Dedico este livro à minha família. E à Tarrafas também. Até porque, se pensar bem, são a mesma coisa, né?
Para sobreviver, tens que contar histórias.
— Umberto Eco
[...] Quando somos levados ao longe, Pela força da realidade, Permaneces em nossas lembranças, Mergulhados no mar da saudade.
Regressamos a dor contida, No abraço, as emoções, Ó Tarrafas, terra amada, Que enaltece nossos corações!
— Hino de Tarrafas
Panorama histórico
Dedicação e boa vontade
Antônio Verônica, Pág 37.
As mil vidas de uma
, Pág 47.
Os passos da peregrina da educação, Pág 59.
Uma homenagem ao
, Pág 87.
As dores de Maria A Dama da educação
Memórias Iluminadas, Pág 95.
Não foi fácil, Pág 109.
Irmãos Vilanova Política de pai para filho
O Arraial, a Guerra e o Peregrino , Pág 131.
De Francisco para João , Pág 145.
da Memória, Pág 157.
Pág 171.
Agradecimentos, Pág 173.
Pág 11. Fotografias, Pág 178.
Pág 180.
01
da educação tarrafense, Pág 23. 02 03 04 05 06 07 08 09 10
praça
nosso mestre
O Guardião
Posfácio,
Prefácio,
Equipe,
PREFÁCIO ABERTURA INTRODUÇÃO BOAS VINDAS
Nasci em uma família que tinha o costume de contar his tórias. Mais que isso, tinha o costume de se juntar para com partilhar memórias. Acho que, inconscientemente, este livro já estava querendo nascer há muitos anos.
Meus avós sempre têm uma história para contar. Indepen dente do assunto que seja, vozinho e vozinha tiram uma histó ria da manga. Meu pai também é assim, ele aprendeu com os pais dele.
Gostava demais de conhecer sobre Tarrafas, como algu mas coisas aconteceram, quem eram meus avós, tios, primos, bisavós e tataravós. Uma coisa que adorava fazer era montar árvores genealógicas, mas sempre perdia a paciência quando ficavam tortas por falta de espaço (família grande de um lado e enorme do outro, né?).
Contudo, conforme fui crescendo e me interessando cada vez mais por todas as histórias que me contavam, percebi que este não era um hábito comum para as pessoas da minha idade. Meus colegas de aula e pessoas de gerações próximas à minha não tinham o mesmo interesse que eu, e as famílias deles rara mente tinham o costume de juntar-se para contar histórias.
Alguns anos atrás, caiu a ficha: esse costume está se perdendo.
Em 2020, brotou a ideia de escrever sobre a história polí tica de Tarrafas. Contar as histórias de todas as pessoas que
Quantas histórias cabem dentro da ‘Tarrafa’?
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chefiaram o executivo tarrafense e também quem foram os vereadores e secretários. Uma história de Tarrafas a partir da perspectiva de quem detinha o poder. As eleições se aproxima vam e poderia ser uma boa ideia contar a história desse pesso al, principalmente para as novas gerações que não vivenciaram seus mandatos ou ainda eram muito jovens para compreender.
Alguns meses depois, a Pró-Reitoria de Cultura da Universi dade Federal do Cariri (UFCA) abriu um edital para projetos de iniciativa discente. Alguns amigos já haviam sido contemplados por esse edital em anos anteriores, e eu já estava encerrando meu ciclo na UFCA, não poderia fazer isso sem passar pela Procult antes.
Então resolvi escrever o projeto, com algumas alterações na proposta original.
E então surgiu:
“Quantas histórias cabem dentro da ‘Tarrafa’? Uma biogra fia a partir da memória coletiva”.
Consegui uma bolsa remunerada e duas vagas para voluntá rios. Com a seleção, juntaram-se a mim Leciana, a bolsista per feita, Paulo e Andressa, os melhores voluntários possíveis. E, orientando, Tiago, porque precisava de uma das minhas maio res referências jornalísticas nesta empreitada.
Quantas histórias cabem dentro da ‘Tarrafa’?
A pergunta surgiu depois da ideia, deu origem ao projeto, deu origem à pesquisa, resultou neste livro. Foram quase 40 horas de entrevistas gravadas e mais de 100 horas de conversas. Tirei, digitalizei e recebi quase mil fotografias, além de docu mentos, cartas, livros e outros materiais que foram surgindo.
O processo todo durou pouco mais de um ano, e toda uma nova ideia surgiu.
Este livro mostra um caminho. Este caminho traz a possibi lidade de se contar a história de Tarrafas a partir das histórias de vida de alguns tarrafenses. Porque Tarrafas nos forma, e nós também a formamos.
Mas e aí, quantas histórias cabem dentro da ‘Tarrafa’? Quantas puderem ser contadas.
Antes de tudo, para os que são de fora, Tarrafas é um muni cípio localizado na região do Cariri cearense. Possui uma área de 454 km² e uma população de 8.910 habitantes, segundo o úl timo censo do IBGE (2010). Famosa por suas ladeiras, Tarrafas é como o eletrocardiograma de um coração agitado. Em 2022, completou 35 anos de emancipação política. A maioria de sua população se concentra na zona rural. A agricultura e pecuária são as principais atividades econômicas. Ambientalmente, tem características que destoam de outros municípios vizinhos da região do Cariri, com clima e vegetação fortemente influencia dos pela Chapada do Araripe. Tarrafas tem fortes traços do clima semiárido.
O resto vocês descobrem no decorrer da leitura, né?
Este livro conta histórias de pessoas, de lugares e tam bém de acontecimentos. Tem personagens que aparecem ver ticalmente, nomeando os capítulos, e também tem outros que são apresentados horizontalmente, a partir das fontes que apa recem em diversos capítulos e em cada um se conhece um pou co sobre. O livro, inclusive, pode ser lido de diversas formas, na ordem que o leitor preferir, porque os capítulos são interdepen dentes. A grande maioria dos textos foram escritos por mim (Wesley), com exceção do texto sobre seu Toinho, que Leciana escreveu e eu dei alguns pitacos, e no de Jesus, onde quem deu pitacos foi ela. Paulo e Andressa, juntamente com Tiago, fica ram com o detalhado e exaustivo trabalho de revisão.
O leitor vai conhecer os primórdios de Tarrafas, confli tos sobre a história mais antiga, o rebuliço que aconteceu quan do a imagem de Nossa Senhora das Angústias veio trocada, e muitas outras coisas enquanto lê sobre a nossa praça principal. Da mesma forma, vai saber como a Ditadura Militar interferiu
Quantas histórias cabem dentro da ‘Tarrafa’?
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em Tarrafas enquanto conhece sobre a vida da mulher que ba tiza a nossa principal avenida, a professora Maria Luiza Leite Santos, Patrona da Educação Tarrafense. Apresentamos tam bém dona Chiquinha, outra expoente da educação da cidade.
Adentraremos suas vidas de luta, as dificuldades e as con quistas. Vidas dedicadas ao desenvolvimento do município. Todo o potencial político da educação é apresentado, enquanto uma ferramenta transformadora e emancipadora de mentes e de Tarrafas.
Também mostramos que é possível contar a história de Tar rafas a partir de um panorama da educação, já que nosso muni cípio se desenvolveu puxado pelo desenvolvimento educacio nal. Desde Sinfronia até dona Chiquinha, das casas-escola até a chegada da escola de ensino médio Luiz Gonzaga de Alcântara. Vai conhecer a luta que foi para trazer a primeira escola, e a realização de um sonho: quando foi possível aos tarrafenses se formarem gratuitamente sem precisar sair de Tarrafas.
Os jovens do presente e do futuro vão conhecer também a nossa memorialista, Maria das Dores Leite Vasconcelos, que foi a primeira a se preocupar em registrar no papel as memó rias sobre a história de Tarrafas. Inclusive, no capítulo sobre as Memórias Iluminadas de Maria das Dores, você tem acesso ao caderno de memórias dela, é só escanear o código QR que colocamos lá.
Ainda temos a história de Jesus Leite, irmão de Maria Luiza. Jesus é uma figura onipresente na história recente de Tarrafas, com atuação na política, na cultura, na educação e na comuni cação. Sua cabeça é um baú repleto de histórias, datas e aconte cimentos, frutos de uma vida de jornalista, que nasceu com seu caderninho de anotações no cérebro. Nosso principal guardião da memória, é responsável pela escrita do hino do nosso mu nicípio e pela primeira investigação acerca do nosso passado. Além de também ser um dos principais responsáveis por ser mos, hoje, um município emancipado.
Tarrafas também tem um mestre da Cultura reconhecido pelo Estado. Mais ainda, um mestre da cultura com saber re conhecido por sua comunidade. Trabalhou como radialista, biógrafo e cordelista, além de ter sido o nosso primeiro vice -prefeito. Publicou uma série de livros e mais de mil cordéis. Antônio Rafael Sobrinho é o nosso poeta popular, que merece destaque e reconhecimento, para seguir inspirando gerações de novos poetas. E aqui é homenageado com um cordel so bre sua vida.
E ainda falando sobre política, temos dois personagens es senciais para Tarrafas. Tio João Bantim de Vasconcelos, um dos nossos primeiros representantes no legislativo, responsável por uma série de avanços para Tarrafas, principalmente no cam po da educação, onde trabalhou em parceria com dona Maria Luiza e, posteriormente, dona Chiquinha. Antes dele, seu pai, Francisco Alves de Vasconcelos, foi o nosso primeiro vereador, responsável por elevar Tarrafas de Vila a Distrito, em 1920.
Antes disso, temos dois heróis de guerra na nossa cidade. Antônio e Honório Vilanova foram comerciantes, viveram e lutaram no arraial de Canudos, ao lado de Antônio Conselhei ro. Escaparam após a morte do Peregrino e voltaram para a casa da família. Antônio, posteriormente, ainda teve um papel essencial na Sedição de Juazeiro, uma guerra da terra do padre Cícero contra as forças do governador Franco Rabelo. Canudos tornou-se uma ferida aberta impossível de apagar da história brasileira, mesmo com diversas tentativas por parte dos mili tares, e os Irmãos Vilanova são duas figuras essenciais para a história nordestina.
E ainda falando sobre os Vilanova, um dos momentos mais marcantes da apuração foi a saga pela fotografia de Honório Vilanova. Iniciou quando soube que ele havia sido entrevistado pela revista O Cruzeiro. Foi a primeira informação, o que me fez vasculhar quase 40 anos de edições da revista, disponibili zadas no acervo digital da Hemeroteca da Biblioteca Nacional.
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Mas não encontrei. Segui procurando e achei um livro, escrito pelo jornalista cratense Nertan Macedo, que produziu um gran de perfil de Honório. Mas nada da revista.
Segui buscando e, em uma conversa com Jesus Leite, ele me deu mais uma pista: o ano da publicação, 1967. Voltei ao acervo da Hemeroteca Nacional de 1967 e não encontrei. Busquei en tão por palavras chave no Google e descobri o número da edi ção e a data de publicação em um anúncio do Mercado Livre. A revista já havia sido vendida, e o anúncio permaneceu no ar por pouco tempo. Edição 49, publicada em 02 de setembro de 1967. Quando retornei à Hemeroteca, vi que era a única edição que faltava. Mas aí deixei para lá e segui com a apuração para os outros textos.
O tempo passou, e retornei a busca pela foto. Conversando com o professor Anderson, do curso de Jornalismo da UFCA, ele sugeriu que eu falasse com o professor Marcelo, porque ele poderia ter mais informações sobre a revista. Conversando com Marcelo, ele me indicou a Biblioteca Mário de Andrade, de São Paulo, que continha um acervo muito grande da revista. Fiz o primeiro contato e nada. Depois, pedi um grande favor à fada maravilhosa Talitta Câncio, minha amiga potiguar/pau lista/paraense, que, residindo em São Paulo, se dispôs a ir até a biblioteca procurar pela bendita. Não conseguiu, precisei agen dar. Aproveitei para procurar no acervo da Hemeroteca, nada da revista. Na solicitação, perguntei sobre a existência da edição no acervo e me responderam depois: não tinham.
Pedi ajuda à uma outra paulista, a professora Lilia Schwarcz, que me indicou uma série de bibliotecas com acervos online: Biblioteca Mindlin, Biblioteca do Itamaraty, Biblioteca do Insti tuto Histórico Geográfico Brasileiro, além da Biblioteca Nacio nal e da Biblioteca Mário de Andrade, que eu já havia consulta do. Busquei em todos esses acervos: nada da revista.
Resolvi pesquisar então o lugar onde a Cruzeiro nasceu: Rio de Janeiro. Falei com meu primão querido, Luis Filipe Bantim,
historiador e professor da Universidade de Vassouras, a pessoa certa! Contei o que precisava e Luis Filipe simplesmente ficou mais instigado que eu para encontrar a revista, revirando bi bliotecas e dezenas de anúncios do Mercado Livre. Nesse meio tempo, minha fiel parceira Leciana também estava nas buscas. Não encontraram, mas chegaram a uma teoria: pode ter dedo da Ditadura Militar nessa história. 1967 também foi o ano da Lei de Imprensa, que controlava as informações disseminadas pelos meios, também conhecida por lei da censura. A revista o Cruzeiro não se posicionava contra o Regime Militar, muito pelo contrário, sempre esteve apoiando abertamente as duas ditaduras pelas quais passou, de Vargas aos militares. Faziam perfis, matérias de capa e fotografias humanizando os militares. O que explica o crescimento de sua circulação e a preservação das edições em diversos acervos.
Mas o que pode ter acontecido com essa?
Bem, Honório aconteceu. Pelo livro de Nertan, pode-se per ceber que Vilanova nunca compactuou com a versão que se disseminou sobre a figura do Conselheiro. Sempre insistia em descrevê-lo como uma boa pessoa, um líder justo e sábio. A história insistia em pintá-lo como um fanático religioso, comu nista reacionário, uma ameaça, e o massacre de Canudos como um mal necessário, ao passo que insistiam em desviar a atenção do fiasco do exército brasileiro na guerra, derrotado em três das quatro investidas. A tiragem da revista O Cruzeiro, no período da edição, era de 550 mil exemplares. Não é possível que te nham sumidos todos, a não ser que tenham sido interceptados antes da distribuição.
Enfim, quando vocês lerem o texto sobre os irmãos Vila nova, poderão compreender melhor. No fim, encontrei algu mas fotos depois de fazer uma série de buscas no Facebook, onde alguns perfis sobre história do Ceará e do Nordeste postaram fotografias de Honório e contaram um pouco so bre sua história.
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A conquista que tivemos foi quando encontramos uma fo tografia de Honório no Facebook. Leciana entrou em contato com o autor do post, um senhor chamado José Gonçalves, que estudava Canudos, possuiu a revista por um tempo e a vendeu logo depois. José nos enviou uma cópia digital da matéria, bem como alguns textos e outras sugestões de leitura. Mas até agora, nada da bendita revista!
Este livro é um documento. A proposta nunca foi registrar aqui toda a história de Tarrafas. Até porque não caberia em um único livro. Também não é um livro de história, vamos usar o plural. É um livro de histórias. Algumas histórias que formam essa “Tarrafa” tão absurdamente cheia de histórias.
Muitas histórias ainda existem para serem contadas.
O processo de apuração foi bastante proveitoso, conheci muitas pessoas, me aproximei de muitas outras. Tarrafas é uma terra cheia de histórias e com uma grande quantidade de Tesou ros Vivos da Memória, que viveram uma grande quantidade de momentos históricos e ainda conservam consigo as memórias desses acontecimentos.
Dona Lurdes Moreira foi professora juntamente com dona Emília, entre os anos 30 e 40. Dona Maria Romana foi a nos sa primeira secretária de educação, responsável por coordenar o mapeamento das casas-escola do município, que tinha pra ticamente 20% dos domicílios funcionando como pontos de alfabetização. Há o ambientalista José Júnior Leite, professor, matemático, agrônomo e político, responsável por trazer as pri meiras mudas de acerola para a região do Cariri, depois de in tegrar um projeto que estudava suas propriedades e a riqueza em vitamina C que a fruta possui. Ainda na família Leite, temos também o patriarca, Moacir Leite, que foi a primeira pessoa a concentrar esforços para colocar os filhos na escola, que in vestiu na educação dos filhos por reconhecer o potencial de mudança que ela tem na vida das pessoas.
São muitas pessoas, e trabalhos futuros permitirão a mim, a nós, ou, parafraseando Maria das Dores, aos “jovens do futu ro”, que as conheçam e façam com que sejam cada vez mais conhecidos. Que aqui esteja uma fonte de inspiração para esses jovens.
Principalmente porque, mesmo tendo conhecido e conver sado com muita gente, ainda falta muito a conhecer, muitas localidades para explorar e contar suas histórias, é importan te reconhecer limitações, especialmente quando pensamos em desdobramentos e continuidade da pesquisa.
Considero que nunca havia me sentido tão jornalista como me senti durante todo o processo de apuração, pesquisa, en trevistas e escrita deste livro. Na seleção das fotos, na escolha dos nomes que integrariam os capítulos aqui presentes e até na odisseia que foi o processo para encontrar fotografias de Ho nório Vilanova e os desdobramentos que se deram, o processo foi extremamente rico e prazeroso.
Foi um presente para mim, e este presente eu ofereço à Tarrafas. Minha querida Tarrafas, princesa do Vale dos Bastiões.
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20 • Boas Vindas
Panorama histórico da educação tarrafense
Capítulo 01 • 23
Primeiros passos
300 km.
Os primeiros passos da educação foram, na verdade, galo pes. A primeira professora da vila percorria, no lombo de um burro, cerca de 300 km a cada 45 dias. Seu nome era Sinfronia Vasconcelos, e é a educadora mais antiga que se tem registro.
Nos primeiros anos da formação de Tarrafas, não havia nada relacionado à educação. As famílias com mais recursos ou com familiares morando fora mandavam os filhos para estudar. No povoado, não havia sequer a expectativa de chegar algum pro fessor ou escola.
Uma senhora de nome Teodora, conhecida por Teodora dos Poços, por conta da localidade onde vivia, possuía um grande patrimônio em terras. Teodora mandou um neto para estudar no Seminário da Prainha, em Fortaleza. O futuro padre cha mava-se Rogério Francisco de Araújo Vasconcelos (você vai ler mais sobre ele depois). Contudo, reviravoltas acontecem, e ele acabou desistindo do sacerdócio pouco antes da ordenação. Segundo as histórias da memorialista Maria das Dores Vascon celos, ele desistiu quando veio visitar a família em Aroeiras (o antigo nome de Tarrafas). Segundo outras versões, ele desistiu quando estava prestes a entrar na igreja, no dia de sua ordena ção. Rogério, inclusive, foi colega de aula de Pe. Cícero Romão. Rogério teve quatro filhos, e eu trouxe toda essa introdução para falar sobre uma de suas filhas, Sinfronia. Pelo que se tem
na memória de alguns tarrafenses, foi a professora mais antiga que se sabe. Mas não nasceu em Tarrafas, seu pai era tabelião em Saboeiro, e foi lá que ela nasceu.
Sinfronia casou-se cedo, mas logo tornou-se viúva. Foi um processo tão precoce que não chegou a ter filhos. Para se sus tentar e não depender do pai, além de não querer se prender aos afazeres domésticos, resolveu ser professora. E assumiu uma grande empreitada.
Não ensinava profissionalmente em Tarrafas, porque não havia escolas e muito menos o interesse de implantá-las na vila. No lombo de um burro, ia para Campos Sales (106 km de Tar rafas no sentido oeste), onde passava quinze dias. Em segui da, montava novamente e, na outra quinzena, permanecia em Suassurana, um distrito de Iguatu a 86,8 km de Tarrafas, no sentido oposto.
Outros quinze dias, ficava em Tarrafas, onde ensinava os primos e vizinhos, passando adiante o básico que sabia, e eles acabavam fazendo o mesmo, como um processo em cadeia. As aulas eram em casa e, com o tempo, Tarrafas possuía mais de uma centena de casas-escola funcionando dessa forma. Isso tudo aconteceu nas primeiras décadas dos anos 1900.
Nesse período, somente algumas pessoas conseguiam se al fabetizar, enquanto uma grande parcela não tinha sequer co nhecimento do que acontecia. Ou seja, a educação era precária, restrita e não tinha previsão de se tornar pública, gratuita, de qualidade e ao acesso de todos.
E assim seguiu até 1935, com a chegada de uma certa
educação
24 • Panorama histórico da
tarrafense
Chega dona Emília
Em 1935, houve um avanço significativo.
Aos dezesseis anos, Emília Ferreira de Oliveira chega em Tarrafas, vinda de Assaré. Nora de José Cândido, um rico fa zendeiro e primeiro delegado civil de Tarrafas, ela ensinava num salão, localizado onde hoje fica o centro da cidade.
A chegada de dona Emília Ferreira foi a primeira iniciativa de educação pública em Tarrafas. Ela detinha o quinto ano, o que, na época, era o suficiente para assumir uma sala de aula. Alfabetizando com rigidez, palmatória, cartilhas e com os escassos recursos que conseguia, ensinou em Tarrafas du rante 15 anos.
Casou-se com Antônio Cândido, conhecido por Tonor. Jun tos, tiveram 11 filhos.
Quando adoecia, tinha filhos, ou quando a demanda de alu nos era grande, dona Emília era substituída ou auxiliada por outras duas professoras, sua cunhada, Pura Cândido, e Lurdes Moreira, que a acompanharam por muito tempo.
Lila Cândido, uma de suas filhas, conta que sua mãe, por ser a única professora que Tarrafas possuía, acabava exercendo uma diversidade de funções. “Ela recebia políticos que a visitas sem, era chamada para dar opinião, cantava na igreja, inclusive, a primeira missa em latim foi cantada por ela, já que só ela e o padre sabiam”, conta. Além disso, era versada em muitos tra balhos manuais como bordado, crochê, tricô, ponto cruz, ma cramê, e ainda escrevia contos e sonetos, que utilizava nas aulas.
Ela conta que dona Emília juntava os alunos e os pedia que citassem as letras do alfabeto, “quem não soubesse, era palma tória na mão”. Em um ano era a carta do ABC, no outro era a cartilha, aí os pedia para fazer cópias, já que não tinha para todo mundo, e assim seguiu educando.
Lurdes Moreira é uma professora aposentada, durante o pe ríodo que Dona Emília esteve em Tarrafas, foi sua assistente,
AS PIONEIRAS
Sentada ao centro está Sinfronia, à sua esquerda está Conceição, sua irmã, e à direita está Alvorinda, sua cunhada. De pé, atrás delas está Zuca Bantim, sobrinho de Sinfronia.
educação tarrafense
26 • Panorama histórico da
Lurdes Moreira em sua casa, 2021.
Dona Emília Ferreira.
Dona Emília na inauguração da escola em sua homenagem.
e muitas vezes substituta. Ela recorda bastante sobre a criati vidade da professora: “dona Emília era uma pessoa altamente extrovertida, tinha o brilho de uma estrela, uma gaitada conta giante e cativava a todos. Todos os alunos eram loucos por ela, inclusive virou madrinha de quase todos. Na sala de aula, usava de alguns recursos diferentes, como cartas e textos que escre via, onde pedia que procurassem classes de palavras. Lembro de um soneto lindo que ela fez sobre o natal”.
De sua prole, algumas seguiram os caminhos da mãe. “ Teve um tempo que o véi Raul me ofereceu uma escola para ensi nar, mas fiz os gostos de papai, que dizia que não queria que nenhum dos filhos ficassem dependendo de prefeitura, porque naquele tempo passava por muita humilhação. Mas, dos meus irmãos, a Iza e a Oneida se tornaram professoras, alfabetizaram muita gente”.
Em 1950, depois de quinze anos, Emília Ferreira foi embora para Iguatu. Levou consigo a sua cadeira, ou seja, a vaga de professora, deixando Tarrafas sem educação formal.
Trabalhou em Iguatu, Fortaleza e depois foi para o Rio de Janeiro. Em 1989, no primeiro mandato de Tertuliano Cân dido de Araújo, e por iniciativa de um ex-aluno, o vereador Luiz Gonzaga de Alcântara, ela foi homenageada. A escola do distrito, que tinha o nome de um político de Assaré, Euclides Onofre, foi rebatizada com o nome de dona Emília Ferreira, a educadora ainda estava viva e Terto mandou buscá-la no Rio de Janeiro para estar presente. Na época, dona Emília tinha 72 anos. Faleceu em 1993.
educação tarrafense
28 • Panorama histórico da
O grupo escolar da Barra do Urucu
Depois que dona Emília foi embora, algumas mulhe res que haviam sido suas alunas, ou que estudaram fora de Tarrafas, fizeram o que podiam para ensinar. Faziam infor malmente, para que a educação não parasse por completo. Ensinavam em casa, e os que eram alfabetizados faziam o mesmo e assim se deu um processo em cadeia, algo iniciado na época de Sinfronia.
Em meados dos anos 50, por iniciativa do estado, foi cons truída uma casa grande, que funcionava como escola, num sítio chamado Barra do Urucu. As professoras passaram a residir nessa casa e davam aulas, era uma instituição comu nitária. Lá, moravam as professoras Antônia Leite, Oneida Cândido (filha de dona Emília), Dalcides, dona Nitinha e Conceição Alcântara. Havia, ainda, um pedaço de terra onde elas e seus maridos podiam cultivar legumes.
Por ser afastado do centro do distrito, costumava ser frequentado por estudantes que viviam nos sítios mais pró ximos. A instituição era mantida precariamente pela pre feitura de Assaré, e, muitas vezes, as professoras contavam com ajuda das famílias dos alunos para se manterem.
O grupo foi também um espaço de nascimentos e ca samentos, Oneida teve dois filhos lá, o Hildegardo e a Isabel Cristina. Dona Antônia Leite teve a Liege, tia Con ceição Alcântara teve o Genubio e dona Nitinha teve o Lapércio. Lila, inclusive, fala sobre como vivenciou parte significativa da vida no grupo: “Maria Luiza (professo ra Tarrafense que você vai conhecer logo em seguida) ia brincar com a gente lá, nas férias, também foi onde cresci e foi naquele grupo escolar que Pe. Agamenon celebrou meu casamento”, recorda.
Mas o grupo escolar foi desativado alguns anos depois. “A educação foi caminhando graças ao esforço de quem
30 • Panorama histórico da educação tarrafense
não aguentava ver aquele descaso e fazia o que podia com o pouco que tinha”, conta Lila.
Em um intervalo entre o período que o colégio fechou e a chegada de Maria Luiza, tivemos algumas iniciativas. Oneida, por exemplo, pegou carona nas ondas do rádio para continuar ensinando. Ouvia programas educativos no rádio e repassava para primos, reforçando e tirando dúvidas. Uti lizava o rádio de tio João Bantim, que também era tio dela, e as aulas aconteciam na casa dele, porque era no alto de um morro e facilitava a captação do sinal
As revoluções educacionais em Tarrafas
E aí chegou Maria Luiza, que você vai conhecer nos pró ximos capítulos.
Maria das Dores, nossa primeira memorialista (que você também vai conhecer mais adiante), diz que “Maria Luiza veio em socorro da educação de Tarrafas quando ela mais precisou”.
Ensinou durante boa parte da ditadura militar, inaugurou uma forma de ensinar diferente, partindo da formação críti ca e da utilização de recursos pedagógicos para fortalecer o aprendizado.
Maria Luiza não desanimou nem quando, por perseguição política, foi despejada do prédio onde ensinava. Com a cons ciência tranquila, passou a dar aulas sob a sombra de um cajueiro. Com todas as dificuldades do período ditatorial, a perseguição de políticos locais e a falta de recursos, obteve bons resultados e conseguiu fazer com que fosse construído o primeiro prédio escolar de Tarrafas. Além de também ter intermediado a pavimentação de ruas e a chegada de energia elétrica, por meio de solicitações atendidas pelo coronel Adauto Bezerra, um dos governadores na época da Ditadura Militar.
Durante seu período, foi a única professora do distrito. Com a demanda crescente, organizou as regentes de classe para que a ajudassem.
O cenário com Dona Emília era de uma educação mar cada pela rigidez. Os acertos deveriam ser incentivados e os erros reprimidos. “Eu e um de meus irmãos, a gente tinha a mania de esconder as letras que a gente não sabia. Aí ela descobriu, deu uma dúzia de bolo em mim e outra nele. De pois mandou buscar milho e deixou a gente de joelhos lá, só quando papai chegou do campo, já depois de uma hora, foi que ele soltou a gente do castigo. Mamãe era carrasca, do jei to que era com os filhos alheios, ela era com os dela. Todos nós fomos seus alunos, e valeu muito a pena”, recorda Lila.
No dicionário, define-se revolução como o “ato ou efeito de revolucionar(-se), de realizar mudanças profundas ou ra dicais”. Foi o que ela fez, quando mostrou que a palmatória não era um instrumento de educação, mas de repressão, e que o aprendizado não vinha da memorização, mas da com preensão do que se aprende, do pensamento crítico, permi tindo, assim, a transformação social.
O trabalho de dona Maria Luiza foi a primeira revolução educacional de Tarrafas, didática, influenciando principal mente no modo de ensinar.
Depois de 14 anos de Maria Luiza, em 1977 dona Chi quinha entra como o principal nome da segunda revolução educacional. Assumiu diversos cargos de gestão e, assim, conseguiu fazer com que os avanços chegassem. Mas como ela costuma ressaltar, “não foi nada fácil”.
No começo, trabalhava com outros três professores. Dois pela manhã, e os outros dois no turno da tarde. A equipe pe quena também se organizava para fazer a limpeza da escola, porque não tinha zelador e nem merendeiros.
No seu período de 35 anos na educação tarrafense, as sumiu diversos cargos e fez com que ampliassem a escola,
dentro
‘Tarrafa’?
• 33Quantas histórias cabem
da
32 • Panorama histórico da educação tarrafense
construindo mais salas de aula, cantina, sala de professores, e, em seguida, um prédio escolar maior para a sede. Depois, foram implantadas novas escolas nos sítios e distritos, con tratação de novos professores, assegurou o cumprimento do piso salarial, fundou o ensino fundamental II e depois o en sino médio e ainda fez com que fosse possível aos tarrafen ses fazerem faculdade sem precisarem ir embora. Foi em sua gestão que a qualidade da educação também melhorou, de modo que os índices chegaram ao topo e desde então assim se mantêm.
Com relação a chegada do colégio de ensino médio para o município, dona Chiquinha participou de tudo. Des de as reuniões com o então governador Lúcio Alcântara (PSDB), até a aquisição do terreno, que pertencia ao cunha do, o comerciante Antônio Sousa, conhecido por Antônio do Seja. Foi uma conquista importante para o município, porque, assim, os alunos não precisavam mais sair para fazer o científico fora. A escola começou a funcionar em 2009, inaugurada em janeiro, chamava-se Escola de Ensino Médio Luiz Gonzaga de Alcântara. Até para a direção da escola dona Chiquinha contribuiu, porque articulou com a CRE DE a ida de um servidor do município enquanto não chega va o concurso do estado.
“Foi uma experiência realmente boa, ver que Tarrafas não ia ficar diferente dos outros municípios por não ter uma escola estadual. Foi uma grande vitória. Minha filha, Gilcar la, foi a primeira professora efetiva de lá, foi também sua coordenadora por vários anos, ela tem uma longa história na educação também”, completa dona Chiquinha.
O tempo foi passando. Comparado ao início, quan do a única professora que tinha era semi alfabetizada, hoje as escolas contam com professores de formação concluída, com especializações e até mestrado. Por um tempo, a Luiz Gonzaga de Alcântara foi a escola que mais cresceu nos ín
dices de avaliação do estado em toda a região coordenada pela CREDE 18. De lá, saíram médicos, advogados, jornalis ta (aqui no singular porque até o momento só eu), ecologis tas, biomédicos, farmacêuticos, administradores, contado res, odontologistas, enfermeiros, engenheiros e uma grande quantidade de professores.
Jáder Leite, filho de Maria Luiza, contou certa vez so bre um movimento interessante. Muitas vezes, os estudantes saem de suas cidades para dar continuidade aos estudos, al guns permanecem onde estudaram, enquanto outros voltam para suas cidades natais, como forma de prestar um serviço aos seus lugares de origem. Hoje temos muitos exemplos disso, consultórios de dentistas, escritórios de advocacia e de contabilidade, administradores com suas empresas, pro fessores assumindo os cargos de seus antigos mestres, en genheiros trabalhando em projetos privados ou públicos, enfermeiros e técnicos atuando na linha de frente antes e durante a pandemia, entre outros muitos casos.
A educação move o mundo. A educação moveu, e ainda move, Tarrafas.
• 35Quantas histórias cabem dentro da ‘Tarrafa’?34 • Panorama histórico da educação tarrafense
Dedicação e boa vontade
Antônio Verônica Capítulo 02 • 37
“Agente não tinha nada, muita coisa faltava e as pes soas precisavam dessas coisas, não tinha ninguém para fazer. E aí papai resolveu que alguém deveria, porque as pessoas precisavam, e foi lá e fez”, disse Ernando, um dos filhos de Antônio Verônica.
Aliás, o Verônica veio da mesma lógica dos Rogérios de ca pítulos anteriores. Antônio, filho de dona Verônica, acabou se tornando simplesmente Antônio Verônica, ou seu Toinho.
Quando precisavam buscar correspondências em outra cida de, Seu Toinho ia.
Quando as encomendas chegavam e precisavam ser entre gues, Seu Toinho entregava.
Quando alguém tinha dente para arrancar, Seu Toinho arrancava.
Se alguém quebrava um braço, Seu Toinho dava um jeito de engessar.
Se queriam casar, Seu Toinho fazia o casório.
Quando sua neta precisou de ajuda para vir ao mundo, Seu Toinho fez o parto.
Ele fez tudo. Mas quem é ele?
Antônio José dos Santos, conhecido por todos como Antô nio Verônica, nasceu em 08 de julho de 1929, no sítio de Várzea Redonda, em Tarrafas, teve sete filhos, sendo quatro mulheres e três homens. De família humilde, trabalhou na roça, mas sem pre teve curiosidade e vontade de aprender.
Ainda criança, por volta dos sete ou oito anos, perdeu o pai precocemente e passou a ajudar a mãe nas atividades de agricul
tura e em tudo que precisasse, e lá mesmo frequentou a escola e tomou gosto pelo conhecimento. No ano de 1968 ele se muda para a cidade, por uma influência política da época, e começou a trabalhar no cartório como tabelião até por volta de 2009.
No cartório, trabalhou por muitos anos com seu Luizi nho, esposo de dona Chiquinha. Antônio Verônica era o ta belião, e Luizinho o Juiz de Paz. Juntos, oficializaram cente nas de uniões estáveis.
Essa foi uma das diversas profissões que Seu Toinho teve durante a sua vida, pois, como já foi dito, ele foi um faz-tudo que tudo fez.
Logo cedo, aprendeu a costurar, e uma de suas primeiras ati vidades foi a de fazer sandálias de couro, e ele também vendia o couro. Por um tempo também foi carteiro, Antônio trazia as correspondências de Assaré e entregava para a comunida de. Trabalhou de alfaiate, costurava e remendava o melhor que podia, à mão ou na máquina, e depois até consertava máquina de costura. “Às vezes errava ‘numas’, mas acertava ‘noutras’’’, comenta Ernando, seu filho. Tudo para garantir o melhor para a sua família.
Ele também produziu cachimbos de barro, fazia cestas, tran ça para chápeu, também foi marceneiro por um curto período e produzia peças simples de madeira, e, por pouco tempo, tra balhou com fotografias.
De tudo queria saber, de tudo queria fazer.
Antônio sempre buscou aprender e usar esse conhecimento para ajudar as pessoas ao seu redor. Mesmo sem formação, ele viajava até Assaré para ter aulas com o Dr. Gentil Braga e assim obteve conhecimentos básicos de odontologia, sendo então um dentista não-formado. Toinho, também teve uma farmácia e tinha um conhecimento médico, logo, se alguém precisava de um remédio ou assistência, ele ia lá e ajudava.
Ainda era reconhecido por muitos como um verdadeiro en fermeiro devido a algumas habilidades que seu Toinho tinha.
• 3938 • Dedicação e boa vontade Quantas histórias cabem dentro da ‘Tarrafa’?
Antônio Verônica (de bigode, ao centro) ao redor de amigos (dentre eles o prefeito de Assaré, Paulo Paiva), e os filhos (abaixo podese ver Ernando e ao lado esquerdo de seu Toinho está sua filha Francisca, a Tica).
Registro feito na praça dona Tereza. No palanque estão uma série de lideranças políticas de Tarrafas: Jesus Leite, João Bantim, Palácio Leite, Luiz Gonzaga de Alcântara, Paulo Paiva (prefeito) e seu Toinho Verônica.
Antônio Verônica aos 83 anos, em Tarrafas.
Antônio Verônica e o prefeito de Tarrafas Tertuliano Cândido na inauguração do Fórum Municipal Moacir Pereira Leite.
Ele era chamado para realizar os primeiros socorros, coisas mais simples, como curativos, suturas, e também imobilizava algum membro em casos de fraturas para o paciente ser enca minhado para o hospital do Crato. E era em Crato onde ia bus car medicamentos para distribuir para quem precisasse, eram remédios para verme, dor de cabeça, garganta e outros para casos mais simples. Trocava por arroz, feijão, fava e até le vava algumas galinhas caipiras e capotes. E assim retornava com medicamentos, gazes, esparadrapos, agulhas, iodo e o que precisasse.
Em uma noite chuvosa, experimentou a profissão de par teiro auxiliar. Sua filha Francisca, grávida, entrou em trabalho de parto e a parteira morava no alto da serra dos Bastiões. En quanto ela chegava, seu Toinho preparou tudo e esperou junto à filha. Com a parteira chegando, trouxeram em um esforço co letivo uma de suas primeiras netas, Patrícia Tatiana, ao mundo.
Era uma figura icônica na cidade. Quando chegava alguém de fora para fazer alguma entrega ou visita e pedia informações, seu Toinho não só dava as informações como levava a pessoa até o destino. Conhecia o município de ponta a ponta.
De sua carreira de dentista, há muitas histórias. Como não havia anestesia, as extrações eram feitas na base da coragem e da gritaria do paciente. Às vezes eles tomavam uma dose de cachaça para aliviar a dor que estava por vir e, outras vezes, seu Toinho ia até algum dos comércios vizinhos e dizia “ei com padre, vem aqui bem ligeirinho segurar a cabeça desse rapaz enquanto eu arranco o dente dele”. Assim seguiu. Não cobrava pelas extrações, também fazia dentadura e ponteava a boca dos pacientes (Às vezes ponteava um pouco demais e acabava cos turando a língua na gengiva? Bem, isso só aconteceu uma vez).
Fazia também alguns procedimentos cirúrgicos. Certa vez chegou um homem que tinha um grande cisto na testa, logo acima de um dos olhos e pediu que seu Toinho tirasse. Seu Toinho olhou, passou bastante álcool nas mãos, braços e até na
Quantas histórias cabem dentro da ‘Tarrafa’?
• 4140 • Dedicação e boa vontade
própria cabeça e topou o desafio. Cortou fora o cisto, passou bastante iodo, fez o curativo, e a cirurgia foi bem sucedida.
Os termos que melhor definem seu Toinho são disposição e boa vontade.
Até delegado seu Toinho foi no distrito de Tarrafas, tudo que acontecia na região era dito a ele. De fato tudo sabia e de tudo fazia.
Ele gostava de guardar objetos antigos, principalmente rá dios. Sua paixão por rádios era tanta que até criou uma rádio com o Chico do Rádio que durou de 2 a 3 anos. Juntando essa paixão pelo rádio e pelo conhecimento, Verônica dava aulas em seus programas e repassava tudo que tinha aprendido ao longo de sua vida.
Seu gosto pela educação era tanto que até uma escola fun dou com o auxílio de Padre Manoel Feitosa e Jesus Leite, na década de 80. Um dia, ouvindo o rádio, Antônio descobre a existência de uma instituição da Alemanha, chamada Adveniat. A instituição beneficiava comunidades carentes através da igreja. Então, com o auxílio de Padre Manoel, que conhecia os trâmites para conseguir essa ajuda, escreveram uma carta para essa instituição.
Essa carta foi traduzida por Padre Manoel e Jesus Leite, foi enviada e obtiveram resposta positiva. Assim, com os recursos recebidos comprou um prédio, hoje localizado na rua Castro Alves, e também adquiriu fardamento, merenda escolar, pagava professores e auxiliar de serviços. Todo recurso recebido tinha que ser prestado contas para continuar recebendo os benefí cios, e funcionou de 1987 a 1990. Parou de funcionar por conta da condução econômica no governo Collor, que confiscou a poupança e o dinheiro se foi. Sem ter como gastar, não teve como prestar contas com a Adveniat, e a ajuda foi suspensa.
O confisco de poupança foi resultado da trágica condução econômica no período do governo do ex-presidente Fernan do Collor de Mello. Em março de 1990, como uma tentativa
de controlar a hiperinflação “na marra”, o presidente anunciou que todos os valores acima de 50 mil cruzados, depositados em contas correntes, poupanças e até em investimentos seriam retidos. 80% de todas as aplicações do Brasil ficaram retidas. O confisco durou 18 meses e foi responsável por um caos sem precedentes na economia brasileira.
Toinho sempre se engajou em movimentos educacionais. Tentou novamente fundar outra escola. Recorreu então ao governo estadual, à época, liderado por Ciro Gomes. Seu Toinho reuniu-se com a primeira dama do estado, Patrícia Gomes, para saber da possibilidade da construção de uma escola no município. A requisição foi atendida, mas al gumas turbulências políticas locais acabaram por impedir que fosse adiante.
“Merece ser lembrado pela vontade que ele tinha de ajudar o povo”, fala de Ernando Santos.
Seu Toinho era um senhor muito querido por todos. Com seu andar lento e cuidadoso, falava com uma voz tranquila e pausada. Possuía poucos cabelos e acompanhado de sua expressão de simpatia estava sempre disposto a ajudar quem precisasse.
Sempre fazia com gosto e boa vontade.
É alguém que sempre teve o seu conhecimento e sua memó ria como uma ferramenta tão importante para ajudar a todos, mas foi-se sem levar consigo as lembranças de uma vida tão movimentada e ativa.
No início dos anos 2000, entre 2006 e 2007, a família passou a notar que seu Toinho andava esquecendo-se de coisas corri queiras e se perdendo nos raciocínios. Nessa época ele ainda trabalhava ativamente no cartório. Após exames e consultas, re cebeu o diagnóstico de mal de Alzheimer, nesse período ainda
histórias cabem dentro da ‘Tarrafa’?
• 4342 • Dedicação e boa vontade Quantas
Coral de alunos organizado por dona Chiquinha e outros professores.
Estudantes da Escola Adveniat da Alemanha em Tarrafas. A escola chegou a conter 92 estudantes. À direita, pode-se observar seu Toinho (camisa azul) e Jesus Leite (sentado, de camisa estampada).
teve um leve AVC, e outro em 2008, o que acelerou o avanço da doença. Seu quadro foi piorando, e, novamente, pela terceira e última vez, teve um novo AVC. Em 31 de janeiro de 2018, An tônio Verônica parte para a eternidade. Faleceu em casa cerca do por sua família e por quem o queria bem. Não entrou para a história, porque lá ele já estava, como um exemplo de dedicação aos conterrâneos e um grande amor por Tarrafas, demonstrado com uma vida inteira à serviço dos tarrafenses.
Dedicação e boa vontade.
Antônio Verônica e sua esposa, dona Sitonha, em dois momentos diferentes de suas vidas.
Escrito por Leciana Fernandes, Com orientação de Wesley Guilherme.
Quantas histórias cabem dentro da ‘Tarrafa’?
• 4544 • Dedicação e boa vontade
As mil vidas de uma praça
Capítulo 03 • 47
Dois umbigos.
Tarrafas é uma cidade com dois umbigos.
Como assim?
Bem, pensando o umbigo como o ponto central, que se rela ciona com a vida, com o nascimento…. é isso mesmo.
Tarrafas nasceu (ou se emancipou) duas vezes. Que vocês verão nos capítulos seguintes.
Falei antes de dois umbigos, né? Pois é, o primeiro deles foi a praça. Mas a praça já foi tanta coisa… O segundo foi a escola, que, depois do trabalho de alguns professores, mobilizando a população, fez com que a comunidade fosse se desenvolven do ao redor dela. A primeira escola foi um fator chave para a emancipação definitiva.
Mas este texto se debruça sobre o primeiro umbigo, que foi o centro por um tempo. A praça.
A praça
Conta-se que, em meados do século XVIII, havia uma pro priedade chamada Fazenda Aroeiras, que se localizava próxima ao local onde hoje fica a praça principal. Essa fazenda, segun do relatos populares, pertencia a uma senhora de nome Tereza Moreira, nascida na Paraíba. E sua casa era um ponto por onde passavam tropeiros e viajantes, a caminho ou partindo de Cra to, Assaré, Jucás e Iguatu.
Atualmente, Tereza Moreira é considerada a fundadora de Tarrafas, a praça principal leva seu nome. Contudo, pesquisas
recentes podem sugerir outras interpretações. A história que se tem é que o movimento de tropeiros foi se intensificando, e dona Tereza fez um grande galpão para alojá-los. Em seguida, com um volume maior chegando e alguns gostando do ambien te, passou a distribuir terrenos. Com o tempo, a comunidade foi se formando ao redor.
Certa vez, um rapaz foi pescar no rio Bastiões, e acabou perdendo sua rede de pesca, ou sua Tarrafa. Criou-se um burburinho pelas pessoas da comunidade, que passaram a dirigir-se ao local como “o lugar da tarrafa” até que o lugar acabou recebendo o nome de Tarrafas. Tem mais detalhes, mas, de modo sucinto, essa foi a primeira versão, popula rizada, de boca em boca, principalmente pelo professor e jornalista Jesus Leite.
Só que novos estudos apareceram.
Em sua monografia, ao estudar as ações praticadas pelo ho mem no rio Bastiões, a professora e bióloga Gilcarla Lima, 42 anos, descobriu fatos que podem fornecer uma nova perspecti va de leitura da história de Tarrafas.
Gilcarla descobriu que a origem de Tarrafas data de meados de 1600. Conseguiu registros históricos datados do início dos anos 1800, que mostravam a existência de um sítio, ou fazenda Tarrafa. O local aparecia em diversos escritos sobre o rio Bastiões.
Pensando nisso, há um impasse. A primeira versão traz uma cidade surgida em meados dos 1800 e que só veio a receber o nome Tarrafas em um período próximo ou já nos 1900. Na ou tra, há registros de antes disso, mostrando a existência de uma fazenda já com o nome Tarrafas.
E o que isso tem a ver com a praça?
Ela leva o nome da fundadora. E se essa Tereza não tiver fundado nada?
“Vejo na história contada sobre Tarrafas uma visão aris tocrática muito comum em tempos mais antigos, principal mente no Nordeste, onde era conferido a uma família de re
Quantas histórias cabem dentro da ‘Tarrafa’?
• 4948 • As mil vidas de uma praça
nome todos os marcos históricos importantes de um lugar”, explica Gilcarla.
“Imagino que em algum momento deva ter existido uma fa mília Moreira, da qual fazia parte essa senhora, dona Tereza, que tinha alguma propriedade batizada de Aroeira, mas que era vizinha da fazenda Tarrafa, essa sim, contada nos anos da história. Essa senhora deve ter tido posses e isso fez com que a cultura popular da época lhe exaltasse a ponto de que, no futuro, seu nome fosse projetado como a fundadora do lugar”, acrescenta.
Creio que as histórias não se contraponham. A narrativa oral foi fator determinante para a versão que se tem. Jesus Leite, para fundamentar sua versão, conversou com pessoas que che garam a conhecer dona Tereza. Gilcarla mostra que tem uma outra possibilidade de leitura, a história documentada é mais antiga, traz as três fazendas que se localizam onde hoje fica o município de Tarrafas: Fazenda Tarrafa, Fazenda Varzinha e Fazenda Caiçara. Pode ser que os nomes tenham se perdido e quando dona Tereza chegou, tenha inaugurado uma nova his tória, que só a partir dela a comunidade, de fato, tenha começa do a existir e se organizar. Pode ser também que, antes dessas três fazendas, existisse uma grande aldeia, ou várias pequenas aldeias indígenas, massacradas no processo de colonização que resultou nas três fazendas. Há muitas possibilidades.
E o trabalho da história é esse. As leituras do passado são re tratos da época nas quais são produzidas, não são, e nem devem ser fixas. É essencial que existam trabalhos de revisionismo, re visitando o passado para pensá-lo e repensá-lo criticamente. A história é um conhecimento construído permanentemente e esse é um exemplo disso. As novas pesquisas mudam alguns pontos e, ao mesmo tempo, trazem novos detalhes que preen chem lacunas nas eras em que a memória não alcança.
Maria das Dores Vasconcelos conta em seu caderno de me mórias que dona Tereza Moreira era devota de Nossa Senhora
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das Dores. Por isso, no local onde hoje fica a praça, ela cons truiu, em uma pequena parte, uma casinha para colocar a ima gem da santa, para funcionar como um oratório. E passou a servir como uma capelinha, pequena, onde as pessoas que lá viviam também frequentavam para rezar.
Pelo fato da vila ser pequena, as pessoas passaram a usar o território próximo à capelinha para enterrar seus mortos. E foi assim que surgiu o primeiro cemitério. Tornou-se ofi cial em 1892, quando o padre de Saboeiro veio abençoar. Foi um festejo, até a banda municipal de Icó veio para tocar. Parece aleatório, mas nem tanto: um filho de Tarrafas chamado Rogé rio Francisco iniciou seus estudos no seminário que havia em Icó, então foi quem intermediou os contatos. Ele foi mencionado no capítulo do Panorama da Educação, e retorna mais adiante, nos capítulos 7 e 10, quando falo sobre um filho e dois netos dele.
Nesse meio tempo, dona Tereza foi embora, segundo Maria das Dores, para uma região na Serra do Quincuncá, onde viveu até o fim de seus dias.
Aconteceu que, certo dia, já na primeira década do século XX, um jovem casal resolveu noivar. Só se casariam quando o noivo conseguisse uma renda para manter a noiva e a futura família. Ele, chamado José Arrais, seduzido pelo ciclo da borracha, resolveu que seguiria para o Amazonas, para tra balhar nos seringais.
Era uma época com uma cobertura vacinal praticamente inexistente, o Nordeste ainda não havia “sido inventado” e a febre amarela, o tifo e demais doenças tropicais levavam muitos jovens esperançosos, que resolvessem se aventurar na floresta amazônica.
Então, antes de partir, o jovem foi até a capela e pediu à Nossa Senhora das Dores que o ajudasse, mostrando uma ou tra fonte de renda, para que ele não precisasse ir para longe. Se a graça fosse alcançada, ele voltaria para construir uma capela maior no lugar daquela de taipa.
Chegando em Fortaleza, quase na hora de pegar o trem, re solveu jogar na Sorte Grande, e acabou ganhando.
Voltou para Tarrafas e investiu quatro contos de réis para construir a capela. Agora de tijolos, não mais de taipa. Em 1911, a capela ficou pronta, construída em cima da antiga e também do antigo cemitério, já desativado. Segundo Jesus Lei te, em 1909 foi construído um novo cemitério, que é o utilizado até hoje.
A capela ficou muito bonita, a população era engajada para organizar as festas religiosas, eventos sociais e culturais. Tudo girava ao redor da igreja.
Em 1919, resolveram que era importante comprar uma ima gem nova da padroeira, Nossa Senhora das Dores. A imagem antiga, de madeira e pequena, segundo os relatos, pertencia à dona Tereza Moreira, já falecida. Já haviam comprado um sino bonito, e a igreja merecia uma imagem nova.
Maria das Dores também conta que o sino da época cha mava-se Luiz Francisco Araújo de Vasconcelos, marido de Te odora, que vocês conheceram no texto sobre o panorama da educação. Eles eram avós do meu tataravô e bisavós de Maria das Dores.
O rapaz da Sorte Grande casou com sua amada e se mudou para Fortaleza. Os líderes comunitários se organizaram e en traram em contato com José Arrais, por carta ou telegrama (as versões variam) pedindo que comprasse uma imagem nova de Nossa Senhora, que a comunidade se organizaria para pagar.
A imagem veio diretamente da Europa, e foi mandada de trem para que fossem buscar em Iguatu, porque era até onde ia a linha ferroviária que partia da capital.
E aí foi uma grande caravana, com pessoas importantes da comunidade: José Cândido, com os irmãos Cícero e Terto, Francisco Alves de Vasconcelos, com o irmão Abel e mais um bocado de pessoas. Foram caminhando até Iguatu. No cami nho, encontraram com uma caravana que vinha do distrito de
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Amaro, que ainda hoje pertence a Assa ré. Por coincidência, estavam também em busca de uma imagem que encomenda ram, nesse caso, foi a de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro.
Juntas, as caravanas chegaram até Igua tu e trouxeram as imagens nos lombos de animais.
A santa chegou em Tarrafas no dia 19 de agosto de 1919.
A história tem três desdobramentos para o que aconteceu. Uns contam que chegaram em Tarrafas, abriram a caixa e perceberam que a santa não era Nossa Se nhora das Dores. Foram até o Amaro para trocar, mas a deles havia chegado certa. Outros contam que abriram a caixa e es tranharam a pose da santa, a expressão e a posição das mãos. Então chamaram o padre Emílio Cabral, vigário de Assaré, que confirmou que a santa não era Nossa Senhora das Dores.
Na terceira versão, chegaram com a santa, colocaram ainda dentro da caixa na igreja e esperaram pela missa. Tarrafas ainda não era distrito, o que só aconte ceria no ano seguinte, então o vigário vi nha uma vez por mês celebrar na capela. Deixaram então que ele abrisse no dia da missa, quando fosse batizar a estátua em setembro, que era quando se comemoram os festejos de Nossa Senhora das Dores.
Na missa, o padre abriu a caixa e estranhou.
Padre Emílio Cabral, inclusive, era tio de Humberto Ca bral, jornalista craten se, um dos fundado res da Expocrato e do jornalismo no Cariri.
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Sr. Luis Alves de Sousa (Seu Luizinho) na organização dos desfiles de 07 de setembro.
Vereador Luiz Gonzaga de Alcântara, dono de uma das primeiras televisões do distrito.
Em cima do palanque, da esquerda para direita: dona Chiquinha, tio João Bantim (vereador) e Paulo Paiva (prefeito de Assaré).
“Essa não é a mãe das Dores!”
Daqui em diante, as versões desaguam na mesma história.
O povo ficou chocado, sem saber o que fazer. Então o padre explicou que aquela santa era Nossa Senhora das An gústias, uma santa muito rara, que só tinha conhecimento de uma cidade que a tinha como padroeira, que era Granada, na Espanha.
O padre Emílio também explicou que a santa era muito boa, e aconselhou a comunidade que não ficasse triste, e a aceitasse. Além de tudo, também daria muito trabalho ter que devolver a santa até a Europa. “Nossa Senhora também é mãe de Cristo!”, e a comunidade a aceitou de bom grado depois disso. A partir do ano seguinte, as festas passaram a acontecer entre os dias oito e quinze de agosto.
O largo da igreja era um local onde as pessoas se concen travam para eventos, festivais e brincadeiras. Também era onde aconteciam comícios e alguns movimentos articuladores da pri meira emancipação, que aconteceria em 1963, e seria derrubada logo depois.
A igreja ficou de pé por 57 anos. Alguns moradores relem bram que, por ter sido construída em cima de um cemitério, em períodos mais quentes subia uma “gordura” dos defuntos que sujava os joelhos de quem se ajoelhava para rezar.
Em períodos de cheia, por se localizar próxima do rio, entra va água na igreja.
E foi esse um dos motivos adotados para que a comunidade se organizasse para construir uma nova igreja, maior, em um lugar mais alto.
A obra foi liderada por João Bantim de Vasconcelos, líder comunitário, que, com a ajuda de outros tarrafenses, conseguiu recursos para compra de materiais e mão de obra para a cons trução da igreja.
Em 1968, a nova igreja foi inaugurada. E, nesse mesmo ano, mandaram derrubar a antiga.
No lugar onde ficava a antiga igreja, cavaram um poço e co locaram um chafariz. As pessoas podiam ter acesso à água por lá também. E isso aconteceu por volta dos anos 70.
“Mas a água não prestava, meu filho. Era gordurosa, fedo renta, eles não limparam direito o solo, aí subia a gordura dos defuntos. Usamos daquela água por pouco tempo”, recorda Antônia, conhecida como Toinha do Luto, 75 anos. O “Luto” de seu nome, não tinha nada a ver com o sentimento de luto, mas com o nome de seu pai.
O chafariz ficava dentro de uma casinha, e esta, muitas ve zes, serviu como cadeia.
Na época, não havia policiais no distrito, então a comunida de selecionava uma pessoa para assumir a função de delegado. José Cândido foi o primeiro. Outros, como Antônio José dos Santos, e meu avô, Antônio Bantim de Vasconcelos, também assumiram essa função.
“Quando algum homem bebia muito e começava a bagun çar, o delegado trancava ele na casinha até o efeito da cachaça passar”, explica Luiz Vasconcelos, 60 anos.
Com o tempo, desfizeram o chafariz e, por iniciativa do en tão vereador João Bantim de Vasconcelos, foi iniciada a cons trução da praça.
O local ainda serviu de ambiente para histórias de visagens e assombrações. “Quando foram cavar os alicerces para fazer a praça, tiraram tanta ossada de gente que chega dá gastura de lembrar. Mas papai uma vez viu na praça o fantasma de um homem que já tinha morrido, e foi um medo tão grande que ele quase caiu quando deu fé que tinha visto e conversado com o finado”, relata Toinha.
Foi lá também onde colocaram a primeira televisão que chegou no distrito. As pessoas passaram a frequentar assi duamente para assistir novelas e acompanhar a programação televisiva. A televisão pertencia ao vereador Luiz Gonzaga de Alcântara.
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A praça também foi, e ainda é, ponto de encontros, lazer, eventos, feiras de agricultura familiar, cultos evangélicos, even tos católicos e estudantis. É onde acontecem comícios, festas, leilões e a tradicional seresta da ressaca, que encerra os festejos da padroeira.
Mesmo com suas mil vidas e versões, o lugar nunca deixou de ser o umbigo e o coração pulsante da cidade.
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58 • As
Capítulo 04 • 59
Tarrafas
ainda era distrito de Assaré.
Nas casas que lá existiam, um jovem casal vivia os primeiros anos de seu casamento. Moacir e Maria eram primos e passaram a morar no Casarão da Boa Vista, onde Maria pas sou a infância e haveria de morar até… enfim, não vou começar a contar esta história já antecipando coisas que só vão aconte cer lá na frente, né?
Bem, mas não é neste casal que essa história se concentra, já que a Maria que citei não é a mesma Maria a quem este capítulo se refere.
Moacir e Maria são muito importantes. Isso é inegável a to das as fontes com quem conversei, também são pessoas ain da hoje extremamente queridas. Foram importantes por serem pioneiros no incentivo à educação, por terem se preocupado em garantir que os filhos pudessem estudar.
Mas essa história não é sobre eles. Vamos falar sobre sua pri mogênita. O ano era 1942. Aos 45 do segundo tempo, quando o mês de agosto estava quase dando lugar para setembro, nasce Maria Luiza Leite.
Nossa personagem teve mais quatro irmãos: Zezito, Socorro, Jesus e Junior. Uma família quase toda composta de professores.
Socorro, ou Socorrinha, foi professora, e durante o ano de 1970 foi radialista esportiva na antiga rádio Araripe. A primeira radialista esportiva do interior do Ceará. É um tesouro vivo da memória, mora em Juazeiro do Norte.
Jesus é um faz tudo, formado em Direito, Comunicação e Letras, é jornalista e historiador, também foi professor, vere
ador, vice-prefeito, secretário de cultura e um dos principais responsáveis pela eman cipação de Tarrafas. Você saberá mais so bre ele nos próximos capítulos.
Zezito, ou Pretinho, como era conheci do, tinha uma deficiência cognitiva, então nunca estudou. Nasceu com um talento ímpar para a música e rapidamente apren dia a tocar os instrumentos a que tinha acesso, faleceu em janeiro de 2018. Junior, o caçula, formou-se em agronomia e ma temática, foi professor, agrônomo e polí tico. Contrariando a ordem da natureza, mas seguindo as reviravoltas da vida, par tiu cedo, em 2017, aos 57 anos.
Convivi com quase toda a prole de Mo acir e Maria, principalmente com Socorri nha, que foi o anjo que me acolheu. Inclu sive todos são meus primos, assim como todas as pessoas que foram entrevistadas (Todo mundo é parente em Tarrafas).
Prima Maria Luiza foi uma professora de Tarrafas, e talvez eu repita isso por que foi um sonho que ela cultivou desde criança, que realizou logo quando cres ceu, e a realização deste sonho tornou possível inspirar outras pessoas a tam bém sonharem.
Ter sonhado sempre em ser professo ra pode ter servido de inspiração aos seus outros irmãos. Por coincidência do des tino, ao procurar a genealogia da família, seu irmão Jesus descobriu que a família Leite, da qual fazem parte, é a que possui
Os passos da peregrina da educação
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[...] brincou tanto de ensinar, que acabou ensinando de verdade.
— Socorrinha
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PRIMEIROS
PASSOS
Formatura do quinto ano, por volta dos anos 1953.
Maria Luiza em 1944, por volta dos dois anos de idade.
a maior quantidade de educadores, dentre todas as famílias dos países lusófonos, ou seja, falantes da língua portuguesa. A tradi ção docente atravessando gerações, didática no sangue.
“Quando Maria Luiza estava estudando o Normal, ela disse que se tivesse nascido em cidade grande ia ser médica, mas não tinha jeito não, a sina dela era ser professora. Quando criança, ela brincava de alfabetizar a gente, brincou tanto de ensinar, que acabou ensinando de verdade. Nossa alfabetização come çou com a Biliu”, Socorrinha recorda, trazendo à tona o apeli do de infância da irmã. Sentada numa poltrona, na sala de seu apartamento em Juazeiro do Norte, esquadrinhando memórias, Socorrinha confirma a tese do irmão.
Maria, a mãe, que foi aluna de dona Emília Ferreira, era quem dava os primeiros passos para alfabetizar os filhos. Maria Luiza, a primeira a ir para a escola, quando brincava de ser professora, ajudava no processo, ensinando o que aprendia na escola e alfa betizando irmãos e primos.
Nesse período Tarrafas não tinha escola. Emília Ferreira, que ensinou por 15 anos, foi para Iguatu e levou consigo o seu contrato e não deixou sucessora. Se quisesse estudar, não seria possível em Tarrafas.
Com sete anos, levada por dona Laura, prima de seu pai Mo acir, Maria Luiza foi para Jucás, onde havia colégios e parentes para abrigá-la. Lá, iniciou os estudos no Grupo Escolar Nelzi nho Leal, onde morou por cerca de cinco anos e fez o equiva lente ao ensino fundamental I. Como não tinha como seguir os estudos em Jucás, foi para Tauá, por volta de 1954, onde morava um outro primo de seu pai, e lá começou o ginasial no Ginásio Antônio Araripe
Nesse meio tempo, voltava para Tarrafas, brincava de pro fessora, e visitava a família no período de férias.
Socorrinha conta que, na infância, muitas crianças frequen tavam o casarão. Chegavam pela manhã para ver Moacir orde nhar as vacas e tomavam o café da manhã na Boa Vista. Ela
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• 63
Formatura do Ginasial, 1957.
recorda que, no meio das crianças, tinha uma que nutria um ca rinho muito especial por Maria Luiza. Seu nome era Francisco, era conhecido por Tico, filho de uma mulher chamada Maria Bastião. Quando chegavam, as crianças atravessavam a casa e passavam por baixo das redes dos outros filhos de Moacir e Maria, ainda adormecidos. Certo dia, Tico passou cuidadosa mente por baixo da rede de Maria Luiza e não seguiu caminho, ficou observando-a dormir. Carregava consigo uma flor e, bem baixinho, cantou, com a voz fininha de criança:
Acorda, anjo que dorme, amor Acorda que o sol já raiou Acorda, abre a janela Vem receber esta flor Maria, a mãe, ouviu a cantiga e foi até ele. Pediu delicada mente que não acordasse Maria Luiza, pois ela levantava muito cedo na escola e nas férias recuperava o sono perdido. Pegou a florzinha e colocou em um copo com água, na mesinha que ficava ao lado da rede. Todos os dias, uma nova flor ocupava aquele copo. Com o passar do tempo, depois de muito admirar a futura professora, acabou tornando-se seu aluno.
Em 1956, Maria Luiza foi para Iguatu, onde estudou no co légio São José, no qual também funcionava um convento. Lá ela estudou até o segundo ano do Normal.
Crescida, tornou-se uma mulher bonita, de cabelos pretos lisos e lustrosos, estatura média, esguia, e com sua principal característica: um sorriso sempre presente no rosto. “Era uma pessoa extremamente educada, dócil e simpática, conversava com todo mundo, lembrava dos nomes das pessoas, pronun ciava-os corretamente e também lembrava de suas histórias... a Biliu irradiava uma luz tão grande, que quando chegava em algum lugar, todos a olhavam e buscavam por sua atenção. Era
alguém muito agradável de se ter por perto, não sei se já conhe ci alguém assim alguma vez, ela era única”, explica Socorrinha.
Foi também no Iguatu que conheceu o amor. O rapaz, An tônio Ferreira dos Santos, irmão de uma colega de aula, se en cantou logo que a conheceu. Antônio também era de Tarrafas, sua família é do distrito Riacho Verde.
“Ah, meu filho, ali foi ligeiro. No começo de 1962, ele foi lá para a Boa Vista pedir a papai para namorar com Maria Luiza. Aí, começaram a namorar e em outubro se casaram”, recorda Socorrinha.
Casada, Maria Luiza Leite adotou o sobrenome Santos. E, aos 20 anos, interrompeu os estudos para se dedicar à sua nova família. Mas não deixou o sonho de lado. Conseguiu um con trato pela prefeitura de Assaré, e começou a ensinar em Tarra fas. Como não havia escola, ensinava no pátio da casa da Boa vista, às vezes em salões emprestados.
Esse ambiente foi o mais próximo de uma escola mais ins titucionalizada. Chamava-se Escola Isolada de Tarrafas. Maria Luiza, nesta época, era a única professora do distrito. Conse guia livros em Iguatu e assim continuou por alguns anos. Lá também solicitava bolsas de estudos para os estudantes mais aplicados. As crianças traziam as cadeiras de casa e, ao fim da aula, as levavam de volta. “Era impressionante como ela con seguiu resultados tão bons, mesmo em turmas multisseriadas, ou seja, as que possuíam alunos em diversas séries diferentes na mesma sala e a professora devia acompanhar diversos níveis na mesma turma”, explica Jesus Leite, 67 anos.
Em meados de 1963, aconteceu a primeira tentativa de emancipação de Tarrafas. O então deputado estadual Erasmo Rodovalho de Alencar, do Partido Trabalhista Brasileiro - PTB, se aliou com as lideranças da UDN local e conseguiu a eman cipação. O feito foi de grande aceitação popular, festejado com unanimidade partidária. “Havia uma história que queriam mudar o nome Tarrafas para Cruzeiro do Norte”, relembra Socorrinha.
Quantas histórias cabem dentro da ‘Tarrafa’?
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O distrito havia se tornado cidade e se organizava para a primeira eleição. O pre feito de Assaré já se movia para eleger um aliado, e assim não perder o controle sobre o antigo domínio. “Lembro de minha mãe ter dito que uma vez o prefeito mandou fechar o lugar onde ela ensinava porque disse que mãe ensinava daquele jeito por que queria ser prefeita”, recorda Raquel Leite, 44 anos, filha caçula de Maria Luiza. Quando não havia lugar para ensinar, sua sala de aula se localizava sob a sombra de um cajueiro.
E, por falar em filhos, Maria Luiza teve cinco: Ana Raquel (nascida em 1977), Já der (1975), Maria de Fátima, a Fafá (1969), Moacir (1967) em homenagem ao Moacir, pai de Maria Luiza e, por fim, o primogê nito, Idelano, nascido em 1964.
No mesmo ano em que Maria Luiza se tornou mãe pela primeira vez, acontece ram as primeiras eleições, Tarrafas elege ria o primeiro prefeito. Mas a alegria iria durar pouco.
Neste mesmo ano, instalou-se no Brasil a Ditadura Militar, e com uma canetada do então governador do Cea rá, coronel Virgílio Távora, a mando de Castello Branco, decretou que todos os municípios recentemente emancipados voltariam a ser distritos. A justificativa era que menos municípios seriam mais fáceis de administrar.
O nome de Fafá, foi por causa de Nossa Senhora de Fátima. Maria Luiza pediu à santa para que fosse feliz no parto, em agradeci mento, batizou a filha em sua homenagem.
Quantas histórias cabem dentro da ‘Tarrafa’?
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Formatura em Pedagogia, 1982.
Maria Luiza com 19 anos, 1961.
Formatura do Normal, 1965. Na foto vertical está Maria Luiza e seu marido Antônio. Na foto horizontal Maria luiza recebe o diploma das mãos da diretora do colégio.
Mesmo com as dificuldades, nada a havia impedido de seguir realizando seu sonho.
Mas ainda havia muito a fazer.
No ano seguinte, em 1965, resolveu terminar os estudos. O contrato municipal vinha com uma exigência simbólica de sub missão aos líderes locais, e ela não precisaria se preocupar com isso se conseguisse a cadeira estadual. Com essa conquista, ela conseguiria autonomia.
E foi o que fez. Mas não sem sacrifícios.
Ao chegar em Iguatu, no seu antigo colégio, não foi aceita. O colégio de freiras não aceitava mulheres casadas. Em Iguatu, ela conseguiria voltar para Tarrafas com mais frequência, para cuidar do filho e seguir os estudos. Mas não foi possível.
Teve que ir para mais longe.
Deixou Idelano com Maria, avó de primeira viagem, e partiu para Fortaleza.
Depois de quatro anos afastada da sala de aula, ser aluna foi mais um desafio. E também mais uma conquista.
No começo de 1966, terminou o Normal.
A formatura aconteceu na concha acústica da Universidade Federal do Ceará. Na diplomação, foi considerada a mais dedi cada de todas as 360 alunas. Como reconhecimento, recebeu das mãos do então governador Virgílio Távora dois prêmios, um em espécie, e um outro, que foi ainda mais valioso: uma cadeira especial, que lhe dava o direito de ensinar em qualquer cidade do território cearense.
Poderia ir para Juazeiro ou Crato, as maiores cidades do Ca riri. Ou até mesmo permanecer em Fortaleza, um emprego ga rantido na capital, com oportunidades de seguir estudando e até mesmo ensinar na universidade…
Mas seu sonho não era esse. Não sonhava apenas em ser professora.
Seu sonho era ser professora em Tarrafas. E Tarrafas precisava dela.
E foi assim que teve início a primeira revolução educacional de Tarrafas.
Maria Luiza Leite Santos é a primeira professora tarrafense com formação.
Retornou para Tarrafas logo após a formatura, em 1966. En sinou na casa da Boa Vista, em salões emprestados ou embaixo de cajueiros, assim como antes. Com o prêmio recém recebido, ela tornou-se professora estadual, ganhou autonomia e não de pendia mais de políticos municipais.
“Todo mês vinha um fiscal do Mobral para assistir às au las de Maria Luiza, depois passavam horas reunidos numa sala. Acho que por ela ter se formado na capital, né, eles deviam ter medo que ela fosse uma ameaça, e ficavam de olho”, lembra Maria Romana, 65 anos, professora aposentada e prima de Ma ria Luiza, ao falar sobre o MOBRAL.
Ensinou no MOBRAL - Movimento Brasileiro de Alfabe tização, por um tempo. Mas não se limitou a ele. Tinha uma mente criativa e inquieta, e gostava de utilizar recursos diferen tes para ensinar.
O MOBRAL foi um órgão do governo federal no perío do de governo de Costa e Silva, foi instituído pelo decreto n° 62.455, em 22 de março de 1968. O programa tinha a meta de erradicar o analfabetismo no Brasil em um período de dez anos. O MOBRAL propunha uma forma de alfabetização funcional, mecanicista, de jovens e adultos. O principal problema foi que ele queria erradicar o problema sem combater seus causadores, já que a questão do analfabetismo precisava de uma reforma estrutural na maneira como a educação estava organizada. O MOBRAL queria acabar com o analfabetismo sem antes alterar suas bases.
Além disso, ele foi condenado por se preocupar apenas em ensinar a ler e escrever, sem se importar em trazer relações com a formação humana.
Quantas histórias cabem dentro da ‘Tarrafa’?
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Bastava que os professores ensinassem a ler e escrever. Enquanto isso, Maria Luiza ensinava a pensar. Ela associava a prática docente à socialização, fazia com que os estudantes pensassem nas próprias realidades e os limites da sala de aula se dissolviam. Trazia saberes externos para as salas de aula, e fazia com que os alunos levassem consigo o que aprenderam nas aulas. A educação transforma, e foi o que ela os ensinou.
“Maria Luiza foi minha professora por muitos anos, era tão gentil, tão doce, tão paciente com os alunos. Não fazia distin ção, era rígida sem precisar levantar a voz ou castigar, conversa va muito com os alunos. Quando o aluno era danado, ela con versava para entender a realidade dele. Depois disso a danação acabava”, recorda Cristiano Bantim, 67 anos, um ex-aluno que hoje reside no Rio de Janeiro.
Organizava eventos, comemorações de feriados, peças te atrais, realizava formatura. “Os primeiros festejos de dia das mães, dia dos pais, dia do estudante, dia dos professores foram todos organizados pela Biliu. No sete de Setembro, ela organi zava o desfile e o braço direito dela era o Luizinho, que ajudava demais, ensinava os meninos a marchar, organizava os pelo tões… ela dizia que Luizinho enfrentava tudo”, diz Socorrinha. Luizinho, apelido de Luiz Alves de Sousa, 76 anos, é um ex-alu no de Maria Luiza. Foi comerciante e hoje é aposentado.
Os talentos de Maria Luiza não se restringiam à organiza dora. Fafá, a filha do meio, também lembra que a mãe era fã da cantora Kátia e arriscava uma palhinha. “Minha mãe gosta va muito de cantar ‘Qualquer Jeito’, ainda hoje me emociono quando ouço essa música”.
Maria Luiza também contribuiu para o desenvolvimento do distrito. Como forma de responder à revogação da emanci pação, o distrito continuou se comportando e se organizando como uma pequena cidade. A comunidade se ajudava, foi re conhecendo o próprio poder eleitoral e seus moradores foram
elegendo mais vereadores, se organizaram para reformar ou construir determinados prédios e assim seguiu. E Maria Luiza, com algumas cartas enviadas ao governo estadual, ajudou a fazer com que ruas fos sem pavimentadas e que chegasse a ener gia elétrica. Até então a luz era a motor. Socorrinha relata que “Tarrafas tinha uma professora impecável, mas não ti nha escola. Naquele tempo, ter uma pro fessora formada, e principalmente com a dificuldade que ela teve, era uma honra muito grande. O distrito tinha a melhor dentre 360, não era pouca coisa!” e ela ain da acrescenta “mas aí seria muito esperar alguma coisa boa de Raul Onofre, por que ele nem gostava da Biliu, e muito menos de Tarrafas, lembro de uma vez ter ouvido ele falar que por ele ‘a Tar rafa podia se acabar coberta de melão de São Caetano’”.
Em 1968, ao final do ano, Maria Lui za organizou uma formatura dos estu dantes que estavam concluindo o quinto ano. E o prefeito da época, Raul Ono fre (UDN), havia sido convidado. Era um evento grande para o distrito, muita gente viria assistir. As eleições voltaram e estavam próximas, seria uma oportu nidade perfeita para o povo colocar ele contra a parede, para cobrar por uma es cola. Mas quem iria “peitar” Raul Ono fre? E logo em público?
E foi aí que Socorrinha entrou em
Kátia Garcia de Oliveira é uma can tora e compositora brasileira, com gran des sucessos nos anos 80. No mundo dos memes, é conhecida como Kátia Cega. Seu maior sucesso, “Qualquer jeito”, é reconhecido pelo re frão: “Não está sendo fácil…”
A expressão “se acabar coberta de melão de São Cae tano” é referente ao abandono. Quando casas, currais ou cer cas ficam sem cuida do, a planta que dá o Melão de São Caeta no cresce até cobri -las por completo. Por essa expressão, pode-se ler como um sinal de descaso explícito.
Quantas histórias cabem dentro da ‘Tarrafa’?
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cena. Por escrever e falar bem, e também por ser corajosa e não ter papas na língua, foi escolhida para ser a paraninfa da turma.
Chegou o dia e o prefeito não foi, mandou o vice, Paulo Paiva. Socorro lembra que “Paulo era bom, gostava muito de Maria Luiza, mas acabou levando a lapada por Raul”.
Socorrinha discursou por quase meia hora, expôs o descaso com o distrito, acusou o prefeito e demais políticos de só olha rem para Tarrafas quando queriam votos, quando só se impor tavam com o centro de Assaré. Também falou sobre o desres peito com Maria Luiza, que se formou na capital e tinha que dar aula embaixo de um cajueiro, e outras coisas mais. “Naquele dia eu lavei a alma, a gente tem que cobrar mesmo, né? Os políticos se achavam donos dos lugares e do povo, mas são funcionários a serviço da gente, se fosse hoje eu dizia era mais coisas”, diz Socorrinha.
Ao fim do discurso, Paulo se levantou, foi em direção à jo vem estudante e a parabenizou. Chamou-a de corajosa por ter dito o que disse, e prometeu que Tarrafas teria uma escola. A construção começou no ano seguinte.
A escola recebeu o nome do pai de Raul Onofre, Euclides Onofre. Nela, a professora ensinava em turmas ainda multisse riadas e as funções de Maria Luiza transcendiam a de profes sora. Lídia Bantim, uma de suas ex-alunas, recorda que, certa vez, ela dispensou todos os meninos e alunas adultas para ficar apenas com as meninas de 10 a 13 anos. O intuito era explicar sobre as transformações pelas quais seus corpos passariam com a transição da infância para a adolescência. “Ela explicou tudo de forma tão didática e maternal que saímos dali confiantes e seguras”, disse Lídia.
Com a nova escola, também foram surgindo oportunidades de aulas de campo. Lídia ainda acrescenta que “havia nela uma inquietação por nos ensinar tudo o que estivesse a seu alcance. Promovia desde festa do folclore a concurso de dança, de mú sica, de poesia e de desenho entre os alunos. Faziam adaptações
passos da peregrina da educação
MÃE LUIZA
Em destaque, está a casa onde Maria Luiza morou em Tarrafas. Aparecem ela e Antônio, acompanhados de três dos cinco filhos. Da esquerda para a direita vemos Fafá, Moacir e Idelano.
As fotos em miniatura são registros da passagem do Projeto Rondon por Tarrafas.
72 • Os
de textos para serem dramatizados por nós; levava-nos a pas seios para que conhecêssemos alguns lugares vistos nos livros, como o açude de Orós, por exemplo.”
E o tempo foi passando.
Como lá havia duas salas, e a demanda vinha crescendo, Ma ria Luiza precisava de ajudantes. Foi nesse período que organi zou as Regentes de classe. Escolheu algumas alunas, dentre elas, sua prima Maria das Graças, conhecida como Gracinha, que era filha de Antônia, professora mencionada anteriormente; as irmãs Salete e Dalcides, que já ensinavam e eram responsáveis e dedicadas; e também Francisca Rodrigues, que ensinou até meados dos anos 2000. Com as regentes selecionadas, elas se dividiam no ensino e, nas férias, faziam estágios e formações em Barbalha e Crato.
Com a construção da primeira escola, a dinâmica do distrito mudou. E se iniciou um processo onde os pais que moravam em localidades mais distantes, começaram a construir casas em lugares próximos à escola. Enquanto a grande maioria das ci dades se organiza ao redor de igrejas, Tarrafas se organizou ao redor de sua primeira escola.
Sua atuação também se dava na igreja, participava de ativida des religiosas, o vigário da época, Pe. Agamenon Coelho, tinha um carinho muito especial por ela. Fafá recorda que “sempre que o Pe. Agamenon vinha para Tarrafas, ele se hospedava lá na Boa Vista, porque gostava demais de minha mãe”. Maria Luiza também tinha uma grande quantidade de afilhados, por ser muito querida e ter grande prestígio no município, quase uma autoridade.
Recebeu inúmeros convites para deixar Tarrafas. Propostas de emprego em cidades maiores, a fama da professora alcançou distâncias. Mas ela sempre declinava, dizia que seu sonho era ensinar em Tarrafas e sua terra ainda precisava muito dela.
Sua fama também percorria distâncias dentro do distrito. Meu pai, Luiz Vasconcelos, disse que seu sonho, quando crian
ça, “era ser aluno de dona Maria Luiza. Gostava muito dela e ela era muito querida por meus pais e tios, mas como a gente morava longe da escola, não deu certo”.
No início da década de 70, assumiu mais uma função: recen seadora. Durante semanas, percorreu, a pé e no lombo de um cavalo, toda a extensão do distrito para fazer o recenseamento do IBGE. Debaixo de sol e chuva, foi contando quantas pesso as viviam em Tarrafas, visitou sítios, conheceu e foi conhecida por todas as pessoas que lá viviam. Também foi importante para que percebesse a quantidade de alunos que ainda não ti nham acesso à educação. Nesse período, contabilizou 7.058 pessoas residindo no distrito.
Lídia hoje reside no estado do Rio de Janeiro, é professora e escritora, foi aluna de Maria Luiza em 1974. Lídia define o período estudantil como “a experiência mais marcante e signi ficante para mim. Devo a ela a escolha da minha profissão, a paixão pelos livros e pela arte e, sobretudo, o meu jeito de tratar as pessoas”.
A turma tinha alunos crianças, adolescentes e adultos. Ela também define como impressionante o carisma da mestra, que conseguia administrar as diferenças etárias e também sociais entre os alunos. Sempre os tratava com respeito, atenção e ca rinho, mesmo quando a situação exigia uma atitude mais enér gica, jamais precisou gritar ou falar de maneira ríspida. Doce, meiga e justa, são adjetivos que tanto Lídia, como outros entre vistados usaram para defini-la. “Bastava um simples olhar para percebermos que não lhe estávamos agradando”, lembra Lídia. Ela ainda traz um episódio para ilustrar o jeito de Maria Luiza em sala de aula:
Certo dia, dona Maria Luiza, no final da gravidez de Jáder, chegou à sala soluçando bastante e incessantemente. Sempre que chegava, todos ficá vamos de pé, rezávamos juntos, em seguida ela fazia a chamada, e depois se virava para escrever na lousa. Quando ela se levantou para escrever no
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quadro, uma aluna retirou a cadeira do lugar. Ao retornar, de costas, ela foi sentar-se e caiu. Ficamos todos apavorados! Ela, com os olhos assusta dos e cheios de lágrimas, perguntou quem fizera aquilo.
A aluna respondeu:
Fui eu, madrinha! Dizem que levar susto faz parar o soluço e eu queria que a senhora melhorasse…
Ela, com doçura no olhar e com a voz embargada, falou: Ah! Mas você poderia ter me matado, mulher! E sorriu.
Lídia ainda conclui o depoimento refletindo sobre as pesso as que ajudaram a moldar quem ela é hoje, “Dona Maria Luiza, assim como os meus pais, está presente em todas as minhas ati tudes de mulher, mãe professora e, sobretudo, de ser humano”.
No ano seguinte, em 1976, Tarrafas foi uma das comunida des assistidas pelo Projeto Rondon. O projeto tinha o objetivo de levar a juventude universitária a conhecer a realidade deste país continental, multicultural e multirracial, e proporcionar aos estudantes universitários a oportunidade de contribuir para o desenvolvimento social e econômico do País. E os estudantes foram para a casa de Maria Luiza.
“Todas as pessoas de fora que vinham para Tarrafas, iam para a casa da Biliu. Deputados, prefeitos, vereadores, padres, bispo, todos chegavam já perguntando ‘onde fica a casa da pro fessora Maria Luiza?’. E com o projeto Rondon não foi diferen te”, explica Socorrinha.
“Tenho recordações muito boas desse período. Eu era pe quena quando eles vieram. Minha mãe cozinhava para eles e os tratava tão bem que eles passaram a chamá-la de Mãe Lui za. Foi um vínculo muito forte, anos depois, ainda manda vam cartas, nos convidaram para as formaturas e choraram demais quando souberam do falecimento de minha mãe”, diz Fafá.
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Maria Luiza com Jáder (à esquerda) e Fafá e Raquel (à direita).
OS FRUTOS DE UMA VIDA
O começo e o fim: Nesta foto vemos Maria e Moacir, pais de Maria Luiza, segurando Richard, o primeiro neto da educadora, que não chegou a conhecê-lo.
Idelano, o primogênito, com um ano de idade (1965).
Da direita para a esquerda: Jáder (com a mão “nos quartos”), Moacir com as mãos nos ombros de Raquel e Fafá.
Jáder, Fafá e Raquel fantasiados para o Carnaval da escola.
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E continuou ensinando e trabalhando pelos tarrafenses. Lurdes Moreira, professora aposentada, lembra o quão incen tivadora foi Maria Luiza: “Meus filhos foram alunos dela. Um deles, Altair, era muito inteligente, e queria ser professor, assim como ela. Um dia, Maria Luiza conversou comigo, disse que ele tinha muito potencial, que eu o incentivasse a estudar porque ele tinha futuro. Ela me deu coragem para enfrentar meu mari do e botar meu filho para fazer faculdade. Hoje ele é professor já aposentado, e sempre lembra com muito carinho da mestra. Devo muito a ela, Maria Luiza me deu coragem, e essa coragem mudou o futuro do meu filho”.
Em 1977, depois de muito ser incentivada por amigos e parentes, Maria Luiza resolveu fazer faculdade, inquieta como era, sabia que a graduação permitiria uma melhor qua lificação, e ela resolveu embarcar em mais um desafio. Para isso, teve que deixar Tarrafas e se mudou para Assaré com a família. Mas não deixou Tarrafas desamparada. “Quando Maria Luiza quis ir para o Assaré, foi no tempo em que eu me casei, e queria ir para Tarrafas. Aí eu tinha uma cadeira para ensinar no [colégio] Moacir Mota. Então trocamos, ela foi para o Assaré, e eu para Tarrafas”, recorda Dona Chiqui nha. Francisca Alves de Lima Sousa, ou Dona Chiquinha, é uma professora aposentada, assumiu diversos cargos na educação, sua vida foi totalmente dedicada a essa área e ao potencial transformador dela. É nossa Dama da Educação e a responsável pela segunda grande revolução educacional de Tarrafas. Mas essa é outra história.
Então, no ano de 1977, grávida novamente, Maria mu dou-se para Assaré.
Em 1978 prestou vestibular e passou para o curso de pe dagogia, na antiga Faculdade de Filosofia do Crato, hoje co nhecida como URCA, Universidade Regional do Cariri. Foi um período cheio de percalços. Para ir estudar, às vezes conseguia carona com algum colega que tinha carro, às vezes ia em um
ônibus muito precário e às vezes ia com algumas colegas es perar na beira da pista por alguma carona. Chegou a ir para o Crato em cima de um caminhão carregado de algodão. E assim se seguiram os quatro anos, ensinava de manhã e à tarde, e à noite ia para a pista esperar por algum transporte.
Até que finalmente, em 1982, se formou. Seguiu ensinando em Assaré, porque logo depois, os filhos foram para fora, para conseguirem dar continuidade aos estudos. Idelano foi para o Crato, cursar Direito. Depois, Moacir foi para Fortaleza, cursar Farmácia e Biomedicina. E a vida seguiu, com Maria Luiza en sinando em Assaré, mas sem esquecer da querida Tarrafas, para onde sempre ia quando tinha folga, ou no período das festas da padroeira Nossa Senhora das Angústias, em agosto.
Quatro de seus filhos são formados. Atualmente, Idelano é oficial de justiça, Moacir é farmacêutico e biomédico, assim como Raquel, Fafá casou cedo e acabou não seguindo na vida acadêmica, e Jáder formou-se em psicologia, seguiu estudando, fez mestrado e doutorado e é professor na Universidade Fede ral do Rio Grande do Norte há mais de vinte anos.
E falando em Jáder, na nossa conversa, ele definiu a mãe como “muito cuidadosa, preocupada com nosso bem-estar, com nossa educação, não mediu esforços para que a gente ti vesse acesso a um ensino de qualidade. Muito carinhosa e amo rosa conosco”. Ainda contou que, como professora, era muito humana, e acolhia as pessoas com dificuldade de aprendizagem e na vida em geral. Tinha uma capacidade de compreensão das pessoas invejável. Era comum que pessoas a visitassem para de sabafar, pedir conselhos. Jáder ainda acrescentou que “em uma das mesas de jantar de nossa casa não faltavam livros, papéis, onde ela estava sempre preparando aulas, corrigindo avaliações, ajudando nas nossas tarefas escolares…”.
Além disso, Maria Luiza tinha uma caixa em que guardava com muito carinho as inúmeras fotos a ela oferecidas por alu nos/as concluintes de suas turmas, sempre com agradecimen
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tos escritos nos versos das fotografias. É nítida a dimensão do carinho, respeito e admiração que tinham por ela.
Recentemente, juntamente com Socorrinha, fomos arrumar as fotos e antiguidades que ela coleciona em Juazeiro. Socorri nha é uma pessoa extremamente colecionadora, se apega à an tiguidades, objetos e fotografias antigas. Tem uma ligação forte com a memória afetiva que esses objetos evocam. Encontrei no acervo de Socorrinha cartões e imagens de santos, oferecidos à Maria Luiza por ex-colegas de aula. Tudo guardado e organiza do, lembranças preservadas há mais de sete décadas.
Lá também haviam cartas, escritas por Maria Luiza, onde ela falava sobre seu cotidiano, desabafava e descrevia as situ ações que viveu em diversos momentos: mudança para For taleza para cursar o Normal, onde se questionava enquanto esposa e mãe, o cotidiano na sala de aula, a nova rotina em Assaré e a saudade da família, saudades dos filhos, entre ou tros acontecimentos importantes.
Sobre seu cotidiano, a família levava uma vida simples, con dizente para uma professora e um agricultor. Maria Luiza ensi nava todos os dias, pela manhã e à tarde e Antônio, conhecido por Antônio Senhor, trabalhava no campo, plantando, colhen do e vendendo. As contas da casa eram regradas para que não faltasse nada. Jáder lembra de terem passado por “momentos difíceis na época do governo Sarney e do governador Gonzaga Mota, em que minha mãe ficou meses sem receber salário”. Com o crescimento dos filhos, houve o esforço para que pu dessem estudar. E aí teve mais um desafio: o de manter duas casas somente com o salário de professora e a renda que Antô nio conseguia na agricultura.
A relação de Maria Luiza e Antônio era complementar, Jáder recorda que “meu pai tinha uma posição mais rigorosa e minha mãe estava sempre a mediar e a negociar em alguns momen tos”. E, quando questionei se ela era adepta aos ditados popu lares, tanto ele como Fafá responderam o mesmo:
Geralmente, quando queríamos ir a alguma festa ou viajar para algum lugar, ela costumava dizer: “Boa romaria faz quem em sua casa está em paz” na tentativa de nos dissuadir. Ela era muito cuidadosa conosco, tinha receio de que algo pudesse nos acontecer.
Tarrafas finalmente conquista sua emancipação, em 1987. Em meados de 1988, aconteceria a primeira eleição e uma das pessoas mais cotadas para se candidatar à prefeitura foi Ma ria Luiza. “Além de ter sido uma professora ímpar, ela contri buiu para preparar o distrito para ser emancipado, fez com que naquela população marcada pelo atraso, surgisse uma geração socialmente ativa. Nada mais justo do que ser nossa primeira prefeita”, disse Socorrinha. Mas Antônio foi contra, e Maria Luiza também não quis deixar a sala de aula.
Era muito apegada ao ofício de professora, e à sua terra tam bém. Até que chega 1989, quando Fafá se casa e vai morar em São Paulo. “Uma lembrança muito boa que tenho é essa: ti nham uns primos que viviam chamando minha mãe para viajar para São Paulo e ela nunca ia, porque tinha medo de avião e não tinha coragem de passar três dias dentro de um ônibus. Aí foi só eu me casar e mudar para lá, que em seis meses ela voou ao meu encontro. Amor de mãe dá tanta força, né?”, recorda. Com o tempo, também chega a vez dos caçulas alçarem vôos, em 1991, Raquel se mudou para o Crato, para estudar e morar com Jáder, que já estava por lá.
Em uma de nossas conversas, dona Chiquinha recorda que “na festa [da padroeira] de agosto daquele ano, Maria Luiza es tava especialmente radiante, sempre simpática e atenciosa com todos, foi em todas as mesas, falou com todo mundo, con versando, abraçando ex-alunos, sempre sorridente. Parecia uma despedida”.
A festa de agosto em Tarrafas é o período de oito a quinze e agosto, quando se comemora o dia de Nossa Senhora das An
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• 8180 • Os passos da peregrina da educação
LEMBRANÇAS DE MARIA LUIZA
gústias, padroeira do município. Dois dias depois, faltando 14 dias para os seus 49 anos, Maria Luiza sente uma dor de cabeça forte e vai para o hospital de Assaré. Sente as pernas adorme cendo, e a dor de cabeça persistindo. Lá fica durante a noite, sentada, esperando passar.
E ao romper da aurora, ela partiu.
Em 17 de agosto de 1991, aos 48 anos, 11 meses e 17 dias, morreu Maria Luiza Leite Santos. Levada por um aneurisma. Assim, repentinamente.
Foi uma comoção total. O velório aconteceu no CERUCentro Educacional Rural, o maior espaço possível para aco modar a quantidade de pessoas que veio se despedir da profes sora do povo. Nunca se viu tanta gente aglomerada para dizer adeus a alguém. Foi o maior velório que se tem notícia em toda a história de Tarrafas.
Antes de sua morte, tentaram fazer homenagens a essa que tanto fez pela jovem Tarrafas. Dona Chiquinha, juntamente com a professora Francisca Lédio, ao fundarem o ensino médio no município, batizaram a escola com o nome de Maria Luiza, a homenageada esteve presente na inauguração e ficou extrema mente contente. “Mas o conselho de educação não reconheceu a escola, e o governo do estado dizia que a demanda era pouca e não compensava mantê-la, então a escola foi incorporada à que já existia, e que já havia sido batizada com o nome de dona Emília Ferreira”, recorda Chiquinha.
Em seguida, no ano de 1993, já após seu falecimento, batiza ram a principal avenida da cidade com o seu nome. Uma home nagem que ainda hoje permanece. Enquanto cidades batizam avenidas com nomes de políticos, Tarrafas batizou a sua com o nome de uma professora. Mas ainda não era o suficiente. Uma professora merece uma homenagem associada à educação.
Em 2005, foi criada a Comenda Professora Maria Luiza Lei te. Trata-se de uma premiação dada aos cidadãos que se desta caram e que prestaram serviços relevantes ao município, con
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Cartões enviados à Maria Luiza por excolegas de escola, ex-alunos e parentes. Os cartões datam do inicio dos anos 50 até o inicio dos anos 90.
Cartas de Maria Luiza endereçadas a familiares.
tribuindo com o seu desenvolvimento. A Comenda é entregue em solenidade realizada no dia do município, em 21 de outubro. E ocorreu a segunda tentativa. Com a chegada de uma escola exclusivamente de ensino médio, da rede estadual, em 2009, novamente tentaram batizá-la com o nome de Maria Luiza, mas não deu certo.
Em meados da década de 2010, construíram o primeiro Centro de Educação Infantil, que recebeu o nome de Maria Luiza. Mas, pouco tempo depois, uma das professoras que lá ensinavam faleceu tragicamente, o que ocasionou na mudança do nome da escola.
Ao pesquisar sobre a vida dela, sempre a apresentei como a nossa Paulo Freire. Maria Luiza tinha consciência do potencial emancipador da educação. Reconhecia a im portância de se pensar a realidade em sala de aula, e de transformá-la com a educação. Certo dia, ao acordar, tive um insight . O Brasil tem seu patrono da educação. Não se pode pensar na educação brasileira sem passar pelas contri buições de Paulo Freire.
Em Tarrafas, acontece o mesmo, não se pode pensar no nosso desenvolvimento educacional sem passar pelas contri buições de Maria Luiza Leite Santos. Conversei com três vere adores com os quais tenho mais proximidade: Sonha Germano e Tonozinho (ambos do PDT) e Lane Arrais (PTB), que gosta ram da ideia e se puseram à disposição. Em 11 de novembro de 2021, fui à Câmara de Vereadores defender um projeto de lei que a tornasse Patrona da Educação Tarrafense. Havia um pre cedente em uma cidade, Recife. Se eles podiam ter um patrono, nós também poderíamos.
Em 25 de novembro o projeto foi aprovado por unani midade. Sancionado logo depois. Hoje, temos a Lei Municipal N° 426/2021, que declara a professora tarrafense Maria Luiza Leite Patrona da Educação tarrafense. Uma homenagem mere cida, 30 anos após seu falecimento.
Esta homenagem garante que seu legado se perpetue na memória desta geração e das próximas que virão. Não cheguei a conhe cê-la, nasci quando completavam-se sete anos de sua partida. Mas a memória dessa educadora tem poder transformador, e essa homenagem permite que sua luz continue brilhando pela educação dos tarrafenses.
Tarrafas é o primeiro município cea rense a ter uma patrona da educação, e o segundo do Brasil. É o único a conceder esta homenagem a uma professora.
E não à uma professora qualquer. Mas à professora de Tarrafas que desde criança sonhou em ser.
Enquanto recolhia materiais sobre ela, Fafá me enviou um vídeo no Youtube. O vídeo era um trecho de uma gravação da cobertura que Jesus fez do carnaval da escola Moacir Mota, da qual Maria Luiza também foi diretora. No vídeo, aparece junto aos seus filhos, no meio da folia. O sorriso não abandona seu rosto, o tom de voz sereno emite vibrações felizes, de uma mulher que estava feliz com o carna val, por estar onde gostava de estar, com os filhos por perto. Vestindo um macacão verde, comemorava junto com “a filhara da toda”.
Socorro Braga, sua prima, diz que “só em estar com a gente, ela já agradava. Bas tava estar presente”.
Bastava estar presente. E ela está. Maria Luiza, presente!
Você pode acessar o vídeo escanean do o QR Code abaixo:
Quantas histórias cabem dentro da ‘Tarrafa’?
• 8584 • Os passos da peregrina da educação
Uma homenagem ao nosso mestre
Capítulo 05 • 87
Antônio
Rafael Sobrinho é poeta popular, apresentador, radialista, mestre da cultura e tesouro vivo reconheci do pelo município de Tarrafas e pelo estado do Ceará. Pensei em fazer um texto como os outros, mas ao falar de um poeta abençoado pela Poesia, a inspiração bateu, e compus este sin gelo cordel. Possui o diploma de Notório Saber, concedido pela Universidade Estadual do Ceará, e é o único tarrafense com essa honraria. Popularmente, se autointitulou de Poeta sem Lei tura. Esteve presente em diversos momentos importantes de Tarrafas, e aqui não poderia faltar.
Peço licença ao mestre Para riscar no papel Alguns versos e estrofes Sobre Antonio Rafael Porque para falar do poeta Que das palavras é um atleta Só poderia ser em cordel
Nosso homenageado fala É um nato comunicador Com uma mente afiada Pode peitar até doutor É nosso mestre da cultura Sua língua ninguém segura Rima tudo com louvor
ao nosso mestre
É filho de Tarrafas Quando ao Assaré pertencia De tanto ver o povo rimar Foi descobrindo a poesia E aí encontrou seu destino Vem rimando desde menino Fazendo da arte o seu dia-a-dia Nasceu no ano cinquenta Filho de Catarina e Manoel No distrito da Lagoa Seu pai também era Rafael Filho da agricultura Traçou seu caminho na cultura Com a poesia de cordel
Fez repente e improviso Biografia e todo verso Seu Antonio fez família
Tem filhos e tem neto Mais de cinquenta anos na estrada A poesia não larga por nada Deixando legado eterno Antes de ser pai foi marido Com dona Dalva se casou
A parceira de sua vida Até na política o acompanhou Tiveram Dália, Dalvenira e Rafael Seu grande parceiro de cordel Com quem muito publicou
88 • Uma homenagem
• 89Quantas histórias cabem dentro da Tarrafa?
Seu primeiro mandato Foi na terra do Patativa Um cargo de vereador Na casa legislativa Mas na política esteve sempre Em cada verso, cordel e repente De maneira criativa Tem setenta anos de memórias Uma vida cheia de aventura Construiu família e carreira Viveu o Véi Raul e a ditadura Na primeira eleição foi eleito E Tarrafas teve de Vice-Prefeito O Poeta Sem Leitura
É um contador de histórias Sobre tudo faz poesia A família autorizou E de Patativa fez a biografia Seus cordéis passam de mil De Tarrafas para o Brasil Sem a arte não viveria Apresentou um programa “Nordeste povo e cultura” Trazia filhos da terra Do canto à literatura O chocalho balançava E “Princesa!” ele gritava A audiência era uma fartura
Seu Antonio nos ensina Inspira muitas gerações Professor da vida Tocou muitos corações Seu papel é histórico E seu saber é notório O poeta é de milhões É parente dos Vilanova E primo da minha avó Tarrafas é uma grande família E ninguém se sente só O parentesco todo cruzado Um enlinhado danado Chega a cabeça dá um nó Quando contei do livro Ele me aconselhou “Meu filho, priorize Quem a Tarrafas se dedicou E mesmo sem obrigação Lutou por seu torrão E de graça trabalhou” “Porque político não conta Já que é obrigado Foi eleito para isso E do povo é empregado Mas quem se dedicou de graça Para melhorar a Tarrafa Deve ser sempre lembrado”
ao nosso mestre
90 • Uma homenagem
• 91Quantas histórias cabem dentro da Tarrafa?
ANTÔNIO
Então para encerrar Deixo aqui um recado Nosso mestre do mundo É um cara certificado Reconhecido pela comunidade Por falar da realidade Em todo canto é respeitado Não quero me prolongar Nesse cordel tão enxuto Para falar desse homem Com este humilde tributo Leiam seu Antônio Rafael Valorizem o mestre de Cordel A obra dele já fala tudo 92 • Uma homenagem ao nosso mestre
& DALVA Dalva Rodrigues, esposa de Antônio Rafael, no primeiro mandato de vereadora em Tarrafas. À direita dela está o então prefeito Tertuliano Cândido de Araujo. Mestre Antônio Rafael em sua casa, no centro de Tarrafas (2021). Antônio Rafael no primeiro mandato de vereador em Assaré. Gestão de 1983-1989.
As dores de Maria
Memórias Iluminadas Capítulo 06 • 95
“Iluminados são os que amam a vida, apesar dos pesares”.
— Mensagem aos Iluminados.
Em Tarrafas, se procurar direitinho, todo mundo é famí
lia. Maria das Dores era uma personagem muito interes sante. Tinha uma memória de elefante e talento para contá-las em seus registros. Nossa personagem viveu durante quase toda a vida no município de Tarrafas.
Maria das Dores era prima do meu avô paterno, usei o “era” porque ela já faleceu, ele também, mas acho que o paren tesco permanece, né? Então é isso, eles são primos, mesmo que a gente já não possa mais usar o verbo no tempo presente para falar sobre eles.
Quando estava finalizando a entrevista com a professo ra Gilcarla Lima, perguntei sobre personagens que marcaram a história de Tarrafas e que não eram lembrados como mereciam. Ela, então, mencionou o nome de Maria das Dores, e a definiu como “a primeira memorialista que Tarrafas possuiu”.
Gostei dessa palavra, memorialista.
Resolvi, então, buscar no dicionário, o seu significado. Obti ve o seguinte:
Memorialista adj. e s.f.m.
Me.mo.ri.a.lis.ta
1. Quem ou aquele(a) que escreve memórias.
Maria das Dores Leite Vasconcelos nasceu mesmo em Tarra fas, em 1925 ou em 1928 (as versões variam).
Ela era filha de Abel Leite Araújo Vasconcelos e Joana Pereira Leite Vasconcelos, primos, cujas mães eram irmãs. Filha caçula, Maria das Dores tinha seis irmãos e irmãs: Marieta, Milcides, Nilsa, João (Miduda), Antônia e Luiza.
Seu avô paterno merece destaque também. Afinal, se Rogé rio Francisco Araújo Vasconcelos não houvesse voltado atrás numa certa escolha, toda uma árvore genealógica seria apaga da, afetando até o autor deste texto. Rogério foi estudante em um lugar muito conhecido na história caririense, mesmo não se localizando no Cariri. Ele estudou no Seminário da Prainha. Lembra alguém? Ele mesmo, Padre Cícero Romão Batista. Foram colegas de seminário até bem próximo da ordenação de ambos.
A história que se conta na família (e a própria Maria das Do res registrou em seu caderno-livro) foi que a mudança de ideia aconteceu quando Rogério, em suas visitações ao povoado de Aroeiras, futura Tarrafas, nas quais vinha pedir a benção de sua mãe e participar dos festejos de Nossa Senhora das Dores, conheceu alguém que o fez repensar sua vocação. Abandonou a batina e veio de vez para Tarrafas, pois era com Antonia Leite de Alencar que seu coração estava.
Mas o amor duraria pouco.
Com ela, teve Abel, pai de Maria das Dores. Em seguida, An tonia viria a falecer de complicações do parto. Anos depois, Rogério casa-se novamente com uma mulher chamada Maria Alves da Conceição, e com ela teve três filhos: duas meninas, Sinfronia e Conceição, e um menino, chamado Francisco. Sin fronia (a mesma do capítulo sobre a educação de Tarrafas) foi a primeira pessoa a chegar mais próximo do cargo de profes sora da vila, sendo uma das únicas até 1915. Conceição era a encarregada de cuidar de tudo na igreja, posto que ocupou até o fim de seus dias. E Francisco foi meu bisavô. Foi ele quem
Quantas histórias cabem dentro da ‘Tarrafa’?
• 9796 • As dores de Maria
lutou pela elevação de Tarrafas para distrito, sendo o primeiro vereador representando os tarrafenses.
Maria das Dores participou da história da cidade de diversas formas. Sua história, bem como a de sua família, se entrelaça com o lugar. Ela também se deu ao trabalho de fazer algo que, até então, ninguém havia feito: pescou suas memórias de episó dios vividos, conversas e histórias contadas pelo pai, avô, e por outras pessoas, e registrou tudo em diversos cadernos. Queria preservar uma memória que ela sentia que corria perigo de se perder. E, ao final, dedicou-os para os jovens do futuro.
“Essa é a história da fundação de Tarrafas, como foi e quan do. Daqui pra frente é para os jovens de hoje” , escreveu na contracapa. O caderno data de outubro de 1998.
Contudo, ela só começou a escrever no caderno quando já estava aposentada. Ainda há uma vida inteira a ser contada.
Independente e inquieta. Ou iluminada, como ela mesma di zia. Maria das Dores ocupou muitas funções durante a vida.
Seu avô conseguiu um emprego de tabelião em Saboeiro. Lá já havia escolas, onde seus tios foram alfabetizados. Sinfronia, tia de Maria das Dores, foi quem a ensinou a ler.
Maria das Dores foi tabeliã do primeiro cartório de Tarra fas. Registrava os nascidos, ajudava nos casamentos, escrituras e outros afazeres durante muitos anos. Também se dividia nos trabalhos da igreja, auxiliava o padre Agamenon, e organizava os festejos da padroeira, Nossa Senhora das Angústias.
Foi também professora, informalmente, porque o povoado só veio a ter escola no final da década de 60. Conseguiu seu contrato e lecionou formalmente por um bom tempo, até que as inconstâncias da política a tiraram do emprego.
Naquela década, começou o seu período de maiores dificulda des. Sem emprego, e com a casa para sustentar sozinha, já que Maria das Dores nunca casou. “Ela dizia que o grande amor dela foi o Luiz Bantim, seu primo, mas ele casou com outra, então desencantou com o amor”, relembra Aldizio Leite, seu
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Maria das Dores na missa.
Maria das Dores e Mônica, foto de aproximadamente 1988.
Procissão de Nossa Senhora das Angústias.
sobrinho. Durante quase dez anos, ela esteve desempregada, sendo amparada por parentes e alguns amigos, que mandavam comida e a ajudavam a sobreviver. Maria sempre teve uma co nexão forte com a família e, quase diariamente, visitava a todos, percorrendo a pé cerca de 10 km para isso.
Mesmo assim, esteve sempre ativa na igreja. A igreja de Nossa Senhora das Angústias foi sua grande paixão e o devotamento de sua vida. Foi a herança de sua tia Conceição, que cuidava de tudo, passou os ensinamentos para Maria e Luiza, e, quando tanto a tia como a irmã faleceram, Maria das Dores seguiu cui dando da igreja.
E novas personagens entram em cena.
Depois da morte de sua irmã Luiza, que também nunca casou e era sua companheira, Maria viveu sozinha, na casa herdada pelo pai. Durante muito tempo, somente o azul do manto de Nossa Senhora dava cor à vida de Maria das Dores. Solidão, trabalho e sofrimento eram suavizados pela fé e devoção.
Até a chegada de Mônica, em 1985.
Certo dia, recebeu uma carta. A correspondência era assinada por uma moça, chamada Margarida. E essa moça, aos 24 anos, era uma mãe solteira, que estava correndo o risco de ser posta na rua com sua bebê recém-nascida. A ideia da carta foi de suas amigas, que a escreveram e assinaram por ela, enviando para Maria das Dores. A proposta era que Margarida fosse morar com Maria das Dores, e assim não estariam mais solitárias. “No outro dia veio a resposta. Ela disse que eu podia ir”, recorda Margarida.
As duas ficaram amigas em meados dos anos 1980.
Duas solitárias que não se conheciam e cujos caminhos, inu sitadamente, se encontraram.
“Quando eu fui para lá, ela tinha deixado a chave com a vizinha, porque havia ido com o irmão para Assaré, a pé, para ver o Adauto Bezerra chegar”, relata Margarida. Ela entrou na casa, armou a rede e, nela, pôs sua filha, Mônica, com pouco mais de um mês de nascida.
E aí passaram anos juntas, as três, trabalhando, lavando rou pas no rio Bastiões, costurando, muitas vezes em troca de uma refeição, às vezes, nem isso conseguiam. Margarida também conta que “muitas vezes a gente só almoçava. O Luizinho, co merciante e amigo, sempre gostou muito de Maria das Dores e ajudou a criar a Mônica, nunca deixou faltar massa e leite para fazer o mingau dela”.
Desencantada com o amor, Maria das Dores experienciou a pureza do amor maternal, ajudando a criar aquela criança. Para quem tinha um mundo na cor azul, a relação com Mônica foi um caleidoscópio com todas as cores do amor.
Sem nunca ter sido mãe, aos 57 (ou 60) anos, virou avó - como Mônica a chamava. Experimentou o amor incondicional e todas as dificuldades amaciaram. Foram os melhores anos de sua vida.
Depois de um tempo, chegou a hora de se aposentar por ida de. “Ela dizia ‘Mônica peça a Deus, por que você é um anji nho, é mais fácil que Ele escute’. Pouco tempo depois, che gou uma carta avisando da aposentadoria. Ela conseguiu”, conta Margarida.
O primeiro gasto quando recebeu a aposentadoria foi com prar uma bicicleta para Mônica. O tempo das dificuldades pas sou, e chegou a fase da bonança.
Na monotonia da vida de aposentada, resolveu escrever suas memórias. Escreveu alguns cadernos, um falava sobre política, outro contava a história do primeiro padre nascido em Tarrafas, pe. Edson Bantim, e também há boatos de um outro caderno onde ela contava histórias de bastidores da vida tarrafense que, se se tornassem públicos, deixariam a cidade de cabeça pra bai xo. A confusão seria grande. Mas, por estresses com políticos, queimou quase todos, deixou somente um sobrevivente.
Nas páginas, hoje amareladas pela ação do tempo, a tinta azul da caneta traz as memórias de gerações, sobre um povoado que virou distrito, e depois se transformou em cidade. Nele,
histórias cabem dentro da ‘Tarrafa’?
• 101100 • As dores de Maria Quantas
CADERNO DE MÉMORIAS
registrou a contagem de casas, que observou durante 4 décadas. Apresenta a sequência de padres que por aqui passaram; casos como a troca da santa, a fundação, a perda da tarrafa (aqui você soube ou vai saber no capítulo 4), a origem dos sobrenomes… e até documenta a quantidade de missas, casamentos e batis mos feitos pelo Padre Agamenon Coelho.
Numa narrativa fluida, faz do livro de memórias uma rica conversa com o leitor. Usando termos como “como você sabe”, “você deve conhecer”, “como já havia lhe dito”, entre outros, a sensação, ao ler o caderno, é de passar a tarde numa calçada, tomando café e ouvindo uma sábia veterana da vida contar suas memórias.
O caderno-livro de memórias
“Quando Tarrafas foi fundada”
Assim Maria das Dores começa seu caderno. Fala sobre as origens, o nome que tinha antes, Aroeiras e também da chegada da fundadora, Teresa Moreira. Detalha as memórias e vai dizendo as fontes. A primeira parte foi contada por seu avô paterno, Rogério Francisco. Por seu avô, soube sobre a participação de dona Teresa, a construção do primei ro cemitério, a formação inicial do povoado, chegada das primeiras famílias…
Maria das Dores faz uma genealogia, parte dos nomes dos “troncos” das árvores genealógicas e vai desenvolvendo, fa lando quem casou com quem, quantos filhos tiveram, além de usar, em alguns casos, os apelidos pelos quais algumas pessoas ficaram conhecidas.
Explica os nomes dos lugares, os sítios e as comunidades dos distritos. Por conta das formações vegetais, temos os sítios Oitis, Ipueiras, Timbaúba, Caiçara, Umbuzeiro, etc. Já
Quantas histórias cabem dentro da ‘Tarrafa’?
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outras, por conta de formações aquáticas, como o sítio Poços e Riacho Verde, ou por nomes de famílias, como o distrito de Vila Nova. Vale dos Bastiões, onde se localiza a sede de Tarrafas, tem esse nome por causa do Rio Bastiões, o principal do município. O nome se deu por conta dos povos originários que, margeando o rio, viveram por um tempo, conhecidos por “índios Bastiões”, como os tarrafenses costumam falar.
Das Dores também explica o porquê de algumas famílias terem os nomes que têm: a família Cândido, por exemplo, teve como patriarca o “velho Cândido”, um homem que fa lava muito alto, era escandaloso e não corria de briga. Era conhecido por “Velho do Escândalo”, o que acabou evo luindo para Cândido. A família Alcântara, por sua vez, tam bém tem suas origens relacionadas com os modos de falar, o patriarca tinha o costume de acordar muito cedo, ia para a roça junto com o cantar do galo. Era conhecido por chegar na hora que o galo canta, e de “galo canta”, com o tempo chegou em Alcântara.
E ainda tem muito mais coisas.
O livro é dividido em cinco partes não muito bem definidas. A primeira é sobre a fundação. Dentro dela, fala dos nomes, que já contei, e também sobre a padroeira, a troca da santa, intervalos de tempo específicos, formação das famílias, pas sagens dos padres, etc. Nessa parte também ela conta sobre o que foi passado para ela pelo pai, e depois que ela foi “guardando os acontecimentos na memória”, como diz.
A proposta dela, ao escrever no caderno, era transformá-lo num livro. Todas as páginas são numeradas, os textos são agrupados por temas, e os capítulos seguem uma or dem cronológica.
Dona Chiquinha, que vocês vão conhecer no próximo ca pítulo (aqui me sentindo como a prima Maria das Dores, conversando com o leitor), foi revisora de boa parte do ca derno. A cada nova parte escrita, nossa memorialista levava
para a nossa Dama da Educação ler e co mentar. O texto não foi passado a limpo. Tem pontos com textos riscados, núme ros corrigidos e rasuras, além de anota ções, contatos e também dados aleatórios que ela achou importante e não deve ter encontrado um ponto no texto para en caixar. Além disso, tem também um texto que deveria ter entrado antes e ela lem brou depois, inclusive, ao final, ela se des culpa com a revisora, ao deixar, entre as pas, “desculpe Francisca”.
Em seguida, traz quem esteve envolvi do em eventos importantes, datas, além de trazer hinos da igreja e até jingle de eleição, composto pela própria Maria das Dores. Ela também traz relatos so bre a Gripe Espanhola, contando que o tio dela, Francisco (meu bisavô) foi con taminado e as irmãs e esposa passaram dias cuidando dele. Traz até uma teoria:
“Em 1918, quando terminou a primeira guerra mundial, ficou no ar uma fumaça das balas que deu uma doença no povo, que chama vam de bailarina. Morreram muita gente por não terem condições de tratamentos. [...] Meu tio Chico Rogério, irmão do meu pai, já era casado, e ele também foi vítima dessa febre que estava acontecen do no povo”.
Aqui merece um esclarecimento. Meu bisavô, Fran cisco, era conhecido por Chico Rogério, mas não possuía esse sobrenome, então de onde veio? Do pai. Chico filho de Rogé rio simplificou-se por Chico Rogério, e não foi exclusivo dele, os irmãos também eram conhecidos com esse epíteto. Abel Rogé rio, Sifronia Rogério e Conceição Rogério. Você pode aces sar o caderno com pleto de Maria das Dores escaneando o QR Code abaixo:
• 105104 • As dores de Maria Quantas histórias cabem dentro da ‘Tarrafa’?
Falou sobre a emancipação frustrada, o período da Dita dura, a organização educacional, professores que por aqui passaram até chegar na emancipação definitiva. Inclusive, no período da emancipação, ela e Jesus Leite (que vocês também já conhecem de capítulos passados) escreveram, cada um, um hino municipal, disputando para ver quem conseguiria ser autor do hino oficial do município. Jesus saiu vencedor. Estas e muitas outras histórias podem ser lidas no caderno.
A vida seguiu
Mônica cresceu muito. Tornou-se uma jovem mulher, muito alta, com longos cabelos escuros, educada e simpáti ca. O brilho dos olhos da “vovó das Dores”.
Aos 20 anos, teve um filho, Herbert, que trouxe ainda mais alegria ao lar.
O coração de Maria das Dores estava em êxtase. Desen cantada com o amor, nunca imaginou que pudesse ser tão feliz e amar tanto as pessoas que estavam ao seu redor. A alegria parecia não ter fim.
Mas tinha.
E o fim não tardou a chegar, sobre as duas rodas de uma moto.
Em alta velocidade, um acidente acontece.
Mônica foi jogada da garupa da moto de seu namorado, quebrando o pescoço logo que atingiu o chão, na rodovia entre Tarrafas e Cariús.
Tinha 22 anos.
Morreu, levando junto todas as cores do mundo de Maria das Dores.
A dor de Margarida, ao receber a notícia, foi grande. Mas não se comparou a de Maria das Dores, que assim como nossa senhora, sentiu como se sete espadas transpassassem seu coração.
Quantas histórias cabem dentro da ‘Tarrafa’?
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“Ela queria tanto bem a Mônica que foi o fim da vida dela”, lembra Margarida. Nem mesmo a presença do filho de Mônica foram suficientes para fazer Maria sair do grande fosso de tristeza em que se encontrava. Nossa memorialista ainda passou pela vida por mais dois anos, porque viver, já não vivia mais. Morreu de tristeza, em 20 de junho de 2009, aos 81 (ou 84) anos.
Tarrafas tem sua heroína da memória, que usou os meios que teve para lutar contra o esquecimento, e garantir que, para o futuro chegar, o passado não precise deixar de existir. Ela é importante para Tarrafas por ter se preocupado com isso e, por coincidência, ou não, ter crescido num ambiente familiar com o hábito de contar histórias e vivenciado ativa mente boa parte delas.
Nas últimas linhas de seu caderno, ao pedir desculpas pela caligrafia e ortografia, pede boas chuvas para o ano que se aproxima. “Acho que a história da minha autoria, vou dar por terminada”. Deixa os acontecimentos dos dias que vierem em seguida para que outras pessoas os expliquem. Quem for observando, terá novas oportunidades de contá-los.
Em seguida, como uma espécie de posfácio, ela escreve uma Mensagem aos Iluminados, grupo ao qual temos certe za que ela pertencia.
A Dama da educação
Não foi fácil
108 • As dores de Maria
Capítulo 07 • 109
Seu nome de batismo é Francisca Alves de Lima, o Sousa veio com o matrimônio. Ela nasceu em 12 de dezembro de 1954, no sítio Serrote, em Tarrafas, quando ainda era um distrito pertencente a Assaré. Mulher, negra, de família pobre, enfrentou todas as dificuldades possíveis para conseguir estu dar. Formada, voltou para a terrinha e adotou a missão de lutar por uma educação que estivesse ao acesso de todos. Hoje é uma professora aposentada.
Sem mais delongas, apresento dona Chiquinha, a Dama da Educação. Foi também coordenadora pedagógica, diretora esco lar, coordenadora de educação, secretária municipal de educação e gerente do PAIC (Programa de Alfabetização na Idade Certa). Passou a maior parte de sua vida numa sala de aula e à educação dedicou 35 anos atuando profissionalmente. Com as oportuni dades que conquistou, liderou uma revolução educacional em Tarrafas, que culminou na emancipação definitiva do município.
“Sou de Tarrafas, inclusive, mas meus documentos constam que sou de Assaré, pois na época Tarrafas pertencia a Assaré, ainda era um distrito. Aí no meu documento ficou assim, mas eu gostaria mesmo era que tivesse ficado Tarrafas”. Assim começa ela nas nossas conversas. Aqui, temos uma entrevista que começou em meados de 2018 para um traba
lho da faculdade, e que só veio a ser finalizada (ou não) em 2022.
Fisicamente, dona Chiquinha é de baixa estatura, cabelos pretos e curtos, tem uma voz com falhas devido aos anos de sala de aula. Fala gesticulando com as mãos e olhando nos olhos por cima dos óculos. Também tem uma memória mui to boa, quando traz algum personagem que não conheço, vai escalando a árvore genealógica dele ou dela até chegar em al guém que eu conheça. Essencial para compreender algumas construções, histórias e relações.
Ela é filha de Aristides Alves de Lima e Maria Alves de Lima. Dona Chiquinha teve três irmãos: Maria, que viveu em Tarrafas, José, que morava em Rondônia e João, que vi via no Rio de Janeiro. Todos já falecidos, a última foi Maria, que partiu em 2021. Também é mãe e avó. Tem uma filha, Gilcarla, e dois netos: Sheylla Maria e Daniel Lima. Sheylla, a primogênita de Gilcarla, formou-se em direito e atua como advogada. Daniel, o caçula, está cursando o ensino funda mental. Amante da arte de contar histórias, Dandan tem um livro publicado, chamado “Blu e o medo do escuro”, com ilustrações da mãe.
Início da trajetória e percalços
Dona Chiquinha rodou o Ceará para estudar, partiu do Cariri, foi para o Centro-sul, depois foi para a capital, Forta leza, e aí voltou ao Cariri novamente.
Iniciou os estudos numa escolinha particular no sítio Ser rote, estudando a carta de ABC, em seguida, foi para uma segunda escolinha no sítio vizinho, chamado sítio Patos. Chegado o momento de começar o primeiro ano fraco, foi para a sede do distrito, onde ensinava a professora Maria Luiza Leite Santos, na Escola Isolada de Tarrafas. A escola
Quantas histórias cabem dentro da ‘Tarrafa’?
• 111110 • A Dama da educação
FESTEJOS E FERIADOS
funcionava na casa onde Maria Luiza morava, mas essa his tória você já leu no capítulo sobre a patrona da educação, né?
As séries iniciais tinham essa denominação, primeiro ano fraco e primeiro ano forte. O objetivo, ao concluí-las, era saber ler. No primeiro ano fraco, o aluno aprendia a sole trar, quando sabia juntar as palavras, então passava para o primeiro ano forte, porque aí já tinha noção suficiente para fazer uma leitura.
Terminado o primeiro ano fraco, o pai fez esforços para mandá-la para Cariús, onde ela cursou o primeiro ano forte e lá ficou até concluir o quarto ano. Para o quinto ano, via jou para o Crato, para estudar no colégio Madre Ana Couto, onde estudou por seis meses. Pouco depois, mudou-se para Fortaleza, onde estudou no Pio X, terminou o quinto ano e fez o exame de admissão para o primeiro ano ginasial (que hoje é o ensino fundamental II). Aprovada no exame, cursou os dois primeiros anos do ginasial no Colégio Estadual Jus tiniano de Serpa. Por conta da distância, pediu transferência para o Colégio Joaquim Nogueira, e foi lá que concluiu o ensino ginasial, ou o primeiro grau, como passou a ser cha mado após a reforma do ensino fundamental no início da década de 70, que, após a reforma de 2005, equivalia a con cluir o 9° ano do ensino fundamental II.
Com o primeiro grau concluído, retornou ao Crato, onde cursou o ensino Normal no Colégio Estadual Wilson Gon çalves. Concluiu o terceiro ano em 1976.
Em 1977, conseguiu uma cadeira do estado para lecio nar em Assaré, no colégio Moacir Mota. Coincidentemente, no mesmo período, sua amiga e ex-professora, Maria Luiza Leite, estava com planos para se mudar para Assaré. Os fi lhos precisavam seguir os estudos e lá seria mais fácil. Além disso, Maria Luiza não queria deixar Tarrafas desamparada, e dona Chiquinha queria lecionar na amada terrinha, então fizeram uma troca e assim ficou.
Quantas histórias cabem dentro da ‘Tarrafa’?
• 113
Comemoração do Dia das Mães.
Desfile
de 07 de
setembro,
2005. Desfile de 07 de setembro, 1983.
E aqui as histórias se cruzam e se desencontram. Maria Luiza foi para Assaré.
Dona Chiquinha foi para Tarrafas.
Comparado ao que era em sua infância, o distrito havia mudado bastante. Tarrafas já havia se emancipado uma vez, mas foi anulada pela Ditadura Militar.
Perguntei sobre suas memórias mais antigas, como era a Tarrafas da infância e juventude de dona Chiquinha. Ela me disse que “Tarrafas era uma vila pacata, onde as pessoas eram muito católicas. Tinha pouco comércio nessa época, não havia energia elétrica nem água encanada. Porém as pes soas eram felizes com o que tinham. A infância era movida a brincadeiras de roda e a juventude se contentava em jogar peteca, participar de tertúlias, com Radiola, ou forró tocado pelos sanfoneiros Cícero da Áurea, e nesse tempo era o auge para a gente. Às vezes isso acontecia no final de semana, no sa lão Seu Joaquim Alcântara, onde hoje é a loja do Apolinário” .
No seu regresso, percebeu que o distrito tinha uma orga nização básica e a educação havia dado um grande salto com o trabalho de Maria Luiza. Um salto tão grande que causou efeito em toda a dinâmica do distrito.
Mas ainda havia muito trabalho a fazer. E, com dona Chiqui nha, Tarrafas teve sua segunda grande revolução educacional.
Até então, Tarrafas possuía apenas o ensino Fundamen tal I implantado, quem quisesse seguir os estudos, deveria ir para outra cidade. Dona Chiquinha começou sua carreira docente ensinando nesse nível e, com o tempo, novas pro fessoras foram chegando. “Francisca Lédio foi uma grande parceira, juntamente com ela, fundamos o ensino funda mental II em Tarrafas”, recorda Chiquinha. Foi no período de 1978 a 1986, pelo Instituto de Educação Assareense, uma escola mantida pelo professor Francisco Palácio Leite que funcionava com professores da rede municipal. Na época, como não tinha sala de professores e as salas de aulas eram
poucas, elas se revezavam, uma ficava sentada no alpendre, enquanto a outra dava aula.
Com o tempo, Chiquinha foi conversando com os prefeitos que foram surgindo em Assaré, pedindo para am pliarem a escola. Foram construídas salas de aula, depois a cantina, sala de professores… “mas não foi fácil. Na época eu tinha um parceiro muito bom que era seu João Bantim, ele era vereador e me ajudou muito nessa questão, porque sou muito decidida, quando eu digo ‘eu quero’ tem que ser desse jeito, entende? Então seu João Bantim me ajudava muito nas conversas com os prefeitos e também nas reivindicações para a educação”.
Os prefeitos não se opuseram, principalmente Paulo Pai va, classificado por dona Chiquinha como excelente, por ter feito muitas coisas por Tarrafas, especialmente na educação. “E Tarrafas cresceu graças à educação” foi uma das partes mais categóricas da nossa conversa, porque é aquela verdade indiscu tível, contada por quem viveu ativamente a história.
A partir do ensino fundamental II, o processo de migra ção para a sede do distrito se intensificou.
“Os pais da zona rural começaram a colocar os filhos nas casas dos conhecidos, dos parentes, lá na vila, aí depois foram comprando chão de casa e fo ram construindo casas e trazendo os filhos para lá, e Tarrafas foi crescendo, a vila foi crescendo. Foi isso que, futuramente, levou Tarrafas à emancipação polí tica, porque aí cresceu demais. Tarrafas só tinha duas ruas, com essa escola lá em Tarrafas, os pais vinham com os filhos, as famílias chegavam e outras famílias vinham morar, de fato, e aí, a vila ficou grande e as pessoas passaram a desejar que se transformasse num município, que aquele distrito de Assaré se transfor masse num município independente.”.
Quantas histórias cabem dentro da ‘Tarrafa’?
• 115114 • A Dama da educação
Tarrafas também não tinha biblioteca. Chiquinha organi zou campanhas de doações de livros, falava com amigos e professores de outras cidades para conseguir obras para que os alunos pesquisassem.
Em 1978, casou-se com Luis Alves de Sousa, comerciante tarrafense. Em novembro do ano seguinte, teve sua única filha, Maria Gilcarla Lima de Sousa. E depois de dez anos de docência, se organizou para fazer faculdade.
Fez o vestibular para pedagogia na antiga Faculdade de Filosofia do Crato, hoje URCA, em 1986. “Com seis meses que eu estava lá, ela foi transformada em URCA, sou de uma das primeiras turmas da Universidade Regional do Cari ri”. Sendo aprovada, mudou-se para o Crato com Luis e Gilcarla, na esperança de se qualificar para melhor servir a sua terra. Nesse período, possuía o contrato de 200 ho ras, e o governo estadual não queria assegurar o regime de trabalho, depois de uma disputa judicial, conseguiu a carga horária devida.
Foi um período de correria.
Pela manhã ensinava no Juazeiro, ia para casa, no Crato, fazer o almoço, e à tarde subia para o segundo turno no colégio Juvêncio Barreto, que ficava na Batateira. “Era um dos bairros mais difíceis de se trabalhar, as famílias eram totalmente desestruturadas, mas eu já tinha uma década de docência, então consegui me virar”. À noite, ia assistir às aulas na URCA. “Mesmo com toda a correria, afazeres e com a casa sempre cheia de gente, às vezes não tinha tempo nem de jantar e tinha noites que eu só queria dormir, minhas notas sempre foram boas, nunca fiquei sequer de AVF”, co menta orgulhosa.
“Mas não foi fácil, não foi nem um pouco fácil. Para estu dar, como eu trabalhava o dia todo, eu só conseguia quando chegava da URCA, ou seja, depois das dez da noite, aí era que eu tinha tempo para estudar os conteúdos do curso. Ti
nha dia que eu ia dormir uma, duas da manhã, estudando, e acordava todo dia antes das seis”, recorda. Por sorte, tinha uma pessoa que morava com ela e ajudava nos serviços do mésticos, então antes de sair para trabalhar, Chiquinha dei xava as orientações e ela fazia tudo como deveria ser feito. “Não tive mais filhos justamente por essa dificuldade, por que eu achei que não adiantava botar filho no mundo para os outros criarem, não valia a pena”.
A casa estava sempre cheia, porque ela abrigava ex-alunos e parentes que precisavam resolver alguma coisa pelo Crato ou que estavam na faculdade e não tinham onde ficar. Suas portas se mantiveram sempre abertas.
Mesmo morando em Crato, participou o quanto pode do movimento emancipatório do município e, em 1990, retor nou para Tarrafas. Em julho de 1991, juntamente com Jesus Leite, professor, e Terto (Tertuliano Cândido de Araújo), prefeito, fundaram a escola de ensino médio. Era uma esco la de ensino Normal, batizada de Escola Maria Luiza Leite Santos, em homenagem à educadora tarrafense, que esteve presente na inauguração. Dona Chiquinha foi sua primeira diretora, por ser de ensino Normal, ela formava professores. “Na época, era uma escola muito boa porque eram poucos alunos, começou com uma única turma de 35 alunos, que era a demanda que tinha de alunos que haviam terminado a oitava série da época”.
Mas a escola durou pouco. Por ser pequena, e o estado não ter nenhum interesse em implantar uma escola de ensi no médio em Tarrafas, além de não considerar a demanda de alunos suficientes para custear uma escola separada, ela foi incorporada à escola Emília Ferreira, que era maior e já era reconhecida pelo Conselho de Educação.
Foi quando, pela primeira vez, assumiu a função de di retora escolar da escola Dona Emília Ferreira de Oliveira, entre 1991 e 1992.
Quantas
da ‘Tarrafa’?
• 117116 • A Dama da educação
histórias cabem dentro
Com a eleição do prefeito José Alcântara de Araújo Neto, foi convidada a ocupar o cargo de secretária municipal de educação, entre 1993 e 1996.
Em seguida, durante meia década, foi coordenadora pe dagógica da mesma escola. Na segunda gestão de Terto, en tre 1997 até 2004, também ocupou a função de coordena dora geral da secretaria de educação. O secretário da época era Jesus Leite. “Mas Jesus nunca gostou de conflitos, então era eu que batia de frente com Terto”, e acrescenta “fo ram desafios realmente grandes porque Terto era o tipo de pessoa que quando batia o martelo e dizia ‘tem que ser as sim’ [bate na mesa] então tinha que ser. E eu não aceitava, comprei muitas brigas com ele por questões salariais de professores, aumento dos professores, reconhecer o nível superior, porque os professores terminavam a faculdade e ele não queria dar o aumento, e isso é garantido por lei, o próprio regimento do município diz isso, e ele não queria. Gratificação de diretor, ele não queria dar aos diretores das escolas e aí eu batia de frente”.
Ela e Jesus também atuaram juntos para a chegada da pri meira turma de ensino superior que foi para Tarrafas. O curso foi em Magistério do ensino fundamental, o que equivalia ao curso de Pedagogia e “foi destinado aos professores da rede de ensino municipal, porque só havia três professores formados, eu, Jesus e a Tonha, filha de seu Cazuza. Todos os outros con tavam apenas com o ensino médio e a lei já exigia o diploma”.
Foram até a URCA fazer um apanhado geral com a Uni versidade, para saber como era, como funcionaria, qual o custo para o município e depois foram convencer Terto de que aquilo era realmente importante para Tarrafas. Forma ram-se 42 professores, estudando em Tarrafas, com o di ploma expedido pela URCA. “Foi algo histórico. Para que eu pudesse cursar o meu ensino fundamental, eu precisei sair de Tarrafas, ficar na casa de parentes e me afastar da
educação
Comemorações de aniversários.
EDUCAR & CELEBRAR
Dona Chiquinha, secretária de educação, num encontro pedagógico com os professores.
Comemorações de aniversários.
118 • A Dama da
Dona Chiquinha
minha família. E depois de adulta, conseguir minha tão so nhada formação estudando aqui na minha terra… ainda hoje me emociono quando penso”, diz Maria Romana, professo ra aposentada, primeira secretária de educação de Tarrafas, egressa da primeira turma de ensino superior em Tarrafas.
“Tudo o que os professores queriam resolver, resolviam comigo diretamente. Pagamentos, por exemplo. Como Ter to demorava para pagar todos, era eu quem corria atrás de pagamento, saía para pagar, fazia os depósitos. E assim con seguimos formar todos, alavancou muito a educação, me lhorando desde a alfabetização até a oitava série.” Comenta Chiquinha, orgulhosa.
Com a eleição de Antônia Simião Lopes Leite (conhecida como Teca Lopes), em 2004, a primeira prefeita de Tarrafas, Chiquinha foi convidada para estar novamente como secre tária municipal de educação, cargo que ocupou durante dois anos, de 2005 a janeiro de 2007.
Também encarou a empreitada de ser gerente do PAIC, em junho de 2007. O PAIC funcionava com gerentes e for madores em todos os municípios cearenses com o objetivo de melhorar as condições estruturais das escolas, a valori zação dos professores e o processo de aprendizagem dos alunos em idades compatíveis com as séries, “nós acompa nhávamos o andamento das turmas, a questão da dificuldade dos alunos, trabalhávamos para que os alunos obtivessem bons resultados no final do ano, foi um programa excelente que valeu muito a pena” conta.
Nessas diversas funções, deram-se 35 anos de carreira. Atuou em todas as áreas possíveis da educação. Ensinou do nível básico ao superior.
Dona Chiquinha serviu e serve de inspiração para diver sas pessoas, alguém que marcou a vida de tantos, também teve sua vida marcada por alguém: “acho que quem mais marcou minha vida foram os meus pais, por terem investido
“Ah, mas com certeza. As pessoas passaram a me respeitar muito porque eu me impunha, e aí o respeito existia. Mas quando tinha um problema com um aluno, e a família achava que, na situação, o aluno era quem tinha ra zão, xingavam “aquela negra”, “negra essa”, “negra aquela”, sabe? Era assim. Só se limita va a isso, assim quando tinha problema com aluno, os xingamentos vinham e a primeira coisa que vinha era a questão do racismo. Mas eu enfrentava isso de cabeça erguida, nunca baixei a cabeça por conta disso não. Por ser mulher, até que as pessoas me entenderam, eu nunca sofri preconceito, diretamente, por ser mulher e estar à frente da direção da escola ou liderar os movimentos que a gente fazia, de desfiles, festas juninas, gincanas, festas da pa droeira, festa das mães, colação de grau, tudo isso a gente fazia e eu sempre tive o apoio da população, a questão do racismo só vinha à tona, na grande maioria das vezes, quando havia problema com os alunos mesmo”.
Quantas histórias cabem dentro da ‘Tarrafa’?
• 121120 • A Dama da educação
na minha formação em tempos bem difíceis e acreditarem que eu seria capaz de vencer na vida, apesar de muitos obs táculos”.
— Por ser uma mulher negra, a senhora se deparou com preconceitos e ataques machistas ou racistas?
Angela Davis, professora e filósofa norte-americana, diz que “quando a mulher negra se movimenta, toda a estrutura da sociedade se movimenta com ela”, e foi o que aconteceu. Uma mulher negra, nascida em um dos lugares mais pobres do Ceará recebeu incentivo e força para que pudesse es tudar. Caminhou diversos pontos do estado para conse guir o tão sonhado diploma, e ainda, ao voltar para seu lugar, trabalhou e se movimentou para que gerações de conterrâneos e conterrâneas não precisassem passar pelas mesmas dificuldades que ela. Tornou acessível o sonho que, para ela, foi conquistado com muita luta.
O legado de dona Chiquinha na educação tarrafense traz um novo significado para a palavra revolucionário.
No primeiro mandato de Tertuliano Cândido, o pri meiro prefeito de Tarrafas, a secretária de educação foi a professora Maria Romana de Jesus. Em sua gestão, Ma ria Romana fez um levantamento das escolas isoladas que existiam no município até aquela altura. De todas as casas do município, em mais de um quarto delas funcionavam escolas isoladas. Com professores que não tinham forma ção e nem condições salariais e trabalhistas estruturadas. “Tive muitos conflitos com Terto naquela época por conta dos salários dos professores”, recorda dona Chiquinha.
Quando assumiu a pasta da educação, sua gestão foi marcada por diversos avanços.
Dona Chiquinha unificou as escolas isoladas em esco las reunidas, diminuindo, assim, as classes multisseriadas.
Foi em sua gestão também que foram construídas as escolas Ricarte Pedro do Carmo (no sítio Patos), Francisco Elianúbio (Sítio Ipueiras), mais duas escolas nos sítios Boa Vista e Oitis. Já para a escola Emília Ferreira de Olivei ra, localizada na sede, foi construída uma unidade maior e melhor estrutu rada. Todas as escolas funcionando em dois ou até três turnos e com merenda todos os dias.
O ensino médio teve, principalmente, o intuito de formar professores com o curso Normal, para diminuir o núme ro de professores leigos. E, para os profis sionais da educação, também implantou o planejamento educacional e de capacitação para todos os docentes da rede municipal de ensino. Ainda organizou as reuniões men sais com os pais de alunos e professores.
Anos depois, como secretária de edu cação na gestão de Teca Lopes, todas as escolas foram reformadas, adquiri ram equipamentos, materiais escolares e para a cantina. Também implementou a primeira Semana Pedagógica com pro fessores, gestores e comunidade. Por cansaço, ficou apenas dois anos no cargo e pediu para sair. Em seguida, assumiu a gerência do PAIC, quando fez com que Tarrafas avançasse nos índices e entrasse no verde escuro, de onde nunca mais saiu.
Escolas isoladas: Escolas que fun cionavam em prédios que não pertenciam à prefeitura, como a casa dos professores, por exemplo.
Os parâmetros estaduais de avalia ção da educação bá sica são 5: vermelho (não alfabetizados), laranja (alfabetização incompleta), amarelo (intermediário), ver de claro (suficiente) e verde escuro (dese jável).
Quantas histórias cabem dentro da ‘Tarrafa’?
• 123122 • A Dama da educação
A religiosidade
“Eu sou católica e, bem, sou muito fervorosa na minha fé”. Foi assim que dona Chiquinha se definiu.
Se envolveu em tudo o que pode dentro da igreja. Deu aulas no catecismo e crisma, participava das liturgias, conselho paroquial e pastorais.
Também coordenava um grupo de crianças que compu nham o coral, cantando uma vez por mês nas missas. “Eu coordenava e comadre Lurdinha (mãe do ex-prefeito Neto Alcântara) e comadre Antonete me ajudavam com o gru po que, por sinal, era muito bom e eu conseguia conciliar”. Também ajudou nas festas da padroeira, na barraca da igreja, na organização das praças de alimentação, bingos e leilões.
E sem contar os inúmeros batismos que participou, hoje tendo um extenso número, nem ela sabe quantos, de afilha dos em Tarrafas.
Também auxiliava quando chegavam seminaristas em Tarrafas, no período em que a igreja ainda era capela, então o padre ficava em Assaré. Assim, os seminaristas vinham e merendavam, almoçavam e jantavam na casa de Chiquinha. “Ajudei muito também na questão de arranjar coisas para a igreja, fazer doações e fazer com que as pessoas doassem também, tanto para a igreja como para a casa paroquial. É o que sinto mais saudade”.
Os frutos colhidos
Com 35 anos dedicados à educação, muitas coisas acon tecem. Após quatro anos e meio afastada de Tarrafas para fazer faculdade, percebeu algumas mudanças. Deparou-se com ex-alunos já casados e foi professora de filhos de ex -alunos. Com o tempo, viu seus alunos entrando no ensi
no superior em diversas áreas. “Alguns ex-alunos optaram pela carreira docente também, e vários tornaram-se meus co legas de trabalho, o que foi muito praze roso. Ainda hoje sinto um prazer enor me em ver o crescimento desse pessoal, é um sentimento muito bom”.
Dona Chiquinha, pelos serviços prestados à educação tarrafense, é a Dama da Educação de Tarrafas, título concedido por Jesus Leite e de grande aceitação popular. Ela já não concor da tanto. Para ela, “todo mundo que trabalha na educação acaba por se tor nar ‘senhor’ e ‘senhora’ da educação”. Acredita que o que fez com que o títu lo pegasse foi a diversidade de cargos que ocupou, assim como os avanços frutos de seu trabalho.
Esteve presente em diversos mo mentos políticos decisivos. Sempre sendo convocada para dar opinião, possuía muita credibilidade perante os líderes. Afinal, “eu não estava na es cola só por estar, não estava lá só para cumprir a questão do ensino-apren dizagem, querendo ou não, através da escola, eu acabava movimentando toda a comunidade, sabe?”, e ainda acrescenta: “quando se é professor numa cidade pequena, principalmente quando se trata de uma vila como era o distrito de Tarrafas, você acaba sendo professor, pai, mãe daqueles alunos. Até
O título não foi algo “oficial”, no que se refere a projeto de lei. Mas foi um título que tem uma força muito maior, porque é um reconhecimen to pela comunidade, nossa Dama da Edu cação por aclamação.
Quantas
• 125124 • A Dama da educação
histórias cabem dentro da ‘Tarrafa’?
FAMÍLIA
DESAFIOS
para dar opinião sobre diagnóstico de médicos, os pais já me procuraram”, conclui.
Em sua avaliação, não acha que contribuiu tanto, porque poderia ter contribuído muito mais. Mas o pouco que consi dera ter feito, surtiu efeito e permitiu que Tarrafas crescesse e se desenvolvesse. Então, fazendo um retrospecto, mesmo com todas as dificuldades, já que afirma e reafirma que “não foi fácil”, ela sente-se realizada.
Os caminhos tortos do destino
A vida, imprevisível e cheia de reviravoltas, está sempre a surpreender. Chiquinha tinha o sonho de ser professora, mas seu maior sonho era ser advogada, queria cursar direito. Mas a vida tomou novos rumos, e foi para a pedagogia que seus caminhos se direcionaram. Alguns sonhos acabam se encontrando conosco.
Gilcarla, sua filha, também queria ser advogada. Fez o vestibular para direito, e não conseguiu. Curiosamente, ao tentar Pedagogia, passou com a nota que precisava para pas sar em Direito. E assim, mais uma geração se encontrou na docência. Iniciando a vida docente aos 16 anos, Gilcarla é um dos mais notáveis talentos docentes de Tarrafas. Sheylla, 22 anos, neta primogênita de Chiquinha, formou-se em 2022. Realizando um sonho de três gerações.
Dona Chiquinha foi avó duas vezes, em circunstâncias di ferentes, e também em períodos diferentes de sua vida. “Ter netos… dizem que netos são os segundos filhos, mas eu acho que é muito mais, muito mais que isso, foram, e estão sendo, experiências muito boas”.
A chegada de Sheylla foi surpreendente. Gilcarla conta que passou boa parte da gestação sem barriga, “sem sentir nada e com tudo normal. Descobri que estava grávida aos
Quantas histórias cabem dentro da ‘Tarrafa’?
• 127
E
Dona Chiquinha, Luiz e Gilcarla com um ano de idade.
Formatura em pedagogia, 1990
Caminhada em homenagem à Dona Chiquinha no período em que enfretava o cancêr de mama.
Dona Chiquinha e sua filha Gilcarla.
sete meses, e Sheylla simplesmente saiu do esconderijo dela, e o barrigão apareceu”. “Mesmo com todo o sofrimento, a chegada de Sheylla foi maravilhosa”, ressalta Chiquinha e completa: “Como não tínhamos crianças em casa, ela se tor nou o centro das atenções. Passou a morar conosco, ela foi praticamente criada por nós daqui de casa”.
Gilcarla era estudante de pedagogia quando engravidou de Sheylla, cursava o sexto semestre quando descobriu a ges tação e trancou a faculdade para voltar para Tarrafas. Mãe solo, começou a ensinar aos 19 anos. Formada em Magistério do ensino fundamental e Ciências Biológicas, também ocu pou diversos cargos na educação tarrafense. Aos 23 anos, foi diretora da escola Emília Ferreira e foi a primeira servidora concursada da escola de ensino médio Luiz Gonzaga de Al cântara. Já atuou na secretaria de educação, coordenação es colar e professora em diversos níveis de ensino. Totalmente multifacetada, além de ser extremamente didática e ter uma memória fotográfica impecável, também é pesquisadora, ar tesã, cozinheira, pintora, desenhista, ilustradora, escritora, poetisa e cantora.
Com a chegada de Daniel, o segundo filho de Gilcarla, a emoção foi nova para Chiquinha. Sheylla nasceu num perí odo de grandes correrias, todos trabalhando e trabalhando muito. Daniel chegou num período mais próximo da apo sentadoria de Chiquinha, a calmaria se anunciava. A apo sentadoria foi um baque para dona Chiquinha, saiu de uma rotina cheia, com viagens, reuniões e dezenas de responsabi lidades para uma calmaria.
“Danielzinho… Daniel é tudo, sabe? Amo muito Daniel. Hoje, sinto que, aposentada e cuidando dele, ensinando as tarefas, sinto que estou virando profes sora de novo”.
Sobre a aposentadoria, ela diz que “me aposentar foi mui to difícil, até porque, na época em que me afastei, eu achava que ainda tinha muito para dar ao município. Tem aquela frase, não lembro de quem, mas dizia o seguinte: trabalhe fazendo o que gosta, e você nunca precisará trabalhar na vida. Eu amava ensinar, me separar daquilo que eu amava e de onde estava durante 35 anos foi como me desfazer de uma parte de mim”.
Apesar de não ser seu sonho de nascença, tornar-se pro fessora foi também um sonho para Dona Chiquinha. “E se gui ele por ter sido a minha primeira oferta de emprego. Antes não era essa minha primeira opção. Recebi a proposta de lecionar e abracei a profissão com entusiasmo, responsa bilidade e dedicação”.
Em meio a reviravoltas e caminhos tortos, surge mais um obstáculo para dona Chiquinha superar. No final de julho de 2003, ela recebeu o diagnóstico de câncer de mama. “Foi muito difícil, no início, achei que fosse morrer, mas Deus e a oração de amigos, colegas professores, alunos e conhecidos, me ajudaram a passar por esse momento”. Quando a notícia se espalhou, veio gente de toda parte do município e fora dele para visitá-la e oferecer votos de melhora.
A cirurgia foi marcada para 22 de setembro de 2003. Dias antes, no desfile do 07 de setembro, ela teve uma surpresa. Um grupo de alunos e alunas confeccionou camisas com a foto de dona Chiquinha e formou um pelotão no desfile. Por conta do câncer, ela não participou da organização do desfile, então não sabia da homenagem. As alunas da frente carregavam uma faixa, que dizia “Só a força traz a vitória”. E, sendo forte, ela venceu. Em janeiro do ano seguinte, dona Chiquinha retornou para a sala de aula.
Dona Chiquinha espera ser lembrada “como um ser hu mano que acreditou que só a educação tem o poder de trans formar a vida dos cidadãos. Alguém que, como professora, deu
Quantas
‘Tarrafa’?
• 129128 • A Dama da educação
histórias cabem dentro da
Tarrafas representa para mim, hoje, toda minha vida. Foi nela que nasci, cresci e construí a minha família, desenvolvi meu trabalho e fiz grandes amizades. É parte da minha história.
sua contribuição com muita garra para a concretização dessa transformação”.
Irmãos
— Dona Chiquinha
130 •
Vilanova
O Arraial, a Guerra e o Peregrino
Capítulo 08 • 131
“Se não houvessem matado o Peregrino, ainda hoje eu estaria em Canudos…” conclui Honório.
Antonio e Honório Vilanova não nasceram com este so brenome. Foram batizados como Honório Francisco de Assunção e Antonio Francisco de Assunção. Nasceram, res pectivamente, em 1870 e 1865.
Tinham outros dois irmãos e uma irmã: Pedro, o mais velho, João e Antônia. “Todos morreram velhos. Só compadre An tonio que morreu moço, aos cinquenta anos”, conta Honório. “Meu irmão Antônio, sempre unido a mim, porque os outros se espalharam cedo, era alto, tinha barba e bigode fechados, tra java sempre calça, paletó e camisa. Valente, sim, muito valente”.
Aos 97 anos, Honório concedeu uma entrevista a Nertan Macedo, na qual mostrava o desejo de “atravessar a barrei ra dos cem, porque gostava da vida e pedia ao Eterno para esquecê-lo”. Honório viveu mais 11 anos, em 1974 faleceu. Todas (ou boa parte) as falas de Honório neste texto foram pescadas dessa entrevista.
“O velho era a derradeira testemunha de Canudos. Lembrava, quan do o conheci no Assaré, um daqueles anõezinhos da Branca de Neve.
As pernas se lhe arquearam, mas não tropegavam. Firmes. Apoiava-se, para andar, numa bengala modesta, encastoada de latão prateado. A pele do rosto, do pescoço, das mãos, enrugara. Vincara-se inteira. Quase cem anos de sol e vento. Amaciava-o a longa noite sertaneja para que, no dia seguinte, o sol voltasse a queimá-lo, com ardências que lhe penetravam o
sangue. Em meio àquela face requeimada de sol, um nariz levemente marcado de bexigas, enciman do-o dois olhos pequeninos, profundamente azuis, cheios de vivacidade e malícia. Finos e ralos os cabelos do crânio e da barbicha. Rijo nos seus muitos anos, rijo demais para a idade. A voz rou quenha, porém clara, forte, de ameno timbre. Já sem os dentes.”
“As mãos, os dedos enormes, portinarescos, talhara-os o tempo em pedra, pedra dos sertões. Aquelas mãos se ergueram muitas vezes em de fesa do Peregrino. Daquele misterioso Antonio Vicente Mendes Maciel que o arrastara a uma estranha Odisseia nos fins do século passado. E a cujo destino o do velho de Assaré e o de sua família se ligariam por todos os séculos e séculos, amém.”
Em Tarrafas, há um distrito com o nome de Vilanova, onde se encontra o casarão dos Vilanova. A construção é muito mais antiga que os personagens da história. Tem por volta de 250 anos e foi erguido em meados dos anos 1700. Até o início dos anos 2000, conservava sua arquitetura original. “Era extremamente alto, para espanar as telhas, o pessoal ti nha que improvisar um andaime porque não tinha vassoura que alcançasse. Hoje continua alto, então você avalie como era naquele tempo”, conta dona Chiquinha, nossa onipresente Dama da Educação.
O casarão foi erguido pelo bisavô dos Vilanova, um português chamado José
132 • Irmãos Vilanova
Compadre Antonio está morto e eu estou vivo para velar por ele e pelo bom peregrino.
É o próprio povo, aquele povo da guerra, que se escuta na fala de Vilanova.
— Honório
— Nertan Macedo
• 133
Francisco de Assunção, que era proprietário de terras que hoje compreendem os distritos de Urucuzinho e Vilanova.
O sobrenome Vilanova é uma referência à comunidade de Vila Nova da Rainha, na Bahia, onde Honório “completou sua criação” e também onde trabalhou por muitos anos com An tônio, como mascates, ou comerciantes ambulantes. A comuni dade recebeu esse nome porque o local era visitado pela rainha Maria I. Atualmente é o município de Senhor do Bonfim.
Mas a história do nome tem mais alguns detalhes:
Conheceram Antônio Conselheiro em 1873, antes da grande seca, ocorrida em 1877. O Peregrino passou pelo povoado do Urucu (que recebeu esse nome por se localizar às margens do riacho do urucu), vindo de Quixeramobim, pedia esmolas para distribuir aos pobres e “Compadre Antônio” como Honório se referia ao irmão, deu-lhe um borrego. À época, o Peregrino dis se que tinha uma promessa para construir vinte e cinco igrejas e que não as construiria em terras cearenses.
A grande seca foi mencionada por ter sido a causa da migra ção da família para Vila Nova da Rainha.
Com a partida do Peregrino, restou uma admiração nascen te na família. “Nunca mais pude esquecer aquela presença. Era forte como um touro, os cabelos negros e lisos lhe ca íam nos ombros, os olhos pareciam encantados, de tanto fogo, dentro de uma batina de azulão, os pés metidos numa alpercata de currulepe, chapéu de palha na cabeça”, conta Honório e acrescenta “era manso de palavra e bom coração. Só aconselhava para o bem. Nunca pensei, eu e compadre Antônio, que um dia nossos destinos se cruzariam com o desse homem.”
Antônio e Honório trabalhavam como comerciantes em Vila Nova da Rainha. Certo dia, o pároco da localidade, padre Pedro, chamou Antônio para viajar com ele em suas missões, para que pudesse vender por onde passasse. De comunidade em comunidade, chegaram a Canudos, quando o padre pediu
Irmãos Vilanova
CASARÃO DA VILANOVA
134 •
O Casarão tem quase 300 anos de idade. É uma das edificações mais antigas de Tarrafas.
Encarei-o de frente e pensei que estava diante de uma alma de outro mundo, de uma época morta, de uma testemunha de além túmulo, melhor direi, de alémtúmulos, tantos os mortos e degolados que falavam por ele.
— Nertan Macedo
que Antônio fosse até o Conselheiro ofe recer suas mercadorias, porque o povoado tinha muitas necessidades.
“- Donde é o irmão - perguntou o santo ho mem (Antônio Conselheiro)
- Do Ceará - respondeu Antônio
O Peregrino então indagou qual seria o lucro esperado com a venda de toda a mercadoria que levava consigo. O comerciante respondeu:
- O lucro é de vinte por cento.
- Pois faça um abate para quinze e ficamos com tudo.”
Antônio aceitou a oferta e passou a vender constantemente no arraial. Com o tempo, foi convidado a ter seu comércio por lá, e tornou-se o único comerciante de Canudos. Honório ainda permaneceu por um tempo em Vila Nova, ficou encarrega do de despachar as mercadorias solicita das. “Canudos começou a abastecer-se de Vila Nova e foi assim que Antônio, tanto quanto eu, mais tarde, ganhamos o apeli do que conservamos - Vilanova”, relata.
Futuramente, Antônio chamou Honó rio para morar no arraial também, convite aceito logo quando Honório conheceu o local, as pessoas, e principalmente quando reencontrou-se com o Peregrino. Já estava casado na época, então retornou para Vila Nova da Rainha apenas para trazer suas coi sas e a esposa, com a qual não teve filhos. À época, Antônio também já estava casado.
Os dois eram da confiança de Antônio
Conselheiro, o acompanhavam sempre que podiam e tinham o respeito do Peregrino. Na entrevista com Nertan, Honório conta como era a rotina em Canudos. Bem diferente da obra maçante e repleta de traços tendenciosos e xenofóbicos pro duzida por Euclides da Cunha, Honório traz uma perspectiva interna de como foi a guerra e todas as investidas por parte do governo.
A guerra de Canudos foi uma luta pelo direito à Terra. Rui Facó, jornalista e historiador cearense que estudou Canudos, disse que “recusam-se os nossos historiadores a ver na resis tência maravilhosa de Canudos uma expressão da rebeldia ser taneja à prepotência dos latifundiários, reflexo de uma luta de classes em sua fase superior - a luta armada”. Este é um trecho de seu livro intitulado “Cangaceiros e Fanáticos”, onde fala so bre diversos momentos da história nordestina.
Canudos foi uma ferida aberta, que permaneceu inco modando os militares, mesmo quando chegaram ao poder através do golpe de 1964. A exemplo, há a construção do açude do Cocorobó, que acarretou no alagamento da região de Canudos, “na tentativa de abafar a crueldade, a vergonha e o fracasso das expedições do Exército”, como mostra o jornalista Caio Clímaco em artigo ao portal Brasil de Fato. Outro exemplo foi o suspeito sumiço da edição número 49 da revista “O Cruzeiro”, publicada em 02 de setembro de 1967. A edição continha uma entrevista com Honório Vilanova, onde ele apresentava o Peregrino como o conhe ceu, o que ia na contramão da imagem pintada por Eucli des (principalmente). Atualmente há diversos repositórios e acervos com várias edições da revista “O Cruzeiro”, o da hemeroteca da Biblioteca Nacional é o mais completo, con tendo inclusive as primeiras edições de 1929. Curiosamente, em 1967, há todas as edições menos essa, digo curiosamente porque na época, a revista tinha uma tiragem de 550 mil exemplares. Curioso, não?
Quantas histórias cabem dentro da ‘Tarrafa’?
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Enfim, pulgas atrás da orelha à parte… Voltemos. Honório tinha uma fortíssima admiração pelo Peregrino, do qual constantemente narra alguma profecia, ensinamento, ou descreve alguma característica.
O Peregrino era desapegado aos bens materiais, principal mente dinheiro. “Não dormia com um tostão de um dia para o outro. Se recebia esmolas, logo as passava a quem se achasse junto dele. Os mandava comprar panos para vestir os necessi tados”.
“Assim era o Peregrino” encerrava. Contava também dos horrores da guerra, das vidas inocen tes ceifadas e das simbologias que se haviam.
“Quando o Peregrino caminhava pelo povoado, coisa rara, ia sempre acompanhado de um carneirinho, como o Menino Jesus.
Perguntava ao povo: -Quem comerá a carne deste carneiro?
Mas o povo não respondia, cheio de respeito.
O carneirinho morreu aos pés do Peregrino, ferido de bala em um dos combates.”
Junto com o primeiro ataque à Canudos, chega ao arraial um emissário de Juazeiro do Crato (ainda não havia sido emancipa do), trazendo um recado de padre Cícero. Chamava-se Hercula no, o sobrenome não conseguiu atravessar a barreira do tempo e foi esquecido. O padre dizia estar esperando por uma guerra, previsão compartilhada pelo Peregrino:
“-Pois quando voltar ao Juazeiro, diga ao padre que o fogo do inferno vai cercar este lugar. Quando gritaram a República, os homens ativos in ventaram umas armas de mola para combater o Peregrino. Haverá quatro fogos: os três primeiros são meus, o quarto eu entrego nas mãos do Bom Jesus. Ele que tome conta de tudo. Sei que vou morrer, mas a nenhum será dado o gosto de me pegar com vida. Diga ao padre que a minha guerra é
Quantas histórias cabem dentro da ‘Tarrafa’?
• 139
Registro da Revista “O Cruzeiro”, 1967 (finalmente parcialmente encontrada). Honório (sentado ao centro) com os filhos, netos e bisnetos de Antônio.
Foto tirada em Canudos, Honório está à direita com a mão sob o peito.
Honório segurando a arma que matou Moreira César.
Hónorio a direita (com a mão na barriga), ao lado de Manoel Ciriaco, conteporâneo de Canudos.
federal. A dele será estadual”, disse o Conselheiro. Essa guerra estadual só aconteceria décadas depois. Quando a guerra de Canudos já havia acabado e o governo teria mas sacrado todo o Arraial. Os irmãos Vilanova foram embora de Canudos somente após a morte do Peregrino, que os havia aler tado que a ofensiva seguinte seria definitiva e o arraial não resis tiria. Conselheiro os disse para levarem as esposas e as crianças de volta para o Ceará, mas os irmãos não queriam abandonar o bom Peregrino.
E não abandonaram.
Retornando ao Ceará, voltaram ao seio familiar, escon didos como perseguidos políticos durante muitos anos. Até que, na eleição de Campos Sales, o pai dos guerrilheiros, como um bem sucedido cabo eleitoral, conseguiu um favor do presidente, e então pediu que perdoasse seus filhos. Pedido concedido.
Muitos anos depois, os Vilanova, já em Assaré e tendo jurado nunca mais pegar em armas contra o governo, recebem um pedido. Dr Floro Bartolomeu enviou uma carta, mas não foi atendido. Então foi a vez de Pe. Cícero tentar.
Juazeiro precisava de ajuda para resistir as investidas que viriam do governo estadual. Iniciava-se a Sedição de Juazeiro. Contrariando o juramento e movido por sua devoção, Antonio montou em seu cavalo e seguiu viagem até Juazeiro.
A estratégia proposta pelo Dr. Floro era instalar um canhão no alto da serra do Horto, para atirar nas tropas de Franco Ra belo, Vilanova prontamente discordou. Para não descumprir o juramento e ajudar o padim, montou toda a estratégia de defe sa. Aconselhou-os a cavarem um fosso ao redor de todo o Jua zeiro, um que seja fundo e largo, de modo que assim as tropas não possam avançar. E, a base de fé, rezas e benditos, toda a população se juntou na empreitada, concluindo-a em seis dias.
A estratégia foi essencial para a manutenção das defesas de Juazeiro. E assim Antônio retornou para casa. E, em 1920, aos cinquenta anos, faleceu aquele que contribuiu com duas das
maiores lideranças nordestinas em dois grandes conflitos, um federal e outro estadual. Assim como o Peregrino previra.
Honório vivenciou muitas coisas. Nasceu em plena Guer ra do Paraguai, com seus 24 anos a República foi proclama da, passou pela ascenção, queda, retorno e suicídio de Vargas. Testemunhou o nascimento do rádio e da televisão no Brasil, as oscilações da democracia e a ditadura militar. Da qual viu o começo mas não chegou a ver o fim.
Honório morou numa casa próxima a de sua cunhada, viúva de Antônio.
Dona Antonia Jardilina de Alencar, na época da entrevista com Nertan, já ultrapassava seus 90 anos, estava surda e quase calva. “A postura era das mais dignas, de uma fidalga velhíssi ma, que o tempo roera mas não destruíra.”
Narrando o encontro, o jornalista ainda conta as únicas pala vras balbuciadas por dona Antônia que se conseguiu entender:
“De claro, ficou apenas uma coisa: — Antônio me tem feito muita falta”.
Quantas
cabem dentro da ‘Tarrafa’?
• 141140 • Irmãos Vilanova
histórias
Este texto, diferente dos outros, tem sua base principal em um livro.
O livro chama-se “Memorial de Vilanova”, de autoria do jor nalista cratense Nertan Macedo. Em diversos momentos, cito trechos da obra. Trata-se de uma entrevista com Honório Vi lanova, realizada em outubro de 1962, em Assaré. É uma das mais completas entrevistas com um personagem extremamente importante para a história de Tarrafas, do Ceará e do Nordeste.
Honório viveu Canudos e juntamente com Antonio, seu ir mão, foi companheiro de confiança de Antonio Conselheiro. Ambos vivenciaram a paz e prosperidade do Arraial, o cotidia no com as pessoas e com o Conselheiro, e também, ativamen te, toda a guerra. Como um guardião, Honório preservou suas memórias durante todos os seus quase 109 anos de existência. Veio a falecer em 1974, então este texto pode ser considerado como uma parceria com Nertan Macedo, já que trago trechos de sua apuração e escrita.
Obrigado Nertan.
142 • Irmãos Vilanova
Capa da matéria “Depoimento do último Jagunço”, da Revista “O Cruzeiro”, de 2 de setembro de 1967. Honório tinha 102 anos na imagem.
Política de pai para filho
De Francisco para João
Capítulo 09 • 145
O pai
Uma escolha.
Bastaria uma escolha e toda esta história deixaria de existir.
Francisco é fruto de uma escolha bem acertada.
Filho de um quase padre, viúvo, que resolveu dar uma nova chance ao matrimônio.
Na primeira tentativa, veio um filho, Abel, e do segundo casamento, vieram duas filhas e Francisco, juntamente da segunda viuvez logo depois.
Os pais do nosso personagem se chamavam Rogério Francisco Araújo Vasconcelos e Maria Alves da Conceição. Antes de Francisco chegar, nasceram Maria Conceição Alves de Vasconcelos e Maria Sinfronia Alves de Vasconcelos.
O caçula, Francisco, filho de Rogério, passou a ser co nhecido por seus contemporâneos e pela posteridade como Chico Rogério.
Nasceu no finalzinho do século XIX. Maria das Dores, conhecidíssima de todos nós, registrou em seu caderno al gumas datas que podem nos sugerir que ele nasceu por volta de 1888.
Casou-se em 1916, possivelmente aos 28 anos, com Anto nia Alvorinda Bantim, que tinha o apelido de Lulu, ela tinha 32 anos.
Foram morar na vila de Tarrafas, nas terras da família, que o Barão do Infincado deu de presente aos seus bisavós Teo
dora e Luiz Francisco de Vasconcelos. Ainda hoje as terras estão na família.
Moraram na casa em que Francisco cresceu, na época já estava erguida há quase 50 anos e ainda hoje está de pé. Nes sa casa, tiveram quatro filhos: Hilda, João, Antônio e Luiz.
Tia Hilda nasceu em 1917, foi uma mulher admirável, co nheceu um amor recíproco e com ele teve seis filhos. Minhas tias guardam uma carta que ela recebeu no tempo do namo ro, além da caligrafia belíssima, era notável o sentimento que nascia. Infelizmente o amor seria abreviado por um aciden te na construção da casa onde a família haveria de morar, quando uma parede caiu por cima de Emídio, marido de tia Hilda. Ela criou seus filhos com a ajuda dos pais, que foram o suporte da jovem família fragmentada.
Tio João foi o segundo, nasceu em 1918, mas dele eu falo mais adiante.
O terceiro filho foi meu avô, Antônio, mas ninguém o conhecia por esse nome, desde criança seu apelido era Zuca. E todos os seus descendentes que também se chamaram An tônio, também foram apelidados de Zuca. Ele se casou com Maria Cleuta de Vasconcelos, apelidada de Liô ou Liôzinha, e com ela teve 14 filhos, mas só 8 se criaram. Ele foi um dos primeiros delegados do distrito, e também se candidatou a vereador na primeira eleição de Tarrafas, mas não conseguiu ser eleito. Minhas tias dizem que pareço com ele, e depois de ver uma foto dele jovem, passei a concordar. Vô Zuca, inclu sive, nasceu em 1921, e em 2021 fizemos uma homenagem pelos 100 anos que completaria se estivesse vivo. Ele faleceu em 1995, em decorrência de um câncer de próstata.
Tio Luiz, o caçula, nasceu em 1926. Com tia Bebé, apeli do para Albertina, teve 10 filhos. Foi o último a falecer. Du rante sua vida, exerceu muitas funções, semelhante ao seu Toinho Verônica: vacinava, extraía dentes, trabalhava com madeira, fazia partos de animais e outras coisas. Nos anos
Quantas histórias cabem dentro da ‘Tarrafa’?
• 147146 • Política de pai para filho
Homenagem feita a Chico Rogério.
Ao centro, Chico Rogério e Lulu. Ao lado de Chico, de bigode, está Luiz Bantim, o caçula. Abaixo dele estão Zuca (à esquerda) e João (à direita). Ao lado esquerdo de Lulu está Hilda e Emidio, seu marido. As crianças são alguns dos netos do casal.
Casarão dos Oitis. Construção com quase duzentos anos de idade, foi onde cresceram os filhos de Rogério Francisco (Abel, Sinfronia, Conceição e Francisco). É uma das construções mais antigas de Tarrafas, erguido no final do século XIX.
Os descendentes de Chico Rogério e Lulu.
70 foi para o Rio de Janeiro, onde viveu pelo resto da vida, vindo para Tarrafas apenas ocasionalmente, para realizar vi sitas pontuais.
Voltando ao patriarca, meu bisavô Chico Rogério foi o principal articulador para que, em 1920, Tarrafas fosse ele vada a distrito de Assaré. E, anos depois, foi o primeiro vere ador a representar Tarrafas na Câmara Municipal de Assaré.
Foi eleito em 1946, aos 58 anos. Na época, Assaré tinha pouco mais de 1000 eleitores, e vovô Chico Rogério teve 114 votos, conquistando 10% do eleitorado. Só exerceu um mandato, de 1947 até 1950. Participou ativamente do pro cesso de redemocratização após a Ditadura Vargas. Ao fim do mandato, passou a luta política ao seu filho, João Bantim de Vasconcelos.
Foi muito presente na criação dos netos. Madrinha Tozi nha, filha de tia Hilda, guarda boas recordações dele, “vo zinho foi quem nos criou, papai morreu cedo e ele assumiu esse papel. Quando eu fazia raiva a ele, alguma malcriação, ele tirava o cinto da calça e dizia ‘vou te dar uma pisa sua corna’, mas nunca dava. O coitado vivia tirando o cinto por que eu era malcriada, ainda sou, [risos]” e acrescenta que “ele foi um avô muito pai, era rígido, nos criou nos costumes antigos, mas foi muito bom para nós”.
Meu pai, Luiz, assim como os irmãos, cresceu chamando -o de Paizim. Ele lembra também de um episódio no período da ditadura. “Teve uma campanha de vacinação, chegavam os carros e pegavam as crianças igual bichos para vacinar a força. Lembro que ele conseguiu me achar a tempo e me escondeu, para não me vacinarem. Aí só os meus irmãos se vacinaram”, e só ele teve sarampo.
Chico Rogério viveu muitos anos, vindo a falecer em 1974, com aproximadamente 86 anos. Como homenagem, teve seu nome batizando a antiga prefeitura. Anos depois, veio a Lei Municipal n° 238, sancionada em 04 de maio de
Quantas histórias cabem dentro da ‘Tarrafa’?
• 149
2007 pela prefeita Teca Lopes. A Lei nomeava uma rua com o nome de Francisco Alves de Vasconcelos, inclusive, é a rua em que moro.
O filho
Foram quase quatro horas de viagem até Juazeiro. Era in verno, choveu, e ainda estava chovendo. Na época, a estrada que ligava Tarrafas a Assaré ainda era de terra e só aumenta va a duração do trajeto. Mas chegamos.
“Bença”, pedi.
Do fundo da garganta, a outra voz disse “Deus te abençoe”.
A voz era de tio João Bantim.
Foi em 2010, no ano que cheguei ao Ceará, no mesmo ano, aos quase 92 anos muito bem vividos, ele partiu.
E eu não fazia a menor ideia da história do homem que estava na minha frente, numa cadeira de madeira, em sua casa no Novo Juazeiro.
Vocês já devem ter visto que todas as pessoas que tiveram suas histórias contadas nos capítulos anteriores acabaram assumindo diversas funções ao longo da vida. Este é mais um exemplo.
Tio João Bantim foi um líder comunitário. Assim como seu sogro, José Cândido, e seu pai Chico Rogério, e ou tros da mesma geração. Mas João não esteve sozinho, seus irmãos Antônio (Zuca) e Luiz, seu cunhado Oscar Cândi do, seu Toinho Verônica, e outros contemporâneos tam bém tiveram suas participações importantes na formação de Tarrafas.
Oscar Cândido e Zuca Bantim coordenavam a organiza ção dos festejos religiosos de Nossa Senhora das Angústias. Ainda hoje, o pau da bandeira segue a tradição e é trazido do sítio Oitis. Outras pessoas também entram nesse processo,
como dona Conceição Rogério, irmã de Chico Rogério, que desde a igreja velha, construída em 1910, organizava tudo sozinha e vivia cheia de mato nos cabelos de tanto ir procu rar flores nas matas para enfeitar o altar. Faleceu aos 86 anos, na década de 60. Em Tarrafas, outras pessoas que atuaram ativamente são dona Maria das Dores, dona Lurdinha, que, se não fosse o avanço do Alzheimer, ainda estaria cuidando de cada detalhe, dona Chiquinha e dona Maria Luiza, entre os afazeres da escola, dona Antonete, que ainda hoje canta em missas, as irmãs Dalcides, Salete e Lalá, que também es tiveram e estão presentes.
Antes disso, em 1946, casou-se com Maria Cristina Cân dido, filha de José Cândido, o primeiro delegado do distrito. Com ela formou uma grande família. Foram casados durante quase 64 anos, e tiveram nove filhos: José, Francisca, Sebas tião, Paulo, Pequinha, Raimunda, Rogério, João Filho e Fran cisco Carlos. Francisca Cândido, a Totó, sua segunda filha, lembra que a mãe gostava muito da maternidade, “mamãe gostava demais de ter filhos, teve nove e só não teve mais porque não deu certo”.
Tio João Bantim se tornou a principal figura de liderança comunitária por ter seguido os passos do pai, e sendo o filho homem mais velho, foi seu sucessor na política. Candidatou -se e foi eleito vereador, representando Tarrafas em Assaré durante cinco mandatos, chegando a assumir a presidência da Câmara. Nos primeiros mandatos, os vereadores sequer recebiam salários.
Foi um parlamentar ativo, reivindicou uma série de me lhorias para Tarrafas, algumas delas em parceria com dona Ma ria Luiza. Ele reivindicava na câmara e ela através de cartas diri gidas ao governo estadual a construção da praça, pavimentação de ruas, a chegada da energia a motor e, posteriormente, de energia elétrica, contratação de professores e outros funcioná rios que as escolas demandavam, entre outras coisas.
pai
filho
Quantas histórias cabem dentro da ‘Tarrafa’?
• 151150 • Política de
para
“Meu pai era um excelente político. Hoje a gente vê uma sujeira muito grande na política, as pessoas brigando como se estivessem numa guerra, deixaram o respeito de lado. Por mais calorosa que fosse a discussão na Câmara, principal mente entre papai e seu Luiz Alcântara, os dois sempre se respeitaram, mesmo estando em lados opostos, e até volta vam juntos no mesmo carro”, comenta João Bantim Filho, comerciante, ex-político e filho de tio João Bantim, como o próprio nome já indica.
Na década de 60, a comunidade estava mais organizada e resolveram que era hora de tomar alguma providência sobre a igreja. Ela ficava num ponto próximo ao rio, e nos tempos de cheia, acabava sendo inundada. Resolveram, então, cons truir ela em um ponto mais alto, e também com um tamanho maior, já que a população havia aumentado bastante desde a década de 10.
Todos se articularam para ajudar como podiam, seu Toi nho Verônica, entre as dezenas de profissões e ocupações que teve, foi o tesoureiro. Tarrafas tinha o comportamen to muito parecido com o de uma cidade mesmo antes de ser emancipada. Com uma quantia considerável arrecadada, deram início a construção, conseguiram o terreno, tio João Bantim alugou uma casa no centro, onde colocou dois fi lhos, Francisca e Sebastião, ela para cozinhar, ele para ir le var a comida até os trabalhadores. E a obra seguiu.
Quando faltava o telhado, o dinheiro acabou. Então tio João foi até a casa de Antônio Nunes (conhecido por Tota) e de dona Alice, avós maternos do ex-prefeito Neto Alcân tara, ela uma costureira que “era muito para a frente, naque la época onde as mulheres nem dinheiro podiam ter, vovó trabalhava e sempre tinha dinheiro, era a única de Tarrafas que tinha bolso nos vestidos, porque as outras já os faziam sem, por não poderem administrar o próprio dinheiro”, con ta Aucioneide Santos, irmã de Neto. Chegando lá, conversou
João Bantim ao lado do padre Agamenon e de Lapércio, em frente a igreja matriz de Assaré..
João Bantim na calçada de casa, nos Oitis.
• Política de pai para filho
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João Bantim e os filhos.
João Bantim e Paulo Paiva no 19° encontro de Prefeitos e Presidentes de Câmaras Municipais do Ceará. Que aconteceu em agosto de 1975.
com eles sobre a situação e pediu um empréstimo no valor da quantia que faltava. Prontamente, dona Alice disse “tu tem aí Tota? Porque se não tiver eu tenho e empresto na hora!”, relata João Filho.
Antônio Nunes, seu Tota, por sua vez, era um homem com muitos terrenos, foi ele quem doou o terreno para a igreja. Era uma pessoa muito desapegada, doou terrenos para que pessoas carentes construíssem suas casas. Con tribuiu para o município dessa forma, doando os terrenos onde foram construídas edificações como a casa de energia, onde ficava o motor que fornecia eletricidade para Tarra fas e também a Teleceará. Até a primeira escola, fundada por dona Maria Luiza, sua afilhada, foi graças à uma doação dele. “Dona Maria Luiza sonhava em construir uma escola em Tarrafas, vovô então disse ‘é você que vai ensinar nela, minha filha?’, ela respondeu que sim, então ele falou que ela poderia escolher o terreno que quisesse para fazer a escola”, conta Aucioneide.
Fundou também a Associação São Vicente de Paulo, uma organização sem fins lucrativos. O objetivo dela era arreca dar recursos para comprar mortalhas e caixões para velórios de pessoas cujas famílias não tivessem recursos para adquirir.
Nos anos 70, por conta de um edema pulmonar, ficou im possibilitado de trabalhar na roça. Resolveu colocar uma far mácia, que manteve até o início dos anos 80. Foi a primeira farmácia de Tarrafas, nela, além da venda de medicamentos, era um lugar onde as pessoas se consultavam com o senhor Antônio Belo, um médico popular que, periodicamente, ia para o Distrito.
E assim seguiu a vida. Após a emancipação de Tarrafas, aposentou-se da vida pública e dedicou-se à família, que crescia bastante. Faleceu em 02 de setembro de 2010, aos 91 anos, em decorrência das complicações causadas por um Acidente Vascular Cerebral.
Dos filhos, o primogênito, José, candidatou-se a vereador, não sendo eleito. O filho mais novo de José, Mauro Bantim, foi vereador em Tarrafas por três mandatos e também ocu pou secretarias municipais. João Filho também entrou para a política, integrou movimentos estudantis, presidiu e UEC (União dos Estudantes do Crato) em 1985, participou de movimentos contrários à Ditadura Militar e, na política par tidária, candidatou-se a Vice-Prefeito de Tarrafas nas elei ções de 2004, não conseguindo se eleger. João Filho, inclu sive, foi o primeiro egresso da educação pública de Tarrafas a ingressar no ensino superior, formou-se em Geografia, na Universidade Regional do Cariri (URCA).
Quantas histórias cabem dentro da ‘Tarrafa’?
• 155154 • Política de pai para filho
O Guardião da Memória
Capítulo 10 • 157
“Ah meu filho, não lembro, mas pergunte para Jesus, que ele com certeza se lembra”
Qualquer
pessoa com quem você for conversar sobre o passado de Tarrafas em algum momento vai soltar essa frase. Jesus é um estudioso e uma enciclopédia ambulante, um baú repleto de histórias, o principal guardião das memórias de Tarrafas, e talvez até sobre Assaré. Agora, no entanto, Jesus deixa o seu lugar de estudioso e assume o papel enquanto figura histórica. Quem tanto se preocupou em guardar memórias tem agora as suas contadas.
Jesus conviveu com quase todas as outras pessoas presentes neste livro. É irmão mais novo de dona Maria Luiza, amigo-ir mão de dona Chiquinha, foi amigo de tio João Bantim, traba lhou em diversos momentos com o mestre Antonio Rafael e com seu Toinho Verônica, além de ser um notável memorialis ta, assim como foi dona Maria das Dores.
Nasceu em Tarrafas, na antevéspera de natal, 23 de dezem bro de 1954. Foi o quarto filho de Moacir e Maria. Mesmo tendo aprendido a ler só com 11 anos, quando a irmã come çou a ensinar no distrito, sempre teve um grande interesse por aprender. Socorrinha, sua irmã, fala sobre sua boa memória na infância: “papai gostava muito de ler, tinha alguns livros físicos e uns poemas decorados. Jesus ouviu ele recitar “Meus Oito Anos”, de Casimiro de Abreu uma vez. Certo dia, ele pegou um medidor de arroz, subiu em cima, colocou as mãozinhas para trás e começou a falar, com a voz fininha de criança:
Quantas histórias cabem dentro da ‘Tarrafa’?
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Jesus Leite com o Rei do Baião.
‘Oh! Que saudades que tenho Da aurora da minha vida, Da minha infância querida Que os anos não trazem mais! Que amor, que sonhos, que flores, Naquelas tardes fagueiras À sombra das bananeiras, Debaixo dos laranjais! [...]’”
Quando aprendeu a ler, os pais o mandaram para Iguatu, e depois Fortaleza, onde estudava e morava na casa de primas do seu pai. Perto de onde morava, havia um estudante de co municação, e aí surgiu uma admiração que ia marcar o rumo de sua carreira. A Tarrafas de seus oito anos
“Na minha infância, Tarrafas ainda era distrito de Assaré, era muito pobre e atrasada. Parecia um deserto, porque a pre feitura não tinha o menor interesse em desenvolver”. Pensando em suas memórias mais antigas, Jesus traz recordações muito associadas à política. O descaso com o distrito foi um dos principais motivos para o movimento de emancipação. “Mas a primeira emancipação quem fez foi Maria Luiza, na educa ção. O trabalho dela foi mais importante que qualquer lei ou decreto emancipatório, minha irmã fez os tarrafenses sen tirem que valia a pena lutar por Tarrafas e que nós iríamos conseguir virar cidade”.
Mesmo com a ditadura derrubando a emancipação, os tarra fenses continuaram tentando. Tarrafas era o maior distrito do Cariri, com 454 km², maior que Juazeiro. Outros distritos me nores, menos organizados e menos populosos já haviam con
seguido a emancipação sem tanta dificuldade: Potengi, Nova Olinda, Antonina e até Altaneira haviam se emancipado e só Tarrafas não. “Raul Onofre era a personificação da Ditadura, e ele não gostava de Tarrafas, mas também não queria perder o domínio, então não tinha nem conversa, e se teimassem, ele mandava prender”, recorda Jesus.
A vida na capital e os primeiros vôos
Antes de ir para Fortaleza, morou no Iguatu por um tem po, onde trabalhou como locutor da Exposição Agropecuária e Industrial de Iguatu (Expoiguatu), aos 14 anos. Tanto nesse período como no período em que morou em Fortaleza, Jesus vinha sempre para Tarrafas nos meses de junho e dezembro. Passava as férias, reencontrava a família e amigos e rodava o distrito inteiro, visitando conhecidos e outros parentes.
Jesus sempre gostou de conversar.
Na capital, concluiu o Científico, equivalente ao ensino mé dio para quem queria fazer faculdade. Fez curso de topografia -estradas, e, contra a vontade da família, cursou Comunicação. “Meus pais queriam uma outra carreira para mim, queriam um filho advogado, médico, ou até professor”. Tempos depois, foi para o Crato, onde fez o vestibular para a Faculdade de Filoso fia do Crato, sendo selecionado em segundo lugar para o curso de Geografia, o qual cursou apenas um semestre.
Resolveu, então, tentar a sorte no Rio de Janeiro. Por não querer se envolver com o jornalismo no período da ditadura, por medo de perseguições, foi trabalhar na Usina Nuclear de Angra dos Reis. Mas o jornalismo chamou, e depois de dois anos largou a usina para trabalhar em um jornal, mesmo ga nhando menos.
Passados alguns anos, retornou à capital cearense, onde pas sou a trabalhar como assessor da Federação dos Trabalhadores
Quantas histórias cabem dentro da ‘Tarrafa’?
• 161160 • O Guardião da Memória
Jesus, vereador, concedendo a Alceu Bantim o título de cidadão Tarrafense. Alceu esteve presente na Segunda Guerra Mundial. Atrás de Jesus está meu avô, Zuca Bantim (primo de Alceu) e Marilda, que é a sobrinha mais velha de vô Zuca. Chamamos ela de tia Neném.
na Agricultura do Ceará (FETRAECE), percorrendo todo o estado. Em suas andanças, estudou a fundo o Estatuto da Terra e percebeu a importância da reforma agrária e os prejuízos que os latifúndios trazem para o desenvolvimento.
Na década de 80, retornou para Tarrafas.
A Educação e a Política
Logo quando voltou à terra natal, recebeu um convite de Paulo Paiva, prefeito de Assaré, para lecionar. “A Chiquinha me incentivava muito para seguir a carreira docente, foi quem me fez realmente pensar a sala de aula como uma possibilidade”. E assim começou a jornada como professor, ensinando história e geografia no nível fundamental. E nesse meio tempo, começou a cursar Direito, na Universidade Regional do Cariri.
Nos intervalos da docência, exercia outras atividades. Ini cialmente, interessou-se pelas origens da família. “Lá em casa todo mundo era um pouco memorialista. Meu pai e mamãe tinham uma memória muito boa, sabiam de muitas histórias e lembravam-se de muitos detalhes, gostaria de ter aproveitado bem mais”. Procurando pelas origens da família Leite, desco briu que veio de Portugal, seus antepassados vieram para a vila de São Mateus dos Inhamuns, atual Jucás, que compreendia um território imenso, fazendo fronteira com o Crato. Os Leite vie ram para o Ceará com o objetivo de se dedicarem à educação, e ainda hoje são uma família conhecida pela grande quantidade de professores.
Também pesquisou o outro lado da família, a parte Idelfon cio, ou Idelfonsio, ou Idelfonso, ou Idelfôncio, ou Idelfônsio (Por cortesia de seu Toinho Verônica, a família tem cinco gra fias diferentes). Era uma ramificação da família Júnior, tam bém vinda de Portugal. Conhecida pela grande quantidade de agricultores e pecuaristas. No processo de investigação sobre o
Quantas histórias cabem dentro da ‘Tarrafa’?
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Jesus e Socorrinha no Elevador Lacerda.
Jesus e sua mãe, Maria, na igreja.
passado da família, descobriu diversas histórias sobre a história de Tarrafas, inclusive figuras como dona Tereza Moreira, apon tada como fundadora de Tarrafas.
Em 1981, foi responsável pelo Censo Agropecuário em Tar rafas, onde percorreu todo o distrito, conhecendo a realidade dos agricultores, donos de terras e pecuaristas. Nessa sonda gem, acendeu dentro dele a vontade de emancipar o distrito: “Tarrafas tinha tudo para dar certo. Primeiro porque não exis tiam latifúndios, a maior propriedade foi de dona Lúcia, lá do sítio Ingá, que tinha uma propriedade de 400 hectares, mas os terrenos já foram divididos para os filhos e netos”, conta Jesus. “Então, o que eu via em Tarrafas era que, diferente de outros lugares, o povo gostava muito do seu lugar, além da questão do latifúndio, que é a desgraça dos municípios”, acrescenta.
Quando formou-se em Direito, começou uma formação pe dagógica em Letras. E nas idas e vindas pelo Crato, Tarrafas e Assaré, começou a revisar a lei de emancipação do distrito, de 1963, bem como a lei que a revogou. Passou a se informar com políticos e advogados sobre a possibilidade de revogar a revogação, e tornar Tarrafas município novamente. Mas esse caminho era um beco sem saída, não seria possível.
Buscou, então, meios de conduzir um novo processo para emancipar Tarrafas. Em 1983, foi convidado pelo prefeito de Assaré, Pedro Gonçalves, para ser seu assessor, fundando a Assessoria de Imprensa de Assaré neste ano. Era uma rotina bem movimentada, na aproximação com Pedro este se mos trou favorável à emancipação, o que foi uma excelente notícia. Nenhum de seus antecessores aceitava, nem mesmo Paulo Pai va, que havia direcionado muitos investimentos à Tarrafas, mas ainda era ligado ao grupo de Raul, o que não facilitaria as coisas para Tarrafas.
Jesus então conseguiu autorização para a realização de um plebiscito para consultar a população sobre a emancipação, era importante saber, antes de encarar a empreitada, se os tarra
fenses eram de acordo. Colheu as assinaturas e a comunidade, por absoluta maioria, era favorável à emancipação. Em diversos momentos, contou com ajuda de dona Chiquinha, do professor Palácio Leite e também de seu irmão Júnior e seu sobrinho Idela no. Recolheu as informações necessárias junto aos órgãos e, para acelerar o processo, conversou com Tertuliano Cândido e seu tio Luiz Gonzaga de Alcântara, por terem proximidade com o depu tado Antonio Tavares. Em 1987, conseguimos a emancipação!
Mas aconteceu um pequeno equívoco. “O IBGE me for neceu um mapa do distrito para anexar à documentação do processo, mas não prestei atenção que a Serra de Santana es tava inclusa. Foram dizer ao Patativa e ele ficou furioso, saiu me esculhambando em todo canto, se intrigou de mim, ele ainda foi me denunciar ao Tasso Jereissati, quase que perco meu emprego na Verdes Mares (Jesus era correspondente da TV aqui no Cariri)”, relata Jesus. A Serra de Santana é o local onde o poeta popular Patativa do Assaré nasceu, uma das coisas que insistia em repetir nesse processo era “Sou Patativa do Assaré e não Patativa da Tarrafa, mesmo não tendo nada contra o lugar”.
Por conta disso, em 1988 foi promulgada uma nova lei de emancipação de Tarrafas, tirando o território da Serra de Santa na. É um dos únicos municípios que possui duas leis de eman cipação. Tarrafas queria tanto ser emancipada que foi três vezes!
E aí foi um grande avanço. A primeira eleição ocorreu em 1988 e foi muito influenciada por Assaré. O grupo de Pau lo Paiva indicou um candidato, Dr. Tarcísio Guerreiro, e o de Pedro Gonçalves indicou outro, Tertuliano Cândido, que foi eleito. O vice de Tertuliano foi o poeta Antonio Rafael Sobri nho. Jesus candidatou-se a vereador, e seu sobrinho Idelano também, mas do lado contrário, “acabei nem fazendo campa nha para mim, me envolvi tanto na campanha dos outros que esqueci da minha, mas ainda fui eleito suplente, cheguei até a assumir algumas vezes”.
Quantas histórias cabem dentro da ‘Tarrafa’?
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No primeiro mandato de Terto, Jesus trabalhou de graça por quatro anos. Enquanto Terto fazia uma política clientelista, Je sus trabalhava nos bastidores: fundou associações, organizou a secretaria de educação, de assistência social, redigiu a lei do Magistério, instalou a Câmara e conduziu as sessões, tudo sem assumir nenhum vínculo. Nessa época, havia saído da sala de aula e trabalhava na assessoria da prefeitura de Assaré e na TV.
Só assumiu vínculos em 1992, quando foi eleito vice-pre feito na chapa vitoriosa de Neto Alcântara. Na gestão de Neto a secretária de educação foi dona Chiquinha, e no texto dela pode-se conhecer os principais feitos. Em seguida, aceitou ser secretário de educação na segunda gestão de Terto. Tinha dois objetivos: trazer o ensino superior aos professores da rede mu nicipal, que só tinham o ensino Normal, e conseguir a escola de ensino Médio. Depois de muita luta ao lado de dona Chiquinha, conseguiram excelentes resultados.
Jesus é o autor do Hino Municipal de Tarrafas, no qual traz elementos da história e fundação, e também descreve os senti mentos de tarrafenses ausentes. Na gestão de Teca Lopes, as sumiu a secretaria municipal de cultura, onde conseguiram uma série de avanços e articulações com a educação.
E entre uma coisa e outra, casou-se duas vezes. O primeiro matrimônio foi com a professora Francisca Lédio, com quem teve um filho, Joannes. Divorciaram-se e Jesus se casou no vamente com Antônia Pereira, conhecida por Totonha, com quem teve Maria Luiza.
Fazendo um retrospecto de sua vida, Jesus não se arrepende. “Algumas pessoas tentam colocar na minha cabeça que meu trabalho foi em vão, que ninguém vai reconhecer tudo o que fiz. Mas não dediquei minha vida ao reconhecimento, dediquei à Tarrafas. Meu principal pensamento foi emancipar e trabalhar por uma terra que tinha e tem tudo para dar certo, e melhorar a qualidade de vida de um povo que ama e quer morar em seu lugar”, reflete. E conclui: “não sei como serei julgado, mas vou
seguir minha viagem tranquilo. Trabalhar por Tarrafas me fez bem. Eu sempre me acostumei a contar os feitos dos outros, me sentia inibido de contar os meus, mas vejo que é importante, principalmente para inspirar outras pessoas que querem ver a mudança em seus lugares”.
— Jesus, quem foi a pessoa que mais te marcou?
— Minha irmã, Maria Luiza
— E quem você considera que marcou pro fundamente Tarrafas?
— Ela também. E Chiquinha. E muitos outros.
E muitos outros. Os citados aqui, os que nomeiam capítulos neste livro, e mui tos, muitos outros. Porque Tarrafas só é Tarrafas por causa dos tarrafenses que por ela trabalham.
Escrito por Wesley Guilherme Com orientação de Leciana Fernandes.
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Fiz o que fiz por amor à Tarrafas.
— Jesus Leite
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Hino de Tarrafas
Autor: José Jesus Leite.
Ao valente nativo guerreiro Homem branco estendeu-lhe a mão, Pelos vales os rios ensejam, O porvir da nova geração.
Vastos campos, solo fértil, Aflorando as plantações, Ó Tarrafas, terra amada, Que enaltece nossos corações.
A história bem viva nos conta, Aroeira fazenda primeira, Um tributo jamais esquecido À senhora Tereza Moreira.
As pousadas, os tropeiros Água doce, dos Bastiões Ó Tarrafas, terra amada Que Enaltece nossos corações.
Os teus filhos no tempo marcharam, Trabalhando a honrosa missão, E do sonho veio a liberdade, Resplandece a emancipação.
Vida nova, és princesa, O progresso, as construções, Ó Tarrafas, terra amada, Que enaltece nossos corações.
Quantas histórias cabem dentro da
Jesus Leite em casa, no Assaré, 2022. Fotografia de Rauan Leite.
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‘Tarrafa’?
Deste solo viemos ao mundo, Testemunhas do nosso crescer, Embalado no amor ardente, Aqui sempre queremos viver.
És o berço, o amor mais forte Do exemplo, às lições Ó Tarrafas, terra amada Que enaltece nossos corações.
Quando somos levados ao longe, Pela força da realidade, Permaneces em nossas lembranças, Mergulhados no mar da saudade.
Regressamos a dor contida, No abraço, as emoções, Ó Tarrafas, terra amada, Que enaltece nossos corações!
Ó Tarrafas, terra amada Que enaltece nossos corações!
POSFÁCIO
QUANTAS HISTÓRIAS AINDA CABERÃO EM TARRAFAS?
Contar a história de uma cidade não é fácil. Tarrafas, hoje, tem quase 10 mil habitantes. Mas se lembrarmos de todas aque las e de todos aqueles que já se foram e construíram a cidade, aumentaríamos, e muito, o número de pessoas que fizeram e fazem história em Tarrafas. Como diante de tanta gente, todas elas importantes, escolher as personagens que ilustram este li vro? Não tem jeito: com certeza, ficou faltando contar a his tória de alguém. E isso não é, necessariamente, um problema. Talvez seja o melhor desta publicação. Faz parte do jogo.
Aqui, temos uma história quase institucional de Tarrafas. Ve readores, professores, fundadores, prefeitos, jornalistas, cronis tas são as personagens. O trabalho de pesquisa foi intenso. A história aqui contada foi rastreada em documentos oficiais, cadernos escritos à mão, fotografias, livros, cordéis, jornais, revistas, entre outros. Toda essa documentação seria, no entanto, insuficiente. A matéria-prima mais preciosa para a história de Tarrafas está nas memórias das muitas pessoas entrevistadas. Trata-se, portanto, de uma narrativa constru ída por meio de uma memória coletiva e viva. E, sabemos, que a memória não é exata. “Como foi mesmo? Será que foi assim?” A memória sempre nos prega peça e nos deixa em dúvida. É um jogo divertido.
Mas uma boa história, dizia um filósofo alemão, é aquela que não conta tudo de uma vez. Qual seria a graça de uma história
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sem nenhum questionamento? Uma boa história, assim como uma boa fofoca, deve deixar brechas, lacunas, mal-entendidos, intrigas. A boa história deve despertar a curiosidade e o desejo de ir atrás dos detalhes, daquilo que não foi contado. Fica a provocação para que muitas outras histórias sejam contadas. Este é o jogo.
Acompanhei os bastidores da produção deste livro e tenho certeza que Tarrafas ainda guarda muitos tesouros de histórias para serem descobertos. Portanto, a publicação de “Quantas Histórias Cabem Dentro da ‘Tarrafa’?” é a continuação de um jogo muito divertido, ao mesmo tempo, um convite para você, leitora ou leitor, jogar também. Como diz o ditado popular: “Quem conta um conto, aumenta um ponto”. Antes deste livro, muita gente se atreveu a jogar e contar a história de Tarrafas ao seu modo. Daí, com esta publicação, aumentamos nosso ponto. Agora, a bola fica com você. Qual ponto você quer acrescentar neste conto?
Tiago Coutinho
AGRADECIMENTOS
Este livro não seria possível sem uma série de mãos e vozes que contribuíram em diversos processos. Primeiramente, por terem me criado convivendo com o costume de ouvir e contar histórias, agradeço aos meus pais, Luiz e Marinalva, aos meus avós maternos, Sueli e José, e também aos meus avós paternos, já falecidos, Zuca e Liôzinha. Não conheci vô Zuca e tive pouca proximidade com Vó Liô, mas todo o processo de apuração me trouxe um sentimento de proximidade muito bom com eles.
Agradeço minhas tias, Pastorinha, Alacoque e Zoraide, por sempre terem histórias para contar, sempre se lembrarem delas e guardarem com tanto carinho as lembranças dos antepassa dos. Falando em tias, também entram as tias-primas, tia Marilda (Neném), Madrinha Tozinha e tia Ceiça, que já começaram a me iniciar nesse costume desde os tempos em que eu vivia no Rio de Janeiro.
Agradeço também às forças maiores, a Deus, ao meu pai Oxóssi e ao meu Caboclo das Sete Flechas, responsável pe las inspirações iniciais dos primeiros rascunhos, do projeto e de todos os surtos criativos que tive durante a escrita, que me fizeram escrever textos inteiros de uma vez, sem perceber a passagem do tempo.
Outro grupo que foi sensacional foi a equipe. Porque não dá para fazer nada sozinho nessa vida. Então agradeço às fa das Leciana e Andressa e ao ícone Paulo Rossi, revisores im pecáveis, que toparam entrar nessa aventura, participaram de reuniões e contribuíram de diversas formas. Leciana, inclusive, merece um agradecimento extra por ter embarcado comigo na
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Odisseia pela fotografia de Honório Vilanova, minha cúmplice de um resgate. Outro ícone que merece todos os agradecimen tos possíveis é aquele que orientou, puxou a orelha e revisou de cabo a rabo todos os textos do livro, Tiago Coutinho, obrigado por topar, amigo!
Julinha Linda (com L maiúsculo porque é o nome de guerra) também merece um destaque especial por ter feito um trabalho incrível na diagramação, ilustração e em toda a idealização do projeto gráfico. Além de também ter participado da saga da foto, ajudando a pensar possíveis locais onde poderiam haver exemplares da revista. Você é tudo!
A primeira entrevistada foi Gilcarla, que me ajudou a deline ar uma série de passos. Contou sobre a Tarrafas da sua infância e me apresentou um vislumbre da história de dona Maria das Do res, que eu não conhecia. E ainda sondou o Crato atrás da bendita edição da revista “O Cruzeiro” para ajudar. Obrigado, Gil!
Agradeço dona Chiquinha e seu Luizinho, que estão presen tes em praticamente todos os textos, seja como fontes, perso nagens ou mencionados por outras fontes. Dona Chiquinha é nossa Dama da Educação, figura revolucionária para a história de Tarrafas, uma pessoa gentil, acolhedora, atenciosa e pacien te. Pensando bem, toda a apuração começou quando a entre vistei em 2018, para um trabalho de Jornalismo Impresso I. Seu Luizinho é outra figura indispensável para muitos dos nossos homenageados, e foi ele que forneceu a mais bela foto de sua amiga querida, dona Maria Luiza Leite, fotografia muito bem guardada há mais de 60 anos.
Um obrigado especial à dona Maria Romana, dona Lila Cândido (que me concedeu entrevistas, fotografias e um dos melhores doces de leite que já comi), mestre Antônio Rafael, Margarida Santos, Socorrinha e Jesus, que são dois grandes te souros da memória. E, falando em tesouros, não poderia ou sar deixar de agradecer dona Lurdes Moreira que, com seus 92 anos, não tem doença nenhuma, só uma artrose no joelho, e vai
viver muitos e muitos anos, com seu baú de lembranças, déca das de fofocas, e a gentileza de acolher jovens curiosos sobre o passado. Agradeço demais à minha querida Patrícia Tatiana dos Santos Bantim, neta de seu Toinho Verônica, por ter me fornecido fotos maravilhosas e por ter estado sempre à disposi ção para sanar dúvidas. Agradeço também ao Ernando Santos, filho de seu Toinho, pela entrevista e a partilha de memórias orais e fotográficas do nosso faz tudo.
Também tem a primaiada Bantim, que ajudou demais: João Filho, Lídia, Cristiano, Alceu, Arnon, Luis Filipe, Verônica, pe. Edson, Totó, madrinha Tozinha, madrinha Raimunda, madri nha Augusta e Aldizio (que não é Bantim, mas tá agregado).
Aos filhos de dona Maria Luiza: Idelano, Moacir, Fafá, Ra quel e, é claro, Jáder maravilhoso, muito obrigado também. E, na mesma família, um agradecimento especial ao Cícero, filho de Socorrinha, por diversos depoimentos que me ajudaram a pensar a imagem de dona Maria Luiza. E se tratando de de poimentos, um obrigado especial à dona Socorro Braga, que forneceu lembranças lindas sobre sua prima, nossa Patrona.
Ao ícone pop tarrafense, o artista da terra que conseguiu a maior projeção, passou pelo “Programa do Ratinho”, pelo Faustão e diversos outros, que sempre que se destaca, nunca esquece de onde vem, e é um dos maiores símbolos de perseve rança, persistência e fé nos próprios sonhos: Cy Vilanova. Mui to obrigado pela partilha, pela ajuda e por nos fornecer material sobre os seus antepassados. Cy é bisneto de Antônio Vilanova.
Agradeço à professora Lilia Schwarcz, por comentários, pi tacos e por sugerir uma série de bibliotecas das quais não fazia ideia da existência. Obrigado também por ser uma das minhas maiores inspirações no campo da história. A proposta de “bio grafar” Tarrafas nasceu inspirada por “Brasil: uma Biografia”, livro que escreveu com a professora Heloísa Starling.
Sou grato também aos conselhos do professor Anderson Sandes, que revisou alguns textos que fiz para a Revista Memó
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rias Kariri, a qual também agradeço. Anderson é o padroeiro dos jornalistas, e trouxe contribuições essenciais para me ajudar a pensar a escrita e a apuração. Obrigado também à jornalista assareense Amanda Nobre, que esteve sempre pronta para aju dar, comentar, e fornecer materiais importantes como as atas das sessões da Câmara Municipal de Assaré entre 1920 e 1948.
Pegando um gancho, agradeço a todos os professores que contribuiram para minha formação enquanto jornalista: Lucia ne Antoniutti, Isadora Meneses, Paulo Cajazeira, Ivan Satuf, Diógenes Luna, Elane Abreu, Ricardo Salmito, Rosane Nunes, Débora Costa, Marcelo Leite, Alexandre Nunes, Afonso Bar bosa, Luís Celestino, Joubert Arrais e Edwin Carvalho.
Agradeço aos amigos queridos que sempre acreditaram que ia dar certo. Obrigado aos amigos tarrafenses Adjaynne, Vi nicius, Sheylla, Raissa, Luiza Vitória, Cynthia, Maria Eduarda, Germá Martins, Alvaro (o único geminiano possível, juntamen te com Erasmo Carlos), Gabriel Jovem e também minhas irmãs Wanessa e Wanderleia, e a irmã-prima leitora Rachel, que desde que soube do projeto me pergunta “E o livro?”. E um obrigado também aos amigos de fora de Tarrafas, Adler, Gabi, Laura, Bibiana, Jayne, Netim, José Potiguar e Talitta Cancio (que tam bém esteve envolvida na saga da foto e atravessou São Paulo para buscar por Honório Vilanova),
Um agradecimento enorme à Pró-Reitoria de Cultura da Universidade Federal do Cariri (UFCA). Não poderia pensar em encerrar o ciclo da graduação sem passar por ela. Obrigado pelo apoio, acompanhamento e investimento no projeto. Em tempos sombrios como os que estamos vivendo nos últimos anos (especialmente do mandato vigente em 2022, que deixo para os jovens do futuro pesquisarem porque não vou dar o gosto de falar do cramunhão aqui), a Procult foi essencial para o desen volvimento de projetos e ações culturais em todo o Cariri. Grato também ao poder público tarrafense, por sempre acatar as reivindicações que o projeto acabou originando: a lei
sobre nossa Patrona da Educação, dona Maria Luiza Leite, a homenagem à dona Maria das Dores, que nomeia a biblioteca municipal, ao projeto do Memorial da História Tarrafense José Jesus Leite, a criação de um setor de Memória e Patrimônio Histórico-Cultural, de parcerias com a secretaria de educação para ações de educação patrimonial e também pela implemen tação da disciplina de História de Tarrafas e do Ceará na rede municipal de ensino. Um agradecimento aos vereadores To nozinho Cândido, Sonha Germano, Lane Arrais, Raimundo Ormenon, Neto do Chiquinho, Tico Batista, Adir Guerreiro, Bogó e Laércio. Agradecido também ao poder executivo, na figura do prefeito Taiano Martins e das secretárias Teca Lopes (Cultura, minha chefe!), Paloma Rodrigues (Ação Social) e Hil dete Rodrigues (Educação).
Um obrigado à Tarrafas, por todas as pessoas que aqui viveram e vivem. Pela família na qual eu nasci e me criei, pelos costumes que cultivamos, pelas histórias compartilha das, e por todas as memórias que aqui construí, construo e continuarei construindo.
Meu avô, Zuca Bantim, quando foi candidato a vereador, tinha como lema “Tarrafas precisa de nossa ajuda”. É impor tante agradecer a todos e todas que também enxergaram isso, e agiram em socorro à nossa Tarrafas.
Como seu Toinho Verônica, tio João Bantim, dona Maria Luiza Leite, Chico Rogério, Antônio e Honório Vilanova, Ma ria das Dores, Maria das Graças Leite (Gracinha), Sinfronia Rogério, dona Emília Ferreira, dona Oneida Cândido, tia Con ceição Alcântara, Júnior Leite, Elion João e todos os outros tarrafenses que lutaram por Tarrafas e contribuíram para que ela fosse o que é hoje.
E, por fim, aos tarrafenses iluminados que dão e darão con tinuidade a esse trabalho.
Grato por todo o amor à Tarrafas.
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FOTOGRAFIAS
Capítulo 01 - Panorama Histórico da Educação Tarrafense.
Acervo pessoal de Lila Cândido.
Acervo pessoal de João Bantim de Vasconcelos Filho.
Capítulo 02 - Dedicação e boa vontade - Antônio Verônica.
Acervo familiar concedido por Patrícia Tatiana dos Santos Bantim.
Capítulo 03 - As mil vidas de uma praça.
Acervo pessoal de Maria do Socorro Leite Costa Carvalho.
Acervo pessoal de João Bantim de Vasconcelos Filho.
Capítulo 04 - Os passos da peregrina da educação.
Acervo pessoal de Maria do Socorro Leite Costa Carvalho.
Acervo pessoal de Luis Alves de Sousa.
Acervo pessoal de Maria de Fátima Leite.
Capítulo 05 - Uma homenagem ao nosso mestre.
Acervo pessoal de Antônio Rafael Sobrinho.
Capítulo 06 - As dores de Maria - Memórias Iluminadas.
Acervo pessoal de Margarida Costa.
Capítulo 07 - A Dama da educação - Não foi fácil.
Acervo pessoal de Francisca Alves de Lima Sousa.
Capítulo 08 - Irmãos Vilanova - O Arraial, a Guerra e o Peregrino.
Revista O Cruzeiro (ed. 49 - 02/09/1967).
Livro Os Sertões, de Euclides da Cunha.
Livro Cangaceiros e fanáticos: gênese e lutas, de Rui Facó.
Capítulo 09 - Política de Pai para Filho - de Francisco para João.
Acervo pessoal de João Bantim de Vasconcelos Filho.
Acervo pessoal de Maria Pastorinha Bantim e Maria Zoraide Bantim.
Capítulo 10 - O Guardião da Memória.
Acervo pessoal de Maria do Socorro Leite Costa Carvalho.
Acervo pessoal de José Jesus Leite.
Acervo familiar da família Leite.
Acervo pessoal de Francisca Alves de Lima Sousa.
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Equipe • 180
SOBRE O AUTOR
Wesley Guilherme Idelfoncio de Vasconcelos
Filho de Tarrafas, de Juazeiro do Norte e da UFCA. Sou jornalista, pesquisa dor, escritor e ainda me meto à histo riador. Tenho uma relação muito es pecial com a memória, e minha maior paixão é contar histórias. Fui o ideali zador do projeto.
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