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edição no 01 | ave aos ímpios a fearless mag é uma publicação trimestral, online e impressa, totalmente independente e colaborativa feita por e para pessoas LGBT+. um manifesto sobre a população criativa e artística e um mapa experimental do conteúdo criativo dentro da sigla.
editor-in-chef e direção criativa
fotórafos
edição de conteúdo
ilustrações
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luca weingärtner letícia daniel
produção executiva
thais maestrello
produção de conteúdo
luca weingärtner e daniela lourenço
direção de arte e design
guilherme lourenço e marcos boscolo revisão
raquel cutin
bernardo enoch, jonys lowe, luca weingärtner e santiago coronel giovana macedo colagens
raquel cutin moda
caique tavares, chris gomes, matheus capanema e paulo cachoeiro beleza
carol romero e monique lemos textos
arthur avila, giovana macedo, luiz marques, muryel elzébio, raquel cutin, ricardo miguel e victor galhardo audiovisual
barbara lamonato, catarina alexandre e daniela lourenço social media
guilherme lourenço, marcos boscolo e paulo campos nesta edição
brenda suzuki, cristina judar, danna lisboa, duda dello russo, ilunga malanda, iran giusti, natália borges polesso, maria luiza floriano, larissy oliveira, lucas scartozzoni, luana hansen e rico dalasam
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Rico Dalasam por Santiago Coronel
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carta do editor Aquele que não teme: corajoso, intrépido, valente. Ser LGBT+ é um ato de coragem. Existir é um ato de resistência. Criar é um ato de sobrevivência. Dar voz as histórias de uma população marginalizada é um desafio. O nosso desafio. Somos um grupo de criativos LGBT+ que busca, com paixão, e dor, dar cara, nome, cor e forma a nossa própria realidade. Feitos por e para, somos um manifesto vivo, um organismo multi-existente e resistente que se desdobra e se alimenta do próprio núcleo. E acreditamos na força gerada pelo coletivo. Juntos somos mais. Somos mais plurais, somos mais verdadeiros, somos mais criativos. Juntos somos uma força. Um estrondoso eco, que reverbera e se espalha. Somos o eco dos que vieram antes de nós, que jogaram pedras, iniciaram revoluções, apanharam e morreram por nós. Juntos permanecemos sem medo. We Stand Fearless.
LUCA WEINGÄRTNER EDITOR-IN-CHIEF & DIRETOR CRIATIVO
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direção criativa GUIL HERME L OURENÇO fotografia jonys l owe moda caique tavares & guil herme l ourenço elenco brenda suzuki & l arissy ol iveira
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Casa1 A Vivência
Multicultural
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texto Muryel Euzébio fotos Bernardo Enoch colagem Giovana Macedo
Vivemos em uma época em que grupos sociais não hegemônicos dificilmente ganham voz. Essa realidade reverbera na nossa sociedade que, por sua vez, possui uma estrutura que impede esses grupos não hegemônicos de terem os mesmos direitos e oportunidades que grupos que seguem o normativo. Tendo como exemplo, LGBTs que passam por processos de silenciamento e exclusão social. Isso se concretiza quando 73% da comunidade afirma já ter sofrido agressões dentro das escolas. Fatores como esse contribuem para desigualdade e descompasso da comunidade LGBTQ+ em relação ao restante da sociedade, fazendo-se mais do que necessário a existência de um espaço como a Casa1. Um local de Multiculturas e Multivivências O desserviço das instituições de ensino para com a população LGBT e para tantas outras comunidades é notável. Não há apoio profissional para que professores e alunos possam lidar com aquilo que é considerado diferente, quiçá conceber uma construção coletiva em sala de aula, que atenda pluralidade humana. A Casa1 atua na contramão desse retrato institucional, pois é construída coletivamente, com respeito ao indivíduo e diálogo intenso entre moradores e voluntários da casa, como relata Giusti. Embora estar em uma sociedade justa para todos seja uma utopia para muitos, na Casa1 é possível visualizar uma configuração mais igualitária e receptiva a essa realidade. Com uma agenda de atendimento público 12h por dia, de de segunda à segunda, os espaços da 022
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Casa1 são preenchidos por diferentes públicos e pensamentos - fomentando o diálogo e troca entre todos. Mas, a casa não se responsabiliza por esse processo, mas sim por apresentar um local seguro para que esses diálogos tomem forma. É primordial que empresas e outros espaços de resistência estejam cada vez mais abertos a receber a diversidade, para tal é necessário respeito, educação e entendimento.
Pela visibilidade que a Casa alcançou, Iran destaca que parcerias como a Pepsi tornam-se fundamentais para o desenvolvimento do projeto, de levantamento de questões sociais, capacitação e oportunização de vagas para pessoas trans no mercado de trabalho. Mesmo existindo outros locais de atendimento ao público, o projeto Casa1 já era uma demanda da comunidade LGBTQ+, pois representa um espaço que acolhe pessoas e exorta a diversidade sexual e de gênero, o seu viés multicultural é uma consequência orgânica.
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A Casa1 fica localizada na Rua Condessa de São Joaquim, 277. O Galpão Casa1 fica na Rua Adorian. Ambos abertos todos os dias das 10h às 22h.
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Iran Giusti conta que a Casa1 um possui dois espaços com funções colaborativas entre si. Além de exercer a função de abrigo, a casa também conta com o Galpão Casa1, onde são disponibilizados diversos cursos, oficinas, eventos e shows,criando acordos tácitos entre públicoe moradores da casa. Este cenário vem da política de portas abertas da Casa1, que permite esse espaço de diálogo das questões LGBTs e outras paralelas. O respeito também é o princípio fundamental do projeto: até Caetano, o cachorro adotado pela casa, é respeitado - Aí de quem tentar tirá-lo do sofá.
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MULHERES ERRADAS
texto Ricardo Miguel ilustração Giovana Macedo
Em 1948, com apenas 16 anos de idade, Cassandra Rios publicou seu primeiro livro: A Volúpia do Pecado. Retratando o amor entre duas mulheres com bastante naturalidade, sem patologizar ou criminalizar, e dando um final positivo a trama, ela foi pioneira na literatura brasileira e quiçá mundial. Entre as manchetes que destacam Cassandra, podemos evidenciar as dizendo que ela foi uma das pessoas mais censuradas durante o período da ditadura militar no Brasil. Segundo O Globo, 33 dos seus livros foram censurados por incluir conteúdo pornográfico e/ou homossexual. “(...) Desde o início da minha carreira, eu venho sendo perseguida por ter descerrado a cortina da hipocrisia, por ter rompido preconceitos e por ter desprezado e pisado em tabus a fim de despertar interesse por determinado assunto, libertando-o das amarras da falsa moral e do puritanismo (...) Joguei com a coragem, sem medo dos escândalos, sem temer as falsas interpretações e o meu envolvimento pessoal e sem me acovardar diante das perseguições”, escreveu Cassandra no livro Maria Padilha, lançado em 1979. Entre os anos da ditadura militar (1964-1985), as artes foram fortemente censuradas a pretexto de prezar pelos “bons cos-
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tumes” e conter a temível ameaça comunista. Assuntos como pornografia e romance entre pessoas do mesmo gênero não poderiam circular entre os cidadãos brasileiros. Essa caça às bruxas não conseguiu parar Cassandra, que expressou na literatura não só sua orientação sexual, mas também uma sexualidade vivida e sem o menor pudor.
“É bom que possamos nos reconhecer nas narrativas. É ótimo que possamos ler algo que nos diz algo importante, que nos diz que não estamos sozinhas. Mas para além do público LGBT, estas representações plurais fazem bem a todo o mundo”, observa Natalia. E ainda descreve suas primeiras impressões ao ter suas primeiras descobertas LGBTQ+ na literatura: “depois que conheci os escritos de Caio Fernando Abreu e Lygia Fagundes Telles. Lembro da sensação de ler e pensar ‘isso tá indo pra um lugar que fala diretamente comigo”.
Em 2017, sessenta e nove anos depois do lançamento do primeiro livro de Cassandra, mais mulheres estão trazendo perspectivas variadas da identidade lésbica para a literatura nacional. Natalia Borges Polesso ganhou o Prêmio Jabuti, uma das premiações literárias mais importantes do Brasil, pela coletânea de contos Amora (Não Editora). “São contos sobre descobertas, relações, xadrez, paixões adolescentes, depressão, identificação, companheirismo, velhice, infância, pobreza, morte, festas, grupos, sobre tudo que todos nós fazemos. Queria apontar isso com os contos: somos mais que nossa sexualidade, isso não nos define, somos seres completos”, afirma Natalia em entrevista para a FEARLESS Magazine.
Em entrevista, Cristina Judar também falou da importância de autores LGBTQ+ difundirem suas obras: “é importantíssimo que autores LGBTs se inscrevam em prêmios, mandem seus livros para editoras, circulem em eventos, leiam os seus contemporâneos, conheçam o que há de melhor e de pior, tenham senso-crítico e se livrem da autopiedade, invistam em si mesmos e na sua literatura, deem a cara a bater e se coloquem de igual para igual com os outros escritores”.
Entre os 12 e 13 anos de idade, Natalia achou que havia algo de errado com ela. O motivo? Tinha interesse tanto por meninos quanto meninas. Sem ter com quem conversar sobre isso, escondeu seu interesse até quase o fim da adolescência. Foi aos dezessete anos, com o aparecimento de uma personagem lésbica, interpretada por Christiane Torloni, na novela Torre de Babel (1998), que ela encontrou abertura para comentar com suas colegas que não se interessava somente por homens. “Mas só fui beijar uma mulher quando tinha quase dezoito anos”, declara Natalia.
Cristina Judar é jornalista e autora de duas histórias em quadrinhos, além do livro de contos Roteiros para uma vida curta (Editora Reformatório), e mais recentemente lançou seu primeiro romance, Oito do Sete (Editora Reformatório). Com duas protagonistas lésbicas, o livro reúne duas mulheres que são
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Atualmente, Natalia aponta gostar do trabalho de Vange Leonel, Cassandra Rios e autoras contemporâneas, como Lisa Alves, Sabrina Alento Mourão, Cidinha da Silva, Lucia Facco e Cristina Judar. “Não faltam autores, nem obras. Falta circulação destes, falta falar mais delas, falta discutir assuntos importantes a partir de um novo olhar estético”, elucida Natalia.
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deveria ser algo tão pesado como é hoje”, disse Lola.
definidas por muito mais que suas sexualidades, são pessoas completas e complexas. “Magda e Gloria são lésbicas e a história delas faz parte de um todo, de um sentido maior. Elas não estão à parte, não são peças desencaixadas: apesar de suas personalidades únicas e individualidades, elas são parte. Elas são vistas e encaradas como qualquer pessoa, como acredito que as pessoas LGBTs devam ser vistas e respeitadas e, principalmente, representadas pela arte, no Brasil e no mundo”, conta Cristina sobre o enredo de Oito do Sete.
Pela falta de representativade e uma figura para conversar, Lola acabou sujeita ao que contaram sobre ser um LGBTQ+, ela lembra de quando uma tia descobriu que ela estava ficava com meninas: “quando eu comecei a ficar com meninas, eu fazia isso escondido. Uma vez essa tia me pegou com uma menina e falou: ‘você não pode fazer isso, é errado, se você fizer de novo eu vou ter que contar pro seu pai, vocês vão pro inferno’, essa conversa toda eu tinha uns treze, quatorze anos. E aí depois disso eu realmente parei sabe, eu falei ‘meu deus, eu vou pro inferno’ e eu parei mesmo”.
A Próxima Autora
Por sorte, revelar que gostava também de mulheres para familia acabou saindo melhor do que o esperado, sua irmã disse que já sabia e o pai recebeu com certa tranquilidade. O mais difícil foi contar para a mãe, Lola explica: “minha mãe é mais tradicionalista, então ela tem essa ideia de que isso é só uma fase, que eu vou gostar mais de homem. Ela fala muito que é para que eu não sofra, ela sabe que não vai poder pegar todas as minhas dores e, sei lá, me ajudar toda vez que alguém for me machucar”.
Lola não se lembra do seu primeiro contato com personagens LGBTQ+ na literatura e outras obras de ficção, mas viveu boa parte da infância e adolescência sem ter conhecimento de nenhum. “Não tinha sei lá, um desenho, uma série, uma novela que falasse disso. Tudo que você via era que lésbicas e que gays eram errados. Na verdade, era como se não pudesse nem falar sobre esse tipo de coisa. O processo de se descobrir já é uma coisa bem complexa, seria muito mais fácil se tivesse mais informação, se você começasse a ler livros com lésbicas e fosse tratado como algo normal, você não ia se sentir que está errado descobrindo quem você é, não
Para o futuro, Lola pretende se dedicar em outros projetos, como seu canal no Youtube, viajar para os Estados Unidos e lançar mais livros, até uma continuação para O Próximo da Lista está nos planos. Questionada se está escrevendo no momento, ela responde: “Sim, eu estou sempre escrevendo alguma coisa. Pretedendo lançar algo em breve, não sei se tão breve, mas no fim do ano que vem pode ser que saia algo novo, não quero ficar muito tempo sem publicar nada, é algo que eu gostei muito de fazer”.
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Recém formada em jornalismo, Lola Cirino, 22, lançou seu primeiro romance em janeiro de 2017, O Próximo da Lista (Editora Multifoco) trata da descoberta da sexualidade de Felícia, jovem perto dos 30 anos que acabou de terminar o relacionamento com o namorado e, com a ajuda do melhor amigo, marca de sair pela primeira vez com uma mulher por meio do Tinder. “Um dia eu tava tentando dormir, só que eu durmo muito tarde, aí eu comecei a pensar nessa história e eu não consegui parar de escrever, escrevi a madruga inteira”, explica Lola.
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Mulheres Sapatonas e a Não Feminilidade no Rap texto Giovana Macedo colagem Raquel Cutin
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Desde 1997 o maior expoente lésbico do Hip Hop era Queen Penn, com a música “Girlfriend”, insinuando que roubava namoradas. Queen Penn, apesar de ser uma mulher heterossexual, foi capaz de , com esse single, causar grande polêmica no rap, não só por ser mulher, mas principalmente uma mulher falando que beijava outras mulheres. 20 anos depois e o lesbianismo no rap ainda é assunto.
A diferenciação entre o rap masculino e o feminino está muito mais ligada à performance de feminilidade do que ao sexo, de fato. Young M.A, por exemplo, foi indicada pelo BET Awards, abriu shows para Beyoncé, ganhou um MTV Music Award e, ainda assim, não é nunca tratada como uma Rapper Feminina. M.A. é uma mulher lésbica assumida, de descendência porto riquenha, que canta sobre ser sapatão. Ela não performa femilidade e é con-
Outras rappers lésbicas que não estão no mainstream como M.A enfrentam as mesmas barreiras que ela para conseguir seu espaço: é esperado delas que sexualizem mulheres, que sejam “como os caras” pois, do contrário, são ignoradas, diminuídas, obrigadas a esconder sua sexualidade. Angel Haze é um grande exemplo - a artista se moldou para não ter que seguir essas expectativas, não fala sobre lesbianismo nas suas letras, começou a performar feminilidade à medida que foi ganhando projeção. A realidade do rap é que ele ainda é muito calcado nos padrões de gênero e as artistas não tem culpa nenhuma disso. Os rappers heterossexuais, os homens, conseguem sucesso e adoração sendo misóginos e se beneficiando disso enquanto mulhe-
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Lil Kim, Missy Elliott, Nicki Minaj: o mainstream já aceita muito melhor as mulheres na indústria, pelo menos. É, porém, irrefutável que a presença feminina no rap está atrelada a heterossexualidade, a performance de feminilidade, à rivalidade feminina e adoração de homens. Isso, de forma alguma, reduz o mérito dessas mulheres - que já representam um avanço no cenário musical mundial: são mulheres negras cantando sobre seus cotidianos, vida pessoal, sexual, desejos, sonhos. Tudo isso é louvável, claro, mas a narrativa é sempre, invariavelmente, heterossexual e, portanto, o espaço reservado para mulheres lésbicas no rap hoje vive no rap dito “masculino”.
siderada uma “stud”, termo popular nos EUA que designa mulheres que não performam feminilidade e tem um comportamento considerado “masculino”, e sua música traduz muito do que se é esperado de mulheres sapatonas no rap: reprodução de comportamento tóxico masculino. M.A objetifica mulheres, canta sobre carros, dinheiro, vadias. Ela não faz somente isso, mas é nessas músicas que recebe reconhecimento. A artista tem músicas sobre violência de gangues, violência racial, lesbofobia, mas é lembrada como a mulher lésbica que reproduz comportamento masculino, como “um deles”. Young M.A é a mulher sapatona mais bem sucedida que já existiu no rap, e, ainda assim, não encontra apoio na comunidade LGBT como artistas heterossexuais brancas que se dizem defensoras da causa e são racistas, homofóbicas e/ou fetichistas.
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res sapatonas são condenadas por reproduzirem o mesmo comportamento que é a elas socialmente imposto. Artistas como Drake, inclusive, ganham fama nas costas de mulheres rappers lésbicas: “Fake Love” e “Ice Melts” do artista foram escritas por Starrah, que já escreveu músicas para R.Kelly, Jerimih, Travis Scott, Big Sean e uma infinidade de homens rappers e recebeu pouquíssimo reconhecimento mainstream. Starrah está no início de uma carreira solo como rapper, mas as músicas escritas e cantadas por ela não tem nem metade da projeção de suas letras cantadas por homens. Ela não mostra o rosto em seus videoclipes e raramente o faz nas redes sociais, indício da evidente pressão que sofrem mulheres lésbicas que não performam feminilidade dentro do rap.
Essas artistas são só algumas das mulheres sapatonas que estão fazendo história - ou, como diria M.A em seu novo álbum, fazendo herstory - e precisam de reconhecimento acima de qualquer expectativa, classificação de gênero ou problematização lírica para que possam promover a representatividade no rap, para que possam abrir espaço para futuras gerações de mulheres sapatonas conscientes que consigam quebrar com a imposição do comportamento masculino tóxico. Para haver evolução e conscientização é necessário primeiro que alguém tome esse espaço e, ainda que não pareça possível, essas mulheres já estão tomando.
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070 Shake é uma artista que canta sobre relações lésbicas, sobre sua realidade, sua a vida. Ela é poeta e participa de um grupo (070) com três homens. A artista é mais uma jovem rapper sapatona que assim como M.A, como Starrah, Siya, tem sua carreira constantemente minada por sua sexualidade e sua coragem de falar abertamente sobre ser uma mulher lésbica e, mesmo assim, está quebrando barreiras. Shake lançou um clipe pela VEVO esse ano e é a artista do seu grupo com a maior projeção. Ainda assim, a artista é constantemente questionada sobre seu gênero, sobre sua namorada e regularmente comparada com seus companheiros de grupo.
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RICO DALASAM PARTE FLOR, PARTE GRANADA texto Arthur Avila | fotos Santiago Coronel
“Eu era uma criança viada. Quando começou a adolescência, eu me fechei muito. Para as pessoas, para mim, para minha natureza, e o rap era a coisa que eu mais me identificava e conseguia dar uma abertura para que as letras das músicas tivessem algum efeito na minha vida”
O Rico Dalasam de hoje partiu da premissa: um menino apaixonado por outro que sabia escrever rimas. Mas ele precisou mais do que sua paixão para conseguir um espaço no mercado. Negro, gay e da periferia, teve, muitas vezes, que se mostrar acima da média, mesmo sendo a vaga que ele queria, para alguém que estava apenas na média. Ele diz que todo jovem que carrega consigo as qualidades de gay, negro, entre outras minorias, leva também o estigma da pré-seleção e que essa pessoa precisa, com frequência, se provar merecedor daquele lugar: não é algo que acontece naturalmente, algo que você merece só por ser competente naquilo.
“Nunca tive patrão, sempre trabalhei por conta, prestando serviços às pessoas, mas sem ter alguém para me dizer ‘não’. Partiu de um espírito independente que me fez criativo para não ficar duro e ter minha grana, fazer minhas coisas. Desde os 13 anos que trabalho e aos 16 já era bem emancipado, sem depender de grana da minha mãe, mas acho que tudo isso por conta da vontade de ser independente e desse meu espírito intrépido que não cedeu totalmente a um sistema que me trataria como
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Jefferson Ricardo da Silva, ou Rico Dalasam – Disponho Armas Libertárias a Sonhos Antes Mutilados –, é o primeiro rapper assumidamente gay do Brasil. Começou a cantar e recitar o estilo musical aos 16 anos, nas batalhas de MCs do metrô Santa Cruz, mas começou a escrever raps com, aproximadamente, 12 anos, só que guardava as letras para si. “Na sétima série foi a primeira vez que me apaixonei forte por um menino. Ao mesmo tempo em que doía muito, era mágico saber que aquilo fluía de mim e o rap era o jeito que eu tinha de contar - para ninguém, mas, pelo menos, tirava do meu corpo”, conta Rico.
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lixo, como alguém que precisa provar muitas vezes mais que o concorrente que aquele lugar pode ser seu”, diz o ex-cabeleireiro nascido em Taboão da Serra.
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Rico saiu da periferia puramente por necessidade profissional. Disse que o gasto em morar no Centro é um pouco maior, mas é mais prático. Ele estava começando a se atrasar para os compromissos e, no dia que conversamos, ele tinha que estar em mais dois lugares; caso ainda morasse em Taboão, não seria tão fácil cumprir sua agenda. A periferia, em sua opinião, é um lugar criado para as pessoas que precisam ser escondidas em algum momento. “No final de semana, o Centro não presencia a mesma quantidade de gente de periferia que ele presencia no dia de semana. O final de semana é momento de viver, de ser pleno – porque de semana você não vive, só presta serviços a alguém – e você está lá na sua periferia, onde sua imagem, sua estética, sua presença marginal, não interfere na vida de quem tem o centro como lugar de privilégio, de uma vida mais digna financeiramente”, acrescenta. Desde que lançou seu primeiro EP “Modo Diverso”, em 2015, Rico já levou sua música a diversos países; a turnê “Balanga Raba”, de seu último EP, lançado em 2017, teve seu show de estreia na Parada Gay de Toronto, no Canadá. Assim, percebeu como o LGBT é visto de forma diferente em cada país. Para ele, o LGBT no Brasil é muito desassistido e carente de políticas públicas que os protejam. “Não tá construído na nossa cultura que ao violar o espaço de alguém, você será severamente punido, como ocorre em outras constituições. Portanto só o ato de você demonstrar carinho em público te coloca em grande risco - muitas vezes, risco de morte. E ser negro também não é diferente. Se eu transito por lugares onde existe uma cultura invisível de que foi feito para eu habitá-lo em certos horários e eu estou ali, é como viver em uma zona de risco, um campo minado. Você tá amando, dançando, mas está com a espada na mão”, aborda ele. Rico vê a homofobia no Brasil como um caminho sem volta, mas segue sem deitar para nada, como diz em uma música de seu último EP lançado, com seu discurso de fortalecimento ao oprimido – mesmo acreditando que a mulher não tem que ser tão forte, o jovem negro tão resiliente e o LGBT não tenha que ter seus passos tão calculados – e que vale contar os dias do opressor. No final de 2014, quando bateu de frente e iniciou sua carreira musical, ele criou uma gama de possibilidades
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para que outros artistas vindos da periferia pudessem, também, vir a ser expoentes. Agora, ele busca que as letras de suas músicas sejam legitimadas e virem sinônimo de coragem, assim como é sua imagem.
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“Olhando quando comecei a cantar e hoje, percebo o mesmo grau de homofobia, só que em dimensões distintas, porque estou em outro lugar e em cada lugar a diplomacia funciona de um jeito. Antes o público LGBT não frequentava tanto os meus shows; hoje, isso mudou. Agora entendo que minha música tem força para alcançar tantos outros lugares. A música tem esse poder. No primeiro instante, na inocência da estreia, se você é bixa, preta e tem uma música que fala isso, você espera o retorno imediato desse público, só que a música tem sua própria magia. Algumas famílias tradicionais me ouvem e acham incrível e tem gente que tá na cadeia e também se identifica”, lembra Rico. Sobre voltar a ser cabeleireiro e produtor de moda, Rico disse que nunca parou, pois todas as direções artísticas de seus trabalhos são feitas por ele e mesmo quando vai fazer algo de publicidade que não é de sua direção, ele pede para ficar responsável por alguma coisa, por exemplo, o styling – que envolve o figurino utilizado pelo artista. Próximos trabalhos Desde criança, teve inclinação para as artes e a música fez dele um canal através do rap, mas, durante seu percurso, quando entendeu o sentimento que cada nota gera nas pessoas, seu jeito de compor foi mudando. Seu próximo disco já está pronto; pela quantidade de coisa que produz, ele conseguiria lançar dois por ano. Neste ano ele só colocou na rua a primeira parte do EP “Balanga Raba”, mas a segunda parte já está concluída. “No próximo disco, que sai ano que vem, estou preparando canções. Não posso dizer que é rap. A atitude, talvez, sem-
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pre seja, porque é o jeito que meu corpo se move e comunica. Tem muito dessa coisa minha do trava-língua, de brincar com as palavras, mas eu não estou preocupado necessariamente se isso vai balançar a bunda das pessoas. É o que está no meu coração, então pode ter certeza que serão mensagens fortes. Quero dizer coisas sobre mim que não costumo dizer, expor partes da minha existência que mostram que eu não sou só força, que eu também tenho um monte de cacos e rasuras em processo de cicatrização”. Para o jovem negro, LGBT, de periferia e que quer seguir uma carreira musical, Rico sugere que tudo seja feito com o coração, sem focar no que o mercado quer, para que a verdade, a vivência de modo mais simples, não seja perdida.
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camiseta: YLA Concept; shorts: Soulfree; casaco: Soulfree; sandรกlia: Cacete.Co; รณculos: Absurda; demais peรงas acervo.
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camiseta: Philadelphia Company; colete: Mormaii; calça: Akoriára; sandália: Cacete.Co; demais peças acervo.
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direção criativa L UCA WEINGÄRTNER fotografia santiago coronel ass. de fotografia l ucas danvie produção Daniel a l ourenço & thais maestrel l o moda caique tavares, L uke Hauckmann matheus capanema, & paul o cachoeiro beleza CAROL ROMERO
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fotografia & direção criativa LUCA W E INGÄRT NE R produção Danie la loure nço & t hais mae st re llo moda caique tavare s, chris gome s, mat he us capane ma, & paulo cachoe iro beleza MONIQ UE LE MOS assitente de produção guilhe rme loure nço elenco ilunga m. malanda, maria luiza floriano & lucas scart ozzoni
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Muito se fala atualmente sobre representatividade LGBTQ+ em produções audiovisuais e tem sido notável o aumento na quantidade de longas-metragens nacionais e internacionais que abordam essas vivências, assim como séries cujas histórias revolvem em torno de personagens e questões trans, bis, gays e lésbicas. É de extrema importância, no entanto, que, enquanto membros da comunidade LGBTQ, nos atentemos a quem está contando essas histórias, uma vez que passam pelo filtro de quem as roteiriza, dirige e, de forma geral, concebe e realiza. Azul é a Cor Mais Quente (2013), por exemplo, um dos mais aclamados filmes lésbicos dos últimos anos, foi dirigido por Abdellatif Kechiche - homem e heterossexual - e, apesar de ser baseado numa HQ escrita por Julie Maroh - lésbica assumida -, apresenta muitas problemáticas decorrentes da visão masculina acerca do tema, sendo a principal delas a distorção e fetichização das gráficas e extensas cenas de sexo entre as duas personagens prin-
cipais. A própria autora manifestou mais tarde sua insatisfação com a abordagem do diretor, que, ao retratar o sexo lésbico quase como o que se vê em filmes pornôs, acabou por torná-lo risível e inverossímil. Esse fato, como tantos outros, evidencia a necessidade de protagonismo de mulheres lésbicas em produções que tematicamente lhes dizem respeito. Uma das mulheres que está fazendo isso é a produtora executiva e escritora da série The Fosters (2013 - presente), Joanna Johnson. A série é centralizada num casal de lésbicas e seus filhos adotivos, num retrato que foge por completo do estereótipo fetichista de jovens explorando e descobrindo sua sexualidade, para mostrar, ao invés disso, os dramas da adoção, da maternidade, da violência e dos preconceitos sofridos por essas mulheres adultas. Johnson, assim como suas personagens, é também lésbica, casada e mãe, e seu olhar e vivências fazem toda a diferença ao trazer veracidade e seriedade em sua escrita.
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Angela Robinson, diretora, produtora e roteirista, frequentemente trata da temática lésbica em seus trabalhos e é uma das poucas mulheres lésbicas negras da televisão americana que tiveram espaço para escrever sobre e criar personagens que, assim como ela, são mulheres negras LGBTQ, dentre elas Tara Thornton (True Blood), Annalise Keating (How To Get Away With Murder), Bette Porter e Tasha Williams (The L Word), todas elas inteligentes, complexas e repletas de questões profundas, cuja personalidade vai muito além de sua sexualidade.
terpretadas por Julianne Moore e Annette Benning) e as consequências disso, o filme trata dessa realidade lésbica com surpreendente senso de humor e leveza, um retrato consideravelmente distante da costumeira melancolia e pessimismo que permeiam outras tantas produções de temática sapatão. Há, ainda, muitas outras escritoras, diretoras e produtoras assumidas cujos trabalhos representam fiel e respeitosamente a vivência lésbica, como Jamie Babbit, Aurora Guerrero, Céline Sciamma e dezenas de mulheres que criam e produzem muitos dos programas que assistimos e conhecemos. É claro que o lesbianismo por si só não impede a reprodução de comportamentos e dogmas heteronormativos, de estereótipos, sensos-comuns ou mesmo de outros preconceitos, visto que essas são, ainda, coisas presentes na vida de mulheres lésbicas em todo o mundo. Dessa forma, é importante que tais questões sejam também abordadas e discutidas por quem as vivencia, e é por essa razão que, de todo modo, devemos abrir espaço para que mulheres lésbicas contem suas histórias e sejam protagonistas das produções audiovisuais que as representam.
No cinema, a diretora Dee Rees, responsável pelo premiado filme Pariah (2011), é outro grande exemplo. Com distintiva sensibilidade, a diretora conta a história de uma jovem lésbica negra que não performa feminilidade, suas paixões e amizades e seu processo de se assumir para os pais. Ao fazer isso, no entanto, Rees não parte de uma visão julgadora e maniqueísta, tampouco aponta para qualquer um de seus personagens como vilão - apesar da mãe não aceitar a sexualidade da filha -, mas entende e transmite os acontecimentos como parte do processo de amadurecimento e autoconhecimento da personagem principal. Novamente, apesar de se tratar de um filme sobre descobertas sexuais e desilusões amorosas, não é uma história clichê pois suas personagens não são padronizadas e repetitivas, mas sim reais. No caso do filme The Kids Are All Right (2010), escrito e dirigido por Lisa Cholodenko (também responsável por High Art, de 1998), a história partiu de uma experiência pessoal da autora com inseminação artificial e maternidade. Apesar do envolvimento do doador de esperma na relação e na vida do casal de mulheres (in-
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as estradas dos artistas periféricos de São Paulo textos por Victor Galhardo| fotos por Bernardo Enoch
A geografia urbana de São Paulo é o retrato da alma brasileira: grande, segredada e repleta de questões mal-resolvidas. As diferenças de oportunidades levantam muros cada vez mais altos para quem sonha sair da periferia e conquistar a capital com seu trabalho. Em se tratando de arte as dificuldades aumentam, é quase como nadar contra o fluxo de influência criado pela sociedade, que condiciona para que o centro produza cultura para a periferia. Nessa luta, artistas se unem e buscam apoio de amigos e colegas para sobreviverem e desenvolverem seus trabalhos no mercado independente. Nesta série especial de reportagens, vamos conhecer a vida e trajetória de três artistas da periferia de São Paulo: Luana Hansen, Duda Dello Russo e Danna Lisboa. Abordando também questões como racismo, transfobia e machismo, mergulhamos em três mundos distintos para retratar a força e o talento desses jovens, que transformaram as dores e alegrias de seus caminhos em arte.
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Os caminhos da arte:
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Da arma à alma, o trajeto de Luana Hansen É em uma rua sem saída de Pirituba, na zona norte de São Paulo, que mora a rapper Luana Hansen. Conhecida por suas letras abertamente em defesa das mulheres, LGBT+ e população negra, a artista percorreu e ainda percorre um longo e sinuoso caminho em direção ao seu sonho na música. Única negra em família branca, filha mais velha de cinco irmãos, já vendeu bala no trem, serviu em balcão de padaria e mais uma infinidade de trabalhos, tudo para ajudar a mãe em casa. Enfrentou seu inferno pessoal quando caiu do tráfico para o consumo e se viu perdida por entre a sujeira da Cracolândia. Hoje, em uma nova vida, espalha com a música suas vivências, na esperança de ser farol na vida de quem, como ela um dia, já se perdeu por entre as ruas de São Paulo. Sua infância fora marcada pela falta do pai e pelas obrigações que quase sempre lhe roubavam das brincadeiras. Topou com a música popular brasileira ainda criança, Clara Nunes e Elza Soares foram algumas das que plantaram em seu peito as sementes que hoje germinaram em 17 anos de carreira. Na adolescência, Luana entrou para o tráfico, aos 14 anos. Começou levando droga do traficante ao consumidor, na ascensão virou dona da biqueira, no declínio foi expulsa de casa e acabou na Cracolândia. Mesmo nesta fase, a música ainda estava ali, tímida, germinando sua melodia. Dos encontros do tráfico, nem todos foram ruins. Com a que já tinha no peito, encontrou outras fontes para enriquecer sua música. Conheceu Sa066
botagem, Cartel ZO, Negra Li, e assim se viu envolvida de corpo e alma com o RAP. Começou escrevendo as letras das músicas, com ajuda dos amigos, foi ao longo de 17 anos construindo sua carreira.
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O espaço precisou ser aberto na porrada, lutando diariamente por ser uma mulher lésbica em um ambiente de maioria masculina, como é o RAP. Seu novo CD carrega essa história em suas músicas e em sua capa. Intitulado Favela, o álbum está sendo gravado dentro da favela da Vila Elba, no extremo leste da cidade. O álbum vem carregado da história de Luana, compartilhando suas dores e indignações, busca poder transmitir conhecimento, fomentar debates, mudar visões de mundo e ensinar com seus erros e caminhos. O seu público é a joia de sua coroa e tem mais espaço em sua vida do que os prêmios que já recebeu por suas músicas, como é o caso da faixa Ventre Livre de Fato, onde aborda o tema do aborto. Ela diz ter conquistado hoje o que sempre sonhou, o público pensante. Misturando suas vivencias na periferia, como mulher, como lésbica e como negra, Luana sente-se privilegiada em poder transitar por ambientes e espaços que raramente conversam entre si. Hoje, mãe lésbica de duas crianças, sonha em construir um mundo e uma família melhor para seus filhos. No peito, talvez o que mais mova seus passos seja o a busca pelo reconhecimento. Esse é o destino em que espera que seu caminho termine. 068
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Os mil rostos de Duda Dello Russo Eduardo Júnior, 21, cresceu em meio ao universo da moda. Desde pequeno, entre às máquinas de costura de sua tia, começou a enxergar em panos e tecidos a possibilidade de expressar toda arte que lhe pulsava. Criado na periferia de São Paulo por pais evangélicos, percebeu logo cedo que era diferente do resto da família. Aos treze anos, já entendendo sua sexualidade, resolveu contar para os pais e, mesmo com dificuldade iniciais, que, segundo Eduardo, foram como se “assumir uma segunda vez”, conseguiu encontrar apoio em casa.
YouTube sua “drag mãe”, gíria para a drag queen mais velha que ensina uma mais nova as técnicas da arte. De um começo tímido à criação de Duda Dello Russo, Eduardo mostra sua evolução como artista na confecção de roupas cada vez mais ousadas e diferentes, e também no aprimoramento da maquiagem.
Sem saber distinguir onde um começa e o outro termina, Eduardo costuma entrar em conflito, afinal, roupas, sentimentos, inspirações e tantos outros traços das personalidades dos dois se misturam, que fica difícil compreender o que exatamente é de O primeiro contato com cada um. A busca por equilíbrio drag queens veio na adolescên- é constante, segundo ele, na tencia, em uma balada em São Pau- tativa de não deixar o emocional lo, durante uma performance interferir. do Trio Milano, grupo de drags conhecido nas baladas LGBT+ da cidade. A curiosidade e o espanto levaram Eduardo a buscar cada vez mais conhecimento sobre o universo e encontrou no
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Eduardo também conta sobre o preconceito de dentro da própria comunidade LGBT+, onde muitos gays não se relacionam com quem se monta. Fora do meio, conta que sofre mais quando está vestido de Eduardo do que de Duda.
“Sou bem afeminada, isso faz com que eu seja alvo de mais preconceito. A Duda é diferente, as pessoas até dão uma risadinha ou outra, mas ninguém nunca fez nada”. Apesar disso, diz que hoje em dia, principalmente depois da explosão de artistas drags, como Pabllo Vittar, tem havido mais conscientização dentro e fora da comunidade, o que tem melhorado um pouco a questão do preconceito.
Uma das partes mais difíceis de sua vida como Duda vinha do trajeto que tinha que fazer entre a periferia e o centro, para trabalhar nas festas. O caminho deixava-o apreensivo e sempre em alerta. Tinha que sair montado e maquiado, pegar o último ônibus até o metrô, onde costumava pegar sempre um dos últimos trens. Em banheiro de bares e de espaços públicos, terminava de se arrumar. Durante todo percurso sentia olhares, ouvia piadinhas, perdia o ônibus por que o motorista decidia não parar. E o medo de apanhar sempre ali, na espreita. Dos presentes trazidos por Duda, está a carteira assinada, os fãs e um reconhecimento que não para de aumentar. Veio também a primeira viagem de avião e uma série de cidades visitadas pelo Brasil. Para o futuro procura sonhar sem limites, mas sempre buscando levar consigo a luta pela valorização da arte drag.
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Danna Lisboa e a transformação da alma em música
As indagações com relação a negligência da pessoa negra e periférica vieram muito cedo. Não se ver representada na televisão, nem na música ou em qualquer outro ambiente artístico sempre foi uma questão delicada e que mexia com a autoestima de Danna. Para suprir essa falta, decidiu ela mesma se tornar referencia para as outras mulheres trans e negras. Queria que as pessoas se sentissem incluídas, capazes, queria iluminar o caminho de quem estava sem referência e mostrar que o lugar da travesti e da transexual é onde elas quiserem e sonharam.
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A busca por seu lugar na sociedade sempre foi uma equação difícil de balancear para Danna Lisboa, 36. A vida como mulher transexual no país que mais mata travestis e transgêneros no mundo trouxe algumas das experiências mais difíceis, que só foram acolhidas por meio da música. Logo cedo, aos 18, veio primeiro contato com o universo LGBT+. Na época, ainda buscando entender quem ela era, começou a se apresentar em baladas como drag queen, foi aí que nasceu Danna Black. As referências de cantoras black americanas sempre foram elementos presentes e se misturaram com o rock e o RAP.
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Quando começou a se entender como mulher trans as relações com a família, que já tinham dificuldade em aceitar uma possível homossexualidade, se tornaram ainda mais complexas. Saiu de casa na juventude, foi morar com amigos, passou fome e precisou recorrer as esquinas e avenidas de São Paulo para tirar seu sustento. A fase na prostituição foi uma das que mais marcaram a cantora e suas dores e vivencias acabaram se transformando em música com a faixa Cidade Neon. Desta época, uma das lembranças que mais deixou marcas foi quando, morrendo de fome, precisou usar uma lata velha de óleo como panela para esquentar um miojo.
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Essa lembrança dolorida também revela a falta de oportunidade que nós, enquanto sociedade, continuamos a perpetuar para as pessoas trans. Danna recorreu à prostituição por que não encontrou espaço para trabalhar dignamente. Essa dor só não é maior do que o trauma de ter deixado de estudar, quando ainda era criança, sofreu uma série de ameaças na escola, por ser muito afeminada. Longe da família, sem apoio e sem ter para quem recorrer, passou pelas ruas e pelas transformações corporais sozinha. Hoje, a ponte com a família foi refeita. Morando na parte debaixo da casa de sua mãe, Danna fez as pazes com seu passado e com seu corpo. Sua paixão por explorar a arte em todas as suas formas e expressões continua pulsando forte, junto com a busca por seu espaço no mercado e na cena independente da música. Mas o maior sonho de Danna Lisboa continua sendo um: tirar os transexuais das estatísticas e colocá-los no local dos sonhos, e para isso, sua arma é uma só a música.
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tempos difíceis para ser suellen
Pobre Suellen, sarrava com as amigas porque eram sua única proteção. Se arriscar em chavecar um boy ali era o mesmo que arriscar ganhar uns tapas. A noite adentro foi inteira assim: um riso aqui, um boy zoando ali, uma cerveja que tacaram nela e ela dançando com suas amigas. Era dia de baile e nada iria estragar sua alegria. Era hora de ir embora. As amigas, todas cansadas, ajudavam a mona Kendra a andar. Ela exagerou ao tombar mais uma cantina do vale. A polícia já estava no local e a festa chegava ao fim. Com os saltos nas mãos, as amigas caminhavam para a casa de Suellen, ignorando todos os convites sexuais debochados que ganhavam de alguns garotos e os olhares e risinhos pelo caminho. Era sempre assim.
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texto Luiz Marques ilustração Giovana Macedo
Suellen está pronta para abalar. Depois de vestir uma blusinha nova e se maquiar por algumas horas, ela colocou a picumã que tinha e estava prontíssima. Suas amigas estavam lá também, ajudando a gayrota a se preparar para mais um baile funk na Favela de Heliópolis, o famoso Baile do Helipa!
Ser quem você é pode ser perigoso. Nem todo mundo vai aceitar a sua forma de ser. Precisa ter coragem para viver sob uma máscara, mas precisa de mais coragem ainda para tirá-la e fazer seu sorriso reinar e dominar os problemas. Dominar a ignorância dos outros. Suellen era a prova disso. Vestir sua peruca e sua blusinha era sua forma de se armar para combater uma sociedade que se preocupava demais com a vida dos outros.
Na rua, compraram dois corotes para esquentar a caminhada até o fluxo. Animadas e levemente alcoolizadas, já sorriam e sarravam até o chão. Eis que então começaram a se espremer e desviar de um ou outro que dançavam pelo caminho. Elas queriam chegar o mais próximo possível da caixa de som de um dos carros que tocavam MC Kevinho ao máximo! E quando o grave bateu, meninas, não sobrou bumbum parado.
Na segunda-feira, pouco depois das seis da manhã, Maycon estava de banho tomado e vestido com roupas sociais. Ele era office boy em uma empresa de contabilidade na região da Luz, no centro da cidade. Tinha alguns minutos para comer, antes de subir no ônibus e começar a rotina semanal, mas ficou sentado em sua cama, cansado. Estava cansado de todo o rolê com as amigas no final de semana, de ter que tirar toda a maquiagem que usou para ser Suellen e também de ter que voltar a rotina que não alegrava em nada a sua vida, mas era sua melhor opção para garantir que no próximo final de semana Suellen voltasse à vida.
Entre uma risada ou outra que chamaram a atenção de Suellen, sem ver nenhum palhaço ou motivo para rirem, percebeu que um boy ou outro olhavam para ela. Eles riam dela. De vez em quando um deles se arriscava a vir atrás dela pra sarrar um pouco, mas só na zoação, porque saíam correndo da dança dizendo um para o outro “cê é louco”. E as risadas continuavam.
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COLABORE EM NOSSA PRÓXIMA EDIÇÃO A fearless mag é uma publicação independente e colaborativa, e está sempre aberta para novos nomes! Se você é LGBTQ+ e fotógrafo, ilustrador, quadrinista, design, jornalista, estilista, produtor, diretor, etc... nós queremos publica-lo. Envie seu trabalho e algumas informações sobre você para
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AGRADECIMENTOS Gostaríamos de agradecer ao Centro Cultural São Paulo, a equipe do Festival Mix Brasil, a Universidade Anehmbi Morumbi, ao Beco 203 e a Casa Ponte, por nos cederem o espaço e direito de imagem para nossas matérias e ensaios. A toda a equipe de modelos e convidados. Aos nossos colaboradores e a vocês, nossos leitores.
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