer na Rua Castelo. Naquele território, a gente de vez em quando, ouvia um som e brincava de distinguir que som era esse. Ouvíamos algumas falácias sobre esse som. Pessoas que não conheciam que sonoridade era essa. A gente ficava como meninos e meninas ouvindo os mais velhos dizer bobagens.

Depois, eu entendi que eram violências.

Pequenas violências sobre quem sou. E com o passar dos anos essa sonoridade foi tão sedutora, porque ela descia as ladeiras do Novo Glória e nós, os meninos e meni-

nas, fomos seduzidos a descobrir que som era esse. Aí subimos a ladeira e descobrimos lá em cima o Centro Cultural Bloco Oficina Tambolelê.

de benzeção e pelas ações de tentar cobrar do poder público políticas para aquela região como, de asfaltar o bairro, doação de kit leite para as famílias, de movimentar o bairro de alguma forma, porque ela era inquieta.

Um lugar de inquietude que era para o olhar com o outro. Ela sempre estava disposta a olhar, descobrir, estar próxima, ajudar o outro. E, se hoje sou a artista que sou, devo gratidão a essa senhora.

Uma casa que se formou, unicamente, pela existência dessa mulher: Dona Serafina Pereira. Pense numa mulher de fibra.

Pense numa mulher de força. Pense numa mulher que é de uma textura do riso, textura de celebrar a vida e a família. Era Benzedeira, conhecia as plantas como ninguém. Alguém muito importante na comunidade. Primeiramente, pelas ações

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Zona de Encontro

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A voz de minha filha

ecoou criança

recolhe todas as nossas vozes

nos porões do navio. ecoou lamentos de uma infância perdida.

A voz de minha avó ecoou obediência aos brancos-donos de tudo.

A voz de minha mãe ecoou baixinho revolta no fundo das cozinhas alheias debaixo das trouxas roupagens sujas dos brancos pelo caminho empoeirado rumo à favela A minha voz ainda ecoa versos perplexos com rimas de sangue e fome.

recolhe em si as vozes mudas caladas engasgadas nas gargantas.

A voz de minha filha recolhe em si a fala e o ato.

O ontem – o hoje – o agora.

Na voz de minha filha se fará ouvir a ressonância O eco da vida-liberdade.

Conceição Evaristo

A voz de minha bisavó

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Ensino do Teatro, Encruzilhadas Poéticas

Zona de Encontro #1 Texturas! Como um primeiro exercício, eu quis trazer uma apresentação performando minhas histórias - Já que estou pensando e falando sobre ensino do teatro e encruzilhadas poéticas. Se eu for pensar em quem eu sou, eu tenho minimamente que pensar nas encruzilhadas das quais eu perpassei, e perpasso todos os dias. Acredito que nossas poéticas são escolhas que temos ao longo da vida e das vivências, como também de atravessamentos que nossos corpos têm ao longo da vida, que os nossos corpos são grafados de histórias.

A encruzilhada, como Leda Maria Martins nos fala.

Eneida Baraúna

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... é aqui assinalada como instância simbólica e metonímica, da qual se processam via diversas de elaborações discursivas, motivadas pelos próprios discursos que a coabitam. Da esfera do rito e, portanto, da performance, é o lugar radial de centramento e descentramento, interseções, influências e divergências, fusões e rupturas, multiplicidade e convergências, unidade e pluralidade, origem e disseminação. Operadora de linguagens e de discursos, a encruzilhada, como um lugar terceiro, é geratriz de produção, as noções de sujeito híbrido, mestiço e liminar, articulado pela crítica póscolonial, podem ser pensadas como indicativas de efeitos de processos e cruzamentos discursivos diversos, intertextuais e interculturais (Martins, 1997, p. 28).

MARTINS, Leda Maria. Afrografias da Memória: o reinado do rosário do jatobá. São Paulo: Perspectiva, 1997.

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Eu queria que você se apresentasse, pensando em quais encruzilhadas seus corpos perpassaram e perpassam. Então quando você for realizar o exercício de se apresentar, gostaria que fizesse a partir da sua textura. No mundo de hoje, a gente tem normas cristalizadas de titularidades e, se nos apresentamos e nos vemos como títulos, não nos aprofundamos – não enxergamos as texturas que nos são criadas. Gostaria que você se apresentasse pela sua história elaborando sua textura pessoal.

Qual a sua textura?

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Eneida Baraúna

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Quando fui convidada pra esse encontro, era para contribuir no campo da educação, porque sou professora. Escrevo crônicas das experiências que perpassam e vou reportando nas redes sociais. Crônicas Pró-fessora falam das vivências dentro da escola pública e todas as fissuras que esse espaço tem. Comecei a entender que, para falar das vivência(s) como professora, falar dos lugares que eu consigo mandingar e conseguir uma relação de proximidade com meus alunos, Era necessário eu pensar em tudo o que vivi, quem contribuiu ou contribui com minha existência, os ensinamentos que obtive e obtenho no dia a dia.

Só era possível falar das poéticas do ensino do teatro se eu mergulhasse nas encruzas que me formaram.

Atuar como professora é um desafio cotidiano, sem receitas prontas. Este percurso é passível de erros. Mas é preciso estar atento à práxis. Atentos às estratégias e tentativas que o percurso nos permite e, avaliar se houve conquista.

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O território escolar no setor público é um terreno arenoso, cheio de lacunas.

Muitas vezes, um território que não consegui mergulhar com profundidade nas diversidade das discussões humanas. Por mais que existam educadores que estão trabalhando para atingir profundidade neste contexto, ainda assim, é um caminho solitário.

Quando eu chego numa sala pequena com trinta, trinta e cinco alunos eu também me questiono: “E agora professora? Como se dará essa relação humana?”

Muitas vezes, erro na construção pedagógica.

Existe uma estrutura rígida que, muitas vezes, nos desvirtua de nossas concepções.

esses trinta e cinco alunos num ambiente pequeno e com pouca materialidade? Como iniciar vôos criativos, dentro de uma gaiola?

Que poética seria essa? Existe poética em campo de guerra?

Num território cheio de grades, cores apagadas, uma sirene que te ressoa de tantos em tantos tempos, com pessoas confinadas... como buscar poética de ensino dentro desse espaço?

Acredito que, somente será possível se eu retomar minhas essências.

Estar na educação é estar num território de desafios constantes.

Estrategicamente manter a calma. Saber mandingar numa constituição que é violentamente vertical.

Como professora, como vou lidar com

Trago a textura da minha essência pois,

grande parte dos alunos que estão nas escolas públicas são negros e, comungamos das mesmas identidades. Trajetórias muito parecidas com as trajetórias dos meus ancestrais que, reverberam em mim, no meu corpo, grafias de re-existências.

Trago alguns princípios que vejo nas culturas africanas e afro brasileiras. Acredito que nas culturas indígenas também estejam presentes. Na primeira instância: a circularidade. Busco fazer as aulas de forma que a arquitetura das cadeiras esteja no formato circular. O formato tradicional nas escolas, normalmente, traduzse em fileiras. Fileiras que também compõe a

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Eneida Baraúna

O que você vê?

organização dos contextos militares, a organização das igrejas cristãs, nos formatos para unificar as pessoas diante de um palco/ palanque onde serão distribuídos conteúdos ideológicos.

Então, tento trazer a circularidade no processo das aulas.

Outro princípio da cosmovisão africana é a energia vital.

Para além da energia vital que obtemos nos nossos alimentos, nas plantas que nos compõe, ela também está na celebração. É preciso celebrar a vida! Para além da energia vital que vem dos alimentos e plantas, ela também esta na felicidade e reverberações da vida de forma positiva.

Busco entender que os adolescentes também

buscam, no contexto escolar, celebrações da existência de suas histórias. Mas, estamos num contexto institucional que ainda molda e unifica os corpos, interrompe a festividade dos corpos. Como eu, professora de arte, da área do teatro, posso fazer celebração? Como fazer com que esses corpos, que vêm com tantas energias reverberadas de positividade, não sejam podados dentro de um contexto tradicional? É um exercício diário! Porque há forças que nos conduzem para esse território pedagógico tradicional. Essa reflexão também pode ser feita pro ensino não-formal. Os espaços culturais, escolas de teatro que também podem nos trazer esse conhecimento do teatro como encruzilhada poética. Percebo que esses lugares já são constituídos de certa liberdade que, dentro do contexto escolar formal, ela ainda é retalhada.

Uma forma de eu tentar fazer com que meus alunos, aqueles que ainda são imaturos em alguns processos, compreendam algumas instâncias sociais, trago o princípio da ludicidade. Você pode trazer um aluno de volta para um contexto de coletividade, se ele está desconectado, de forma lúdica.

Por isso é preciso ter calma, pra estar dentro desse ambiente arenoso. É preciso estar conectado com nosso ancestrais e com nossas histórias de resiliências e resistências.

Agora, gostaria que você se mapeasse, materializasse com canetas, lápis de cor, giz de cera, colagens, materializasse a sua textura, o seu caminho afetivo. Colocar seus afetos e reverberações em forma de imagem.

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A partir destas provocações, nos reunimos eu e um grupo majoritariamente feminino, para um encontro de 3 horas, nos quais tentaríamos, a partir da experimentação de alguns procedimentos narrativos, produzir escritas [Po]éticas de [re]existência. Tratavase de pensar práticas

que desejam “visibilizar as subjetividades”, ao apostar na criação de poéticas “e engajamentos como forma de construção de um mundo melhor para ‘todxs’” (FISCHER, 2017, p.13).

Trazer para o trabalho:

[Po]éticas da [re]existência

Textos que dialoguem com suas questões e incômodos; que te toquem ou afetem de modo especial; que sejam o mapa de sua alma.

E Objetos que provoquem ações, que alimentem a imaginação e com os quais possa compor sua mitologia pessoal. Mas não traga nada de profunda estima.

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Durante o encontro, escrevemos cartas às nossas mães e outras, íntimas, para estranhos. Construímos memórias inventadas a partir de objetos e escrevemos receitas para ajudar passar este tempo de horrores no qual estamos mergulhadas.

Receitas para superar o medo e para calar a solidão, para praticar liberdades e reabastecer a coragem, receitas para se conhecer e para criar dúvidas, gerar manifestos e não criar expectativas, receitas para esconder o amor e fotografar o mundo com os olhos...

Estas receitas tatuamos no corpo da cidade: fizemos cartazes e, em alegre caminhada pelo centro, este olho do furacão, espalhamos nossa palavra.

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Xoeni Maxakani

˜ KA’OK UN Mulheres Fortes

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UN KA’OK Mulheres Fortes

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Eu vou falar um pouquinho da história Maxakali. Eu faço vários trabalhos, sou cineasta e há muito tempo venho filmando várias pessoas pra poder mostrar no mundo como é o povo Maxakali. Neste momento estou fazendo o meu TCC – trabalho de conclusão de curso, e pensei de ir nas quatro aldeias em que somos Maxakalis: Bertópolis, Santa Helena, Teófilo Otoni e Ladainha, esse que é o nosso povo da Aldeia Verde. Eu fiz essa caminhada pra poder aprender, assim como eu já tinha aprendido com a minha avó, com outros mais velhos, se as histórias Maxakalis batiam nas mesmas coisas.

Fomos há vários lugares onde as histórias batiam. Nós viemos pra Ladainha em 2006, somos 430 pessoas na aldeia. Lá acontece ritual, no dia-dia, tem o cotidiano, os cantos de manhã para as crianças e jovens aprenderem. Têm as crianças que são pegas pro ritual que ficam um mês lá na barraca do ritual.

Como temos os cantos, a gente queria ver com os pajés se as histórias são as mesmas, e fomos nos lugares dos povos Maxakalis. O mesmo povo que o meu, a mesma língua, os mesmos cantos, rituais, a mesma tradição, cultura, comida… E são as mesmas histórias.

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Por isso que hoje eu falo que só nós Maxakani que sabe É isso.

Baí!

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De objeto para sujeitas

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De objeto para sujeitas

A história da arte imprime sistematicamente o olhar masculino sobre corpas femininas, suas vivências e constituições. Tal prática torna mantenedores os espaços artísticos hegemônicos masculinos. Historicamente a disparidade entre homens e mulheres no campo das artes se faz presente, e a subjugação das feminilidades sempre as colocou no lugar do objeto, raramente no lugar da sujeita. As negações de direitos às feminilidades não para na entrada dessas, mas se estende ao processo que garante sua permanência nos espaços artísticos.

Questionando a negação desses espaços, cada vez mais sujeitas reivindicam ser donas das próprias histórias, buscam autonomia das corpas para exercer suas reais vocações, sejam elas como donas de casa, mães, artistas, pesquisado-

Juhlia Santos

ras, produtoras culturais, produtoras de conhecimento, formal ou não, ou mesmo acumuladas pelas suas multi funções, o que não as impede de exercer com maestria todas elas.

A criação de espaços seguros de afetos tem se tornado uma prática para aumentar cada vez mais as trocas, estimular grandes potências e até mesmo fortalecer as já existentes. A união de sujeitas provoca um tensionamento nas estruturas patriarcais e gera uma quebra da normativa a partir da criação de possibilidades de um novo lugar para se pensar em fazeres artísticos, saindo assim do lugar objeto.

A interseccionalidade criada nesses espaços seguros leva em consideração opressões de gênero, de raça e de classe, na tentativa de

promover os lugares das sujeitas. É dado o momento de se aquilombar: a união das feminilidades será emancipatória. Ela chega não com intuito de roubar lugares postos, mas sim de romper com os padrões, tomar para si o que já é de direito. O aquilombamento real só se dá com a alternância do poder, e essa alternância só é possível nesses espaços de aquilombamento.

Portanto, entende-se que um conceito não existe plenamente sem o outro.

Movimentar-se para criar e pertencer a esses espaços é um ato para garantir a existência e a manutenção das vidas femininas.

Esse chamamento irá transpor e eliminar barreiras impostas pelo gênero.

Colaboração

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Das margens para o centro, de objeto para sujeitas.

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Texto dito por Avelin Buniacá Kambiwá em vídeo-performance; Gravação para o espetáculo GLÓRIA do Coletivo Toda Deseo, cedido pela autora e pela companhia.

GLÓRIA do Coletivo Toda Deseo

O teatro chega no Brasil como mais uma arma de opressão. Ele vem com os jesuítas para trazer uma mensagem bíblica de um Deus estrangeiro para os nossos povos, de uma forma que aproveita da nossa tendência natural, como indígenas, a gostar de dançar, de cantar, de brincar, de se divertir. A gente é muito alegre, apesar de todas as lutas. Mas o teatro vem, então, trazer uma mensagem de um Deus punitivo, de um Deus bíblico, de um Deus que não nos aceita como a gente é.

Então, é um registro que nos dói quando a gente pensa no teatro.

Mas a gente sabe que a gente ressignifica tudo. E a linguagem audiovisual e a lin-

Avelin Buniacá Kambiwá

guagem das cenas e das brincadeiras, ela é muito presente no dia a dia da aldeia, no dia a dia dos povos indígenas. Então... Mesmo que veio com essa má intenção – porque eu acredito que era uma má intenção – ao levar o nosso povo a não acreditar mais nos nossos Deuses, nas nossas Deusas. Em Guaraci, a mãe dos viventes, Mãe-Terra, em todo o nosso sagrado.

Pra abrir mão de tudo que é nosso e acreditar num Deus estrangeiro.

genocídio cultural, esse etnocídio, desse silenciamento dos nossos povos. De não poder contar as nossas próprias histórias, e ter que terceiros dizer por nós o que a gente pensa, o que a gente tá sentindo e até como contar as nossas histórias. A gente perdeu muito com isso. A gente perdeu...

Até como fazer nossa própria cosmovisão de mundo ser lida no mundo, ser lida pelas pessoas como a gente realmente é.

Usar das artes é mais uma das formas de genocídio da nossa cultura.

O resultado disso é todo esse racismo, toda a discriminação, toda a violência que a gente sofre até hoje, porque foi feito de nós o que queriam, como se a gente fosse bonecos, né?!

Eu sinto muito de falar dos genocídios, porque são muitas formas.

Eu... não queria que fosse tão cruel assim.

A gente falar desse

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Então, eu posso mexer de um jeito ou de outro, posso manipular, como se a gente não tivesse sentimento, né?!

Como se a gente não tivesse uma história pra contar.E a gente tem muito pra contar.

A gente tem que entender também que, junto com esse teatro bíblico, essa coisa de “a moral da história”, tudo cheio de muita moral. Eles, além de nos impor um Deus estrangeiro, também nos impõe uma noção de pecado, de inferno, de sexualidade sadia, do ponto de vista deles.

Demonizam a nossa cultura, os nossos corpos, a nossa sexualidade. Tudo se torna pecado. E isso não acabou na época da colonização no século XVI. Isso foi começado

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GLÓRIA do Coletivo Toda Deseo

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pelos jesuítas, mas agora continua com força com as igrejas neopentecostais, que têm entrado nas aldeias, demonizando as pinturas corporais, as pinturas faciais de jenipapo e urucum.

cabeça dos parentes, na cabeça de cada indígena, que sai da aldeia e vem para a cidade. Quando volta pra aldeia, e quando a gente tá andando pelas ruas da cidade, de qualquer lugar, quando a gente tá andando de transporte público.

Os nossos Deuses “são demônios”, então, as casas de reza têm sido depredadas também.

As pessoas têm opção. Nós somos seres humanos, podemos ter qualquer religião que a gente quiser. Mas a gente não aceita que a religião indígena, a cultura dos pajés seja demonizada.

Ninguém é obrigada a aceitar nenhum tipo de evangelização, de

cristianização, como se a gente já não tivesse a nossa cultura em nós. É muita violência você dizer pra uma pessoa que aquilo que você acredita a vida inteira ou que você acreditou a vida inteira, não presta ou vai te levar pra um lugar chamado inferno, que jamais você teve noção do que era isso. Ou que suas práticas que te deixam felizes, que trazem alegria, harmonia com seu modo de vida, “é pecado”.

Então, disso tudo também, trouxe esse adoecimento, porque não é possível ser saudável numa sociedade que diz que tudo aquilo que você acredita, acreditou, que seus avós te disseram, que tudo isso é… vai te levar para o inferno que eles criaram.

Eles criaram o inferno, não nos deram opção para sair desse inferno e mantém esse inferno latejando na

A primeira ideia que vem é que esse indígena, esse indígena é o pederasta, é dado aos pecados carnais. É o que não confia em Deus. É o sem rei, sem lei.

E que a gente não é digno de estar nessa terra.

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Incentivo:

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Expediente Idealização: Idylla Silmarovi e Paula Kimo Organização e Direção Artística: Idylla Silmarovi Direção de Produção e Gestão de Projeto: Paula Kimo Produção Executiva: Ana Cecilia

0820/2017

Volume Um

Assessoria de Comunicação: Giovanna Heliodoro e Juhlia Santos Design Gráfico e Fotografia: Babi Macedo

Produção e edição de vídeo: Mirela Persichini Gravação e edição de áudio: Debris Oliveira Autoras e mediadoras dos encontros: Brisa Alkimin, Elisa Santana, Eneida Baraúna, Karú Torres, Nina Caetano, Xoeni Maxakani (Suely Maxakali) e Zora Santos Transcrição: Idylla Silmarovi

Zona de Encontro Volume Um TEXTURAS Projeto Gráfico e Diagramação: Estúdio Errado Ilustrações: Babi Macedo Revisão e Edição: JoMaKA Editora: Impressões de Minas

Esta revista foi realizada com recursos da Lei Municipal de Incentivo à Cultura de Belo Horizonte.

Contém Áudiobook

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) de acordo com ISBD

Esta revista contém versão em áudiobook para promover acessibilidade.

Z87

Acesse em: vimeo.com/380463865 Belo Horizonte, fevereiro de 2020. zonadeencontro@gmail.com Instagram: @zonadeencontro Facebook: Zona de Encontro Idyllasilmarovi@yahoo.com.br

Zona de encontro: texturas / Zora Santos ... [et al.] ; organizado por Idylla Silmarovi. 1.ed. - Belo Horizonte, MG : Impressões de Minas, 2019.

212 p. ; 19x25cm.

ISBN: 978-85-63612-77-9 1. Arte. 2. Memória. 3. Conhecimento. I. Santos, Zora. II. Santana, Elisa. III. Torres, Karú. IV. Alkimin, Brisa. V. Baraúna, Eneida. VI. Caetano, Nina. VII. Maxakani, Xoeni. VIII. Santos, Juhlia. IX. Kambiwá, Avelin Buniacá. X. Silmarovi, Idylla. XI. Título.

CDD: 700 CDU: 7 Elaborado por: Vagner Rodolfo da Silva / CRB-8 9410

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