Revista Época

Page 1

1. Os editais emergenciais são uma saída possível para viabilizar a produção em um momento de crise ou um mais estímulo à competição em um meio que já é desigual? Primeiro, temos que definir o que estamos chamando de crise. A pandemia fez e segue fazendo um estrago enorme em uma toda uma cadeia produtiva, mas expôs também a existência de uma crise permanente na arte. Com ou sem confinamento, a precarização dos produtores sempre foi a regra, aplicada, entre outras formas, pelo estímulo à competição por recursos escassos, pela não remuneração do trabalho como norma tácita e pelo uso da imagem dos artistas e suas obras. E isso sempre pesou mais sobre uns do que sobre outros. Por isso, quando falamos de editais de emergência, precisamos saber se estão se referindo apenas à crise aguda, causada pelo coronavírus, ou também à crônica, que a pandemia tornou visível. Não há que se escolher uma em detrimento da outra, pois estão interligadas: em um meio da arte factualmente desigual, é preciso ajudar agora aqueles indivíduos mais desassistidos. E os editais privados podem fazer isso, mas só conseguirão fazer isso de fato quando perceberem que a emergência pela qual estão passando esses indivíduos tem origem em uma desigualdade histórica. Infelizmente, esse não era o caso desses editais. Ao pedir aos artistas que submetessem, em um prazo mínimo, obras já produzidas na quarentena e sobre a quarentena, o problema parecia estar restrito apenas ao período do isolamento. O que não é apenas falso, mas serve também para falsificar essa “normalidade” prépandêmica construída sobre uma crise continuada. 2.Qual a forma mais justa de seleção? Ela deve priorizar critérios objetivos ou socioeconômicos? Como avaliar estes pontos? Uma seleção é, por definição, arbitrária. O que não significa que ela seja aleatória ou pré-determinada. Apenas que critérios de avaliação dependem de visões de mundo e de sociedade diferentes, e podem, por isso, ser usados para afirmar ou para se opor a um conjunto de valores. O Brasil foi erguido sobre um modelo elitista e racista, e a composição socioeconômico da classe artística ainda hoje reflete isso. O fato de grande parte das obras difundirem valores progressistas, antirracistas, antifascistas não é suficiente. Falta que outros e outras ocupem estes espaços e tragam, com o seu próprio corpo, a marca de uma série de lutas históricas de grupos marginalizados. Felizmente, essa presença vem crescendo nas últimas décadas e, com ela, a evidência do quanto a noção de uma “qualidade” intrínseca à obra de arte é herdeira de um imaginário branco universalista. Ora, se não há critérios objetivos de avaliação de obras, deve haver um esforço de se olhar para a realidade de forma objetiva, tal como ela se apresenta: desigual, imperfeita. Entretanto, nada pareceu ser tão “urgente” nessa pandemia que justificasse a elaboração de um programa verdadeiramente emergencial, que passasse pela aquisição direta de obras ou pela criação de um fundo de auxílio com critérios sociais explícitos. Mas, novamente, esta é uma crítica conjuntural, que se concentra apenas na quarentena. Estruturalmente falando, é possível ver os próprios editais como ferramentas dessa transformação, na qual a “justiça” se dá como resultado, nunca como pressuposto. Não temos que demonizá-los, mas democratizá-los. 3.No caso das instituições, qual a melhor forma de tentar viabilizar a produção em um momento de crise, levando-se em conta o limite de recursos e a necessidade de estabelecer critérios isonômicos em um edital? Assim como os artistas não são os mesmos, as instituições não são as mesmas. Isso fica nítido nessa pandemia: de instituição para instituição, muda o limite desses recursos e a forma de destiná-los. Importa deslocar a questão da viabilização da produção para a viabilização do produtor. Todos estão de acordo em dizer que arte é fundamental, que as obras são sagradas, mas muito pouco é dito e feito a respeito da realidade material daqueles que produzem estas obras. E isso não é casual. Interessa ao meio da arte, por razões econômicas, que o artista apareça sempre como um ser aurático, um mago, um mártir. É ainda essa visão fetichizada que está na base destes editais, que repartem o fardo da emergência de maneira não isonômica entre artistas e instituições. Aos artistas, cabe desenvolver novos conceitos, ideias, elaborar todo um imaginário do mundo pós-pandemia. Às instituições, cabe implementar os mesmos e velhos gastos modelos de fomento, e avaliar, de cima para baixo, o resultado destas obras, produzidas em condições ímpares. Lógica que se mostra ainda mais traiçoeira para aqueles indivíduos oriundos de grupos marginalizados. Pois sua presença pode também servir de valioso “token” cultural para um sistema que, ao mesmo tempo, lucra com a marginalização de seus grupos de origem. O que não impede sua agência, pelo contrário: a grande transformação da cena da arte brasileira vem sendo operada por


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.