Vox Objetiva 38

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Artigo • Justiça

ROBSON SÁVIO REIS SOUZA Filósofo especialista em segurança pública robsonsavio@yahoo.com.br

Tortura: passado e presente Recentemente uma série de reportagens publicadas em vários veículos de comunicação expôs para o Brasil e o mundo as torturas perpetradas contra a presidente Dilma Rousseff, durante a ditadura militar, em Minas Gerais. Sem sombra de dúvidas, recuperar a memória histórica da violência institucional sofrida pela atual mandatária se constitui, simbólica e objetivamente, numa importante causa para descortinarmos o passado, ainda mais em tempo de Comissão da Verdade. Mas será que a violência praticada pelo Estado contra os cidadãos é coisa do passado? Ao contrário do que comumente é conhecido, o regime ditatorial foi muito mais amplo do que se pode imaginar. Isso significa que, além de militantes de movimentos, partidos e sindicatos, a máquina política da repressão conseguiu atingir um número muito maior de ativistas que continuam anônimos, mas que foram vítimas de todo o tipo de perseguição e sevícias. Para além dos conhecidos atores que promoveram a repressão, notadamente as Forças Armadas e as polícias estaduais, há fortes suspeitas da participação de outros personagens nos processos de repressão. Estou me referindo a indícios da conivência e da omissão, inclusive da colaboração de agentes estatais e públicos de diversas áreas e agências públicas com as forças repressivas. O nível de perseguição e violência perpetrado contra cidadãos que não concordavam com o regime ditatorial, além de ter atingido um número muito maior de vítimas do que aquelas até agora conhecidas, parece apontar para uma estrutura na qual os agentes da repressão contavam com ampla rede de colaboração de outros atores sociais. Incluem-se aí lideranças políticas nos níveis locais que, respaldadas pelo regime ditatorial, impunham-se e se perpetuavam no poder pela via da violência. Conhecer essa imbricada rede de agentes públicos civis que

foram partícipes do regime ditatorial também passa a ser elemento importante para o desvelamento das armadilhas do passado de tão triste memória. E o mais revoltante: constatamos que a prática da tortura se institucionalizou desde os tempos ditatoriais. Não se trata de prática que acontecia, mas de situação que existe e persiste. Em algumas delegacias, em batalhões policiais, centros de internação de adolescentes e principalmente nas prisões, a prática da tortura sobrevive. Mudaram as vítimas. Antes eram os militantes políticos que lutavam pela democracia. Atualmente são pobres, negros, moradores de rua e prostitutas. Há um sem-número de jovens, homens e mulheres que, sem acesso à Justiça e limitados em seus direitos de cidadania por terríveis mecanismos de exclusão, ainda são vítimas de todo o tipo de arbitrariedade cometida por agente público. Enquanto o Estado não dizimar qualquer tipo de afronta à dignidade humana praticada por agente público, não podemos dizer que somos um país democrático. A Comissão da Verdade, debruçando-se no desvelamento dos períodos de exceção, também poderia apontar diretrizes e sugestões de políticas públicas objetivas, indicando reformas estruturais em nosso sistema de justiça criminal. Em certa medida, esse sistema ainda reproduz e convive com práticas de arbítrio fundadas no passado ditatorial e inconcebíveis no âmbito do Estado Democrático de Direito. Justiça eficiente e menos seletiva, agências independentes e autônomas de controle da atividade policial e acesso universal à justiça: são esses mecanismos simples que os governos civis, passadas três décadas da assunção da ordem democrática, não tiveram a ousadia de implantar nas estruturas do Estado. Até quando seremos coniventes com a tortura?

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