Caderno de Projetos Urbanos na América Latina (1845-1945) v1

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CADERNO DE PROJETOS URBANOS NA AMÉRICA LATINA (1845-1945) V.1 Ana Castro et al (Org.)



Universidade de São Paulo Faculdade de Arquitetura e Urbanismo

Publicação da disciplina AUH235- História do Urbanismo e da Urbanização II 1º sem. 2018

CADERNO DE PROJETOS URBANOS NA AMÉRICA LATINA (1845-1945) V.1 organizadores: Ana Castro Vitor Lima Bruna Bacetti Jonas Delecave editora: Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo


Autorizo a reprodução e divulgação total ou parcial deste trabalho, por qualquer meio convencional ou eletrônico, para fins de estudo e pesquisa, desde que citada a fonte.

Catalogação na Publicação Serviço Técnico de Biblioteca Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo Caderno de projetos urbanos na América Latina (1845-1945) v.1 / Ana Castro (organizador) ... [et al] . São Paulo : FAU-USP, 2018. 64 p. ISBN 98-123-??? Trabalhos de Disciplina (AUH235- História do Urbanismo e da Urbanização II) – Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo. 1. Urbanismo 2. Urbanização 3. América Latina I. Castro, Ana, org.


SUMÁRIO APRESENTAÇÃO

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PLANO DE TERESINA (1850)

06

BAIRRO DE CAMPOS ELÍSEOS (1878)

08

PLANO DE LA PLATA (1881)

10

DOIS PROJETOS PARA O PORTO DE BUENOS AIRES (1884)

12

BAIRRO JARDIM PARQUE RODÓ (1888)

14

PLANOS DE AMPLIAÇÃO DA CIDADE DO MÉXICO (1889)

16

PROJETO DA CIDADE DE BELO HORIZONTE (1894)

18

EMBELEZAMENTO E SANEAMENTO DO RIO DE JANEIRO (1903)

20

PLANO GERAL DE SANTOS (1905)

22

VILA ECONOMIZADORA (1907)

24

VILA ITORORÓ (1910)

26

MELHORAMENTOS DE SÃO PAULO (1911)

28

PLANO BOUVARD (1911)

30

VILA MARIA ZÉLIA (1912)

32

BAIRRO JARDIM AMÉRICA (1917)

34

PLANO BOGOTÁ FUTURO (1923)

36

PLANO DE RETIFICAÇÃO DO RIO TIETÊ (1924)

38

PLANO REGULADOR DE HAVANA (1925)

40

PLANO AGACHE (1926)

42

PLANO REGULADOR DE SANTIADO (1929)

44

PLANO REGULADOR DE MONTEVIDÉU (1930)

46

PROJETO DA CIDADE DE GOIÂNIA (1933)

48

CONJUNTO IAPI VÁRZEA DO CARMO (1938)

50

CONJUNTO IAPI REALENGO (1938)

52

LIGA SOCIAL CONTRA O MOCAMBO (1939)

54

PLANO MONUMENTAL DE CARACAS (1939)

56

REURBANIZAÇÃO EL SILENCIO 1941)

58

CONJUNTO IAPI PASSO D’AREIA (1942)

60

UNIDAD VECINAL N.3 (1944)

62


AUH 238 - HISTÓRIA DO URBANISMO E DA URBANIZAÇÃO II (1ºsem. 2018)

04

APRESENTAÇÃO

É

com alegria que apresentamos o CADERNO DE PROJETOS URBANOS NA AMÉRICA LATINA (1845-1945), com os resultados da disciplina AUH 238 – História do Urbanismo e da Urbanização II, oferecida no 1o semestre de 2018 na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP). A disciplina, que faz parte da sequência de História do Urbanismo e da Urbanização do Departamento de História da Arquitetura e Estética do Projeto, tem como objetivo apresentar e discutir formas e experiências urbanas e urbanísticas no mundo ocidental, entre o século 18, a partir da dupla Revolução, e a Segunda Guerra Mundial, no meio do século 20; apresentar e discutir textos fundamentais do campo da história urbana e do urbanismo; bem como compreender o surgimento e a consolidação do campo disciplinar do urbanismo. Para isso, o curso se organizou por meio de aulas expositivas e discussão de textos, concentrando-se sobre documentos de época — como os livros A construção das cidades segundo seus princípios artísticos (de Camillo Sitte, publicado em 1898), As cidades-jardins do amanhã (de Ebenezer Howard, publicado em 1904), ou A Carta de Atenas (de Le Corbusier, 1933), bem como a publicação Plano de Avenidas (de Francisco Prestes Maia, em 1930), entre outros —, buscando fornecer aos alunos um arcabouço teórico-metodológico a partir da produção textual que embasou o surgimento e a consolidação da própria disciplina. As aulas expositivas deram suporte a essas discussões, tratando do surgimento de temas, conceitos e projetos paradigmáticos da história do urbanismo. Completando esse panorama, e de modo a trazer para a discussão uma produção projetual menos conhecida, a despeito da proximidade geográfica, os projetos aqui reunidos-

concentram-se na América Latina. Como parte de um esforço recente de se voltar a temas regionais e latino-americanos no campo da história da arquitetura, do urbanismo e da cidade — o que se reconhece em trabalhos como os de Arturo Almandoz, Silvia Arango, Hugo Segawa, Carlo Sambricio, Marcos Filgueira Gomes, entre outros — esse material busca construir com os alunos da FAU-USP um panorama dessa produção projetual, descortinando arquitetos, urbanistas e obras no geral pouco estudados nos cursos de graduação. Organizados por três entradas distintas, a saber, PROJETOS DE MELHORAMENTO, REGULAÇÃO OU EXPANSÃO URBANA; PROJETOS DE BAIRROS OU CIDADES NOVAS; PROJETOS DE HABITAÇÃO SOCIAL, o material aqui reunido redesenha o caminho do próprio curso, que reconhecia no problema habitacional a vertente potente das discussões que levam ao surgimento do urbanismo. Se a disciplina, como se sabe, se apoiou, no seu surgimento, em estudos técnicos sobre circulação e provisão de infraestruturas, e se a questão da habitação tarda a entrar na agenda dos Estados, são estas as questões que aparecem nestes projetos e planos pensados e executados desde meados do século 19 até a metade do século 20. Nesse sentido, os PROJETOS DE MELHORAMENTO, REGULAÇÃO OU EXPANSÃO URBANA apresentam planos parciais que se denominavam “melhoramentos” e “embelezamentos”, sobretudo em fins do século 19, mas não só, e em franca relação com as intervenções em cidades antigas que tem lugar na Europa e que produziram projetos e imagens paradigmáticas, como a Paris haussmanniana ou a Viena do Ring, ao lado da modernização de Barcelona e seu porto. Projetos como a Reforma do Porto de Santos ou do Puerto Madero em Buenos Aires, ou as intervenções no vale do Anhangabaú em São Paulo ou na cidade de Montevidéu,evidenciam como os


Caderno de Projetos Urbanos na América Latina (1845-1945) problemas urbanos demandavam soluções particulares, mas que não prescindiam de formas testadas no contexto dos países centrais. Sem se tratar de cópia pura e simples de modelos, o que se nota é a atualização dos profissionais locais, bem como a circulação daqueles mesmos profissionais e também de seus colegas estrangeiros, ávidos pela ampliação de seus campos de trabalho. Nesse sentido que se compreende a atuação de um Vitor da Silva Freire ou de um Saturnino de Brito, ao lado de um Joseph Antoine Bouvard ou de um Charles Thays. Mas esse tipo de intervenção modernizante não se restringe ao século 19 e adentra o século 20, com os novos planos reguladores que pretendem reformar uma vez mais as metrópoles latino-americanas, a partir das novas discussões urbanísticas que passam a ser levadas pelos profissionais. Assim, Karl Brunner, Prestes Maia, Maurice Rotival ou Donat Alfred Agache aparecem com suas propostas para Santiago, São Paulo, Caracas ou Rio, permitindo a construção de um olhar ampliado para as cidades latino-americanas. Os PROJETOS DE BAIRROS OU CIDADES NOVOS apresentam intervenções que buscavam se separar do tecido existente, com soluções distintas e desenhos renovados, algumas vezes negando o que existia em nome de uma proposta totalmente nova. Cidades construídas a partir do zero, como La Plata na Argentina ou Belo Horizonte, mas também Teresina, capital do Piauí, ou Goiânia, erigida para substituir Goiás Velho, ao lado dos bairros-jardins em São Paulo, são alguns dos exemplos que também permitem ampliar nossa compreensão do urbanismo na América Latina, mostrando como distintos preceitos do desenho urbano modernizador surgiram e se desenvolveram nesse território. Finalmente, os PROJETOS DE HABITAÇÃO SOCIAL apresentam um dos temas de maior desenvolvimento na América Latina, cuja adesão aos princípios da arquitetura moderna é notória. Assim, uma unidad vecinal em Lima, construída no governo de Belaúnde Terry, ou conjuntos do IAP em Porto Alegre, Rio ou São Paulo, construídos no governo Vargas, são colocados em perspectiva com as primeiras discussões sobre habitação, as vilas operárias ligadas às indústrias e às mútuas de trabalhadores e às intervenções dos investidores particulares, que desenharam as cidades com seus conjuntos de casas, muitas vezes com projetos executados por práticos licenciados, como foi o caso da Vila Itororó. O panorama permite compreender de que modo as discussões sobre a habitação se mesclaram com as discussões sobre “fazer cidade”, e colocam em evidencia nomes importantes, mas talvez ainda pouco conhecidos dos estudantes brasileiros, como o do venezuelano Carlos Raúl Villanueva, do peruano Belaúnde Terry ou do brasileiro Carlos Frederico Ferreira.

05 O material aqui reunido faz parte do exercício de avaliação da disciplina, pesquisa elaborada pelos alunos ao longo do semestre, e sintetizada em uma ficha de projeto que contém dados da obra, uma breve biografia do autor e uma análise do projeto ou intervenção em questão. Com isso, desenha-se esse panorama rico e diversificado da produção urbanística na América Latina, e se contribui para o aprofundamento dos estudos na área, permitindo o contato dos alunos com um material nem sempre de fácil acesso. A empreitada só pode ser feita pela presença e pelo trabalho dos monitores Vitor Lima e Bruna Bacetti (alunos da graduação) e Jonas Delecave (doutorando da Área de História e Fundamentos da Arquitetura e Urbanismo), que participaram ativamente desde o momento de concepção do exercício, nos atendimentos, e sobretudo na feitura final do caderno. Agradeço essa participação, certa de que esse trabalho de monitoria também é importante para a formação de cada um deles. Sua animação, empenho e trabalho permitiram que o curso atingisse seus objetivos e que esse caderno existisse. Agradecemos (em meu nome e no deles) o apoio da Diretoria da FAU USP e do LPG, na impressão dos cadernos.

ANA CASTRO

Ana Castro pesquisa, atualmente, as cidades latino-americanas em uma perspectiva de história cultural, cruzando os campos da literatura e do urbanismo. É professora do Departamento de História da Arquitetura e Estética do Projeto da FAU-USP.

JONAS DELECAVE

Doutorando em História e Fundamentos da Arquitetura e do Urbanismo na Universidade de São Paulo (FAU-USP).

BRUNA BACETTI

Graduando em Arquitetura e Urbanismo na Universidade de São Paulo (FAUUSP).

VITOR LIMA

Graduando em Arquitetura e Urbanismo na Universidade de São Paulo (FAUUSP).

Ana Castro Docente responsável Julho de 2018

UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO FACULDADE DE ARQUITETURA E URBANISMO AUH 238- História do Urbanismo e da Urbanização II


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Teresina, Brasil

Projeto 1850

Realização 1851-1852

PLANO DE TERESINA

Marina Sadala Borges Pedro Henrique de Moura Simplício

O

plano urbanístico de Teresina é decorrente da transferência da antiga capital, Oeiras, para a atual1, e foi realizado por José Antônio Saraiva, presidente da província entre 1850 e 1853. A principal razão dessa mudança foi a longa distância entre a então sede e o Rio Parnaíba, essencial meio de escoamento econômico da época. Sendo assim, a localização da nova capital foi pensada da melhor maneira possível para aliar uma posição geográfica adequada à proximidade do Rio Parnaíba, facilitando o comércio na futura capital.

1.Localização da antiga capital, Oeiras, e da atual, Teresina, no estado do Piauí. Mapa confeccionado pelos alunos.

Saraiva, portanto, se incubiu inicialmente de definir precisamente onde Teresina seria fundada, realizando visitas para averiguar a salubridade e qualidade do local. Escolheu-se, assim, a confluência dos rios Parnaíba e Poti, perto da já existente Vila do Poti, mas em um planalto, o que permitia proximidade com o rio Parnaíba além de garantir que a cidade não sofresse inundações decorrentes das cheias do rio.

Definido o local de implantação, foi feito o desenho da nova cidade. Para isso, Saraiva contou com a participação do mestre de obras João Isidoro França, mas o presidente da província também interferiu diretamente no traçado, como mostra o ofício de 20 de dezembro de 1850 enviado ao Ministro de Negócios do Império: “Não me ocupo em descrever as vantagens e belezas da localidade porque V.Excia me acreditará nesse ponto sem ouvir razões, e pela planta conhecerá que a Vila se começará muito regularmente. Nessa planta fiz uma mudança que foi fazer sair na grande praça três ruas em lugar de duas, formando três quarteirões dos dois que existem na mesma planta. Os seis quarteirões da grande praça estarão ocupados por belas casas, antes do ano, porque pessoas muito abastadas vão principiar suas moradas e um desses quarteirões já tem todos os alicerces para uma grande propriedade, que seu dono promete acabar antes de seis meses.” (GANDARA, 2011, p. 104). O plano consiste em uma malha retangular2, com extensão de doze quarteirões no sentido leste-oeste e dezoito quarteirões no sentido norte-sul. As dimensões dos quarteirões não são perfeitamente regulares, apresentando uma ligeira variação ao longo da quadrícula. Distribuídas pelo plano encontram-se sete praças, correspondentes a conjuntos de quarteirões livres, numa disposição não simétrica mas equilibrada, com um eixo central formado por três praças no sentido leste-oeste e duas de cada lado desse eixo. A principal dessas, a Praça da Constituição (posteriormente Praça Deodoro da Fonseca), situa-se no limite oeste da cidade e


Projeto de bairro ou cidade nova

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1

2

4

3

Legenda 1. Praça da Constituição (Praça Deodoro da Fonseca) 2. Campo de Marte 3. Praça Conselheiro Saraiva 4. Cemitério

2. Miniatura do desenho de Isidoro anexado em correspondência da Câmara Municipal ao Presidente da Província do Piauí datada de 28/04/1855. Fonte: SILVA, 2008.

abre-se para o rio Parnaíba. Nela encontra-se a igreja Matriz de Nossa Senhora das Dores e um conjunto de edifícios públicos importantes. A regularidade do plano não foi uma inovação: no Brasil e em Portugal já se faziam cidades com traçado ortogonal, com a praça como elemento central da malha urbana, especialmente no século XVIII durante a política urbanizadora pombalina. Exemplos de cidades desse período são Macapá (1758), Vila Nova de Mazagão (1770), Vila Bela do Mato Grosso (1777) e a Vila de S. João de Parnaíba (1798), a última também situada na província do Piauí. Esses inúmeros antecedentes no território brasileiro faziam parte de uma tradição urbanística portuguesa setecentista, baseada nas cidades de colonização romana na Península Ibérica, na tratadística vitruviana, nas cidades medievais planejadas do século XIII e nos conceitos urbanísticos renascentistas (TEIXEIRA, 1999, p. 257). O plano de Teresina está, portanto, vinculado a essa tradição e se aproxima bastante do urbanismo português.

Era comum que essas cidades, tanto em Portugal quanto no Brasil, possuíssem mais de uma praça - habitualmente duas ou três - destinadas a funções distintas de natureza civil ou religiosa (TEIXEIRA, 1999, p. 256). No caso de Teresina, entretanto, os prédios públicos mais importantes da cidade foram implantados no entorno da Praça Deodoro: a sede do governo, a igreja matriz, o fórum, o edifício do Tesouro e o mercado público (SILVA, 2012, p.222), o que sugere que as diversas praças e largos previstos no plano, excetuando-se o Campo de Marte, de uso militar, não tinham por objetivo principal responder cada um a uma função específica, mas sim distribuir espaços livres pela cidade para buscar um equilíbrio entre espaço edificado e não edificado, noção que não aparece nas vilas do século XVIII. Esse é um indício de que o plano Saraiva não, apenas, dialogava com a tradição pombalina, mas também se inseria no contexto do século XIX de uma emergente prática urbanística científica.

JOSÉ ANTÔNIO SARAIVA *1823 (Santo Amaro, Brasil) †1895 (Salvador, Brasil)

Quatro anos após receber o grau de bacharel em ciências jurídicas e sociais na Academia de Direito de São Paulo, José Antônio Saraiva foi nomeado, em 1850, presidente da província do Piauí. Para executar a transferência da capital, Saraiva solicitou ao Império um oficial do corpo de engenheiros que conduzisse as obras da cidade, o que lhe foi negado por falta de recursos. O presidente da província convoca então João Isidoro França, que era na época o mestre de canteiros das obras públicas da província, para ocupar o cargo. Nascido em Portugal e naturalizado brasileiro, sem formação acadêmica, Isidoro desenhou, juntamente com Saraiva, o plano da nova capital.

Fonte: GANDARA, Gercinair. Teresina: a Capital sonhada do Brasil Oitocentista. In: História, vol.30 no.1, 2011. MOREIRA, Amanda Cavalcante. Teresina e as moradias da região central da cidade (1852-1952). Dissertação de mestrado IAU USP, 2016. SILVA, Ângela Napoleão Braz. Planejamento e fundação da primeira cidade no Brasil Império. In: Cadernos PROARQ 18. UFRJ 2012 SISSON, Sébastien Auguste. Galeria dos brasileiros ilustres, vol I. Brasília: Senado Federal, Secretaria Especial de Editoração e Publicação, 1999. TEIXEIRA, Manuel C. O urbanismo português: séculos XIII-XVIII Portugal Brasil. Lisboa: Livros Horizonte, 1999.


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São Paulo, Brasil

Projeto 1878

Realização 1881-1890

BAIRRO DE CAMPOS ELÍSEOS

Martim Ferraz Costa Furtado Vitor Soares Miceli

(...) Frederico Glette loteava esse grande terreno, dando origem aos Campos Elíseos, e em apenas um dos lotes vendidos obtinha quase o valor gasto na compra da propriedade inteira” (BRANQUINHO,2007, p.38). Esta breve passagem revela o motivo da importância dos Campos Elíseos para a história da Cidade de São Paulo: foi um loteamento pioneiro no processo de especulação imobiliária e segregação espacial. O local do loteamento de Campos Elíseos, situado no antigo Campo Redondo, configurava uma área rural imediatamente próxima a cidade (Santa Efigênia) propícia para expansão ininterrupta da mancha urbana. Antes mesmo dos primeiros loteamentos na região, Branquinho (2007) chama atenção para os diversos casos de grilagem de terras e loteamentos irregulares que já iniciavam a ocupação da região. O desenvolvimento deste loteamento é um exemplo claro para a leitura da terra urbana como locus da reprodução do capital por meio de valorização via investimentos públicos e especulação como uma de suas funções primordiais. A expansão da cafeicultura no Estado de São Paulo criou condições para que o capital paulista pudesse se integrar ao capital internacional, estabelecendo relações econômica mais complexas, como financiamento de empreendimentos imobiliários de grande porte. No ano de 1875, a Câmara Municipal manifestou-se oficialmente solicitando a criação de empresas construtoras e financiadoras de edificações como solução aos altos valores de aluguéis praticados na cidade, que, assim como hoje, extorquia principalmente a população pobre. Assim, as chácaras lindeiras à mancha urbana da cidade e terras devolutas passaram a se tornar um foco de empreendimentos imobiliários. A chácara Boa Vista2, no Campo Redondo, foi um primeiro local de tentativa de grande loteamento pelo Barão de Mauá, seu proprietário, no entanto, após a abertura da primeiras

vias pelo poder público, o Barão foi à falência e o empreendimento, abandonado. Frederico Glette, já empreendedor em São Paulo e proprietário do Grande Hotel, adquire as terras do Campo Redondo pelo valor de 16:000$000 (aprox. R$ 320.000,00) e, junto a seu parceiro empreendedor Victor Nothmann e o engenheiro arquiteto Hermann von Puttkamer, desenha e loteia o empreendimento chamado Campos Elíseos. Algumas das ruas dos Campos Elíseos1 foram prolongamentos do empreendimento público inicial, como a Rua dos Bambus (avenida Rio Branco), enquanto outras foram abertas, como a alameda Glette. O arruamento conformou quarteirões de ângulos retos, valorosa forma de desenho urbano ante as ruelas estreitas e tortuosas do centro velho,

RUAS DO LOTEAMENTO

vias abertas vias prolongadas 1. processo de abertura do sistema viário do loteamento de Campos Elysios


Projeto de bairro ou cidade nova

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2. Chácara Boa Vista ou Sharpe, 1868. Condephaat (Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico), Secretaria de Estado da Cultura.

3. Instalação das linhas de bondes elétricos da Light, na alameda Barão de Limeira; ao fundo, a Chácara do Carvalho, 01.02.1900. FPHESP.

com ruas arborizadas e largas aos modos europeus. A venda dos lotes foi um grande sucesso para seus empreendedores. Antonio E. Martins estipula que foram arrecadados cerca de 800:000$000 com a venda dos setenta lotes e Glette teria compensado seu investimento de aquisição da chácara de Mauá apenas com a venda de seu primeiro lote. Os Campos Elíseos já não tinham, desde sua concepção, função exclusivamente residencial. Lotes de medidas diversas foram previstos para abranger diferentes camadas da população, com frentes variando de 115 a 4,40 metros, e permitir atividade comercial. Apesar da possibilidade de diferentes camadas sociais de acessarem os lotes, a divulgação do empreendimento em jornais tinha a elite paulistana cafeicultora como alvo, enaltecendo a ideia de “nova cidade” decorrente do ciclo do café e resgatando os aspectos urbanísticos, à moda européia, como diferenciais. Como resultado, loteamentos lindeiros foram construídos, valorizando Campos Elíseos. O padrão de ocupação de Campos Elíseos foi utilizado como parâmetro pelo Código de Posturas que seria adotado em 1886. Desta forma, o poder público, via Câmara Municipal, adota a forma urbana deste loteamento como norma para a expansão da cidade a despeito da possibilidade

do cumprimento destes parâmetros para um mercado mais amplo que a elite cafeeira. Além da regulamentação, o poder público foi essencial para a valorização desse bairro ao expandir a linha de bondes para os novos loteamentos a oeste. Em 1890 a The São Paulo Tramway Light and Power Co. LTDA., após adquirir Companhia Viação Paulista, substitui os bondes de tração animal por bondes elétricos3, adicionando mais duas linhas que passavam pelo bairro. Todo o processo de implementação das redes de transporte públicos refletiram no aumento do valor da terra contribuindo para o contínuo processo de segregação socio-espacial conforme renda e raça onipresente na história da cidade de São Paulo. Assim, a história dos Campos Elíseos se mostra exemplar para o entendimento da história da ocupação e urbanização formal de São Paulo, trazendo à luz as necessidades do setor privado como normas norteadoras da produção do espaço urbano. Notas: Valores econvertidos através do site https://acervo.estadao.com.br. acesso em 23/07/2018 Lê-se o valor 1:000$000 como mil contos de Réis.

VICTOR NOTHMANN

FREDERICO GLETTE

Nothmann foi um grande empreendedor na cidade de São Paulo, participando da construção do bairro de Campos Elíseos, do viaduto do chá, bairro de Higienópolis e proprietário da primeira importadora de tecidos paulistana, a V. Nothmann & Cia. Foi cônsul da Alemanha em São Paulo a partir de 1878.

Radicado no Brasil, Glette foi um imigrante suiço-alemão grande proprietário de terras na cidade de São Paulo e empresário. Seu empreendimento mais famoso foi o Grande Hotel, no cruzamento da rua São Bento com o largo do café.

*? (?, Alemanha) †?

*? (?, Suíça alemã) †1886 (Rio de Janeiro, Brasil)

Foto de Victor Nothmann. Foto de Glette não encontrada.

Fontes:

BRANQUINHO, Evânio dos S. CAMPOS ELÍSEOS NO CENTRO DA CRISE: A reprodução do espaço no Centro de São Paulo. Tese de doutorado. 2007. FFLCH USP. MARTINS, Antonio E. “São Paulo Antigo”. Secretaria de Cultura. São Paulo, 1973. Código de Posturas do Município de São Paulo de 1886. Departamento de Cultura, 1940. pg. 1 e 64 Actas da Camara da Cidade de São Paulo, 11.03.1875. São Paulo: Departamento de Cultura,Divisão do Arquivo Histórico, 1949, pg.41 http://almanaque.folha.uol.com.br/bairros_ campos_eliseos.htm. acesso em 27/07/2018 http://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/upload/ SC20TombamentodoBairrodosCamposEliseosPDF_1418323835.pdf . acesso em 27/07/2018


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La Plata, Argentina

Projeto 1881-1882

Realização 1882

PLANO DE LA PLATA

Fernanda Gastal Figueiredo Mirella Chiara Di Gregorio Yuri Barão Sato

L

a Plata foi concebida sob a necessidade de criar uma nova capital para a província de Buenos Aires. A fundação da cidade precisava atender às diretrizes previstas, como viabilidade para a administração da província, a qualidade do solo para as edificações e agricultura, água suficiente para a população, comunicação com o meio exterior e a facilidade de executar as obras indispensáveis para a salubridade de uma grande concentração populacional. Inspirada em diversos modelos de cidade, o plano foi implantado em uma área da pampa úmida, cercada de pântanos, sobre as colinas de Enseada, na qual seu porto natural1 era visto com grande potencial para a valorização local e para o país. O solo e a paisagem já estavam modificados devido ao uso agrícola e as pequenas ocupações, assim como a existência da linha férrea que conectava Enseada até Buenos Aires. As últimas décadas do século XIX foram marcadas por um desenvolvimento econômico diversificado em La Plata e pela chegada massiva de imigrantes ao país, contribuindo para

1. La Plata e o porto em execução. Anuario Estadístico de la Província de Buenos Aires (1882).

a construção e ocupação da cidade. O Departamento de Engenheiros de Buenos Aires, do qual Pedro Benoit era um profissional de relevância, se responsabilizou pelo projeto e execução da nova capital e de seus edifícios públicos, sendo encarregado de cuidar de tarefas topográficas, geodésicas, estruturas, arquitetônicas e urbanísticas que se realizavam na província. Prevista como a nova capital para a província de Buenos Aires, a composição formal básica do plano de La Plata está em sua forma quadrada, área com cerca de 27 km². O traçado ortogonal, seus eixos e diagonais evidenciam a importância da geometria e da simetria - uma lógica organizacional que se refere à cidade industrial -, como ocorreu na cidade de Barcelona por Ildefonso Cerdá em 1859, onde se hierarquiza uma grande avenida principal, que termina em um grande parque urbano e são incorporados duas linhas diagonais que se cruzam. O eixo cívico monumental platense se situa na mesma direção do porto posteriormente implantado e a cidade apresenta hierarquia entre as vias: avenidas, diagonais, ruas e a avenida perimetral da cidade. Nas intersecções dos segmentos da avenida perimetral foram previstas largura da via e curvas de transição de raio adequado para o tráfego ferroviário planejado. O desenho urbano de La Plata2 tem relação com outros desenhos de cidade, pode-se dizer que seus elementos básicos se inspiram no esquema do traçado do mundo clássico e nos planos desenvolvidos nas cidades ideais do Renascimento, através do caráter simétrico e geométrico; da cidade barroca, se extrai o eixo monumental e o conceito de centralidade; e dedica-se a estrutura em grelha como herança da colonização hispânica. A organização viária da cidade é marcada por importantes vias como a dupla de avenidas central, eixo que comporta,


Projeto de bairro ou cidade nova

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entre outros edifícios, as sedes do governo e do município, a catedral e a principal praça da cidade, a Plaza Moreno3. Perpendicularmente, a Avenida 13 é porta de entrada de acessos rodoviários que conectam a cidade ao seu entorno e a Avenida Monteverde (ou rua 7) recebe o Ministério da Fazenda, o Departamento de Engenheiros e o banco da província. A malha urbana é regular, as quadras são quadradas e, à medida que se aproximam do centro, suas dimensões variam.

Legenda Praças e parques públicos Bosque 7, 13, 51 e 53: vias que contêm importantes edifícios públicos 2. Mapa esquemático do plano de La Plata.

As áreas verdes de La Plata são elementos de grande importância para a concepção formal da cidade. Inspirada pelos diversos parques urbanos realizados pelo paisagista norte-americano Frederick Law Olmsted, La Plata apresenta um grande parque (bosque de eucaliptos), três parques menores e outras vinte praças com formatos distintos, além da implantação de arborização viária. Esses espaços são posicionados estrategicamente na planta da cidade, a cada cruzamento de avenidas. Tal partido tinha como intuito responder a questões higiênicas, estéticas e de salubridade, prioritárias e reforçadas pelo destaque de La Plata como referência mundial em saneamento básico após sua participação no Congresso Internacional de Higiene e Demografia de Viena em 1887. A implantação deste plano urbano pode ser sintetizado cronologicamente da seguinte maneira: iniciado formalmente em 1881, a transição do projeto inicial para o de sua fundação ocorreu durante o ano de 1882 e a execução completa se estendeu até 1885. É possível considerar a concepção dessa cidade como um equilíbrio acurado entre a linha reta, de caráter estético e funcional, e o elemento vegetal, sendo aspectos importantes para alcançar os valores urbanísticos e ambientais pretendidos.

Os responsáveis por La Plata se inserem no contexto de modernização positivista do século XIX, sendo assim, a nova cidade tem suas formas ressignificadas de acordo com este novo período, com um modelo urbano progressista e positivista, com bastante enfoque nas questões de salubridade e saneamento da cidade. Além disso, atraiu a atenção e admiração de viajantes que passaram por ela, assim como muitos materiais sobre a província foram cuidadosamente divulgados pelo Governo em sua primeira década de existência - a apresentação de La Plata na Exposição Universal de Paris em 1889 foi de suma importância nesse sentido, sendo até mesmo comparada às cidades descritas nas obras de Júlio Verne. Apesar de todo o interesse despertado pela cidade, segundo Fernando de Terán (1983), sua repercussão não foi muito ampla, inclusive na própria Argentina. A discussão em torno do processo de concepção mostra que muitas ideias implementadas não foram compreendidas por seus contemporâneos e a proximidade da cidade de Buenos Aires, comparável à distância entre os centros de São Paulo e Santos, foi um fator negativo, uma vez que tal cidade permaneceu como um centro influente, não favorecendo o desenvolvimento de La Plata. Além disso, assim como o plano de Belo Horizonte foi para o Brasil, a construção de La Plata significou a tentativa de ingresso na modernidade industrial em um país que ainda se apegava às suas vocações agrárias, situação que seria ultrapassada somente em meados do século XX.

3. Perspectiva da Plaza Moreno, principal praça da cidade, encontro das diagonais e a presença das quadras de formato variável.

PEDRO BENOIT

*1836 (Buenos Aires, Argentina) †1897 (Mar del Plata, Argentina)

Nascido em 1836, seu pai se mudou para a Argentina por razões políticas, onde trabalhou como arquiteto, engenheiro e topógrafo. Em 1861, Benoit se matriculou para ser agrimensor, depois assumiu o Departamento de Topografia da Província de Buenos Aires, participou do seu plano e atuou em projetos de drenagem e caráter militar. Como arquiteto e engenheiro, realizou muitas obras como a Facultad de Derecho (UBA). É reconhecido por sua intervenção na fundação de La Plata, onde era responsável pelo projeto e obras de edifícios públicos, dentro do Departamento de Engenheiros. Morreu em 1897, quando estava construindo a Catedral de Mar del Plata.

Fonte: TERÁN, Fernando de. La Plata, ciudad nueva, ciudad antigua: Historia, forma y estructura de un espacio urbano singular. La Plata: Universidad Nacional de La Plata. Madrid: Instituto de Estudios de Administración Local, 1983. Site da Revista Cultural Mito. La Plata: una ciudad planificada. Disponível em: <http://revistamito.com/la-plata-una-cuidad-planificada/>. Acesso em 21 de abril de 2018. Site Facultad de Filosofia y Letras de Buenos Aires. Pedro Benoit. Disponível em: <http://museo.filo.uba.ar/pedro-benoit>. Acesso em 27 de abril de 2018.


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Buenos Aires, Argentina

Projeto 1884

Realização 1887-1898

DOIS PROJETOS PARA O PORTO DE BUENOS AIRES

Leticia Martins Cunha Luiza Filier Conrado

N

o século XIX, a cidade de Buenos Aires apresentava problemas portuários, já que não existiam docas na capital argentina. Era, paradoxalmente, uma cidade portuária sem porto. Diversos navios que chegavam na costa tinham que desembarcar passageiros e mercadorias em embarcações menores para que pudessem chegar em terra. Com o auge do modelo agroexportador no final do século, a instalação de um porto na cidade se tornou fundamental para que se pudessem exportar produtos agrícolas para a Europa. Os comerciantes, os financistas e os grandes proprietários de terras reivindicavam a construção de um porto que comportasse o carregamento e descarregamento dos barcos de grande porte. Duas propostas diferentes e que representavam interesses conflitantes foram apresentadas, provocando controvérsias: a de Luís Huergo, em 1881, e a de Eduardo Madero, em 1882. A construção do novo porto iria preencher um importante espaço da cidade até então desabitado, porém com uma ótima localização visto se encontrava no eixo da Casa Rosada e do Congresso. O plano de Huergo definia acesso ao porto exclusivo pelo canal Sul e consistia na construção de 8 diques abertos, ou dentiformes, desde o Riachuelo até o Norte, com plataformas paralelas entre si e diagonais à malha ortogonal da cidade as quais permitiriam futuras extensões no sentido Norte. A orientação diagonal dos diques possibilitava um afastamento dos mesmos em relação à costa, já que o atraque de navios sempre foi dificultado pelo acúmulo de sedimentos nas margens ribeiras. Já o plano de Madero consistia na construção de uma doca margeada por uma série de diques de proteção, interligados por pontes, de forma a ligar o Riachuelo com a área ao norte da Praça de Mayo. Eram propostos 4 diques paralelos

à costa, em tijolos vermelhos, elementos clássicos da arquitetura inglesa, visto que o porto teria fisionomia similar ao Porto de Londres. O ponto de maior profundidade do rio dava acesso ao porto e, então, segmentava-se em duas direções, formando um canal que, em relação à grelha urbana, regular e ortogonal, dispunha-se diagonalmente. A disputa entre as propostas foi marcada pelas divergências de grupos distintos, apesar de ambas favorecerem o modelo liberal agroexportador. Considera-se a mais significativa diferença entre os projetos a sua localização: enquanto o de Huergo se concentrava no meio do portal do Riachuelo, o de Madero se estendia pela costa. O fato de Buenos Aires ter se tornado capital da Argentina, influenciou na escolha da proposta, pois a de Huergo estava implantado parte em território da província de Buenos Aires, parte em território nacional, possibilitando a disputa pela propriedade do solo entre Estado e Confederação. Além disso, o projeto apresentado por Madero possuía tal detalhamento técnico que possibilitou os cálculos e pressupostos da construção. Dessa forma, a obra obteve crédito de um dos maiores bancos londrinos para pagar a execução do projeto. Essas vantagens, juntamente com o fato de o porto estar localizado inteiramente no território da nação, fizeram com que o presidente, Julio Argento Costa levasse o projeto para que fosse votado no legislativo. Em 1882, o Congresso Nacional aprovou o projeto de Eduardo Madero, que se tornou o engenheiro responsável pelo novo porto1. A construção do porto se iniciou no dia 1 de Abril de 1887 e foi concluída em 31 de Março de 1898, realizada pela empresa inglesa Thomas Walker & Co. O bairro que recebeu a obra foi, então, nomeado de Puerto Madero em homenagem ao engenheiro do projeto, que morreu quatro antes


Projeto de melhoramento, regulação ou expansão urbana da inauguração. Durante o andamento da obra, a qual foi feita por etapas, o posicionamento dos diques seguiu paralelamente à disposição norte-sul da costa, além da área ter sido segmentada em quatro diques centrais dentro de um dique ao norte e outro à sul. Também foi proposto um dique de proteção e quatro diques conectados por pontes giratórias destinados à carga e descarga de mercadorias. Caso o porto precisasse expandir-se, seria possível fazê-lo em direção à ilha triangular formada a leste da área. Sendo assim, a proposta de Madero, a qual contava com a proximidade da cidade, possibilitou uma expansão da área urbana, gerando seu crescimento.

13 Huergo, no entanto, criticava a solução técnica adotada no projeto de Madero, principalmente pelo posicionamento próximo à costa, afirmando que seria uma obra cara, que poderia trazer problemas relacionados à profundidade das águas e porte dos navios, além de ser um projeto que não oferecia possibilidades de ampliação no futuro, o que poderia acarretar em congestionamentos e obsolescência. Em pouco tempo após a inauguração do porto, as palavras do engenheiro se fizeram valer, e as instalações do porto já se encontravam obsoletas, não comportavam os novos navios cargueiros, mostrando-se insuficiente aos novos tráfegos. O Puerto Madero passou, então, a ser substituído por outras instalações.

1. Foto aérea de Puerto Madero no começo do século XX

O porto, entretanto, logo se revelou insuficiente, levando o governo a larçar, em 1907, um concurso para a sua ampliação em direção ao norte, área que seria chamada de Puerto Nuevo. Entre 1911 e 1919, a obra foi realizada seguindo desenho parecido à proposta original de Luis Huergo. O novo porto contribuiu para a formação de uma barreira artificial que segregou ainda mais a área portuária em relação ao resto da cidade, fazendo com que a região fosse sendo gradativamente abandonada e se consolidando como uma região com infra estruturas em estado de deterioração. Após assumir a posição de capital nacional em 1880, foram elaborados diversos planos urbanísticos seguindo o modelo de cidade europeia, onde o espaço público se compõe pela qualificação dos vazios, como ruas e parques. Foram abertas grandes avenidas, áreas verdes e de lazer, e construídos monumentos. A área do antigo Puerto Madero , gradativamente abandonada, volta a ter importância no final

do século XX devido a sua localização privilegiada próxima ao centro e conjunto cívico.

Revitalização no final do século XX

Em 1989, o plano de renovação da área do antigo porto é realizado, constituindo-se com o objetivo de interromper o avanço da decadência e deterioração das instalações costeiras, buscando uma melhor integração entre cidade e porto, a partir do reforço da centralidade portenha. O caso do Puerto Madero foi considerado um marco das mudanças urbanísticas dos anos 90 em relação às formas de intervenção nas cidades, incluindo suas bordas costeiras. Essa nova cultura urbanística é marcada pela comunicação de diversos agentes, tanto privados como da sociedade civil, contemplando um conjunto de opiniões e representações acerca do projeto, criando um novo saber profissional, o qual é obtido a partir de uma realidade empírica, e não necessariamente a partir dos procedimentos habituais.

EDUARDO MADERO I LUIS A. HUERGOS

*1823 (Buenos Aires, Argentina) l 1837 (Buenos Aires, Argentina) †1894 (Genova, Itália) l 1913 (Buenos Aires, Argentina)

Madero foi um dos maiores comerciantes de exportação e importação mais poderosos do país. Foi um político e historiador argentino do século XIX, além de deputado nacional e presidente da Bolsa de Comércio e do Banco Provincia. É famoso principalmente pela realização do projeto do Puerto Madero, que recebeu seu nome. Huergos foi um engenheiro civil argentino com destaque no desenvolvimento de portos. Por suas contribuições para a infraestrutura do país, foi considerado o “primeiro engenheiro” da Argentina. Foto: Eduardo Madero

Fonte: GIACOMET, Luciane. Revitalização Portuária: Caso Puerto Madero. Tese (Mestrado em Arquitetura) – Faculdade de Arquitetura, UFRGS. Porto Alegre. 2008. NÚÑEZ, Teresita. Génesis de un proyecto: Puerto Madero, Buenos Aires. Revista Iberoamericana de Urbanismo, n.9, p. 103119. 2010. CONSULTORES EUROPEOS ASOCIADOS. Plan Estratégico de Antiguo Puerto Madero. Buenos Aires, 1990. Orígenes del barrio. Nuevo Puerto Madero, 2005. Disponível em: <http://www. nuevopuer tomadero.com/?page=Vivir::Historia>. Acesso em 18 jul. 2018.


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Montevidéu, Uruguai

Projeto 1888

Realização 1900 - 1902

BAIRRO JARDIM PARQUE RODÓ

Carolina Oliveira Bley Sarah Finotti Rezek

N

a segunda metade do século XIX, instituições uruguaias como o Banco Nacional e a Compania Nacional de Crédito e Obras fomentaram as atividades econômicas do país, incentivando a iniciativa privada a investir em loteamentos urbanos. No entanto, com a crise da década de 1890 o Banco Nacional fechou e o governou passou por dificuldades, mas as empresas que já estavam consolidadas continuaram atuando no setor. Nesse contexto de desenvolvimento urbanístico e construção civil de Montevidéu, Dom Francisco Piria se destacou com a criação de diversos bairros da cidade através de sua empresa “La Industrial” a partir de 1873. Nesse mesmo período, o crescimento vegetativo e migratório de Montevidéu quintuplicou sua população em apenas 32 anos. Devido à falta de habitação, os imigrantes se estabeleciam em cortiços insalubres e com altas densidades populacionais, tornandos-se as maiores vítimas das epidemias. A título de exemplo, em 1880, 20% da população da cidade morava em cortiços (CASTELLANOS, 1971). Esse cenário gerou uma demanda por moradia, que logo foi atendida pela iniciativa privada. Os novos loteamentos foram executados nos limites da malha urbana de Montevidéu. Um desses empreendimentos realizados pela empresa de Piria foi o “Barrio Jardín Parque Rodó”, construído adjacente ao grande Boulevard General Artigas que, desde 1885 determinava o limite da planta urbana do município. A história do bairro remonta a 1889, quando Piria adquiriu as terras de uma antiga fabrica de charque a fim de lotear e vender o que chamou de “o novo bairro portenho de Montevidéu”. Nessa mesma região, no começo do século XX, teve continuidade o plano de consolidação de um sistema de parques iniciado no século anterior com a implementação do Parque do Prado. Na primeira década do século XX foi implementado

o Paque Urbano - atual Parque Rodó - para expandir as áreas de lazer da cidade. Ele foi um marco da política higienista e de embelezamento da época, que moldou a Montevidéu moderna. O bairro jardim e o parque foram viabilizados pela doação de 35 hectares pelo falido Banco Nacional em 1896. O projeto do parque foi de responsabilidade do governo durante a consolidação do sistema de parques. Já o bairro jardim tem como origem uma área resídual de topografia acidentada entre os Boulevares Artigas e Espanha e a Rua 21 de Setembro. Entre 1900 e 1902 o parque despontou com as plantações realizadas pelo paisagista Charles Racine. A partir de 1903 o parque passa a se estruturar em torno de um lago artificial como motivo central. Passa a contar também com pontes em estilo pitoresco, uma avenida central, palco para música, um castelo sobre o lago e uma praça de jogos para crianças. Em 1912 o francês Charles Thays assume um projeto de ampliação do parque e realiza um novo projeto de paisagismo e implantação de uma área de jogos, serviços de pôneis e locais para venda de comidas, o que consolidou o local como uma das mais importantes áreas de lazer de Montevidéu. É evidente a referência ao “paisagismo haussmanniano” no desenho de Thays (afinal, ele havia trabalhado na reforma de Paris). Seja na grandiosidade das terras abarcadas pelo parque que impressionam os visitante, nos largos caminhos ladeados por árvores que remetem a eixos imponentes ou nos monumentos planejados para impressionar, como é o caso do castelo sobre o lago e as estátuas. Outra relação é o caráter higienista da construção do parque, numa cidade que florescia no contexto dos séculos XIX e XX e demandava medidas para tornar-se mais salubre.


Projeto de bairro ou cidade nova

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Observando seu traçado, percebe-se uma divisão em quatro áreas separadas por ruas e avenidas que cruzam o parque. A área 01, que foi a primeira a ser contruída, possui massas arbóreas e caminhos orgânicos, um grande lago artificial e visuais e perspectivas construídas segundo os preceitos do paisagismo exercido por Charles Thays. A área 02 engloba um parque de diversões, a área 03 é um complexo esportivo e a área 04 um campo de golfe. Por fim, o bairro jardim consiste em uma pequena porção de terra a sul do parque e tem suas vias definidas pelas irregularidades do terreno, o que lhes confere um traçado orgânico, semelhante às Cidades Jardins de Howard no que diz respeito aos aspectos higienistas e de convivência com a natureza. A maioria das contruções apresenta um limite de gabarito de cinco pavimentos, estão espaçadas entre si e entremeadas por vegetação e caminhos para pedestres, o que ratifica a preocupação com o aspecto higienista. Em conjunto

com o Parque Rodó, forma um nódulo na malha ortogonal que marcava a cidade desde a colonização espanhola e suas áreas de expansão.

1. Caminho ladeado por árvores - Parque Rodó.

04

02 03 01

2. Contraste entre o Parque Rodó e a malha urbana ortogonal da cidade.

Divisão das áreas do Parque: 01 - Área com massas arbóreas e o lago; 02 - Parque de diversões; 03 - Complexo esportivo; 04 - Campo de golfe.

Jules Charles Thays

*1849 (Paris, França) †1934 (Buenos Aires, Argentina)

Na França, Charles Thays atuou como arquiteto paisagista ao lado de Edouard André na remodelação urbanística e paisagística de París durante o Império de Napoleão III. Sua atuação mais expressiva foi na Argentina, onde chegou em 1889 para realizar o projeto do Parque Sarmiento, em Córdoba, mas se estabeleceu até o fim da vida, trabalhando como Diretor dos Passeios de Buenos Aires após 1891. Ainda, atuou no urbanismo, na proteção do patrimônio natural, na produção botânica, no estudo da flora sul americana e na ciência, contribuindo na formação do Jardim Botânico de Buenos Aires como um verdadeiro centro científico de botânica.

Fonte: PORTILLO, Alvaro J. Montevideo: Una modernidad envolvente. Montevidéu: Publicaciones Farq, 2003. CASTELLANOS, Alfredo R. Montevideo en el siglo XIX. Montevidéu: Editorial Nuestra Tierra, 1971. BUENOS AIRES CIUDAD, INCORPORACIÓN ARCHIVO THAYS. Disponível em : <http:// www.buenosaires.gob.ar/noticias/incorporacion-archivo-thays>. Acesso em: 27 abr. 2018. ESTUDIO THAYS, NUESTRA HISTORIA. Disponível em: <http://www.estudiothays. com.ar/home.php>. Acesso em: 17 abr. 2018.


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Cidade do México, México

Projeto 1889-1894

Realização 1895-1915

PLANOS DE AMPLIAÇÃO DA CIDADE DO MÉXICO

Lucas Cazula Martins

Maria Rosa Lins

D

esde sua fundação pelos colonizadores espanhóis sobre o antigo tecido da capital asteca Tenochtitlán, a Cidade do México cresceu seguindo o padrão típico das cidades coloniais hispânicas, de traçado regular e ortogonal. No entanto, com o crescimento acelerado e intenso alcançado no século XIX após a independência mexicana do Império Espanhol, as periferias da cidade se expandiram muito além da capacidade de planejamento e controle das autoridades reguladoras. Os planos do engenheiro e proprietário de terras Salvador Malo, a partir de 1889, tiveram como propósito ordenar o crescimento dessas novas regiões da cidade. O plano em questão partiu de duas condicionantes principais: Em primeiro lugar, a admiração pessoal de Salvador Malo pelo urbanismo moderno praticado e implementado na Europa e nas Américas. Em especial o Plano Cerdá para Barcelona (1860) que teria transmitido aos planejadores urbanos uma noção de cidade racional e bem 1. FERNÁNDEZ CHRISTLIEB, Federico. Europa y El Urbanismo Neoclásico en ordenada, podendo fornecer elementos de refela Ciudad de Mexico. 1ª Ed. Mexico, D. F.: Plaza y Valdés, 2000. Pág 123 rência para a organização espacialem cidades em qualquer local do mundo. Em segundo lugar, a intenção de uniformizar a cidade - equiparar em qualidade de traçado urbano a parte tradicional central e a parte recente periférica - em contraposição à tendência de segregação sócio-espacial pela diferenciação funcional e econômica dos vários setores da cidade moderna. Quanto a esse segundo objetivo que diz respeito a uniformização da cidade, os estudiosos posteriores divergem muito sobre o seu sucesso ou fracasso. Salvador Malo elaborou então dois planos para a urbanização de suas terras na Cidade do México. O primeiro, de 1889, teve inspiração no plano francês de Hausmann e incluía um sistema radial de grande escala em formato de uma “estrela de 12 braços”. Este plano, porém, foi rejeitado por impor uma radical mudança sobre a quadrícula colonial tradicional anteriormente referida. Desta forma, não seria conveniente a implantação de um sistema radial.1 A segunda proposta, datada de 1894 e implementada a partir daí, considerou o tecido urbano pré-existente mas também


Projeto de melhoramento, regulação ou expansão urbana

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remete ao urbanismo neoclássico europeu, tendo sido inspirado principalmente pelo plano de Idelfonso Cerdá para Barcelona. O novo plano, ao mesmo tempo que incorporava o tecido reticulado colonial, também contou com o projeto de largas avenidas partindo do centro2. Comparando o plano de 1894 2 com a imagem de satélite da região atualmente3 é possível enxergar a proposta de Salvador Malo materializada. Alguns elementos saltam a vista, como é o caso do Paseo de La Reforma - que já existia anteriormente e indicava a futura ligação do centro histórico (à direita na imagem) com a cidade nova (à esquerda) - e no seu encerramento uma previsão de desenho de jardim público, onde hoje se localiza o parque zoológico de Chapultepec, assim como as outras grandes avenidas - Mariano Escobedo e Melchor Ocampo, essas sim propostas pelo plano - irradiando-se da entrada do parque. Observa-se também claramente a relação entre o tecido urbano colonial e o traçado planejado expressando a ideia de uma nova cidade, moderna e “civilizada” (segundo a noção de civilidade à época), porém ainda assim integrada com a sua raíz histórica.

2. FERNÁNDEZ CHRISTLIEB, Federico. Europa y El Urbanismo Neoclásico en la Ciudad de Mexico. 1ª Ed. Mexico, D. F.: Plaza y Valdés, 2000. Pág 124

3. Imagem obtida por satélite. Google Maps

SALVADOR MALO

* ?, por volta de 1840 (Espanha) † ?, após 1910 (Cidade do México, México)

A bibliografia existente sobre Salvador Malo é pouco precisa sobre sua origem e formação profissiona.especula-se que fosse espanhol. O que se sabe é que Salvador Malo era um proprietário de muitas terras na Cidade do México e sócio da empresa Mexico City Improvement Company, reponsável por loteamentos locais. Salvador Malo foi um personagem importante na história da Cidade do México durante o governo do presidente Porfirio Díaz, marcado pelos projetos de modernização do país em diversos setores. No ano de 1889 o proprietário vendeu suas terras à ampliação da cidade em conjunto com um projeto de urbanização para a mesma região.

Fontes: FERNÁNDEZ CHRISTLIEB, Federico. Europa y El Urbanismo Neoclásico en la Ciudad de Mexico. 1ª Ed. Mexico, D. F.: Plaza y Valdés, 2000. TENÓRIO TRILLO, Mauricio. Hablo de Ciudad: Los principios del siglo XX desde la Ciudad de Mexico. 1ª Ed. Mexico, D. F.: Fondo de Cultura Económica, 2017


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Belo Horizonte, Brasil

Projeto 1894-1895

Realização 1895-1897

PLANO DA CIDADE DE BELO HORIZONTE

Brenda Regina Braz Leite Nathalia Rye Fuji Vitória Hassuani

A

cidade de Belo Horizonte, projetada pelo engenheiro Aarão Reis, foi constituída no século XIX, entre os anos de 1894 e 1897, para ser a nova capital do estado de Minas Gerais. Sua construção se insere no contexto dos primeiros anos da República Brasileira, proclamada em 1889; momento em que as elites mineiras tentavam encaminhar um processo de modernização do estado de Minas Gerais. A cidade de Ouro Preto, então capital de Minas Gerais, fundada na época da economia mineradora, não mais era vista como representativa dos ideais de modernidade e de desenvolvimento econômico e urbano propostos pelo novo Regime Republicano. Isso posto, o Congresso Constituinte Mineiro de 1891 decidiu pela mudança da capital; decisão essa sustentada pela própria conjuntura republicana e pelo ambiente nacional por ela criado. Tendo em vista essa mudança de paradigma do que seria a nova capital, fica a cargo de Aarão Reis a organização do plano definitivo da nova cidade, porém sob as bases pré definidas pelo governo sobre o que seria a nova “cidade moderna”. Mediante as indicações de Reis, o Congresso Mineiro escolheu o antigo Curral Del Rei que, em 1889 teve seu nome alterado para Arraial de Belo Horizonte, para a implantação da nova capital que se chamaria Cidade de Minas. Após a desapropriação de todos os imóveis dentro da zona destinada à capital e total demolição do que era o arraial em “nome do progresso”, rompendo com a identidade anteriormente existente, começa em março de 1894 as obras de construção da nova capital sob a visão positivista de Aarão Reis da racionalidade e neutralidade da técnica, além da crença do papel saneador das instituições republicanas recém criadas. O estudo deveria levar em conta uma cidade projetada para cerca de 150 a 200 mil habitantes; a localidade ideal deveria ter boas condições naturais de salubridade; abundante

abastecimento de água potável; facilidade de implantação de esgotos e escoamento de águas pluviais e drenagem do solo; condições que colaborassem para a implantação de edifícios e construções no geral. Ademais, era ainda pressuposto que houvesse facilidade no abastecimento de produtos da pequena lavoura, associados ao consumo diário; a possibilidade de implantação de iluminação pública e particular; uma condição topográfica que viabilizasse a livre circulação de veículos; o estabelecimento da ligação da localidade ao plano geral de viação estadual e federal. Finalmente, a recomendação financeira, que dizia respeito ao levantamento dos investimentos mínimos para a estruturação da nova capital. Das exigências para o plano, estavam a divisão do terreno em lotes com valores determinados a partir de parâmetros pré estabelecidos e, também, a determinação dos terrenos que deveriam ser reservados para edifícios e equipamentos públicos. O zoneamento proposto por Aarão Reis seguiu o conceito de “cidade jardim” do inglês Ebenezer Howard, onde a cidade seria “dividida” em zonas espacialmente e funcionalmente delimitadas; com isso, cada local teria sua função pré determinada, e com todos os elementos necessários à vida da cidade e de seus habitantes. A cidade proposta se estruturava em três zonas - urbana, suburbana e rural (chamada de “sítio”, por Reis) -, sendo elas delimitadas por uma grande avenida de contorno com largura de 35m1. A partir disso e seguindo o modelo do urbanismo progressista, Aarão Reis elabora a zona urbana baseada em um desenho ortogonal, com quarteirões de 120m x 120m, com lotes regulares e ruas largas que se cruzam em ângulos retos cortadas por avenidas em ângulos de 45°. Uma grande avenida de 50 metros de largura atravessava a cidade de Norte a Sul (a atual Avenida Afonso Pena), no interior do anel de contorno. A zona urbana articulava-se em torno de um centro administrativo


Projeto de bairro ou cidade nova

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formado pelo palácio do governo e pelas secretarias, junto ao qual desenvolvia-se o Bairro dos Funcionários. Tal fato resulta na ocupação da zona urbana primeiramente por funcionários e proprietários de funções estaduais, expulsando as camadas populares para outras zonas. A zona suburbana, “separada” da Zona urbana pela Avenida do Contorno, fora assentada sobre um terreno mais irregular, e possuía quarteirões maiores, com 250 por 250 metros, com lotes em dimensões variadas e ruas mais estreitas, de 14 metros de largura. A maior parte da população que se deslocou para lá era de operários que trabalharam na construção da capital e não que tinham condições de habitar a Zona central, assim, moravam em casas mais simples e cortiços, cujas fachadas eram maquiadas pelas normas estabelecidas pela construção civil. Por fim, a Zona rural, a qual circundava a Zona suburbana, tinha por finalidade o uso agrícola com sua produção destina-

da à própria cidade. Essa disposição racionalizada do espaço e de suas funções funcionaram como instrumento de controle dentro da cidade, fixando seus limites e consequentemente sua população. Dado o contexto da mudança da capital e sua visão de progresso, o processo pode ser visto muito mais que apenas centrado na transformação capitalista ou ainda na modernização econômica e social, o que tornou as discussões sobre o planejamento da nova cidade cada vez mais complexas. Nesse sentido, apesar de a mudança efetiva da capital por meio da construção de uma nova cidade não ter compreendido as expectativas das elites políticas e econômicas em disputa, esse processo contabilizou, a longo prazo, um forte caráter conservador. No planejamento urbano, a separação da cidade em zonas foi julgada como uma ação elitista, a qual hierarquizou os territórios, criando áreas delimitadas que dividiam pessoas e habitações, estimulando a exclusão de populares do perímetro urbano, como se Aarão Reis não houvesse pensado nessa parcela da população como parte da capital. Sendo assim, não foi capaz de inserir grande parte da população e, ao mesmo tempo, também não configurou grandes alterações na estrutura produtiva do estado, ou seja, não provocou imediata industrialização e dinamização econômicas. Vale também ressaltar que as discussões acerca da mudança da capital permeiam ainda o âmbito da imprensa da época e acabou se materializando em cenários e espaços. Dentre eles, o Congresso Mineiro como exemplo institucional; as praças e ruas, como exemplos informais, com suas toponímias progressistas onde se reuniram diversos encontros e passeatas. Esse esforço não acontece ao se referir à memória anterior do espaço. Com sua demolição em nome do progresso, tal projeto rompeu completamente com a identidade que o precedeu em favor de um “novo tempo”, despejando e apagando a memória dos habitantes anteriores do território.

1. Planta Geral da Cidade de Minas. Disponível em: < http://www. siaapm.cultura.mg.gov.br/modules/grandes_formatos>. Acesso em 1 de agosto de 2018.

AARÃO LEAL DE CARVALHO REIS *1853 (Belém, Brasil) †1936 (Rio de Janeiro, Brasil)

Aarão Reis estudou na Escola Central do Rio de Janeiro, onde se graduou como engenheiro geógrafo e civil, bacharel em ciências físicas e matemáticas. Foi convidado para dirigir a Comissão de Estudos das Localidades Indicadas para a Nova Capital do estado e, em seguida, para conduzir a Comissão Construtora. Esteve envolvido com projetos de obras públicas durante toda a vida: trabalhou nas áreas de transporte, saneamento, energia e construção civil; participou da construção da Estrada de Ferro de Pernambuco e prestou serviços na Estrada de Ferro da Central do Brasil. Atuou na política como Deputado Federal do Pará.

Fonte BARRETO, Abílio. Belo Horizonte; Memória Histórica e Descritiva; história antiga e história média. Belo Horizonte: Fundação João Pinheiro/ Centro de Estudos Históricos e Culturais, 1995. ARRAIS, Cristiano A. A Construção de Belo Horizonte e Projeto de Memória de Aarão Reis ARRUDA, Rogério P. Belo Horizonte e La Plata: cidades-capitais da modernidade latino americana no final do século XIX Jayo, J.A.H.; Borsagli, A.; Mesquita, Y. Paisagem, memória e utopia durante o processo de construção da Nova Capital de Minas, Belo Horizonte, 2015.


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Rio de Janeiro, Brasil

Projeto 1903

Realização 1903-1906

EMBELEZAMENTO E SANEAMENTO DO RIO DE JANEIRO

Bianca Tavares Martins Isabela Cruz de Faria Matheus Antunes

O

período que corresponde à gestão Pereira Passos (1902-1906) à frente da Prefeitura do Rio de Janeiro representa uma época de grandes transformações, motivadas sobretudo pela crescente inserção do país no contexto capitalista internacional. A intensificação das atividades exportadoras exigiam um porto à altura e uma nova imagem de Capital Federal, saneada e civilizada. O grande afluxo de imigrantes e o fim recente da escravidão, além de inovações tecnológicas como o aparecimento do automóvel e do bonde elétrico (permitindo a expansão da cidade em direção à zona sul) exigiam uma nova organização do espaço urbano. Nomeado prefeito pelo então Presidente Rodrigues Alves,

1. Planta organizada pela Repartição da Carta Cadastral. Obras realizadas entre 1903-1906 pelos governos municipal e federal - vias em destaque (recorte)

cujo discurso de posse já evidenciava sua intenção de remodelação do Rio de Janeiro (AZEVEDO, 2015), Pereira Passos determinou a reorganização da antiga Comissão da Carta Cadastral, “que deveria fornecer o apoio logístico necessário às obras que pretendia realizar, as quais foram discriminadas na mensagem encaminhada à Câmara em 1/9/1903 sob o título Embelezamento e Saneamento da Cidade” (ABREU, 1987). Como resultados de tal reorganização, tem-se primeiramente a instituição do recuo progressivo dos edifícios, a uniformização dos Planos de Alinhamento (PA) das ruas da cidade, a abertura de vias (visando especialmente melhorar a acessibilidade da zona sul ao centro) e o alargamento das principais artérias do centro e imediações1. São alargadas as ruas Estácio de Sá, Frei Caneca, Assembleia, Uruguaiana, Carioca e Visconde do Rio Branco (para 17 m); ruas Estreita de São Joaquim (continuação da rua Larga de São Joaquim, atual Marechal Floriano) e Visconde de Inhaúma (para 24 m) e a rua Mariz e Barros (para 14 m). Alargaram-se também as ruas Treze de Maio, Acre, Camerino, Sete de Setembro, São José, Ramalho Ortigão e muitas outras. Realiza-se a ligação da Lapa com o Estácio (PA nº. 1/2 e 4) através da abertura das avenidas Salvador de Sá e Mem de Sá, ambas com 17 m de largura, em terrenos obtidos com a conclusão das obras de demolição do Morro do Senado. É construída a Avenida Beira-Mar2 (com 33 m de largura), local destinado à habitação das classes abastadas, ligando a antiga Praia de Santa Luzia ao Mourisco - eixo de ligação com a zona sul. A inauguração desta avenida vinha de encontro aos interesses dos empreendimentos imobiliários nos bairros do Flamengo, Botafogo e Copacabana, e aos interesses da Companhia Jardim Botânico, que detinha o monopólio do transporte coletivo para esta parte da cidade.


Projeto de melhoramento, regulação ou expansão urbana

2. Augusto Malta. Avenida Beira-Mar, 1906. Rio de Janeiro, RJ / Acervo IMS

São realizadas também a construção da Avenida Atlântica, inicialmente com 6 m de largura, permitindo a integração de Copacabana ao espaço urbano, e a abertura da Avenida da Ligação (mais tarde Oswaldo Cruz) entre a Praia do Flamengo e a de Botafogo. Pela primeira vez no Brasil, realiza-se o calçamento asfáltico em várias ruas do Centro, Catete, Glória, Laranjeiras e Botafogo. Para a realização de tais obras foram demolidas inúmeras residências da população de baixa renda. Segundo ABREU (1987), “na maioria dos casos, a Prefeitura desapropriava mais prédios do que aqueles necessários para o alargamento das ruas. Visava com isso a venda dos terrenos remanescentes (e agora valorizados) após o término das obras, ressarcindo-se assim de grande parte dos custos”. Grande parte da população foi, então, forçada a morar com outras famílias, a pagar aluguéis altos (devido à diminuição da oferta de habitações) ou a mudar-se para os subúrbios, já que poucas foram as habitações populares construídas pelo Estado em substituição às destruídas: 120, nas sobras dos terrenos desapropriados nas ruas Mendes Campos, Salvador de Sá e Leopoldo, a partir do Decreto 1042 (1905). É importante ressaltar que, além do poder municipal, parte importante da reforma urbana do Rio foi conduzida pelo Governo Federal. A este, ficam atribuídas a reformulação do porto, da estrutura viária das suas adjacências, a Avenida do Mangue, atual Francisco Bicalho, a Avenida do Cais, atual Rodrigues Alves, e a Avenida Central, atual Rio Branco. Segundo AZEVEDO (2015), a intervenção federal foi concebida por uma lógica econômica, que entendia a transfor-

21 mação do espaço urbano como a sua adaptação a uma nova função, mais do que qualquer possibilidade de adaptá-lo a novos usos de seus cidadãos. O seu objetivo maior era, assim, a distribuição das mercadorias do porto para o comércio e as indústrias da região central e dos bairros das zonas oeste e norte do Rio de Janeiro. Ainda segundo Azevedo, de maneira oposta, a noção de progresso para a municipalidade exprime-se na intenção de levar a cabo um projeto de construção de uma civilização na cidade. Tal noção de civilização, de matriz eminentemente europeia e burguesa, calcada na ideia de saneamento e higiene, evidencia-se também na proibição da venda de vários produtos por ambulantes e da atividade da mendicância; além da demolição de uma série de cortiços, que já haviam sido proibidos de sofrer reparos por lei municipal de 1903. É canalizado o Rio Carioca e partes dos rios Berquó, Maracanã, Joana e Trapicheiro. Realizam-se, ainda, obras de embelezamento, dentre as quais a implantação de estátuas imponentes e melhoramentos nos jardins (Praça XV, Largo da Glória, Largo do Machado, Praça São Salvador, Praça Onze de Junho, Praça Tiradentes e o Passeio Público), modificações nas estradas do Alto da Boa Vista e arborização nas ruas do Centro, Botafogo e Laranjeiras. São construídos pavilhões arquitetônicos e dá-se início à construção do Teatro Municipal. A perspectiva de desenvolver uma civilização no Rio de Janeiro estava diretamente ligada à visão organicista de cidade de Pereira Passos. Nesta, o órgão principal, emanador da civilização no corpo urbano, seria a sua área central - onde encontram-se as Escolas, o comércio, os teatros -, daí sua intenção de articulá-lo com os bairros do subúrbio. A partir deste argumento, estudos mais recentes (ver AZEVEDO, 2015) tensionam a discussão acerca do período e da visão bem consolidada da historiografia das décadas de 80 e 90, para a qual o conjunto de reformas urbanas no Rio de Janeiro realizadas pelos governos municipal e federal na primeira década do século XX foi responsável pela exclusão intencional das camadas populares da área central. O período Passos se constitui em exemplo de como as contradições do espaço, ao serem resolvidas, muitas vezes geram novas contradições para o momento de organização social que surge (ABREU, 1987). É a partir daí que os morros situados no centro da cidade (Providência, São Carlos, Santo Antônio e outros) passam a ser rapidamente ocupados, dando origem a novas formas de morar e organizar o espaço urbano, incluindo uma que marcaria profundamente a feição da cidade neste século - a favela.

FRANCISCO PEREIRA PASSOS *1836 (Piraí, Brasil) †1913 (Rio de Janeiro, Brasil)

Pereira Passos foi prefeito da cidade do Rio de Janeiro entre 1902 e 1906, nomeado pelo presidente Rodrigues Alves. Formado em Matemática em 1856 pela Escola Militar (Escola Central), Passos viveu em Paris de 1857 a 1860, quando dedicou-se ao estudo de arquitetura, hidráulica e economia política. O período de sua gestão no Rio de Janeiro foi marcado por reformas urbanísticas que visavam “adequar a forma urbana às necessidades reais de criação, concentração e acumulação do capital” (ABREU, 1987). O período Passos significou uma tentativa de superação das “contradições da cidade colonial-escravista” (idem, 1987).

Fonte: ABREU, Maurício. Evolução Urbana do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Instituto de Planejamento Municipal, 1987. AZEVEDO, André N. A Reforma Pereira Passos: uma tentativa de integração conservadora. Tempos Históricos. 2015, Vol. 19 Issue 2, p151-183. 33p. BENCHIMOL, Jaime Larry. Pereira Passos: um Hausmann Tropical. A renovação urbanana cidade do Rio de Janeiro no início do Século XX. Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de Cultura, Turismo e Esportes, 1992. LUCAS, Nathália T. O Porto do Rio de Janeiro: reflexões sobre sua modernização e seu impacto social frente suas comunidades circunvizinhas. Revista Espaço Acadêmico, nº 130, março de 2012.


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Santos, Brasil

Projeto 1905-1910

Realização 1910-1914

PLANO GERAL DE SANTOS

Alessandro Akio Oshiro Julio Herminio Bressan Martins

O

plano de ampliação da cidade de Santos decorre de uma intensa discussão entre duas propostas protagonizadas, por um lado, pelo departamento técnico da Câmara de Santos, o qual propusera uma planta em 1896, e por outro, pela Comissão de Saneamento do Estado de São Paulo, encabeçada por Saturnino de Brito, que realizou um plano de saneamento e expansão para a cidade em 1910. O plano proposto em 1896 pela Câmara Municipal1, divergia do de Saturnino em diversos quesitos. Por ser feito em um momento anterior ao projeto dos canais de drenagem, este não contemplava esse importante equipamento e, por ser proposto em um xadrez extremamente rígido, não criava os caminhos mais fáceis para a circulação na cidade. Saturnino de Brito, como engenheiro sanitarista, não dissociava drenagem e esgotamento do traçado urbanístico. Nos volumes VII e XXI de suas obras completas, o autor defende as prerrogativas para o plano de melhoramento e expansão de Santos. Neste plano geral, procura conciliar os melhores trajetos para a circulação e os traçados mais eficientes para os canais, pautando-se, assim, em pontos teóricos que para ele compõem um bom plano urbanístico: •O primeiro ponto que Saturnino defende veementemente em suas argumentações é que o traçado das cidades não pode se caracterizar indistintamente pelo uso do xadrez regular ou geométrico, como havia sido feito em 1896. Tomando como exemplo cidades como Washington, Barcelona e Belo Horizonte, o engenheiro demonstra que as curvas ou o traçado geométrico não devem ser adotados ou recusados a priori. As ruas sinuosas devem ser adotadas em terrenos acidentados, assim como o traçado geométrico no terreno plano. No primeiro caso, é preciso projetar caminhos de fácil acesso para os pontos elevados e, também, caminhos que sigam os

talvegues para facilitar o esgotamento sanitário e pluvial; no segundo caso, é necessário desenhar ruas ou avenidas diagonais, que facilite a comunicação entre as diferentes zonas da cidade. •O segundo ponto da argumentação consiste na defesa de que a beleza de uma cidade depende mais dos elementos arquitetônicos e artísticos do que do traçado de ruas e praças. O traçado deve ser conveniente ao efeito estético mas deverá atender primordialmente a utilidade (o trânsito e o saneamento). •O terceiro consiste em resguardar o pitoresco natural: os horizontes (ou vistas) naturais – como o mar, as montanhas e os vales de rios – não devem ser bloqueados, observando, antes, as questões de ventilação. O estabelecimento de parques e jardins públicos devem ser convenientemente projetados para promover vistas. Do ponto de vista específico de Santos, aplicando sua teoria, Saturnino aponta os motivos da escolha do traçado em seu plano geral. A existência do projeto (já em andamento em 1910) dos seis Canais que fariam a drenagem de Santos levou Saturnino a pensar o traçado para a cidade em função deles. Os canais seguiriam um caminho predominantemente transversal à orla, gerando uma maior declividade e facilitando o escoamento. Assim, o engenheiro decidiu que o melhor arruamento seria o xadrez (dada a predominância de terrenos planos na cidade) seguindo a direção dos canais, ao invés de simplesmente pautar-se nas direções norte/sul e leste/oeste como o plano de 1896 propusera2. Na proximidade ao porto de Santos, no entanto, onde já se apresentava uma área edificada, Saturnino propôs intervenções menos invasivas, com pequenas modificações nas


Projeto de melhoramento, regulação ou expansão urbana

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formas dos quarteirões. Assim, deixa de seguir a orientação dos canais, fazendo com que essa região destoe do formato mais geométrico dos arrabaldes da cidade. Ainda se opondo ao plano de 1896, o qual propunha que as ruas fossem retilíneas e contínuas até os limites da cidade, ele propõe que o arruamento seja interceptado por jardins ou pelos próprios canais, permitindo assim pequenos espaços verdes nas interseções, assim como praças, sem que isso interfira na rede de coleta. Além dos arruamentos, o engenheiro propôs que as Grandes Avenidas diagonais funcionassem como um parque contínuo, fechando um circuito que se integraria ao parque da avenida da Orla. A ligação diagonal cruzando o arruamento proposto funcionaria, assim, como elemento de embelezamento da cidade alternativo ao desenho curvo – este que só deveria ser utilizado no sopé dos Morros de Nova Cintra, Marapé e Santa Teresinha, e em ruas já existentes próximas ao Centro. Do projeto idealizado por Saturnino de Brito, muito não foi concretizado no decorrer dos anos, e a planta atual da cidade de Santos diverge da planta de 1910 em alguns aspectos:

•O primeiro, e mais alarmante, ponto de divergência é o caso dos arrabaldes de Santos a leste, onde hoje se encontram as regiões do Embaré e Aparecida. A proposta de uma malha geométrica, seguindo a orientação dos canais 5 e 6 não foi seguida, e hoje se encontra um arruamento completamente divergente do xadrez. •Segundo, é fácil perceber como as Grandes Avenidas propostas por Saturnino não se encontram todas na direção e posição que o Engenheiro imaginou. Além disso, o parque contínuo que seria formado pela arborização delas, dá hoje lugar ao VLT da Baixada Santista. Outras características, entretanto, seguiram parcial ou totalmente os planos do engenheiro: •As regiões onde hoje se encontram o Centro e o Paquetá seguem fielmente o exposto no plano, entretanto isso ocorreu porque esses bairros já estavam construídos anteriormente e o plano apenas propõe modificações simples de serem concretizadas. •A região que mais fielmente seguiu a proposta de Saturnino foi a do Marapé. Muitos dos quarteirões desenhados pelo Engenheiro Sanitário mantém seu formato até hoje.

1. Planta do Plano de 1896 pela Câmara Municipal para a Cidade de Santos. Fonte: http://www.novomilenio.inf.br/santos/mapa30.htm (acesso no dia 28 de junho de 2018).

2. Planta do Plano de Saturnino de Brito para a Cidade de Santos, com destaque para os seis canais projetados à época. Fonte: Arquivo Público do Estado de São Paulo (destaque feito pelos autores). Fonte:

FRANCISCO SATURNINO RODRIGUES DE BRITO *1864 (Campos dos Goytacazes, Brasil) †1927 (Pelotas, Brasil)

Foi engenheiro sanitarista e responsável pelo urbanismo de dezenas de cidades da República Velha. O engenheiro, além de sanear as cidades ameaçadas (ou afetadas) por epidemias, elaborou planos urbanísticos para diversas delas. Apesar de ter como foco o âmbito sanitarista do planejamento urbano, Saturnino nunca desprezou a estética e a importância do traçado urbano. Obeteve grande projeção nacional e internacional pela excelência em seus projetos, sendo homenageado na revista “Technique Sanitaire” de Paris, em maio de 1929: “Higienista incomparável, que deu aos técnicos da França e do mundo lições e exemplos magníficos”.

BRITO, Francisco Saturnino Rodrigues de. Obras Completas. Volumes VII e XXI. Rio de Janeiro, 1944. Imprensa Nacional. ANDRADE, Carlos Roberto Monteiro de. A Peste e o Plano v.1. e v2. 1ª Ed. São Paulo, FAUUSP, 1992. Dissertação de Mestrado. BERNARDINI, Sidney Piochi. Os planos da cidade : as políticas de intervenção urbana em Santos - de Estevan Fuertes a Saturnino de Brito (1892-1910). São Paulo, 2003. Dissertação de Mestrado. CARRIÇO, José Marques. O Plano de Saneamento de Saturnino de Brito para Santos: construção e crise da cidade moderna. Risco: Revista de Pesquisa em Arquitetura e Urbanismo (Online), São Carlos, n. 22, p. 30-46, dec. 2016. ISSN 1984-4506. Disponível em: <https://www.revistas.usp.br/ risco/article/view/124537>. Acesso em: 01 may 2018. doi:http://dx.doi.org/10.11606/issn.19844506.v0i22p30-46. REGUEIRA, Tiago Andrade. Transformações Urbanas na Baixada Santista. São Paulo, 2016. Iniciação Científica – FAPESP.


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São Paulo, Brasil

Projeto 1907

Realização 1908-1915

VILA ECONOMIZADORA

Claudia Miyuki Takamine Kodama Jayne Vanielli Maria Silvestre

E

ntre o final do século XIX e os primeiros anos do século XX, São Paulo vivenciava um surto de industrialização estimulada pela economia cafeeira e a adoção de mão de obra assalariada. A cidade viu a demanda por habitações ser exposta pelo grande contingente de trabalhadores imigrantes que chegavam ao país. Nesse período a população do município de São Paulo cresceu de 64.934 em 1890, para 239.820 em 1900, o que passou a evidenciar ainda mais os problemas de infraestrutura e de habitação da cidade que não estava preparada para tal crescimento populacional. É nesse cenário que emerge o que podemos chamar de primeiro problema habitacional brasileiro, que foi colocado na época como uma questão sanitária, devido às doenças e epidemias decorrentes da lotação e da precariedade das construções que eram disponibilizadas para essa população morar. A fim de agir contra tal problemática, criam-se leis como o Código Sanitário de 1894 e o Código de Posturas de 1896, que não apenas regulamentam a edificação da habitação popular, mas também tentam reordenar a cidade aos olhos de uma classe dominante, que proíbe a produção de habitação para a classe operária dentro da aglomeração urbanizada da colina, seguindo um padrão comum na época que ocorria nas cidades europeias. Já em 1908, é criada a Lei 1098, que incentivava a isenção de impostos a empresários para a construção de habitações populares1. Surge assim, várias sociedades mútuas responsável pela construção e administração de vilas operárias, como a Economizadora Paulista. Essas sociedades adquiriram terrenos baratos em lugares afastados do centro, próximo das várzeas e linha férrea, onde construíam vilas e alugavam de forma a garantir uma grande margem de lucro. A Vila Economizadora se insere no bairro da Luz, um

1. Propaganda Sociedade Mútua Paulista, vista geral da Vila Economizadora. [FERRAZ, 1978]

dos primeiros locais afetados pela industrialização paulista, caracterizado por suas funções comerciais e de prestação de serviços. Está localizada entre a Rua da Cantareira e Av. Do Estado, antiga Av. Tamanduateí, com acesso principal pela Rua São Caetano, aberta entre os anos de 1881 e 1890 queRua São Caetano, aberta entre os anos de 1881 e 1890 que liga o bairro do Brás ao da Luz, com traçado seguindo paralelo ao da linha da São Paulo Railway. Foi composta inicialmente por 147 unidades, sendo 127 residenciais e 20 comerciais2, com construção de uma típica vila operária particular, ou seja, que não estava ligada diretamente a nenhuma fábrica específica. Em sua composição apresenta seis quadras compostas por oito tipos de construções residenciais, com área útil interna variando entre 84m² e 98m², que para o padrão da época tinham grandes dimensões. Analisando o padrão dessas habitações3, haviam 71 casas de tipologia B, que eram reservadas para a população


Projeto de habitação social

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2. Planta geral. [FERRAZ, 1978]

A1

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4. Rua Economizadora. [FERRAZ, 1978]

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3. Plantas das casas tipo A e B. [FERRAZ, 1978] A1. Cozinha / A2. Banheiro / A3. Quintal / A4. Varanda / A5. Sala / A6. Dorm. / A7. Dorm. B1. Quintal / B2. W.C. / B3. Cozinha / B4. Sala / B5. Dorm.

operária, seguindo a lei então em vigor. Elas eram constituí das de apenas três ambientes, quarto, sala de jantar e cozinha, com latrina externa. Compondo a vila, com um padrão considerado melhor, tem as casas de tipologia A com 10 unidades; de tipologia C e D com 7 unidades, E com 25 unidades, F com 3 e G com 20 unidades, essas casas possuíam sala de visita e de jantar, dois ou três dormitórios, cozinha e banheiro interno. Uma das principais críticas que vale não apenas a Economizadora, mas também as outras habitações populares construídas nesse mesmo período, é o fato do Estado aplicar ações vinculadas ao higienismo, porém, ao mesmo tempo, inexistir a produção estatal de habitação, deixando que essa produção na mão dos rentistas se tornassem um negócio exploratório e de altíssimo lucro. Além disso, não significou em sua totalidade o acesso do operário a habitação de qualidade, uma vez que apenas aqueles especializados, ou seja, que tinham um salário maior conseguiam ter acesso a

5. Rua Economizadora atualmente. [Refúgios Urbanos]

essas habitações. Na atual Vila Economizadora, percebe-se a permanência da largura das vias, a pavimentação de paralelepipedos e as volumetrias externas das casas4;5. Apesar do aumento do gabarito com a incorporação de um meio pavimento nos fundos das casas, nas trocas dos telhados e esquadrias, que deixam de seguir um padrão e também nos ornamentos das fachadas, que evidenciam um descuidado na preservação da vila, tombada pelo CONDEPHAAT em 1980 e pelo IPHAN em 2002, como Conjunto Histórico do Bairro da Luz. Por fim, olhando esse projeto habitacional no território em que está inserido, é válido destacar problemáticas de mudanças e permanências no seio e no seu entorno, além do entendimento espacialmente de ocorrências de processos como reestruturação urbana, dificuldades na preservação patrimonial e degradação do ambiente.

ANTONIO BOCCHINI *1865 (Avelino, Itália) †1923 (São Paulo, Brasil)

Antonio Bocchini foi um construtor italiano que chegou ao Brasil em 1889. Em São Paulo instalou seu escritório na Rua do Comércio e depois se deslocou para a Rua Condessa de São Joaquim. Trabalhou sozinho na maior parte dos projetos, porém colaborou com alguns arquitetos como Ramos de Azevedo e Giuseppe Sacchetti. Entre os seus trabalhos, é possível destacar a construção da residência de Cláudio de Souza na Av. Brigadeiro Luiz Antonio, projeto de Sacchetti, o muro do Cemitério da Consolação, parte da construção do Parque Balneário de Santos; Igreja Nossa Senhora da Pompeia e a Segunda e Terceira Vila da Economizadora, atualmente demolidas.

Fonte: BARBOSA, Leandro Ornellas. Vilas Operárias Paulistanas: Mudanças e Permanências na Vila Economizadora e Vila Maria Zélia. Dissertação de Conclusão de Curso em Geografia. FFLCH, USP, São Paulo, 2015. FERRAZ, Vera Maria de Barros. Vila Economizadora: Projeto de Conservação/ Revitalização. Volume 1 e 2. São Paulo: Monografia. FAU, USP, 1978. RODRIGUES, Angela Rosch. Patrimônio industrial e os órgãos de preservação na cidade de São Paulo. 14a Ed. São Paulo: Revista CPC p.30 - 56, 2012. TREVISAN, Ricardo Marques. Condomínios tipo vila em São Paulo. Dissertação de Mestrado. FAU, USP. São Paulo, 2006.


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São Paulo, Brasil

Projeto 1910-1922

Realização 1915-1922

VILA ITORORÓ

Vanessa Cristina Salmazo Pamela Agustinho Mendes

A

Vila Itororó é um conjunto arquitetônico idealizado por Francisco de Castro a partir de 1910, localizado na região central da cidade de São Paulo, na divisa entre os Bairros da Liberdade e da Bela Vista, na encosta do Vale do Itororó. Sua área, que contabiliza 6 mil metros quadrados, tem origem na denominada Chácara do Sertório, sendo que seu limite atual foi consolidado e condicionado após a divisão dessa área em ruas e lotes no início do século XX, que se estendia da rua Humaytá ao Largo do Paraíso. Os acessos ao conjunto se dão a partir da Rua Martiniano de Carvalho, Rua Maestro Cardim e Travessa Artur Prado (atualmente Monsenhor Passalacqua)1.

1. Implantação, década de 1930.

A vila se insere no contexto de uma São Paulo onde pelo menos 80% do total de domicílios são alugados, sendo um exemplo de uma tipologia urbana característica do início do século XX: vilas construídas por particulares em miolos de quarteirão, objetivando a obtenção de renda. Dessa forma, a construção da Vila Itororó significou a inserção de Francisco de Castro nesse ramo imobiliário crescente na cidade de São Paulo e, consequentemente, sua almejada ascensão social. Portanto, Castro associa, na concepção da vila, sua capacidade criativa e seu desejo de expor o novo status social. Sua implantação em miolo de quadra e seus devidos acessos por travessas não correspondem aos traçados convencionais dos loteamentos da época, uma vez que se relacionam com a paisagem local, assinalada pela conformação irregular e topografia acidentada característica dos vales de São Paulo, e refletem a forma que os terrenos foram adquiridos. Além disso, a Vila Itororó apresenta algumas peculiaridades em relação às soluções geralmente propostas para essa tipologia. Enquanto a maior parte das vilas da época eram constituídas apenas de habitações destinadas ao aluguel, construídas de forma seriada e padronizada com um mesmo modelo arquitetônico, a Vila Itororó foi constituída sem padronização ou regularidade, reunindo no mesmo empreendimento a residência de Francisco de Castro e as de seus inquilinos2. Dessa forma, Castro se distancia das soluções que vinham sendo adotadas pelos imigrantes enriquecidos e cafeicultores, que procuravam se isolar em bairros ocupados exclusivamente por seus palacetes. Outra questão que diferencia o projeto da Vila Itororó das demais habitações destinadas ao aluguel é o fato de que sua construção e devido aval não se deu de forma pontual, mas progressiva, “onde por mais de vinte anos construiu, reconstruiu, compôs e recompôs cada detalhe de seu ambicioso projeto” (CASTRO e FELDMAN, 2017, p.56).


Projeto de habitação social

27 Com o falecimento de Castro, a Vila Itororó passou a ser propriedade da Instituição Beneficente Augusto de Oliveira Camargo e conheceu um sucessivo abandono, seguido de ocupação incontrolada. Em 2006, a propriedade foi declarada de utilidade pública para fins culturais. Em 2013, foram iniciados os processos de restauração da obra, juntamente com o projeto Vila Itororó Canteiro Aberto4. A proposta inicial era constituir um canteiro experimental e uma tentativa de centro cultural no meio do canteiro, ambos abertos à população. Hoje, o projeto restringe-se às obras de restauração, aos debates públicos e à difusão de conteúdo sobre a Vila Itororó, cuja gestão do galpão fica a cargo da Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo.

2. Pátio interno da Vila Itororó, década de 1970.

A primeira solicitação de Castro data de 1913, onde encaminha pedidos para construção de casas, prédios e sobrados nos dois lados da travessia Artur Prado. Entretanto, somente em 1916 é que se obtém uma planta com a área que seria ocupada pela Vila devidamente demarcada. A partir desse momento, Castro volta-se para as edificações que formariam o conjunto, solicitando à DOV (Directoria de Obras e Viação da Prefeitura do Município de São Paulo) uma licença para a construção de cinco casas voltadas para a parte central da Vila, que constituiriam os imóveis para aluguel do conjunto. Apenas em 1922 é que Castro inicia a construção do seu palacete, seguindo a mesma lógica de construção em etapas. Outra característica marcante da Vila Itororó é o fato de seu palacete, assim como alguns componentes e ornamentos, serem oriundos de materiais recolhidos de demolições3. Dentre esses materiais, também se incluem elementos incorporados após 1924 que pertenceram ao Teatro São José (1909-1920) no Viaduto do Chá, conferindo ao conjunto da vila um caráter singular. Segundo Toledo (2015, p.19) “o caráter plástico do conjunto se definiu como uma colagem de surpreendente originalidade, com acento onírico e pitoresco, que passou a ser identificado espontaneamente como a vila surrealista.” Após algum tempo, já em 1929, em uma tentativa de implementar a face do terreno voltada para o vale, Castro aposta na criação de um estabelecimento em sua vila, o Instituto Helio Hydrotherapico Itororó, se respaldando na possibilidade de implantação de uma avenida no local. Entretanto, as obras da avenida não se concretizam e seu projeto é inviabilizado. Cerca de três anos depois, Francisco de Castro falece aos 55 anos, em 1932. A Vila vai a leilão em 1933.

3. O palacete de Francisco de Castro, década de 1920.

4. O palacete em restauração, 2015.

FRANCISCO DE CASTRO *1877 (Guaratinguetá, Brasil) †1932 (São Paulo, Brasil)

Francisco de Castro, filho de portugueses, fixou-se em São Paulo a partir de 1892. Trabalhou na capital paulista primeiramente como caixeiro-viajante, dois anos depois passando a trabalhar em uma empresa de exportação de café. Após 1897, sua atividade foi como representante de uma indústria de tecidos, o que lhe permitiu juntar algum recurso para investir em imóveis. A compra de lotes com objetivo de construir prédios para aluguel foi a forma com que Francisco se inseriu nas atividades imobiliárias em São Paulo. A partir de 1911, sua atividade no ramo se intensifica, ganha contornos mais definidos e inclui a edificação da Vila Itororó.

Fonte: BONDUKI, Nabil. Origens da habitação social no Brasil : arquitetura moderna, lei do inquilinato e difusão da casa. 3ª Ed. São Paulo: Estação Liberdade, 1998. CASTRO, Ana e FELDMAN, Sarah. Vila Itororó: Uma história em três atos. São Paulo: Instituto Pedra, 2017. CASTRO, Ana e FELDMAN, Sarah. Desafios da Vila Itororó: história e memória da metrópole paulistana. São Paulo: Enanpur, 2017. TOLEDO, Benedito Lima de. Vila Itororó. São Paulo: Instituto Pedra, 2015.


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São Paulo, Brasil

Projeto 1911

Não Executado

MELHORAMENTOS DE SÃO PAULO

Beatriz Barsoumian de Carvalho Fernando Toma

E

m 15 de fevereiro de 1911, Victor Freire é convidado pelo Grêmio Politécnico para proferir uma conferência acerca dos “Melhoramentos de São Paulo”. Para se entender a importância de tal pronunciamento, é preciso compreender o contexto em que se dava a discussão na cidade, que para além de um projeto de “embelezamento” necessitava uma melhor circulação viária. Com a construção do Teatro Municipal, em 1911, símbolo da nova sociedade paulistana que se formava, eram evidenciadas as idiossincrasias de uma cidade de feições ainda coloniais. É nesse sentido que o Vale do Anhangabaú torna-se peça central na discussão desses melhoramentos, sendo elemento de conexão entre o triângulo histórico (São Bento, São Francisco e Carmo) e a chamada “nova cidade”. Junto com Eugênio Guilhem, então vice Diretor de obras Municipais, Freire elabora o projeto de melhoramentos analisado nas imagens acima. Tal proposta retomava as idéias defendidas por Silva Telles em 1906, principalmente acerca do alargamento da rua Líbero Badaró e sua função como “terraço” do vale do Anhangabaú ajardinado. É nesse desconfortável clima entre os técnicos da Diretoria de Obras Municipais e o Governo do Estado que se dá a conferência por Freire, que usa tanto sua posição como diretor de obras quanto de docente da faculdade para proferir um discurso progressista sobre o tema, com um olhar técnico que busca na leitura de estudos acerca urbanismo de cidades internacionais base para se discutir soluções para a cidade de São Paulo. Propõe pensar-se nos melhoramentos a partir de três fatores: técnico, higiênico e estético. Do ponto de vista técnico, é evidenciada a importância da circulação, e Freire pontua como uma boa solução para São Paulo o que nomeia de “modelo vienense” (tendo como base “ringstrasse” construída em Viena no século XIX)2, ou seja,

um circuito exterior, representado pelas ruas Líbero Badaró, Benjamin Constant e Boa Vista (com 20m de largura), de onde partiriam as avenidas radiais para as regiões periféricas. Dentro do circuito, estimado por volta de 600x350m os percursos seriam feitos a pé. Em sua defesa do estético, é possível identificar ecos das leituras de Camillo Sitte e suas ideias de aplicação de preceitos da arte no ato de construção das cidades. Sua defesa pelo “pitoresco” presente na formação histórica de São Paulo resulta disso, com a predileção pelo urbanismo de matriz inglesa que valoriza as curvas, em detrimento daquelas soluções obtidas na intervenção haussmaniana. Daí surge sua principal crítica ao projeto de Neves, muito mais próximo ao caso francês. Por último, o que Freire aponta como fator higiênico refere-se principalmente a necessidade de áreas verdes pela cidade. Compara a cidade de Londres, que possui diversos parques espalhados pela cidade, com Paris em que o cenário seria oposto, evidenciando que o índice de mortalidade e de insalubridade é muito maior na cidade francesa. Nesse sentido, mais uma vez destaca a importância do projeto de ajardinamento do Vale do Anhangabaú, que teria função não só estética como também sanitária. Apesar de considerar seu plano melhor do que o elaborado por Neves, Freire pontua que carece ainda da discussão acerca dos melhoramentos uma base técnica. Acredita que a melhor solução para o caso de São Paulo, tomando como exemplo o projeto de Buenos Aires executado pelo arquiteto francês Bouvard em 1907, seja a contração de um especialista em urbanismo. De certa forma antecipa o que aconteceria, com a contratação mais tarde justamente de Bouvard para elaborar um estudo e plano para a área.


G

E

Scanned with CamScan

B

F H C

2. Mapa com melhoramentos de Victor Freire

3. Esquema do novo traçado de ruas A

RUA DO COMÉRCIO

Fonte: SEGAWA,Hugo.Prelúdio da metrópole arquitetura e urbanismo em São Paulo na passagem do século XIX ao XX.São Paulo : Ateliê Editorial, 2004. http://www.poli.usp.br/pt/a-poli/historia/galeria-de-diretores/201-prof-dr-victor-da-silva-freire-.html FREIRE, Victor da Silva. Melhoramentos de São Paulo. Revista Politécnica, São Paulo, v. 6, n. 33, 1911. p. 91-145 BERTONI,Angelo. A engenharia sanitária a serviço do urbanismo: a contribuição de Saturnino de Brito e Victor da Silva Freire para a construção dos saberes urbanos. Revista Risco, n° 22, 2015. Disponível em: http://www.revistas.usp.br/risco/article/view/124546

RUA DA QUITANDA

VA

O

N

*1869 (Lisboa, Portugal) †1951 (São Paulo, Brasil)

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U

Victor da Silva Freire

D

R

Freire especificou algumas de suas propostas de mudanças no qual buscavam o melhoramento da cidade, nos quais são: A – alargamento e nivelamento da Rua Líbero Badaró, ajardinando o lado ímpar e reconstrução do lado par. B – alargamento da Rua São João até a Rua Conselheiro Crispiano e nivelamento por meio de um viaduto no qual ligasse o Largo do Paissandu e a Praça Antônio Prado. C – prolongamento da Rua 11 de junho até a Santa Ifigênia. D – prolongamento da Rua Líbero Badaró em direção às Ruas Santo Amaro e Brigadeiro Luís Antônio. E – Ajardinamento do Vale do Anhangabaú. F – alargamento da travessa do Grande Hotel (Rua Miguel Couto) com a Rua São Bento. G – criação de um largo em frente da Igreja de Santo Antônio (Praça do Patriarca). H – prolongamento da Rua Boa Vista por meio da criação de uma nova rua, ligando até o Largo do Palácio (Pateo do Collegio)..1;2 Freire ainda analisa os problemas que a abertura da nova rua causaria: cinco ruas concorrendo no mesmo ponto.Para isso, propõe esquemas baseando-se mais uma vez em Sitte: o deslocamento de alguma das ruas produziriam uma solução não só melhor para circulação, mas também esteticamente.3

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1. Esboço de melhoramentos de Victor Freire

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Projeto de melhoramento, regulação ou expansão urbana

Victor da Silva Freire inicia em 1885 seu estudos em engenharia civil na Politécnica de Lisboa. Na Europa, trabalhou com a construção civil. Chega ao Brasil em 1895 para trabalhar na Superintendência de Obras Públicas e em 1899 é nomeado diretor em São Paulo. Peça chave nas decisões do espaço físico de São Paulo, além de ser decisivo na constituição do pensamento moderno urbanístico. Ocupa cátedras da Escola Politécnica de 1897 até 1933, ano em que torna-se diretor da instituição. Publica diversos artigos em revistas técnicas, ‘com temas relacionados à formação acadêmica e ao espaço da cidade e suas questões correlatas.


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São Paulo, Brasil

Projeto 1911

Realização 1911-1920

PLANO BOUVARD

Aline Dias Assoni Giovanna Ferraro Peres Mirella Marques de Oliveira

N

o final do século XIX, a área oeste do centro da cidade passa a ser ocupada por setores das elites, sendo as terras mais altas e distantes do vale do Tamanduateí no lado oposto da colina central. Isso se consolidou com a inauguração do Viaduto do Chá em 1892, pois ele faz uma comunicação “em nível” entre o centro da cidade, o bairro do Chá e a Estação da Luz. Com a valorização do espaço do viaduto, decidiu-se construir o Teatro Municipal. Nesse contexto, o Vereador Silva Teles sugeriu a indicação de um plano de melhoramentos para a região. Assim, diferentes projetos para a região do Vale do Anhangabaú e da Várzea do Carmo foram encaminhados para a prefeitura1. Em meio a uma disputa entre o governo municipal e estadual pela tomada de decisão dos projetos, foi proposta a contratação de Joseph-Antoine Bouvard, um engenheiro e arquiteto de reconhecimento internacional, para elaborar um plano para a cidade. Bouvard deixou-nos um relatório com seu parecer a respeito dos chamados “melhoramentos” de São Paulo. O processo de implantação do plano foi parcial e lento, devido à constante falta de recursos. A prefeitura privilegiou, dos planos de Bouvard, os tópicos considerados mais urgentes, nas imediações do Anhangabaú. O plano original de Bouvard, adaptado pela Diretoria de Obras Municipais, continha 4 linhas de ação: Várzea do Carmo; Parque do Anhangabaú; Centro Cívico; e Avenidas de comunicação com os bairros.

Várzea do Carmo

A várzea do Carmo era uma região industrial e pouco valorizada, onde o esgoto era despejado diretamente no rio Tamanduateí. Assim, procurando renovar o local, Bouvard propôs a criação de um parque (hoje Parque Dom Pedro II) em

conjunto com o futuro Palácio das Indústrias, atual Museu Catavento. A várzea sofria inundações frequentes do Rio Tamanduateí, que havia sido canalizado em 1887. Assim, o Plano Bouvard apresentou um projeto de aterramento e paisagismo, além de sugerir a concessão de terrenos na região para financiar a construção das obras propostas pelo plano2. Atualmente, o Parque Dom Pedro II está totalmente abandonado, sem uso, e requer manutenção projetual.

Parque do Anhangabaú

Bouvard apresenta duas propostas para as intervenções no Vale do Anhangabaú: uma propondo seu ajardinamento total e outra permitindo a construção de dois grandes corpos de edificação na Orla do Parque. A segunda variante é a realizada3. Além disso, sugeriu realizar algumas desapropriaçòes para desobstruir a vista que se teria para o vale. Os corpos edificados implantados no lado ímpar da libero Badaró são palacetes cujos proprietários possuíam concessões generosas demais, como o Conde Prates4.

Centro Cívico

Bouvard realizou modificações em projetos já existentes para a criação de um Centro Cívico onde hoje se encontra a Praça da Sé5. A praça teria um total de cinco edifícios públicos, além da abertura de uma esplanada em direção ao Largo de São Francisco. Em 1912 foi demolida a velha Igreja da Sé, e o espaço para o Centro Cívico começou a ser disponibilizado. No entanto, os projetos relativos ao Vale do Anhangabaú foram realizados com prioridade, pois havia uma questão de disputa e interesse do mercado imobiliário.


Projeto de melhoramento, regulação ou expansão urbana

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Nos anos 20, o debate do Centro Cívico tomou novos rumos com enfoques em outros pontos da região central, de modo que apenas a Catedral foi construída, sendo finalizada em 1954.

Avenidas de comunicação com os bairros

Algumas vias nos arredores do Anhangabaú foram alargadas e receberam aterramento, de modo a melhorar o tráfego na região e valorizá-las. As principais mudanças ocorreram na rua Líbero Badaró, que antes era conhecida como a rua dos prostíbulos e dos cortiços, sendo também um logradouro escuro e estreito. Outras vias que sofreram transformaçoes foram a antiga ladeira de São João, que conectava a nova Praça Antônio Prado e o Largo do Paissandu, e a Travessa do Grande Hotel (hoje Rua Dr. MIguel Couto), a qual era um ponto de passagem importante para quem chegava da Estação da Luz e ia em direção à hospedagem. Além disso, edifícios construídos a partir dessas mudanças tiveram que seguir a mesma legislação, para garantir uma unidade estética entre eles.

1. Perspectiva do Vale do Anhangabaú e arreadores, segundo o Projeto Freire-Guilhem, 1911. O plano Bouvard incorporou algumas partes de projetos já existentes para o local.

2. Plano da Várzea do Carmo criado por Bouvard, 1911. Nota-se o traçado orgânico do parque e o desenho do futuro Palácio das Indústrias.

3. Plano do Parque do Anhangabaú criado por Bouvard. Nota-se o espaço que seria deixado para a futura Praça do Patriarca, próximo aos palacetes do Conde Prates (proprietário de muitos terrenos na região).

4. Fotografia do Vale do Anhangabaú, 1913. O parque já havia sido implantado, assim como o novo Viaduto do Chá, agora de concreto. Nota-se os palacetes do Conde Prates e o mirante entre eles.

5. Centro Cívico projetado por Bouvard, 1911.

JOSEPH-ANTOINE BOUVARD *1840 (Saint- Jean-de-Bournay, França) †1920 (Marly-le-Roi, França)

Conhecido tanto como arquiteto quanto como engenheiro, Bouvard foi para Paris com 23 anos de idade e ingressou na escola de belasartes do atelier de Constant-Dufeux. Chegou a participar da guerra franco-prussiana, mas foi ferido, tendo de voltar para Paris. Passou a trabalhar cada vez mais em projetos de arquitetura realizados pela prefeitura, como o Palácio de Luxemburgo e o pavilhão de Flora. Foi nomeado arquiteto da administração central das Belas-Artes e das Festas, construindo diversas escolas e organizando as exposições da cidade, além de outras obras de grande porte, como a ponte Alexandre III.

Fonte: SEGAWA, Hugo. Prelúdio da Metrópole: Arquitetura e Urbanismo em São Paulo na passagem do século XIX ao XX. 3ª Ed. Cotia: Ateliê Editorial, 2000. SIMÕES JÚNIOR, José Geraldo. Anhangabaú: História e Urbanismo. 2ª Ed. São Paulo: Editora Senac São Paulo, 2004. MEISTER DRUCKLE: Porträt von Joseph-Antoine Bouvard, französischer Architekt. Disponível em: <https://www.meisterdrucke.com> Acesso em: 1 de maio de 2018 O ESTADO DE S. PAULO: Por pouco, nosso centro não ficou como o de Paris. São Paulo, 25 jan. 2013. Disponível em: <http://sao-paulo.estadao.com.br/noticias/geral,por-pouco-nosso-centro-nao-ficou-como-o-de-paris,988425>. Acesso em: 1 de maio de 2018.


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São Paulo, Brasil

Projeto (?)

Realização 1912-1917

VILA MARIA ZÉLIA

Isabel Santos de Melo Maysa Maria Guimarães

A

R. José Alves de Oliveira

R. do

2

R. Irmã Paula Loebetein

3

R. Vitor Siqueira Mingrono

R. Otávio Paris

R. Luis Francisco dos Santos

2

R. Silvio Passos

R. Mário Costa

1

R. Sebastião Pereira de Souza

s

zere

s Pra

Vila Maria Zélia, projeto realizado pelo arquiteto francês Paul Pedarrieux e edificado pelo industrial Jorge Street, localizada na rua dos Prazeres, foi fundada em 1917 no bairro do Belenzinho, zona leste da cidade de São Paulo, e inspirada nas vilas operárias inglesas, com o destaque para a vila de Saltaire, fundada em 1851, na cidade de Bradford na Inglaterra. A vila começou a ser construída no ano de 1912 e seguia as tendências de industrialização de outros bairros de mesmo caráter, como o Bom Retiro, Brás e Mooca. A principal característica comum entre eles é a proximidade com a malha ferroviária Santos-Jundiaí (São Paulo Railway) que escoava a produção de café, principal commodity econômica para o país na época. A Companhia Nacional de Juta (CNTJ) era o complexo industrial pertencente a Jorge Street, que passou a englobar a fábrica Maria Zélia, produtora de tecidos e sacaria de juta para a exportação do café, e a própria Vila Maria Zélia, que abrigava os seus operários. A construção da vila se insere em um período de intensas transformações econômicas, sociais e políticas, no país e sobretudo em São Paulo que concretiza a modernização dos setores urbanos. Nesse momento, é uma realidade a entrada da mão-de-obra estrangeira, na crescente atividade econômica industrial do estado, gerando a classe trabalhadora urbana, o operariado. A instalação das fábricas resultou portanto na formação de bairros e vilas operárias compondo um novo caráter de urbanização em São Paulo, especialmente nas proximidades dos ramais ferroviários. Com a consolidação do operariado na capital paulista, observase um incremento na demanda habitacional, contribuindo para a superlotação das habitações coletivas, os cortiços, que desde o século XIX, era a forma de habitação comum, uma vez que, condições melhores eram impagáveis. Visto isso, na tentativa que conter o problema habitacional e regular a mão de obra, industriais adotaram a iniciativa de construir vilas operárias nos arredores fabris, composta por habitações construídas em série. Uma das preocupações era a melhoria das condições de saúde, dado o elevado número de trabalhadores que faleceram por doenças causadas pela ausência do saneamento básico no período.

R. Adilson Farias Claro

4 R. Moraes Miguel

1. Diagrama da implantação sem escala.

Legenda Equipamentos Comunitários

1 - Capela São José 2 - Armazéns

Área Residencial

3 - Escola de Meninos

Espaços livres com cobertura vegetal

4 - Escola de Meninas

2. Fotografia da Rua Adilson Farias Claro (1917). Fonte: <http://www.saopauloantiga.com.br/vilamariazelia/>. Acesso em 16 de julho de 2018.


Projeto de habitação social

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O projeto é constituído originalmente por 200 casas geminadas de único pavimento além dos edifícios institucionais e comerciais como, creche, jardim de infância, farmácia, gabinete médico, restaurante, armazéns, casa de máquinas, campo de esporte, teatro, capela, entre outros. A vila possuía um traçado viário ortogonal que concentrava os serviços comunitários próximo ao acesso principal, e o restante das casas distribuídas em quarteirões, com recuos, que permitiam a presença de jardins, alinhados às calçadas. O leito carroçável não era pavimentado, porém havia tijolos justapostos no meio fio que faziam a delimitação das ruas. Os espaços livres com cobertura vegetal também faziam parte do projeto e concentravam-se junto ao acesso principal e próximas ao rio. Os edifícios, foram construídos em alvenaria de tijolo revestida com cimento e pó de pedra, e os de maior porte possuíam a estrutura de ferro fundido. As coberturas eram constituídas por telhas planas de cimento-amianto trazidas da Inglaterra, apenas nos chalés foram usadas as telhas tipo-Marselha. Com relação as plantas, podem ser divididas em 6 diferentes tipologias3: casas tipo com apenas 2 quartos e casas de esquina maiores com 3 quartos, sala, cozinha e banheiro externo. Os chalés, construídos em 1920, possuem banheiros com dimensões maiores. Na década de 30, a vila assistiu o fechamento da fábrica pelo INSS em função de dívidas fiscais. Com o encerramento das atividades industriais a posse das casas continuou com os antigos moradores e trabalhadores, que passaram a pagar o aluguel para o INPS (Instituto Nacional de Previdência Social, hoje o INSS), até o período de 19641968, quando passou a ser permitida a compra dessas casas. No ano de 1938, a empresa Goodyear comprou uma parte do terreno da vila, correspondente a fábrica de tecidos, a creche, o jardim de infância e 18 casas. Todavia, como o interesse da companhia era a ampliação de sua fábrica, demoliu esses imóveis. Apesar do significado histórico e cultural a Vila Maria Zélia passou por um processo de tombamento tardio, que iniciou em 1985, visto uma discussão no âmbito da demolição ou não da Escola de Meninas. Naquele ano o Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico (CONDEPHAAT) abriu o estudo de tombamento do local, e a partir de então as construções não poderiam mais ser alteradas ou demolidas. Todavia, esse estudo só foi concluído efetivamente em 1992 quando o CONDEPHAAT e o CONPRESP (Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Histórico, Cultural e Ambiental da Cidade de São Paulo), tombaram efetivamente o traçado urbano, a vegetação de porte arbóreo e o conjunto de construções. Não obstante o tombamento, houve mudanças significativas na Vila, pouquíssimos imóveis permaneceram próximos às condições de projeto originais. Um dos armazéns encontra-se muito danificado, sem o piso superior. O outro, também se apresenta em estado de ruínas, porém é um pouco melhor conservado e abriga outras atividades, com o Grupo XIX de Teatro. Ambas as escolas estão abandonadas e lacradas5. Já a Capela de São José, localizada de maneira central e próxima a entrada da Vila, permanece ativa. Assim como os demais equipamentos comunitários se apresenta bastante deteriorada, sobretudo com relação ao exterior.

Tipo A (74,75m2) Tipo B (74,75m2) Tipo C (110,40m2) Sala, quarto, cozinha, Sala, três quartos, cozinha Entrada lateral, sala, três banheiro, área de serviço e banheiro. quartos, cozinha, banheiro, e jardim. área de serviço e jardim.

Tipo A1 (81,65m2) Sala, dois quartos, cozinha, banheiro, área de serviço e jardim.

Tipo B1 (81,85m2) Tipo D (91,12m2) Sala, três quartos, Sala, dois quartos, cozinha, cozinha, banheiro. banheiro, área de serviço, jardim e varanda.

3. Diagramas das tipologias habitacionais da Vila Maria Zélia. Acervo DPH - Departamento do Patrimônio Histórico.

4. Escola de Meninos (1917). Fonte: <http://www.saopauloantiga. com.br/vilamariazelia/>. Acesso em 16 de julho de 2018.

5. Escola de Meninos (2018). Fonte: <http://www.saopauloantiga. com.br/vilamariazelia/>. Acervo pessoal.

JORGE LUÍS GUSTAVO STREET *1863 (Rio de Janeiro, Brasil) †1939 (São Paulo, Brasil)

Filho de um austríaco e de uma brasileira, estudou durante sua infância no Rio de Janeiro, e completou seus estudos na Alemanha. Em 1886, formou-se pela Escola de Medicina (RJ), e a exerce apenas até 1894, quando recebe de seu pai as ações da fábrica de sacaria de juta, e inicia sua atividade como industrial. A partir disso, foi eleito em inúmeros cargos em sociedades e em companhias relacionadas à atividade industrial. Em 1912, iniciou a construção da Vila Mária Zélia em São Paulo, e em 1927 fundou a Cia. de Tecidos de Algodão na Mooca (SP). Por fim, permaneceu no cargo de diretor-geral do Departamento Estadual do Trabalho de 1934 à 1936.

Fonte: BONDUKI, Nabil (1982), Origens do problema da habitação popular em São Paulo 1886-1918, in Espaço & Debates, n.° 5, São Paulo. Jorge Luís Gustavo Street: Breve Biografia. Disponível em: <http://www.jorgestreet. com.br/jorgestreet.html>. Acesso em 30 abril de 2018. MORANGUEIRA, Vanderlice de Souza. Vila Maria Zélia: Visões de uma vila operária em São Paulo (1917- 1940). São Paulo: USP, 2006. TEIXEIRA, Palmira Petratti. A Vila Maria Zélia: A fascinante história de um memorial ideológico das relações de trabalho na cidade de São Paulo. Fortaleza: ANPUH – XXV Simpósio Nacional de História, 2009.


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São Paulo, Brasil

Projeto 1917

Realização 1917 - 1919

BAIRRO JARDIM AMÉRICA

Guilherme Okasaki de Freitas Gustavo Ribeiro Lombo

O

Jardim América é atualmente um bairro-jardim localizado na região sudoeste do município de São Paulo. Idealizado por Raymond Unwin e Barry Parker na década de 1910, o bairro constituiu-se pioneiro no Brasil dos ideais do urbanismo inglês consagrado pelas teorias de Ebenezer Howard (Tomorrow, a Peaceful Path to Real Reform, 1898) e pela experiência concreta de Letchworth, a primeira cidade-jardim da história. Em Letchworth, Howard idealizava uma cidade-jardim como sendo uma alternativa para o caos urbano, proporcionando habitações dignas para as classes trabalhadoras, propondo habitações que seriam alugadas através de cooperativas. A cidade ofereceria recursos industriais e agrícolas, com jardins e hortas para a promoção de alimentação. No caso da experiência do Jardim América, as ideias propostas por Howard se esbarravam no conceito imobiliário pretendido pela empreiteira Cia. City, a qual buscava loteamentos para a venda à classes médias e altas da sociedade paulistana, abordando uma imagem arquitetônica cosmopolita de residências sofisticadas, não se preocupando com a busca por habitações destinadas aos trabalhadores. Além disso, Robert Unwin preocupava-se mais com o crescimento racional das cidades, deixando de lado a alternativa de autonomia e campestre de Howard. Com tais ideais confluentes, o Jardim-América reconhecia em si a lógica do mercado imobiliário, estabelecendo padrões de qualidade de vida para o ambiente construído e para as habitações através de normas e controles. No final do século XIX e início do XX, a cidade de São Paulo passa por processos de transformação profundos que alteram a dinâmica urbana da cidade. Com a crescente importância econômica como entreposto comercial e início de uma industrialização a cidade sofre diversas reformas e ten-

tativas de modernização de forma a conter e organizar seu crescimento populacional e expansão territorial. A cidade, na época, se configura pelo espraiamento de diversos núcleos urbanos descontínuos, fruto de entrepostos antigos (como Pinheiros e Santo Amaro), núcleos decorrentes da expansão ferroviárias e loteamento de antigas chácaras. A formação de loteamentos voltados às classes de maior poder aquisitivo também segue uma lógica de expansão, se afastando do “triângulo central”, que passa a concentrar atividades comerciais e de serviços, e voltando-se para novos loteamentos como o do Campos Elíseos, seguido pelo de Higienópolis e da Av. Paulista, iniciando um padrão de expansão num eixo Sudoeste da cidade. A criação do loteamento do Jardim América constitui esse eixo de expansão, porém apresenta um novo tipo de bairro. No projeto de Unwin e Parker, nota-se a prática das recomendações do Tudor Walters’ Report: a execução de ruas que favorecessem o trânsito local e restringissem as que cortassem internamente as áreas internas (art.50); a previsão de recuos das fachadas das casas feitos com grandes jardins a fim de protegê-las de poeira, odores e ruídos; a hierarquização das dimensões e larguras das ruas de trânsito local, as vias de interligação com outros setores e as de pedestres e a recomendação de pela criação de jardins internos no interior das quadras, acessíveis aos não moradores por trilhas de pedestres delimitadas por vegetação de forma a assegurar a privacidade (art.67). O planejamento do bairro subverte as normas urbanísticas da cidade na época, que só permitiam a implantação de grelhas quadriculadas, independente da topografia e contexto dos novos loteamentos. Essa configuração de loteamento se mostrava insuficiente, criando arruamentos com declividade acentuada e descontinuidades viárias, como observado


Projeto de bairro ou cidade nova

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até hoje na cidade de São Paulo. Portanto, a proposta de Parker constitui um desenho urbano e traçado viário muito mais sofisticado, criando continuidades no viário pré-existente, como por exemplo na continuidade da Rua Augusta. Apesar do caráter predominantemente residencial do bairro, Parker propõe a criação de uma praça central ao projeto, na confluência de quatro ruas diagonais e da avenida principal (Avenida Brasil), ao redor da qual estariam situados os edifícios públicos, como a igreja, teatros, escolas e uma área de esportes (mais tarde vendida, tornando-se o Clube Atlético Paulistano). Um centro comercial no cruzamento da Rua Colômbia com a Avenida Brasil também é proposto, limitando esse tipo de ocupação apenas nessa porção do bairro, que contaria 17 lojas e armazéns.1 Em 1917, Barry Parker chega a São Paulo e revisa o proje-

frustradas de transferir os custos de manutenção dos jardins internos para os compradores, a City obtém parecer favorável ao loteamento desses espaços em 1932, criando arruamento novo para a ocupação de alguns miolos de quadra, multiplicando o número de lotes inicial de 396 para 672.2 A construção de casas modelo também foi tomada como exemplo de um “padrão de qualidade” da ocupação do bairro, criando um imaginário para os futuros moradores da região sobre como seria essa forma ideal de habitar no bairro. A utilização da propaganda3 e criação de uma imagem de bairro ideal foi um artifício que garantiu o sucesso de vendas do bairro, sendo que essa ferramenta, com a criação de várias peças gráficas ilustrando um bairro “perfeito” foram pioneiras em São Paulo, e lançaram na cidade uma nova forma de venda no mercado imobiliário que se propaga até hoje.

1. Jardim América - 1919

2. Jardim América - 1941

to para o bairro, tomando em conta pressões da Companhia City e o próprio contexto cultural da cidade, visando atratividade para o empreendimento, retirando assim a proposta da área de edifícios público na praça central, e transferindo a área comercial para a divisa do loteamento com o viário pré-existente, na Rua Estados Unidos. Mais tarde, o caráter exclusivamente residencial do bairro é respaldado legalmente por um decreto municipal em 1929, proibindo a construção de edifícios não-residenciais, bem como a obrigatoriedade de recuo frontal, garantindo o caráter do bairro. Os jardins internos também sofrem alteração de projeto, sendo que passam a ter vielas de acesso diretamente das vias públicas, assumindo um caráter semi-público. Após muitas tentativas

BARRY PARKER

*1867 (Chesterfield, Inglaterra) †1947 (Letchworth, Inglaterra)

Richard Barry Parker estudou no Simmonds Atelier de Arte em Derby e no estúdio de George Faulkner Armitage em Altrincham. Em 1896, Parker entrou em parceria com Raymond Unwin. Eles aplicaram os conceitos do Movimento Arts and Crafts à diversos de seus projetos. Em 1904, participaram na criação de Letchworth, a primeira Cidade Jardim baseada nos princípios de Ebenezer Howard, que estava pessoalmente envolvido no projeto. Em 1914, a parceria de Parker & Unwin foi dissolvida. Parker continuou sua prática em urbanismo, dando assessoria em São Paulo, Brasil, em 1917-1919, trabalhando no projeto dos bairos paulistanos como Jardim América e Pacaembu.

3. Publicidade do Jardim América no jornal O Estado de S.Paulo, 9 de junho de 1935 Fonte: WOLFF, Silvia Ferreira Santos. Jardim América. O primeiro bairro-jardim de São Paulo e sua arquitetura. São Paulo, Edusp, Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2001. BACELLI, Roney. A presença da Cia. City em São Paulo e a implantação do primeiro bairro jardim. São Paulo: Policia Militar do Estado de São Paulo, Secretaria Municipal de Cultura, Departamento do Patrimônio Histórico, 1982. REALE, Ebe. Brás, Pinheiros, Jardins: três bairros, três mundos. São Paulo, Pioneira e EDUSP, 1982 SEGAWA, Hugo. Prelúdio da metrópole: arquitetura e urbanismo em São Paulo na passagem do século XIX ao XX. São Paulo, Atelie Editorial, 2000


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Bogotá, Colômbia

Projeto 1923

Realização (não executado)

PLANO BOGOTÁ FUTURO

Cláudia Aires de Sá Miranda Nathan dos Santos de Brito

A

elaboração do plano Bogotá Futuro tomou mais de 8 anos, desde sua proposta formulada por Ricardo Olano em 1917, no contexto do Primeiro Congresso de Melhorias Nacionais, até sua declaração como executável em 1925. A intenção do Congresso, que reunia funcionários públicos, representantes de grêmios, latifundiários, aristocratas e políticos, era discutir o desenvolvimento das cidades por meio da promoção de obras públicas, enfatizando-se temas como o transporte, organização, legislação e sanitarismo. O plano Bogotá Futuro se constituiu como um dos primeiros intentos de planejar uma cidade moderna conforme o City Planning, corrente de pensamento predominantemente norte americana sobre o planejamento das cidades, que tinha Nelson P. Lewis, autor que influenciou fortemente Olano, como importante expoente. Essa corrente de pensamento foi apresentada pela primeira vez na Colômbia por Ricardo Olano ante o Primeiro Congresso de Melhorias de 1917 em um “Estudo sobre City Planning”. Mais tarde, o engenheiro chefe do “Bogotá Futuro” Uribe Ramirez, influenciado também pelo autor austríaco Camilo Sitte, voltou a citar o City Planning, definindo-o como “a arte ou a ciência que guia o crescimento e o desenvolvimento de uma cidade, em conformidade com um plano que atenda às necessidades do comércio e das indústrias e às comodidades, conforto e saúde do público” (RAMÍREZ, 1924 apud GOOSSENS, 2018, p. 64). Depois do Primeiro Congresso, tomou força a ideia de levantar de maneira “científica” um plano para Bogotá e projetar sua expansão futura. Este processo demandaria visão urbanística e também um marco legislativo que possibilitasse a implementação do plano de urbanização futuro, ordenado ao município de Bogotá em maio de 1919 pelo governo da Cundinamarca. No ano seguinte este órgão iniciou a contratação de pessoal para definir os limites da cidade, porém só

em 1921 foram obtidos os créditos necessários para iniciar o processo. Depois do Segundo Congresso de Melhorias Nacionais, em 1921, uma junta integrada pelo Governador e pelo Secretário da Fazenda de Cundinamarca, pelo prefeito de Bogotá, pelo diretor de obras públicas municipais, por membros da Sociedade de Embelezamento e por Enrique Uribe Ramirez, diretor da Seção de Obras Públicas do Departamento, decidiu que o plano seria realizado pela Seção de Obras Públicas do Departamento. Em 1925, apesar de enfrentar dificuldades para tal, o plano foi aprovado pelo Conselho do Município; contudo, um mês depois de sua aprovação continuaram ocorrendo discrepâncias a respeito de algumas das suas determinações. Hoje se conservam duas versões de tal plano, a original de 1923 (Bogotá Futuro, Plano) e a sua atualização (Bogotá Futuro, Projeto) feita durante o processo de elaboração e aprovação do plano (1924 e 1925), além de um texto que o suporta e dois acordos de aprovação. “Bogotá Futuro” desenvolveu os conceitos sobre ruas, praças, parques e edificações de significação para a cidade, propôs o aumento da porcentagem de áreas livres e o chanframento das esquinas. Sua área de alargamento foi entre quatro e sete vezes a área da cidade existente de 7 hectares. Seu esquema deu continuidade ao traçado ortogonal existente, porém agregou uma nova hierarquia de avenidas que cruzavam diagonalmente o traçado, separadas entre si por cerca de 5 quadras. Esperava-se contribuir com o desenvolvimento industrial e facilitar intercâmbios comerciais entre as regiões produtoras e as praças comerciais urbanas por meio da conformação de uma rede de linhas arteriais. Uribe Ramírez concluiu que era necessário um sistema hierárquico composto por quatro tipos de via, e ressaltou a impor-


Projeto de melhoramento, regulação ou expansão urbana

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1. Taçado urbano com avenidas em diagonal, praças irregulares e cruzamento em angulos variáveis. Fonte: GOOSSENS, 2018, p. 67.

tância de quebrar a perspectiva infinita por meio de sinuosidades e de deslocamentos laterais nas vias. Segundo López (2016), apesar de o plano não ter se tratado de uma proposta estética urbana, ao impor uma ampla série de características técnicas, gerou uma limitação do trabalho arquitetônico que de certa forma constituiu como uma proposta estética, o que pode ser identificado em aspectos como a realização de estudos de perspectiva na colocação dos edifícios, jardins, monumentos, parques e praças artísticas e a delimitação de ângulos distintos e de praças irregulares nos cruzamentos das vias. O plano Bogotá Futuro evitava uma regularidade fatigante no tecido urbano, mediante sua estruturação ao redor de espaços abertos como as praças artísticas, as praças comerciais, as igrejas e as praças de mercado cobertas que se distribuiriam por toda a cidade. Se constituiria, assim, um sistema de espaços livres, a distâncias convenientes, unidos por avenidas articuladas1. Uribe Ramírez definiu uma visão de cidade na qual os quarteirões consistiam fundamentalmente de uma série predefinida de quadrados e retângulos; ademais, as construções e os espaços foram hierarquizados estabelecendo-se como de primeira, segunda, terceira e quarta classe. Essas definições afetariam o trabalho de engenheiros e arquitetos pois cada quadrado ou retângulo predefiniria a maneira como se podia ocupar ou não a quadra. De acordo com a sua vocação de conceber o espaço a partir da percepção, mais do que desde o traçado, definiu-se como norma que as esquinas deveriam ser chanfradas, uma determinação baseada no plano de Barcelona e a única relacionada à geometria dos edifícios a ser posta em prática no acordo que definiu Bogotá Futuro como norma vigente. Esta determinação foi a que mais deixou marcas na ci-

dade, tendo sido adotada não só nos bairros em construção mas também na renovação dos bairros antigos. Por meio do plano, se quis adiantar um adequado processo de urbanização que aportasse as infraestruturas de saneamento básico, espaços livres, abastecimento e escolas. Apesar de não ter sido colocado em prática, uma das mais importantes contribuições de Bogotá Futuro ao debate do urbanismo foi levantar que os problemas da cidade deveriam ser solucionados como um conjunto, não como situações isoladas. O grande empreendimento do plano implicou em questionar o estado de desenvolvimento e gestão das instituições de então, em prol da sua modernização. Em particular, o plano questionou o funcionamento das entidades governamentais participantes, o gorverno da Cundinamarca, que se viu obrigada a adquirir os equipamentos técnicos necessários, a detalhar os limites municipais, a confrontar o plano com a cidade existente edificada, a buscar suporte aos seus argumentos, e o próprio município de Bogotá, que se viu pressionado pela Sociedade de Embelezamento e de Engenheiros, os proprietários de terra e as companhias urbanizadoras. O plano Bogotá Futuro colocou em evidência as grandes contradições existentes entre os proprietário privados da terra e o planejamento da cidade, que em um processo, relativamente acelerado, demandava porções de solo para concessões coletivas. Apesar de não ter sido colocado em prática no desenvolvimento da cidade, o plano fez com que a administração conhecesse e tratasse de implementar novas e modernas formas de construção pública. Ademais, concedeu importância e autonomia ao bairro, ideia que contribuiu para a posterior constituição de bairros em torno de praças de mercado, relativamente autônomas e menos dependente do centro da cidade.

Fonte:

RICARDO OLANO

CASTRO, José Miguel Alba . El plano Bogotá Futuro. Primer intento de modernización urbana. Anuario Colombiano de Historia Social y de la Cultura, 2013.

Ricardo Olano foi o principal protagonista da transformação de Medellín na primeira metade do século XX, tendo fundado a primeira Companhia de ônibus municipal, participado da Sociedade de Melhoras Públicas da cidade, dirigido a revista local Progresso e promovido o Primeiro Congresso de Melhoras Nacionais. Atuou ao longo da vida em muitos campos como o comércio, a indústria, a atividade urbanizadora, a dirigência cívica e a política. Deu início à discussão do plano Bogotá Futuro em 1917, projeto que suscitou a incorporação de temas pertinentes para a modernização do país e que teve mais adiante o engenheiro Enrique Uribe Ramírez como seu diretor.

GOOSSENS, Maarten. Ideas para la planeación de la ciudad futura. Bogotá, 19171925. Bitácora Urbano Territorial, [S.l.], v. 28, n. 1, p. 61-70, ene, 2018.

*1874 (Yolombó, Colômbia) †1947 (Medellín, Colômbia)

LÓPEZ, Diego Arango. Similares en su diferencia. Un estudio comparativo de Bogotá Futuro y el Proyecto Orgánico para la urbanización del Municipio de Buenos Aires. Territorios, 2016. OSPINA, Adriana Marcela Sánchez . Política e Planejamento: Bogotá, trinta anos de práticas urbanísticas, 1926-1958, 2012.


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São Paulo, Brasil

Projeto 1924-1937

Realização 1937-1984

PLANO DE RETIFICAÇÃO DO RIO TIETÊ

Jessica Mari Hanao Juliana Alves Barbosa

O

plano de retificação do rio Tietê se insere em um contexto urbano dividido em 3 diferentes momentos de acordo com Delmar Mattes, no livro O Espaço das Águas: as várzeas de inundação na cidade de São Paulo, denominados: a etapa de saneamento, a etapa de enchentes, e a etapa do novo conceito de drenagem urbana. Correspondendo a um período que vai desde a metade do século XIX até o final do XX. Todas as etapas, em suma, foram geridas e estabelecidas em torno dos conceitos sanitaristas que vigoravam na época com grande importância. Desde as obras de infraestrutura urbana feitas por concessões a empresas privadas, a canalização dos rios, projetos de retificação para eliminação dos cursos meândricos, e propostas urbanísticas que visavam o afastamento das águas, todos elaborados visando atingir uma melhoria na saúde pública da cidade. Os primeiros projetos para retificação do rio Tietê foram elaborados pela Comissão de Saneamento do Estado de São Paulo, e tinham suas origens baseadas em dois pontos: conter a proliferação de epidemias e controlar o regime de águas, tornando áreas que antes alagavam, em terrenos ocupaveis. Em 1923, é criada a Comissão de Melhoramentos do rio Tietê, designando o engenheiro Saturnino de Brito para rea

1. Sobreposição de mapas do rio Tietê: atual e plano de Saturnino de Brito

lização dos estudos de retificação e canalização do rio, e a elaboração do projeto com orçamento das obras. Em seu projeto, Saturnino1 propunha a preservação da várzea, de modo a manter as áreas que acomodavam as águas das cheias. Apesar de sugerir que a valorização das terras privadas desse entorno tivessem retorno aos cofres públicos, não previa a construção de vias expressas ao longo do leito do rio. Sua proposta eliminava apenas as sinuosidades mais acentuadas, respeitando os trechos já retificados. Propunha o aterramento das porções mais baixas, aumentando a seção de vazão, e a implantação de dois lagos artificiais para retenção das águas. Pode-se perceber, também através da sobreposição da imagem do plano de Saturnino e do mapa atual do rio Tietê1, que os projetos iniciais para a retificação do rio estudavam soluções para os problemas de enchentes enfrentados atualmente. Soluções essas, que não foram implementadas devido a uma escolha de projeto baseada em fatores econômicos e políticos. Após a não implementação do plano proposto por Saturnino de Brito, a Comissão de Retificação do Tietê foi reconstituída e por indicação do prefeito Pires do Rio, o engenheiro


Projeto de melhoramento, regulação ou expansão urbana e professor João Florence de Ulhôa Cintra se tornou o novo representante. Para ele, a canalização do Tietê deveria ser aproveitada como um espaço público de qualidade paisagística, através da manutenção da forma meândrica e pelo tratamento de parque em suas margens. Ulhôa Cintra, então, revisa o projeto de Saturnino propondo algumas mudanças: aumento na largura do leito maior do rio; rebaixamento da altura dos diques; manutenção de uma certa sinuosidade proveniente do traçado original do rio; e a implantação de logradouros públicos ao longo das margens, com avenidas do tipo Parkway2.

39 Diferentemente do que impunha o contexto urbano da época, e apesar de terem sido levantadas diversas propostas por vários profissionais, as obras de retificação do rio Tietê tenderam àquelas que propunham usos urbanos para as margens do rio, subjugando questões relacionadas ao saneamento. Assim, as áreas marginais passavam a assumir uma importância cada vez maior, juntamente à acelerada expansão urbana da cidade de São Paulo e a necessidade de se implantar vias de circulação próximas ao centro da cidade. Devido a isso, áreas destinadas a terem maior cobertura vegetativa, nas primeiras propostas, agora eram ocupadas3, uma vez que os interesses políticos e econômicos tinham maior significado no processo de constituição do desenho da cidade. Na sobreposição entre os mapas do rio Tietê original e do rio Tietê atualmente4, percebe-se de maneira clara como o projeto de retificação mudou drasticamente seu formato, comprimento e principalmente sua abordagem. Com um desenho linear quase que em todo seu percurso, dando grande importância às de vias de trânsito rápido nas suas marginais, e áreas que antes eram parte do curso natural das águas ou que serviam-nas como local de acomodamento no período de cheias, tornaram-se lotes urbanizados, hoje grande parte ocupados com residências3.

2. Seção do rio Tietê, proposta por Ulhôa Cintra

Para o engenheiro, a cidade encontrava-se em uma situação de atraso indesculpável quanto a quantidade de respiradouros e espaços abertos para a população. Esse projeto2 previa uma maior planície de inundação, o que levaria a uma diminuição das alturas máximas das águas e um consequente aumento da valorização das terras edificáveis. Uma das principais mudanças foi a redução significativa da faixa reservada para as águas, o correspondente a ¼ do proposto pelo plano de Saturnino; tendo, portanto, como consequência o aumento de mais de 5.800.000m² para arruamento, edificações e para implantação do sistema viário.

3. Imagem do rio Tietê atualmente

4 . Sobreposição de mapas do rio Tietê: atual e original

JOÃO FLORENCE DE ULHÔA CINTRA *1887 (Campinas, Brasil) †1944 (São Paulo, Brasil)

João Florence de Ulhôa Cintra veio de uma família de personagens da sociedade campineira e paulista da época, tendo feito parte da elite paulista. Em 1911, formou-se engenheiro civil pela Escola Politécnica de São Paulo. Em 1925, foi chefe da Divisão de Urbanismo da Prefeitura e, em 1926 iniciou sua carreira como professor de hidráulica urbana na Escola Politécnica de São Paulo. Em 1938, tornou-se Diretor Geral de Obras do Município, na gestão de Prestes Maia, cargo em que permaneceu até 1944. Ulhôa Cintra teve uma importante trajetória como funcionário público, defendendo suas ideias, apesar de nunca ter se tornado uma figura pública.

Fonte: MATTOS, Delmar. O Espaço das Águas: As Várzeas de Inundação na Cidade de São Paulo. São Paulo: 2001. LUCCHESE, Maria Cecília. João Florence de Ulhôa Cintra: influências, amizades e profissão. Revista de Pesquisa em Arquitetura e Urbanismo. Instituto de Arquitetura e Urbanismo. P. 99-105, 2016. RIPOLI, Mariana Meidani. Entre o discurso e a prática: o embate de ideias e as práticas de intervenção do urbanismo paulistano para a várzea do rio Tietê. Dissertação de Mestrado, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2016.


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Havana, Cuba

Projeto 1925-1930

Realização 1927-1954

PLANO REGULADOR DE HAVANA

Elisa Zocca Carneiro Mariana Costa Pamplona

C

hamado durante a administração do presidente Gerardo Machado, o plano foi desenhado de 1925 a 1930 - durante uma das três viagens que Forestier fez à cidade de Havana. A equipe foi composta por cinco jovens arquitetos franceses, além de três arquitetos e dois artistas cubanos - algo que deixa claro como era essencial ter pessoas na equipe que fizessem parte da realidade do país para construir o plano. De forma geral, o projeto de Forestier consistiu em uma conjunto de avenidas, boulevards, passeios, que abrangiam toda a cidade e buscavam se conectar com os caminhos já existentes. Buscou-se alterar a paisagem da cidade com parques, praças, espaços abertos - em um processo de embelezamento e modernização de Havana. No entanto, as intervenções realizadas se concentraram principalmente no anel em que antes se localizava a muralha (demolida no século XIX) que cercava a cidade antiga, a Havana vieja, onde hoje se encontra a Avenida Bélgica1, antiga Avenida de las Missiones. Para Forestier - assim como para muitos paisagistas e urbanistas do século XIX - os parques públicos são como elementos fundamentais na formação da uma paisagem urbana agradável da cidade moderna. Para Havana buscou-se projetar um grande sistema de parques - que foi parcialmente construído de fato - sendo o mais importante o Grande Par que Nacional1, seguido de outros como o Parque Almendares1 ao longo do rio de mesmo nome; o Cemitério de Colón1 que seria transformado em um parque público; além de espaços verdes ao longo do anel que divide a cidade nova da antiga. Foi no projeto de avenidas como o antigo Paseo del Prado1, hoje o Paseo Martí, que Forestier mais obteve sucesso em seu objetivo de unir natureza, a arquitetura e a cidade. Começando no Castillo de San Salvador de la Punta1, a avenida conta com um grande espaço de passeio arborizado e

com bancos, entre seus dois sentidos. Além de passar por onde foi no início do século XX o Palácio Presidencial1, o Paseo termina no centro mais importante projetado pelo paisagista, o espaço do Parque Central1 e do Capitólio1. Ela forma, paralelamente à Avenida Bélgica o anel que separa a parte antiga e a parte nova da cidade - exercendo um papel central de organizador do espaço da cidade. Para o projeto do Capitólio e seus arredores o grupo de Forestier incorporou uma proposta anterior, assim como também fez em outras partes do plano. Apesar das semelhanças entre a edificação e seus pares em Paris e em Washington, o espaço se diferencia pela integração entre os edifícios da cidade e suas áreas públicas. Isso se aplica nos jardins do Capitólio, onde foi projetada uma esplanada monumental que dialoga com os outros elementos próximos também trabalhados pelo plano, como a Plaza de la Fraternidad1 e o Parque Central, além de outros edifícios significativos preexistentes. Outro grande foco do plano foi um complexo que integraria o Castillo del Principe1, o Campus da Universidade de Havana1 e o local previsto para o Centro Cívico1. Criando um eixo que seria totalmente conectado com as outras partes da cidades, os espaços formariam uma zona pública no centro da malha urbana voltada ao exercício da cidadania que convergiria para o grande centro cívico que atualmente é a Plaza de la Revolución. As reformas nas avenidas se estenderiam para uma conexão com o Malecón1 - grande avenida que contorna a cidade de Havana - cuja extensão também fazia parte do plano, e com a Loma de los Catalanes, hoje o Parque Florestal1. Pouco das avenidas foi de fato feito. A principal contribuição de Forestier na região foi no projeto de áreas dentro da cidade Universitária, como a disposição dos institutos e a escadaria central.


Projeto de melhoramento, regulação ou expansão urbana

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1. Mapa criado a partir do Google Maps. Os números correspondem a monumentos e as letras a ruas, citados no texto. Na legenda os lugares estão nomeados como no momento do projeto. 1- Grande Parque Nacional 2- Parque Almendares 3- Cementerio de Colón 4- Castillo de San Salvador de la Punta 5- Palacio Presidencial 6- Parque Central 7- Capitolio 8- Plaza de la Fraternidad 9- Castillo del Principe 10- Campus da Universidade de Havana 11- Centro Civico 12- Loma de los Catalanes A- Avenida de las Misiones B- Paseo del Prado C- Malecón

2. J. N. C. Forestier, “Esquema para o projeto do plano regulador de Havana e os arredores”. Fonte: LEJEUNE, Jean-François. The City as Landscape: Jean Claude Nicolas Forestier and the Great Urban Works of Havana, 1925-1930.

JEAN CLAUDE NICOLAS FORESTIER *1861 (Aix-les-Bains, França) †1930 (Paris, França)

Jean Claude Nicolas Forestier foi um paisagista francês que ficou conhecido por projetar o Parque da Cidade Universitária de Paris junto à Lucien Bechmann, além de uma série de serviços paisagísticos da cidade no início do século XX. Foi treinado por Jean-Charles Adolphe Alphand - importante participante da reforma de Paris de Haussmann - adotando as linhas de pensamento da reforma ao longo de seus trabalhos. Além disso, Forestier em sua vida participa de projetos de reformas e parques em cidades europeias como Sevilha e Ronda na Espanha, assim como em países da América latina como Cuba e Argentina.

Fonte: HARDOY, Jorge Henrique. La urbanización en America Latina. 1ª Ed. Buenos Aires: Editorial del Instituto, 1969. LEJEUNE, Jean-François. The City as Landscape: Jean Claude Nicolas Forestier and the Great Urban Works of Havana, 1925-1930. The Journal of Decorative and Propaganda Arts, Vol. 22, Cuba Theme Issue, pp. 150-185, 1996. Disponível em: http://www.jstor.org/stable/1504152. Acesso em: 22 de março de 2018. SERGRE, Roberto; COYULA, Mario; SCARPACI, Joseph L. Havana: Two Faces of the Antillean Metropolis. 2ª Ed. Chichester: Wiley, 1998.


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Rio de Janeiro, Brasil

Projeto 1926-1930

Realização (não executado)

PLANO AGACHE

Ana Beatriz Trindade Lima Júlia Miwa Acakura

A

té 1930, a cidade do Rio de Janeiro, então capital da República e maior metrópole do Brasil, era caracterizada por uma estrutura urbana desigual e dicotômica, na qual o núcleo urbano era privilegiado em detrimento das periferias e dos subúrbios. Devido ao crescimento urbano desorganizado, a prefeitura vigente, sob o comando do paulista Antônio Prado Júnior, convida o urbanista francês Alfred Donat Agache para a elaboração do Plano de Remodelação da Cidade1 (19261930), o primeiro Plano Diretor da cidade do Rio de Janeiro. Durante a década de 1920, a configuração territorial da cidade era fruto das contradições socioeconômicas responsáveis pela manutenção da hegemonia das elites da República Velha. Porém, o pacto de poder entre as oligarquias de São Paulo e de Minas Gerais perdia força paulatinamente com o surgimento e fortalecimento de uma sociedade urbana industrial. Além disso, a taxa de crescimento da cidade gerada pela migração campo-cidade e o crescente processo de favelização eram dois sérios problemas, até então, mascarados ou negados pelas gestões municipais anteriores. Sentindo-se ameaçadas, as classes hegemônicas buscam um meio de conter e controlar tanto a expansão da cidade quanto às

1. Perspectiva aérea do centro monumental proposto pelo Plano Agache

“classes perigosas”, consideradas responsáveis pela desordem urbana. Para Agache, o urbanismo é um campo de conhecimento que caracteriza-se pelo método empírico bem definido, reiterando seu caráter científico. Para entender o ente urbano é necessário estudá-lo profundamente, entender todos seus aspectos. Num primeiro momento, o Plano se constituiu de uma análise meticulosa das mais diversas características da antiga capital. Através da designação de zonas de densidade e utilização, ou seja, da distribuição racional das necessidades da vida urbana: habitar, trabalhar e repousar; o Plano Agache apresenta duas funções consideradas primordiais: político-administrativa, como capital federal, e econômica, como porto e mercado comercial-industrial do país. Este zoneamento2 era uma forma de impor a ordem na cidade, impedindo que o “caos” pudesse progredir livremente. Estas zonas dividem-se em: posto de comando (centro da cidade; bairros de intercâmbio ou de grandes negócios; bairros de abastecimento); bairros de produção (área para indústrias, rural e agrícola); bairros universitários; centros recreativos; e bairros residenciais de luxo, burgueses, e operários. Este último margeando a zona industrial, enquanto que para os bairros residenciais de luxo e de burgueses deveriam ser criados mecanismos legais de proibição de instalação de novas indústrias, além de incentivos à transferências das existentes para as zonas industriais a serem instauradas. O posto de comando seria o local de maior intervenção, pois é sugerida a construção de uma praça monumental resultante da desapropriação dos morros do Castelo e Santo Antônio, completando o ciclo de expansão do centro da cidade e descongestionando a Avenida Rio Branco com a criação de novas vias. Essas novas vias seriam a solução para a tal “falta de ossatura”, como o próprio Agache se referia à insuficiente e precária condição de circulação, ao permitir comunicações fáceis e transporte rápido para o centro urbano ou


Projeto de melhoramento, regulação ou expansão urbana

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2. Zoneamento proposto pelo Plano Agache.

para os locais de trabalho. O autor, então, propõe um plano de melhoramento dessas condições, com a construção de vias rápidas de ligação com o Centro; a criação de um Código de Obras e Construções, que estabeleça regras racionais para a expansão da região; obras de saneamento; a construção de parques e áreas verdes para o lazer e melhoria do ar dessas localidades; etc. Agache defendia a construção de vilas operárias dotadas de infraestrutura e serviços públicos. Não propriamente “cidades-jardins”, mas mais próximos a “subúrbios-jardins populares”: construções em escalas reduzidas junto de grandes áreas verdes, visando, principalmente, à melhoria da qualidade do ar e ao lazer de tal população. Entretanto, apesar de defender uma política e habitação eficiente, o urbanista não altera a lógica da distribuição socioespacial carioca: os bairros suburbanos continuariam sendo operários, ainda muito distantes daqueles considerados de elite, cuja qualidade de vida ainda seria muito superior àquela próxima da zona industrial. Por fim: as favelas. Questão de crescente atenção por parte do Estado e opiniões públicas, Agache as define como “conjunto de habitações precárias que se desenvolveram nos morros do Rio de Janeiro” cujo surgimento se deu por conta das dificuldades de ocupação e construção em um lote e à indiferença dos poderes políticos relativo às habitações da população carente. O urbanista prega pela sua total destruição, visto que elas representavam um grande e permanente perigo de incêndio e proliferação de doenças, e pela realocação da população às vilas operárias nas regiões suburbanas. O Plano Agache, então, pode ser considerado como estratégia de um exercício de poder através da oficialização da segregação de classes sociais no espaço por meio de um instrumento técnico-científico que é o plano urbanístico. Contudo, o plano nunca foi adotado integralmente, pois além de

ser considerado pelo próprio Agache oneroso e dispendioso demais para uma cidade terceiro-mundista, as mudanças de eixo político no país com a Crise de 1929 e a Revolução de 1930 resultaram na perda de poder da oligarquia cafeeira, a mesma que patrocinava o Plano Agache. A despeito de tudo isso, o Plano Agache ainda deixou fortes influências para o urbanismo brasileiro e a prática administrativa carioca. No campo legislativo, o primeiro Código de Obras do Distrito Federal (1937) foi largamente influenciado por suas ideias acerca do zoneamento. Caso o Plano Agache tivesse sido colocado em prática integralmente, a segregação social da cidade do Rio de Janeiro possivelmente teria se tornado ainda mais aguda do que a configuração que assumiu ao longo do século XX. As favelas, que de certo modo representam verdadeiros subúrbios em meio aos bairros mais elitizados, teriam sido completamente varridas dessas regiões e sua população transferidas para longe. Seu Centro estaria totalmente distinto, com avenidas atuais inexistentes e uma obra monumental voltada ao mar chamada “Porta do Brasil”. Com certeza teria muito mais áreas verdes do que hoje possui. Em suma, embora Agache tenha se preocupado com a questão da habitação, constituição de vilas operárias bem servidas de equipamentos públicos, transporte eficiente e de baixo custo, saneamento básico, boa circulação, e parques e praças para uma boa qualidade de vida, o urbanista elabora um projeto que segrega radicalmente as classes menos favorecidas daqueles mais abastados para uma cidade já favorecida geograficamente no sentido de estabelecer muralhas, graças à sua topografia natural. As favelas, únicas formas de contato mais próximos entre esses dois segmentos sociais tão distintos, desapareceriam no Rio de Janeiro, provocando uma ruptura muito mais profunda na forma urbana.

DONAT-ALFRED AGACHE *1875 (Tours, França) †1959 (Paris, França)

Alfred Hu­­bert Donat Agache foi um arquiteto francês, diplomado pela École des Beaux-arts de Paris em 1905, realizando em seguida o curso de sociologia do Collège Libre des Sciences Sociales, onde passa a ter amplo contato com as teorias sociológicas de Émile Durkhein. Agache foi também um dos arquitetos fundadores da Sociedade Francesa de Urbanistas no ano de 1911. Adquiriu fama e reconhecimento por ter planejado a urbanização de cidades brasileiras como Rio de Janeiro, Recife, Porto Alegre e Curitiba nas décadas de 1940 e 1950 em um amplo projeto financiado pela ditadura de Getúlio Vargas.

Fonte: MENDES, José Teles. O Plano Agache: Propostas para uma Cidade-Jardim Desigual. Revista Habitus - IFCS/UFRJ, Rio de Janeiro, v. 10, n. 2, p.116-127, Dez. 2012. PLANO AGACHE: A CIDADE DO RIO DE JANEIRO COMO PALCO DO 1º PLANO DIRETOR DO PAÍS E A CONSOLIDAÇÃO DO URBANISMO NO BRASIL. Disponível em: <http://observatoriogeograficoamericalatina.org.mx/egal10/Geografiasocioeconomica/Geografiaurbana/02.pdf>. Acesso em: 25 jul. 2018. PLANOS URBANOS DO RIO DE JANEIRO: PLANO AGACHE. Disponível em: <http:// planourbano.rio.rj.gov.br/>. Acesso em: 25 jul. 2018. ALFRED AGACHE. Disponível em: <http:// www.ebad.info/agache-alfred>. Acesso em: 25 jul. 2018.


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Santiago do Chile, Chile

Projeto 1929-1932

Realização 1934

PLANO REGULADOR DE SANTIAGO

André Alves de Brito Gonçalves Thor Castelli Assmann Vinícius Romano Santos

A

s iniciativas para tornar Santiago uma cidade mais moderna tiveram início já no século XIX, com Benjamín Vicuña Mackenna, mas este foi apenas o início de um processo lento e quase imperceptível em seu início, que contou com um esforço coletivo muito grande e teve seu apogeu alcançado na primeira metade do século XX com o Plano de Karl Brunner e posteriores aprovação e execução por Roberto Humeres. À época, a população em Santiago vinha crescendo cada vez mais e se expandindo para as outras comunas1, seguindo, mesmo que involuntariamente, o então esboço de modelo urbanístico radiocêntrico, o que gerou verticalização de algumas regiões e formação de moradias precárias e cortiços. A alta densidade apresentada contrastava com a característica geral da maioria das moradias da capital chilena: casas de um pavimento. Porém, essas contavam com uma taxa de ocupação muito alta, ou seja, as casas não possuíam áreas livres.

1. Grande Santiago - Distribuição das comunas ao redor da Comuna de Santiago (S).

Em meio a esse cenário, Brunner formulou o plano para Santiago, a partir do que já existia2 nela, realizando um estudo detalhado de cada parte da cidade e mantendo características gerais de alguns bairros, prédios importantes e alguns desenhos de via já pré estabeleci-

dos, assim como o desenho urbano reticulado, o que para o autor era uma marca já consolidada na cidade. a

b

c

2. Mudanças e adaptações na escala da quadra a partir do pré existente. (a) Quadras existentes, (b) quadras projetadas e (c) jardins projetados.

Começava então a ser elaborado o que ficou conhecido como Plano Regulador de Santiago de 1934, que foi realizado com base na primeira viagem de Brunner à capital, realizada em 1929. A partir de suas pesquisas e análises, criou um método de pesquisa que foi utilizado por outros urbanistas depois, separando a cidade em setores estruturais3, os quais, como o próprio nome diz, estruturam a cidade: centros de negócios, redes de vias, zonas residenciais, setor industrial, áreas verdes e o centro cívico. Cria os bairros operários, afastados das regiões centrais e próximos às zonas industriais, com habitações voltadas a um público de baixa renda, para abrigar os operários e suas famílias e dispõe quarteirões com jardins a cada 6 quadras, em média. Mas, adverte para os perigos dessas habitações, sobre as quais deveria haver um controle da densidade pois, caso contrário, seriam um perigo para a saúde pública, pois poderiam virar cortiços, como já citado e como


Projeto de melhoramento, regulação ou expansão urbana

3. Setores estruturais da Comuna De Santiago. A Avenida Diagonal que corta o mapa é a Avenida Libertador Bernardo O’Higgins (Alameda).

havia ocorrido na região central da cidade anteriormente. Já com relação às habitações de classe média, considerava positiva sua existêcia e extensão pois, devido às suas características gerais (casas térreas com quintais por volta), diferente das de baixa renda, já citadas, via-as como conformadoras de uma verdadeira cidade jardim, um símbolo do moderno. Por outro lado, as habitações de interesse social, deveriam ser consideradas no plano caso coformassem um traçado bem definido e uma arquitetura satisfatória. Outro ponto que possui força e é um dos pilares nas ideias de Brunner para Santiago é a questão do “Civic Art”, no qual os espaços públicos são valorizados e vistos como núcleos da cidade. Nesse contexto, há uma preocupação no projeto do Centro Cívico, onde o governo e outras edificações institucionais estariam localizados e em destaque em meio a trama da cidade. Dessa forma, o Palacio de La Moneda4, o qual abriga o Governo chileno, tem sua fachada mudada de posição, ficando voltada para um grande espaço e para a Alameda, criando uma nova centralidade na cidade. A valorização do Centro Cívico realça mais a importância de uma região historicamente conhecida não só para a formação de Santiago, mas para todo o Chile. Faziam parte dele um corredor de praças que iam desde a Plaza de Armas até o Palacio Cousiño. Largas vias de trânsito, assim como largas calçadas estruturavam o percuso, o qual realçava os espaços e as edificações. Além disso, a variedade de espaços públicos formados, somados aos grandes recuos previstos para as edificações e o limite do gabarito de altura das cons-

45 truções no entorno, aumentavam os ângulos de visão para os prédios, tornando-os mais atrativos. Brunner via o urbanismo como uma “obra de arte” e realizava com ele uma composição, como já dito, utilizando para isso a arquitetura. Esse então tratava do todo, levando em consideração não somente fatores físicos e econômicos no planejamento da cidade, mas também as marcas da civilização e da cultura. Acrescentou em seu projeto outra característica chave, já citada anteriormente, e de grande marca para Santiago: o projeto de espaços urbanos públicos. A ideia destes espaços é fomentar a urbanidade, ou seja, promover encontros, práticas urbanas e costumes do povo. Novas centralides foram criadas dentro desta nova Santiago, com os espaços públicos sendo protagonistas. Quanto às áreas verdes, pouco fez, pois segundo ele, a área verde de Santiago, à época 12%, já representava uma porcentagem maior do que a média nas cidades modernas (7%), mas incluia o projeto de áreas verdes para regiões de futura expansão, na “Grande Santiago”1. Já dava indícios de ideias de implantação de uma rede de trens, para ligar as áreas mais afastadas às centrais, devido ao alto congestionamento na cidade. A partir dessas ideias começava a se redesenhar um presente e um futuro para uma Santiago mais moderna e com traços europeus. Construções neoclassicas, altura média dos edifícios padronizada , avenidas largas e arborizadas e ainda algumas diagonais, rasgando o quadriculado. Hoje em dia pode-se notar muitas das ideias deixadas por Brunner, as quais foram levadas adiante e muitas delas implementadas, assim como muitas outras modificadas para atender à necessidades da população, políticas e/ou financeiras.

4. Vista aérea de parte do Bairro Cívico, com o Palacio de La Moneda centralizado na imagem.

KARL BRUNNER

*1887 (Perchtoldsdorf, Áustria) †1960 (Viena, Áustria) Karl Brunner é um arquiteto e urbanista nascido no ano de 1887 em Perchtoldsdorf, Áustria. Formou-se em 1912 pela Technischen Hochschule Wien e no final da década de 20 iniciou sua ida a América latina. De 1929 a 1932 permanece em Santiago, onde, além de ser professor na Universidade do Chile, é conselheiro técnico de obras públicas. Seus feitos mais importante no país foram a criação do Plano Regulador de Santiago (1929-1932) e sua execução em 1934. Além disso, é responsável pela organização do primeiro Congresso Nacional de Arquitetura e Urbanismo da América Latina. Em 1932 iniciou sua estadia na Colômbia, onde também colecionou cargos públicos e lecionou em grandes universidades. Além dos diversos planos urbanísticos realizados no país, o arquiteto ainda escreveu seu livro mais conhecido no local, o “Manual de Urbanismo”. Em 1948 retorna a seu país de origem, ocupando o cargo de assessor do município de Viena, com o objetivo de reconstruir a cidade no PósSegunda Guerra. Foi ainda neste cidade que, em 1960, o arquiteto vem a falecer.

Fonte: ALMANDOZ, Arturo. Planning Latin America’s Capital Cities, 1850-1950. 1ª Ed. Londres: Routledge, 2002. IRARRÁZAVAL C., Raúl. Santiago: Un plan para una ciudad armoniosa. 1ª Ed. Santiago de Chile : Ediciones Universidad Católica de Chile, 1985. BRUNNER-LEHENSTEIN, Karl Heinrich. Manual de Urbanismo v.1/v.2. 1ª Ed. Bogotá: Imprenta Municipal, 1939 . MATAS, Jaime. Las Plazas de Santiago. 1ª Ed. Cidade: Universidad Católica de Chile, 1983. https://www.archinform.net/arch/26321.htm ACESSADO EM 31/03 http://www.revista180.cl/index.php/revista180/article/view/29 ACESSADO EM 31/03


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Montevidéu, Uruguai

Projeto 1930-1930

Realização (não executado)

PLANO REGULADOR DE MONTEVIDÉU

Alessandra Fudoli Veridiana Benfuela Tersi

C

onfigurando-se como uma metrópole no início do século XX, contendo cerca de meio milhão de habitantes, Montevidéo passa a portar também os problemas advindos do adensamento acelerado, no qual a ‘‘cidade ampliada’’ expandiu-se para além dos limites urbanos. Dentre estes, lê se em uma revista da época, ‘‘Arquitectura de 1919’’, a falta de caráter de um crescimento monótono guiado pelo mercado imobiliário e, portanto, sem um ordenamento planejado da cidade, sem um traçado regular e adaptação a seu contexto. Em conjunto com tais críticas, expandia-se a ideia de modernidade entre os intelectuais, em sintonia com os movimentos que vinham acontecendo em outros países, como o Congresso Internacional da Arquitetura Moderna. Enquadra-se neste quadro o Centenário do Jura da Constituição, no qual a da elite econômica e os principais setores políticos visam celebrar a república e principalmente o passado da nação como forma de afirmar sua identidade e, a partir disso, projetar um futuro, inserindo-se na modernidade. Como capital, aspirava-se que a cidade representasse o país enquadrando-se nas novas discussões e incorporando as novas concepções. Ao mesmo tempo que iniciou-se a conformação de uma disciplina ligada ao pensamento da cidade, o urbanismo, a colocação da mesma em prática passou a ter apoio da elite e do governo - e, inclusive, tais profissionais passaram também a ter espaço no governo -, os quais os interesses alinhavam-se, o que legitimou a conformação da mudança acadêmica. Dentro desse contexto, Cravotto foi convidado pela Comissão Prestigiadora, composta por agentes do Centenário, para desenvolver o anteprojeto que então seria doado ao Conselho Departamental de Montevidéo. O Plano Regulatório é, então, nutrido por uma ampla gama de recursos, constituídos não só pelo patrocínio, mas também pela compilação

de documentos de experiências anteriores e também o conhecimento adquirido a partir de experiências novas, como estudos de circulação, de parques e a construção recente de bairros. Além disso, devido a bolsa que Cravotto ganhou para uma viagem acadêmica aos Estados Unidos e Europa, pode-se afirmar as múltiplas referências externas ao mesmo: ‘‘A sistemática orgânica do urbanismo alemão, a planificação regional e os desenvolvimentos da cidade jardim, as buscas de caráter simbólico da Arte Cívica, são gerenciadas a partir de uma posição integradora.’’ (FUNDAÇÃO CRAVOTTO, 2015) O ordenamento da cidade até então se dava somente por meio de requisitos legais de edificação e dimensionamento de vias públicas. Os múltiplos aspectos da dinâmica da cidade não eram analisados em conjunto e, Cravotto, pelo contrário - a partir do urbanismo francês de Poëte, com quem estudou -, propôs a leitura da cidade como organismo complexo e vivo. O plano considera um espaço de 13 mil ha. e divide-o em três grandes áreas1: central, exterior e extra urbana, que devem ordenar o desenvolvimento da cidade e que são limitadas por um parkway - largas vias arborizadas que não diferiam muito do pré-existente e que se ligavam com as rotas regionais, o que constitui uma retomada da proposta do alemão Joseph Brix de um concurso anterior da cidade. Este espaço delimitado era destinado ao número de três milhões de habitantes. Externo a ele seria disposto um conjunto de cidades-jardim distribuídas de acordo com a organização do meio urbano proposta no plano. Ao longo do parkway da área central propõe-se a construção de arranha-céus habitacionais juntamente com a área verde, ordenando o adensamento na primeira área antes que se chegasse a ocupar a segunda ou a terceira. A implementação de áreas verdes remete à influência de Le Corbusier, ao entender as mesmas


Projeto de melhoramento, regulação ou expansão urbana como áreas de recreação e bem estar fundamentais à função coletiva, isto é, ao trabalho, além de contribuir à insurgente ‘‘sensibilidade civilizada’’ da burguesia. A organização é dada de maneira racional, planeja-se uma especialização funcional das zonas2 da cidade em: áreas industriais; de habitação coletiva; de habitação econômica; de habitação para classes mais altas; de arranha-céus e parques; de negócios. As zonas seriam exclusivas à sua destinação e, com isso, o plano visa tornar a cidade mais eficiente. Para não segregá-la, foram pensadas zonas de “infiltração”. A disposição dessas zonas deve ser relacionada com sua utilização - logo, um bairro operário se consolidaria junto às zonas industriais. Como consequência, os deslocamentos seriam encurtados. Em cada zona compreende uma rede viária de intercomunicação ligada à rede viária arterial, o que define as quadras e o traçado proposto, além dos fatores específicos para cada zona - como incidência solar, topografia, saneamento e a economia. A hierarquia viária buscava implementar poucas e amplas rotas com interferências minimizadas, as quais seriam mais largas quanto mais densa fosse a região onde se encontrava. Sobre as questões do transporte público, a equipe propunha a criação de áreas dedicadas a estacionamentos e a instalação de um metrô. Essas medidas relacionadas à mobilidade eram ainda complementadas pela proposta da criação de um novo centro para a capital, que seria localizado no centro de gravidade da área determinada por Cravotto - na chamada zona de Tres Cruces. Esta coincide com o encontro das grandes artérias radiais, as quais conectam a cidade às rotas para o interior e exterior do país. E, por fim, estas se ligariam a um sistema de vias concêntricas. O plano, enfim, não foi concretizado. Por esta causa, é lido de diversas maneiras: uma delas interpreta-o como falido por ser utópico e parte de uma trajetória frustrante de iniciativas da cidade; outra, ‘‘supõe que se afaste da visão do plano como tarefa material e o entenda como contribuição sensibilizadora e didática, que propõe discussões sobre o urbano e o entende como projeto coletivo a ser construído.’’ (FUNDAÇÃO CRAVOTTO, 2015). Assim, além de contribuir para a consolidação do campo do urbanismo, orientando-o a respeito de como atuar e se utilizar dos avanços técnicos não só em meios acadêmicos mas também institucionais, o plano também está fortemente ligado à construção do imaginário urbano, como forma de legitimar o equipamento institucional que tende a viabilizá-lo. Tal equipamento é incentivado a comprometer-se, uma vez que o desenvolvimento da cidade é entendido como a expressão do coletivo social.

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1. Área delimitada: central (A), exterior (B) e extra urbana (C) e vias de conexão do exterior à cidade

2. As zonas: C - zona comercial e de negócios I - zona industrial h - zona de habitações coletivas e - zona de habitações econômicas H - zona de residencias de classes altas P - infiltração de zonas A- arranha-céus

Fonte:

MAURICIO CRAVOTTO *1893 (Montevidéu, Uruguai) †1962 (Montevidéu, Uruguai)

O arquiteto se formou pela Faculdade de Arquitetura de UdelaR em 1917, na qual recebeu vários méritos. Além de dirigir uma equipe de técnicos para a formulação do Plano Regulador de Montevidéu em 1933, foi o ganhador do concurso para o Plano Regulador de Mendoza, na Argentina. Este foi considerado um dos primeiros arquitetos que conseguiu através da prática, ensino e pesquisa visualizar os problemas modernos e antecipá-los. Assim, Cravotto se enquadra no pioneirismo modernista no país e este tem como característica o fato de integrar seu valor estético à sua concepção de cidade, deixando sua própria marca no urbanismo uruguaio.

ARANA, R; BOCCHIARDO, L; LENZI, R. A. El Montevideo de La Expansion. Montevideo: Ediciones de la Banda Oriental, 1986. CARMONA, L; GÓMEZ, M. J. Montevideo: Proceso planificador y crecimiento. Publicaciones web, Universidad de la República, Uruguay. 2013. CARMONA, L. Ciudad Vieja de Montevideo 1829-1991, Transformaciones y propuestas urbanas. Montevideo: Universidad de la República, Fundación de Cultura Universitaria, 1997. RODRÍGUEZ, A. G. Éramos Tan Fuertes. Montevideo: Ediciones Cruz del Sur, 2016. SOUZA, L. Revisita al Plan Regulador para Montevideo de 1930: Invenciones y redes en torno al advenimiento del urbanismo científico en Uruguay. Registro, Revista de Investigación Histórica, 13(2), p.63-82, jun 2017. CURRICULUM VITAE MAURICIO CRAVOTTO. Disponível em: <http://cravotto.org/wp-content/uploads/2016/03/ 1604021-Fundacion-Cravotto-CVMauricioCravotto_p.pdf>. Acesso em: 1 maio 2018. EL PENSAMIENTO URBANÍSTICO DEL ARQUITECTO MAURICIO CRAVOTTO. Disponível em: <http://rephip.unr.edu.ar/ bitstream/handle/2133/6906/Carlos%20Baldoira.pdf?sequence=3>. Acesso em: 1 maio 2018.


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Goiânia, Brasil

Projeto 1933

Realização 1933-1935

PLANO DA CIDADE DE GOIÂNIA

Raissa Melo de Souza Vanessa de Faria Braga

A

formação de Goiânia ocorre a partir do plano urbanístico de Attílio Corrêa Lima, de 1933 a 1935, complementado por planos posteriores de Armando Augusto de Godói (1935 a 1938), de Luís Saia (1959 a 1961), de Jorge Wilheim (1969 a 1971) e o da Engevix Engenharia (1990 a 1992). Num contexto de intenção de formação de uma sede do poder econômico, político e religioso da região central do país, em 1930, forma-se uma comissão para escolha do sítio. Nessa comissão, com uma função social e política, atuaram em várias frentes: religiosa, civil, urbanística, física, sanitarista, de segurança e econômica (RIBEIRO, 2004). Analisando, principalmente, aspectos físicos, como topografia, hidrografia e clima, optou-se por construir a nova capital nos arredores de um povoado chamado Campinas, sendo o governo responsável por indicar um responsável para organizar o plano da nova cidade. A comissão defendeu que Campinas estava “de fato situada em uma região indiscutivelmente preparada pela natureza para servir de sede de uma moderna cidade”. Em 1933, Attílio Corrêa Lima foi contratado para a elaboração e execução dos projetos, sendo estes elaborados, tendo como base a área previamente escolhida, porém com um pequeno deslocamento no eixo demarcado, para proporcionar melhores condições econômicas e técnico-topográficas. O autor do projeto justificou essa escolha, afirmando que “sendo a estrada a artéria vivificadora do organismo urbano, tudo indicava que o núcleo central devia ser atravessado por aquela”, revelando a pretensão de aproximar a área de projeto à estrada de rodagem próxima. O projeto lida com diversas referências urbanísticas trabalhadas naqueles anos, sendo evidente o conhecimento de Attílio Correa Lima dos preceitos da Carta de Atenas ou das discussões em torno das unidades de vizinhança e das cidades jardins, a essa altura presentes em muitos contextos. Segundo Ribeiro (2004), Attílio utilizou como modelos para referência projetual as cidadesjardins de Howard e a cidade industrial de Tony Garnier, porém procurando adaptar tais ideias ao local, o que resultou num modelo diferenciado. Dessa forma, Attílio adequou o projeto da melhor maneira possível à topografia, considerando as necessidades de tráfego e o zoneamento, setorizando a cidade. Assim, o projeto “[...] demonstrava que o traçado em si não

representava uma ordem social ou regime político, mas que as potencialidades funcionais e expressivas advinham do uso.” O projeto configurava dois centros, um administrativo, outro comercial. O centro administrativo concentrava os edifícios federais, estaduais e municipais. Era formado pelo cruzamento de 3 avenidas principais, com tratamento de “avenidas-parque” e apresentavam o efeito monumental do princípio clássico. Já o centro comercial, localizado mais ao norte, conectava-se ao centro de Campinas, já anteriormente consolidado. Era composto por uma rede de ruas e avenidas ortogonais de fácil circulação viária, em que todas as quadras continham áreas públicas internas, para facilitar o abastecimento do comercial e estacionamento de veículos particulares. A partir da planta de urbanização1 de 1947 e do mapa atual de Goiânia2 de 2018 pode-se observar que o padrão territorial do núcleo original da cidade não sofreu grandes alterações ao longo do tempo e dos planos urbanísticos que se seguiram. Quando se observam os dois mapas numa escala menos detalhada, como a apresentada acima, o traçado urbanístico de Attílio destaca-se mesmo em meio a intensa urbanização que ocorreu nas décadas seguintes e que se expande ainda atualmente. As avenidas em formato de asterisco partindo de pontos centrais, os anéis periféricos, as grandes avenidas-parque com o efeito monumental, como a atual Avenida Goiás3 (que inicialmente ligava o centro administrativo ao centro comercial e, atualmente, interliga esses dois centros com toda a região norte de Goiânia), são características que evidenciam tanto o traçado quanto às influências de Attílio. Já quando se observam os dois mapas numa escala mais próxima, mais detalhada e com um olhar mais atento, é possível identificar o desmembramento de alguns grandes lotes, especialmente no setor leste, no qual o controle do uso do solo não funcionou plenamente, pois essa área foi ocupada pelos operários que construíram a cidade (inicialmente de modo provisório, mas depois definitivo e foram regularizados entre 1947 e 1954). O centro administrativo permaneceu


Projeto de bairro ou cidade nova

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1. planta de urbanização de 1947 (Fonte: RIBEIRO, 2004)

2. mapa de Goiânia 2018 (Fonte: google maps, 2018)

como no plano, com a prefeitura municipal localizada ainda nessa área. O centro comercial, por sua vez, expandiu pela cidade, não restringindo-se apenas à área planejada mas ampliando-se conforme a demanda urbana. Além disso, é notável também o alargamento de algumas vias que ligam com as novas áreas da cidade e a construção de vias expressas, como a Marginal Botafogo, que cruza de norte a sul a área do plano, no que aparenta ser um fundo de vale, dividindo marcadamente o setor leste dos outros setores da cidade. Apesar dessas mudanças, ainda é bastante evidente o traçado urbanístico de Attílio bem como uma de suas grandes inspirações: a cidade-jardim, que ainda é uma marcante característica

da cidade de Goiânia, que acabou por se tornar parte do estilo goiano de se morar e que se replicou por toda a cidade. Para Attílio isso era tão importante que todas as quadras foram planejadas com espaços verdes livres por questões de qualidade de ar e qualidade de vida. Numa análise atual da cidade de Goiânia, Ribeiro (2004) afirma que, apesar de algumas exceções e contradições, a cidade está dentre as melhores capitais do país, uma das que apresenta melhores condições físicas e urbanas, proporcionando qualidade de vida aos goianos, fato resultante do trabalho de Attílio Corrêa Lima em seu plano.

3. vista perspectivada av. goiás e monumentalidade (Fonte: google maps, 2018)

ATTÍLIO CORRÊA LIMA * 1901 (Roma, Itália) † 1943 (Rio de Janeiro, Brasil)

Attílio Corrêa Lima era engenheiro-arquiteto, urbanista e paisagista, sendo o primeiro urbanista brasileiro formado em Paris. Seu pai era professor da Escola Nacional de Belas Artes do Rio de Janeiro, onde Corrêa Lima se matriculou como “aluno livre” em sua adolescência. Seu projeto mais conhecido foi o plano urbanístico de Goiânia, concebido no mesmo ano do encontro que resultou na Carta de Atenas, em 1933. O projeto revela sua formação urbanística formal na escola francesa, mas com as novas proposições da urbanística moderna, com a intenção clara de buscar o efeito monumental, como em Versalhes e Washington, através dos eixos de circulação.

Fonte: BARREIRA, Aluísio Antunes; DE DEUS, João Batista. Goiânia - Da utopia à construção do lugar. Goiânia: UFG, 2006 DINIZ, Anamaria. Goiânia de Attilio Corrêa Lima (1932-1935). Ideal estético e realidade política. Brasília: UnB, 2007. DINIZ, Anamaria. O itinerário pioneiro do urbanista Attilio Corrêa Lima. UnB, 2015. RIBEIRO, Maria Eliana Jubé. Goiânia: os planos, a cidade e o sistema de áreas verdes. Goiânia: UCG, 2004. VIEIRA, Patrick Di Almeida. Attilio Corrêa Lima e o Planejamento de Goiânia. Tese doutorado. UnB, 2015. OLIVEIRA, Maria das Mercedes Brandão. Disponível em: <http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/06.065/419> Acesso em 1.5.18.


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São Paulo, Brasil

Projeto 1938-1942

Realização 1942-?

CONJUNTO IAPI VÁRZEA DO CARMO

Aline Dias Assoni Giovanna Ferraro Peres Mirella Marques de Oliveira

O

Conjunto Residencial Várzea do Carmo, projetado por Attílio Corrêa Lima em conjunto com Alberto Mello de Flôres, Hélio Uchôa Cavalcanti e José Theodulo da Silva, previa na construção de 4.038 unidades habitacionais alojar 22 mil pessoas (SOUZA, 2007). Grande parte de sua relevância para a história da habitação social no Brasil provém não somente desses números que pretendia atender, sem deixar de preservar a qualidade de vida dentro de seus apartamentos, mas também pelas propostas inovadoras que apresentava. De acordo com BONDUKI, 1998, a era Vargas foi marcada pela mudança nas dinâmicas da produção habitacional no Brasil. É nesse momento que o Estado passa a intervir diretamente nessa questão com políticas públicas para construção de conjuntos residenciais voltados para a população de baixa renda. Essa preocupação do governo é resultado da então mudança de regime econômico a qual se incentivava no país: as indústrias vinham crescendo nas grandes cidades. No contexto de inserção da classe operária na economia, o reconhecimento dessa figura como agente urbano fez-se ouvir com a providência de condições mínimas para a reprodução de sua força de trabalho através de garantias trabalhistas e da criação de políticas públicas para essa classe trabalhadora.A pressão operária, por meio de grandes greves e mobilizações, voltou-se para

1. Implantação do projeto e construção efetiva. (MENEGHELLO, 2016)

além das condições trabalhistas; também para a construção e oferecimento de habitação pelo setor público. A pesquisa de Pierson, realizada em 1941, aponta as condições e moradia dos operários como insalubres, com problemas de fornecimento de água e de superlotação de quartos (AMADIO, 2004). Conforme a população urbana crescia com a industrialização a qualidade das moradias retraiu e a insatisfação popular com o setor privado da construção civil cresceu sobremaneira.

2. comparação: projeto e construção (MENEGHELLO, 2016) Com isso, a interferência do Estado se deu por duas vias principais (AMADIO, 2004): a primeira delas veio do âmbito legal, na forma de alterações nas regras de locação de imóveis; o sistema em que grande parte da massa urbana operária garantia sua moradia. A fim de atender o público dependente desse sistema e controlar os preços dos aluguéis, o governo Vargas aprovou, em 1937, a lei federal que regulamentou o loteamento de terrenos privados, e, em seguida, em 1942, determinou o congelamento dos valores de locação, através da chamada Lei do Inquilinato. Contudo, o efeito dessas medidas foi longe do esperado. De acordo com BONDUKI, 1998, com a crise da habitação dos anos 1940, ao invés de se observar uma melhora na situação, elas se manifestaram como um desestímulo à produção habitacional privada. Esse fator, somado à falta de iniciativas estatais, provocou o espraiamento da população de baixa renda para a periferia acompanhado, geralmente, da prá-


Projeto de habitação social

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tica de autoconstrução. Assim, se justifica a expansão horizontal da cidade e o aumento das ocupações irregulares do período. A segunda via tomada pelo Estado foi a construção de conjuntos habitacionais em áreas centrais da malha urbana, financiados através do capital dos Institutos de Aposentadoria e Pensões (IAPs) em 1933 (AMADIO, 2004). Sua regulamentação assegurava que os recursos arrecadados de assalariados e empregadores de cada área deveriam ser aplicados em algum tipo de investimento, garantindo, assim, o aumento contínuo do fundo. Em 1937, esse fundo começou a ser utilizado para financiar a construção de habitação popular: até 1950 foram construídas 17.725 unidades de interesse social (SOUZA, 2007) ao longo do território nacional. Apesar dos números expressivos, a parcela implantada nos bairros centrais de São Paulo foi modesta em comparação com a dimensão real do problema da habitação na cidade (AMADIO, 2004). Assim, essa estratégia teve seu potencial e sua efetividade reduzidos na solução da crise de moradia do fim da primeira metade do século XX. A sequência que se segue de figuras representam: no 1º quadro, da esquerda para a direita, o projeto original; No 2º, o que foi construído e no 3º, a situação atual do conjunto. Neste, a autora preenche com branco o interior da quadra para mostrar como os muros, posteriormente construídos, quebram a dinâmica fluida originalmente previstas para os espaços livres. Nesse contexto todo é que se insere o projeto “Conjunto Residencial Várzea” que propunha, em um grande lote localizado em área central da cidade, elevado número de habitações. Financiado pelo IAPI (Instituto de Aposentadoria e Pensões dos Industriários,

3. Croqui em vista aérea do projeto (BONDUKI, 2012)

4. Croqui da rodoviária interligada ao hotel, proposta inovadora do projeto (BONDUKI, 2012) o projeto contava com uma imensa infraestrutura de espaços livres e de equipamentos avançada para a arquitetura brasileira produzida até então, conferindo boa qualidade a seus habitantes, que ia além mesmo dos padrões higienistas de ventilação e iluminação natural do período. Outra caracteristica de destaque se encontra na proposta de “um programa de edifícios e serviços diversificado e sofisticado (...), de modo a garantir por meio de subsídios cruzados, o retorno do investimento realizado” (BONDUKI, 2012). Nisso, o programa do conjunto aproveitou sua boa localização no Cambuci, próximo à Av. do Estado, e propôs usos rentáveis do solo em regime misto (moradia, comércio e serviços). O arquiteto propunha, por exemplo, a construção de uma rodoviária acoplada a um hotel (FIG. 4); elementos que, ligados ao então desenvolvimento rodoviarista do país e da cidade sob as dinâmicas industriais e modernizadoras, trariam maior circulação de pessoas à região e aqueceriam o setor imobiliário da região favorecendo os lucros no empreendimento do Estado. Com a morte de Attilio Corrêa Lima o que no projeto se mostrava como vanguarda fora engavetado e apenas 11% do conjunto foi implantado (FIG. 1 e 2). Apesar dos reveses, a parcela edificada do conjunto permanece, até hoje, um marco concreto do que fora construído de um dos mais inovadores projetos urbanísticos de habitação financiados pelo governo no Brasil. Projeto este que se mostra singular tanto pelo contexto em que fora idealizado e construído, como pelas propostas à frente de seu tempo contra o que então era entendido no habitar da cidade.

Fontes:

ATTILIO CORRÊA LIMA *1901 (Roma, Itália) †1943 (Rio de Janeiro, Brasil)

Graduou-se no curso de Arquitetura e Engenharia da Escola Nacional de Belas Artes (1920-1925), no Rio de Janeiro. Em 1927 se especializa em Urbanismo na Universidade de Sorbonne-Paris, tornando-se, assim, o primeiro profissional brasileiro com formação específia no campo. De volta ao Brasil, em 1931, realiza projetos importantes como os planos de Goiânia e o Operário de Volta Redonda. Sua aproximação com a arquitetura moderna dá-se no projeto de anexo ao Aeroporto Santos Dumont (Rio de Janeiro) e consolida-se como um dos maiores arquitetos modernos brasileiros com o projeto do Conjunto Residencial Várzea do Carmo, em 1938.

AMADIO, Decio. Desenho urbano e bairros centrais de São Paulo. Tese de doutorado. São Paulo: FAU-USP, 2004. BONDUKI, Nabil. Os pioneiros da habitação social, volume 3: Onze propostas de morar para o Brasil moderno. 4ª Ed. São Paulo: Editora Unesp, 2012. ____. Origens da habitação social no Brasil. São Paulo: Estação Liberdade, 1998. FERRARI, Camila. Projeto moderno de cidade: os conjuntos habitacionais dos IAP na grande São Paulo. Campinas: Revista do centro interdisciplinar de estudo sobre a cidade, 2013. MENEGHELLO, Isabela Belém. Conjunto Habitacional da Várzea do Carmo: do projeto ideal ao conjunto real. Dissertação de mestrado. Rio Grande do Sul: UFRGS, 2016 SOUZA, Mayara Dias de. [Des]interesse social: procedimentos metodológicos para análise de peças gráficas de apartamentos. Dissertação de mestrado. São Carlos: EESC-USP, 2007.


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Rio de Janeiro, Brasil

Projeto 1938

Realização 1938-1943

CONJUNTO IAPI REALENGO

Gabriela Yumi Takase Vitória de Mendonça

O

Conjunto Habitacional Operário em Realengo (1943) foi o primeiro conjunto habitacional de grande dimensão implantado pelo Estado e direcionado ao aluguel para operários de baixa renda no Brasil. O projeto do Instituto de Aposentadoria e Pensões dos Industriários (IAPI), encabeçado pelo arquiteto Carlos Frederico Ferreira, se opunha às péssimas condições de vida nos cortiços das áreas centrais da cidade e propunha uma organização coletiva do habitat. Por se localizar no subúrbio da cidade, o conjunto deveria ser provido de comércio, serviços e lazer. Ele é margeado pela Avenida Brasil ao norte e pela Estrada de Ferro Central do Brasil ao sul, fazendo limite a leste com o bairro Deodoro e a oeste com Bangu. A estrada estabeleceria a conexão direta com o centro, onde se concentravam os empregos e marcos simbólicos da cidade. A principal premissa para o conjunto era a promoção de habitação de qualidade a preços acessíveis aos operários, possibilitada por meio dos procedimentos de standartização e produção em larga escala, com emprego de inovação tecnológica. Os croquis do arquiteto explicitam a importância conferida ao processo construtivo1 e às discussões do “espaço mínimo para a existência”2. Foram utilizados no projeto painéis compensados e revestidos de madeira para as divisórias internas e blocos pré-fabricados de concreto para a estrutura e vedação das edificações, os quais representavam uma economia significativa por não necessitarem de reboco. É notável também a aplicação da lógica fordista no canteiro, permitindo construir de forma mais rápida e eficiente, com menor desperdício. O projeto não se limitou à serviços de urbanização. Foram desenvolvidos e implantados uma série de equipamentos sociais e serviços de caráter coletivo como ambulatório médico, escola, creche, quadras esportivas entre outros, especialmente a partir de 1945. É possível notar a vontade

1. Croqui do arquiteto. (BONDUKI, p. 33)

2. Croqui do arquiteto. (BONDUKI, p. 32)

inicial de desenvolver um trabalho social de caráter preventivo e educativo, que até certo ponto foi colocado em ação, mas foi progressivamente sendo abandonado. Além disso, foi implementado comércio no térreo do bloco coletivo, para o suprimento de bens de primeira necessidade, com açougue, mercearia, café e posteriormente, bar, sorveteria e farmácia. Do ponto de vista do arranjo urbanístico, o conjunto define uma concepção que busca valorizar os espaços públicos e coletivos. Assim, Ferreira optou por recuar as casas mais para o centro dos lotes (criando à frente delas uma área verde), desenhar a implantação dos equipamentos coletivos de maneira estratégica (com pequenas distâncias das habitações) e introduzir habitações coletivas. O chamado bloco coletivo localizava-se em uma praça central do conjunto. As quadras3 possuiam uma certa regularidade de forma e tamanho, e são ocupadas de diferentes maneiras pelas tipologias desenvolvidas por Ferreira. Inserido dentro dos debates de constituição da identidade nacional brasileira e da necessidade de construir habitação operária em massa, o Conjunto Residencial Operário em Re-


Projeto de habitação social

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3.Projeto geral do conjunto e tipologias: casa geminada, em fileira, bloco com dois pavimentos e coletivo. (BONDUKI, p. 20)

alengo foi uma das principais referências de habitação social produzida no Brasil justamente devido a capacidade de Ferreira de combinar a diversidade e a singularidade de tipos habitacionais com a busca de padronização e reprodutividade. O arranjo de casas geminadas, casas em fileiras, blocos com dois andares e o bloco coletivo, de três pavimentos4, configuram uma experimentação tipológica que congrega elementos coloniais a características modernistas, alinhando-se aos trabalhos de Lúcio Costa e Gregori Warchavchik. As casas geminadas existiam em maior número no conjunto. As casas em fileira, por sua vez, caracterizavam um avanço na “didática da coletividade”. O bloco coletivo explorava ao máximo a noção de habitação coletiva, com circulação avarandada e térreo comercial. Houve, em uma etapa posterior, uma ampliação da gama de tipologias do conjunto, resultando em um empreendimento de grande diversidade. O conjunto se consolidou como um laboratório experimental do trabalho social em conjuntos habitacionais, buscando congregar qualidade e baixo custo. Ele é um trabalho inovador em seu estudo de diferentes tipologias, no emprego da racionalização e inovação tecnológica e em seus esforços de implantar uma política de serviços sociais para as famílias de operários. Além disso, a existência de um “plano A” (locação do imóvel, com possibilidade de isenção para casos específicos) e um “plano B” (compra do imóvel) foram positivos por permitirem variações na política habitacional comumente empregada, a qual viabiliza somente a compra do imóvel. A locação incentiva a manutenção do imóvel e do conjunto urbanístico, além de ser menos onerosa ao trabalhador. Observa-se entretanto o abandono progressivo dos serviços de assistência social e dos empreendimentos comerciais,

em função do aporte de dinheiro necessário para sua manutenção. Também é problemática a política de implantação de habitação em áreas afastadas, sendo necessária a constituição de uma infraestrutura não existente no local. Ademais, “a gestão centralizada e a propriedade pública davam suporte ao modelo arquitetônico e urbanístico” (BONDUKI, p.36), levando ao questionamento das implicações, vantagens e desvantagens de um controle tão grande da vida dos habitantes. A análise do projeto congrega temas ainda muito pertinentes nas discussões contemporâneas do campo da arquitetura e da habitação social coletiva, seja no tangente às formas, às tipologias, à configuração urbanística ou ao processo construtivo.

4. Fotografia do Bloco 3 em construção. (BONDUKI, p. 29)

CARLOS FREDERICO FERREIRA *1906 (Rio de Janeiro, Brasil) †1996 (Rio de Janeiro, Brasil)

Carlos Frederico Ferreira foi chefe do setor de arquitetura e desenho da Divisão de Engenharia e principal responsável pela política de projetos do Instituto de Aposentadoria e Pensões dos Industriários (IAPI). Recebeu diversos prêmios e publicou seus projetos habitacionais em livros e revistas estrangeiras nas décadas de 1940 e 1950. Se aposentou em 1970 e viveu seus últimos anos na casa de veraneio que contruiu para si em Nova Friburgo (RJ). Seu trabalho permitiu uma conexão substancial entre a intelectualidade que formulou os conceitos fundamentais em defesa da renovação da arquitetura brasileira e a ação no serviço público.

Fonte: BONDUKI, Nabil. Origens da habitação social no Brasil. Arquitetura Moderna, Lei do Inquilinato e difusão da casa própria. 3ª Ed. São Paulo: Estação Liberdade: FAPESP, 1998. BONDUKI, Nabil. Os pioneiros da habitação social no Brasil: v.3. 1ª Ed. São Paulo: Editora Unesp: Sesc São Paulo, 2014. BONDUKI, Nabil. Habitação social na vanguarda do movimento moderno no Brasil. In: Textos fundamentais sobre Arquitetura Moderna brasileira: v.2. 1ª Ed. São Paulo: Romano Guerra, 2010. BOTAS, Nilce. Entre o progresso técnico e a ordem política: arquitetura e urbanismo na ação habitacional do IAPI. 2011. Tese (Doutorado - Planejamento Urbano e Regional). FAUUSP, São Paulo.


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Recife, Brasil

Projeto 1939

Realização 1939-1945

LIGA SOCIAL CONTRA OS MOCAMBOS

Lívia Zoqui Frugoli Natália Soffner Leitão

D

urante a primeira metade do século XX, Recife passava por uma significativa mudança estrutural, populacional e cultural. O crescimento populacional, devido sobretudo ao êxodo rural das regiões próximas, desencadeou a insuficiência de empregos e de moradias, já que a cidade não tinha estrutura suficiente para receber esse contingente populacional. Tornando-se então, o mocambo um tipo de residência acessível para as famílias que ali tentavam se instalar, apesar de sua irregularidade. Os mocambos instalados no Brasil, inicialmente, como habitação dos escravos fugitivos das lavouras, continham traços de origens africanas mas já também com influências arquitetônicas de colonizadores. Esses tipo de habitação foi essencialmente se disseminando pelos centros de Recife pelo caráter da possibilidade de autoconstrução e pelo baixo custo dos materiais, além de ser “confortável” às condições climáticas da região. Esses localizavam-se em áreas de mangue1 e terrenos

1. Vila de mocambo em Pernanbuco - Coleção Josebias Bandeira

alagados, os quais eram consideravelmente próximos aos centros de comércio e de turismo de Recife. Construídos com taipa e capim, esse tipo de construção exibia as más condições de vida que essas famílias se encontravam, além das péssimas condições de higiene que dominavam o local. Deste modo, contrariando todas as políticas públicas do governo vigente, os mocambos passaram a enfrentar ações dos líderes políticos de erradicar esse modelo de construção. Em 1937 Agamenon Magalhães é nomeado interventor federal do estado de Pernambuco pelo governo do Estado Novo. Sua gestão tinha por objetivo urbanizar e modernizar o Recife, dando atenção principalmente aos setores rodoviários, habitação popular, saúde pública e educação. Suas políticas públicas consistiam em criar o legado de urbanização, modernização e higienização do município. Assim, além da preocupação com a salubridade em que as famílias de mocambos viviam, Agamenon também tinha em vista isolar essa sociedade carente para locais mais afastados dos centros, tomando esses terrenos ocupados para a revitalização e construção de um local mais agradável aos olhos dos turistas, e das famílias mais abastadas. Para isso, ações como a construção de vilas operárias começaram por partido de industriais que previam habitações salubres para os seus trabalhadores. Em contrapartida, a população dotada desses empregos industriais não representavam a maioria da população ali existente. Muitas das famílias sobreviviam de empregos não sindicalizados e do comércio autônomo de peixes e mariscos que conseguiam ali mesmo nas áreas de manguezais e mocambos, não sendo, assim, atingidas por essas medidas de novas habitações operárias. Desta maneira, grande parte da população carente ainda residia nos meandros do centro de Recife, obrigando Agamenon a tomar providências públicas em relação a isso. Assim, Agamenon tra a público o maior projeto de habitação popular de sua gestão, em 1939 é criada a Liga Social Contra os Mo-


Projeto de habitação social

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cambos. Agamenon então convoca empresários e sindicalistas a uma reunião pedindo doações para o projeto. Contou também com o apoio da Caixa econômica Federal que construiria mais de 3 mil casas3, os locais destinados as habitações seriam escolhidas pela comissão e financiados pelas pessoas de baixa renda. A Liga se dividia internamente em três comissões, a de estudo e aquisição de terrenos, a de organização de empresas e a de propaganda e ação social contra o mocambo. A terceira tinha por objetivo criar culturalmente a ideia de que viver em um mocambo era algo ruim e precário, já que as pessoas que ali residiam o considerava agradável e de porte de casa própria. Dulce Chaves Pandolfi revela em seu livro “Pernambuco de Agamenon Magalhães” que um relatório de quatro anos após a formação da Liga Social Contra o Mocambo mostrou que haviam sido construídas 5.707 casas no Recife e 8.109 no interior2. Levando em consideração que em 1937 havia cerca de 45.000 mocambos em Recife, fica claro que a Liga falhou ao efetuar o que havia sido proposto em sua formação, mostrando que foi criada sem qualquer preocupação social de fato.

3. Tipos de casas operárias da Liga Social Contra os Mocambos Fonte: “Cruzada Social Contra o Mocambo – dois anos de política social.” In: Revista Arquitetura e Urbanismo, jan. a dez., 1941

A consequência dessa ação foi apenas “empurrar” os mocambos para as áreas periféricas, mudando o endereço da lama para o morro, sem que houvesse qualquer mudança social. A prova disso se dá em dados de 1960 que, enquanto a população da cidade só aumentava, mostram que Recife passou a possuir 100mil mocambos, e com menor pressão governamental essas moradias eventualmente voltaram para o centro da cidade.(PANDOLFI,1984) A Liga via no mocambo uma construção a ser combatida e não a miséria presente nele, ele “era visto como causa, e não como consequência, de uma situação de desigualdade econômica”(PANDOLFI, 1984, p. 63). A sua ação foi uma medida urbanista-higienista, que tinha como objetivo retirar os mocambos do centro da cidade, sem criar medidas para acabar com a pobreza presente ali. 2. Mapa geral da cidade do Recife, com as vilas construídas pela Liga Social Contra o Mocambo de 1939 e 1942 Fonte: Relatórios da Liga Social Contra o Mocambo, julho/1941 a julho/1942.

Agamenon Magalhães é nomeado interventor federal de Pernambuco 1937

Criação da Liga Social Contra o Mocambo

5.707 casas construídas em Recife e 8.109 no interior

100mil mocambos em Recife

1939

1943

1960

Agamenon Magalhães *1893 (Serra Talhada, Brasil) †1952 (Recife, Brasil)

Agamenon Magalhães tornou-se bacharel na faculdade de Direito de Recife em 1916 e em seguida atuando na carreira de Promotoria em São Lourenço da Mata. Este atuou em cargos como deputado estadual e federal, mas seu reconhecimento só se notabilizou ao ser nomeado Interventor Federal em Pernambuco durante o período do Estado Novo. Durante tal Cargo, Agamenon S. G. Magalhães teve seus projetos com desenvolturas higienistas e de caráter trabalhistas, dando destaque à política pública da Liga Social Contra os Mocambos.

Fonte: CAVALCANTI, Geane Bezerra. Comunidade e identidade: A Liga Social Contra o Mocambo e a construção de um sentido de comunidade e identidade na periferia da cidade de Recife nas décadas de 1930 e 1940. Revista do Curso de História de Araguaína, 2016. LEITE, Ricardo. Recife dos morros e córregos: a fragorosa derrota do exterminador de mocambos e sua liga social em Casa Amarela. Recife: UFPE, 2010 LIRA, José Tavares Correia de. Análise Social, vol XXIX, 1994 MORAES, Renata P. S. “O mal do mocambo”: o discurso de Agamenon Magalhães e a busca pela moral e cidadania no recife (1937-1945). Natal: XXVII Simpósio Nacional de História, 2013. PANDOLFI, Dulce Chaves. Pernambuco de Agamenon Magalhães. Recife: Massangana, 1984


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Caracas, Venezuela

Projeto 1939

Realização 1939-1951

PLANO MONUMENTAL DE CARACAS

Isabel de Carvalho Pacheco e Silva Leticia Kamitsuji

C

aracas foi fundada em 1567 por um grupo de 136 espanhóis. Suas ruas formavam uma retícula, 24 quadras quadradas, agrupadas ao redor da Plaza Mayor, atual Praça Bolívar, ao lado da qual foi fundada a Catedral de Caracas. O único marco volumétrico era a torre da catedral. A cidade teve um crescimento muito lento até as três primeiras décadas do século XX, que era caracterizado pelo adensamento dos lotes da área central e pouca tendência de expansão, a qual seguiu a lógica da retícula colonial1. Em meados da década de 1930 e 1940, a Venezuela passa a se inserir de maneira sólida no mercado mundial como exportadora de petróleo, alterando sua condição de país agroexportador, que perdurava por muitos anos. Assim, Caracas, como outras cidades latino-americanas, sofre uma rápida expansão devido a migrações, internas (do campo para a cidade) e externas (vinda de europeus), e ao alto índice de natalidade combinado à redução da mortalidade, decorrente da aplicação de políticas sanitaristas. Entre 1936 e 1941, a sua população aumenta de 258.513 para 354.138 habitantes e a sua dinâmica de crescimento passa a se orientar para o leste, onde as grandes fazendas haviam liberado vastas extensões de terra para a urbanização. Ao mesmo tempo, zonas da

1. Mapa da cidade de Caracas em 1884, com destaque para o futuro local de implantação do eixo monumental com sua posição relativa à Praça Bolívar e à Catedral.

área tradicional passam a ser abandonadas e a se deteriorar. Sob a justificativa de reverter o abandono da região central da cidade, em 1936, o governador Elbano Mibelli contrata um grupo de urbanistas franceses, Maurice Rotival, Lambert, Prost e Wegestein, para realizar um plano urbanístico para Caracas. Publicado na primeira edição da Revista Municipal em 1938, o Plano Monumental de Caracas2, tinha como objetivo transformar a cidade em “la capital del Caribe sur”.

2. Vista aérea da cidade de Caracas segundo o Plano Rotival.

Também conhecido como Plano Rotival, devido à participação mais significativa de Maurice Rotival, o plano buscava trazer à capital venezuelana a ideia de uma cidade nova e moderna, dando ênfase à higiene, ao turismo, à iluminação, ao transporte e à segurança. A partir de uma abordagem lógica e racional, Rotival defendia que o planejamento da cidade tornaria-a mais eficiente e econômica em termos de gastos públicos e tempo de transporte, e atenuaria tensões políticas e conflitos entre classes. Prevendo um crescimento urbano a partir do centro, Rotival propunha a ruptura com a quadrícula colonial espanhola por meio de um novo eixo viário na parte central da cidade, a


Projeto de melhoramento, regulação ou expansão urbana partir da qual vias diagonais conduziriam aos novos focos de urbanização. Apesar de reconhecer a necessidade de enfrentar o problema da habitação operária, não inclui esse tema em suas propostas. O eixo monumental3 que estrutura o plano é formado por três vias paralelas: uma central, a Avenida Bolívar, e duas laterais secundárias, as Avenidas Leste-Oeste 6 e 8. A orientação da via principal não foi escolhida ao acaso: a análise de circulação de veículos na cidade indicava que a direção Leste-Oeste seria a mais propícia para aliviar os pontos de congestionamento de vias, solução mais adequada também do ponto de vista da topografia do território. De acordo com Rotival, esse posicionamento era também condizente com as distribuições de uso em Caracas, pois na região compreendida entre as vias 1 e 14 predominavam os estabelecimentos comerciais, e assim, o novo eixo dividira a cidade em duas partes simétricas e equilibradas. A nova via ligaria o Parque do Calvário ao Parque Los Caobos, nos extremos oeste e leste da cidade. Caracterizado por uma malha de boulevards e praças, ao longo da Avenida Bolívar, eram propostas praças no encontro com vias importantes. A Praça Monumental, por exemplo, serve de ponto de articulação entre as Avenidas Sucre e San Martin, de direção noroeste e sudoeste, respectivamente, assim como a Praça Elíptica, no encontro de duas avenidas diagonais. A Praça Comercial, por sua vez, ocorre na intersecção da avenida central com o eixo peatonal que conduz à Praça Bolívar, um marco da cidade. No desenho dessas praças, destacadas nas figuras 2 e 3, é notável a presença de formas geométricas regulares: o triângulo na Praça Monumental, o retângulo na Praça Comercial e a elipse na Praça Elíptica. Também o uso de algumas delas é definido, como a Praça Monumental, em que são propostos edifícios de uso institucional, e a Praça Comercial. Nos arredores dessa avenida, edifícios de grande porte e significância para a cidade contribuiriam para ampliar a ideia de monumentalidade: como o Capitólio, o Nuevo Circo, a Catedral e a proposta de Cenotáfio em memória de Simón Bolívar, em formato de pirâmide pré-colombiana, sobre a Colina do El Calvario. As propostas de Rotival não foram, contudo, bem aceitas pelas autoridades da época, com exceção do Governador. Essa situação, aliada ao início da Segunda Guerra Mundial e à partida de Rotival aos Estados Unidos, conduziram a grandes alterações no plano inicial. Em 1939, em lugar do Centro Cívico no extremo oeste da avenida central, realizou-se a reurbanização do El Silencio, um bairro na época muito pobre e insalubre, com implanta-

57 ção de moradia para classe média. O arquiteto responsável, Carlos Raúl Villanueva, propõe sete blocos perimetrais com pátio central e uso misto. Esses edifícios foram construídos entre 1942 e 1945 e, com eles, iniciou-se a construção da Avenida Bolívar. Apesar disso, Villanueva conservou muito do traçado viário de Rotival, a avenida central teve sua localização mantida com as três artérias paralelas e configuração em “V” das duas vias principais a oeste, Avenidas Sucre e San Martin. Em 1949, o projeto de Cipriano Domínguez para o Centro Simón Bolívar traria novas alterações ao plano de 1939. A implantação do projeto, no centro do traçado da avenida, entre as Leste-Oeste 8 e 6, impunha um trecho coberto à grande via, que seria ainda ampliado com o projeto de Gómez de Llarena de 1983. Nele, Llarena propunha a implantação de edifícios, que atualmente compõem o Palácio de Justiça de Caracas, também no centro da avenida. Esses projetos criaram uma barreira para a visualização do Calvario a partir da Avenida Bolívar. Foram aplicados conceitos semelhantes aos de Rotival, porém não obtiveram os resultados esperados. As modificações não conseguiram alcançar a bela estética e nem solucionar o problema do trânsito de veículos. Ao observar o centro atual de Caracas, é possível constatar que muito do traçado do plano foi implantado, mas o espaço harmonioso imaginado por Rotival não existe. Apesar de não ter sido implantado como Rotival originalmente planejou, havia algumas falhas que contavam com previsões muito otimistas. O autor acreditava, em 1938, que solucionaria problemas durante um século ou até mais, considerando que a cidade não teria mais do que um milhão de habitantes. Atualmente, sua população já ultrapassa os 2 milhões.

3. Perspetiva do Plano Monumental de Caracas.

Maurice Rotival *1892 (Paris, França) †1980 (Paris, França)

Maurice Emile Henri Rotival formou-se como engenheiro civil, “Engenheiro de pontes e estradas”, na École Centrale de Paris. Durante sua carreira, estudou Urbanismo e, na década de 30, mudou-se para os Estado Unidos, onde atuou como professor na Universidade de Yale. Em 1937, chega a Caracas, contratado pelo governador Elbano Mibelli, onde, em 1938, passa a integrar a Direção de Urbanismo, cujo objetivo era elaborar o Plano Mestre da cidade, que depois se tornaria o Plano Monumental de Caracas ou Plano Rotival. Além desse, participou dos planos urbanísticos de New Haven, New Britain, Winter Park, Reims, Algers, entre outros.

Fonte: THE INTERNACIONAL CENTER FOR URBANISM, ARCHITECTURE AND LANDSCAPE. Cruelty and utopia: cities and landscapes of Latin American. 1ª Ed. New York: Princenton Architectural Press, 2005. VALLMITJANA, Marta. et al. El Plan Rotival: La Caracas que no fue: un plan urbano para Caracas. Caracas: Ediciones Instituto de Urbanismo, Facultad de Arquitectura y Urbanismo, Universidad Central de Venezuela, 1991. CASAS, Lorenzo González. Territórios da política em Carcas: Usos e representações do espaço público. Revista Brasileira de Estudos Urbanos e Regionais, Recife, v. 6, n. 2, Nov., 2004.


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Caracas, Venezuela

Projeto 1941

Realização 1942-1945

REURBANIZAÇÃO EL SILENCIO

Ana Paula Silveira Roberta Saldanha da Silva Berardo Gomes

A

Reurbanização do bairro El Silencio, localizado no centro da capital venezuelana, Caracas, é símbolo do início do processo de modernização da cidade na primeira metade do século XIX. No contexto do Plano Monumental de Caracas, publicado por Maurice Rotival em 1939, o projeto marca o curso de mudança da estrutura e da dinâmica da cidade. O Plano Monumental de Caracas visava preparar a capital para o papel de líder do intercâmbio cultural, industrial e comercial da região, tendo localização estratégica em relação ao Caribe e aos Estados Unidos. Atendendo ao crescimento da concentração de atividades no centro da cidade, o ponto focal do plano dizia respeito à criação de uma avenida central, a qual seria conhecida como Avenida Bolívar1, buscando solucionar o problema de tráfico e favorecendo a circulação leste-oeste. Suas proporções monumentais, presentes também nas propostas de fachada dos edifícios e praças, foram responsáveis pelo valor estético almejado pelo plano.

1. Avenida Central proposta pelo Plano Monumental de Caracas, 1939.

Na extremidade oeste da Avenida Bolívar, para onde convergiam dois importantes eixos de ligação viária da cidade, localizava-se o bairro El Silencio, considerado um risco à salubridade da cidade e marcado pelos altos índices de enfermidades, prostituição e miséria. Ali, o PMC propunha a construção de um Foro Cívico. Porém, em 1942, um concurso para implantar, no bairro, um projeto de moradia popular foi lançado pelo Banco Obrero aos arquitetos Carlos Guinard e Carlos Raul Villanueva. Como o próprio Maurice Rotival escreveu anos depois, a mudança do uso proposto ao local foi acertada ao alocar, na região do centro e das grandes avenidas, a classe trabalhadora, produzindo habitação de baixo custo numa localização privilegiada. A reurbanização do El Silencio representa uma solução economicamente equilibrada e condizente com o contexto urbano contemporâneo, uma vez que a construção de avenidas monumentais para uma classe alta que buscava habitar os subúrbios já não era mais justificável. No dia 25 de julho de 1942 iniciaram-se as obras para implementação do projeto desenvolvido por Carlos Raul Villanueva, as quais se estenderam até agosto de 1945, quando os 747 apartamentos do novo bairro El Silencio terminaram de serem ocupados por famílias. Composto por 7 blocos de habitações, o conjunto que materializa a reurbanização do El Silencio foi pensado de forma a manter a conexão com a cidade de Caracas e, especialmente, a Avenida Bolívar, abrindo-se para o crescimento esperado para a cidade na direção leste. Desse modo, cada um dos blocos, apesar dos serviços internos oferecidos e da composição dos blocos perimetrais, não se fecha em unidades de vizinhança totalmente independentes.


Projeto de habitação social

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Muitas das soluções utilizadas na concepção do conjunto, no que diz respeito a sua morfologia, composição e posição em relação às condições topográficas, proporcionam encontros e o cruzar de caminhos. Como elemento central para o desenho dos blocos, Villanueva tomou partido do tradicional pátio venezuelano2. Cada lâmina habitacional, com formas que se dobram em alinhamentos diversos, é associada ao conjunto de maneira a criar volumes vazados, abrigando em seu interior os espaços livres característicos dos pátios. Essas áreas possibilitam a renovação do ar e a existência de jardins, próprios a cada bloco, e que contemplam áreas para as brincadeiras infantis, afastados do tráfego e do ruído da rua. Ao mesmo tempo, os intervalos entre as massas construídas criam eixos de circulação pública e conexões entre os diferentes blocos para a passagem de pedestres. Na porção a oeste, os pátios incorporam trechos do Parque de El Calvario, adjacente às quadras renovadas, o qual representaria um local de encontro para todo o conjunto. No centro do conjunto, para onde convergem as vias do sistema proposto pelo Plano Monumental de Caracas - iniciativa mantida apesar da mudança de uso -, uma praça central5 concentra as atividades de serviços e comércio e marca o eixo da Avenida Bolívar, cuja perspectiva é enquadrada entre dois edifícios. Seu espaço é pontuado pelas fontes do escultor Francisco Narváez e foi projetado para acomodar um grande número de pessoas e atividades públicas. Esta organização dos blocos dialoga com o Plano Monumental e o contexto de modernização, na medida em que racionaliza a estrutura dos edifícios em relação aos espaços livres flexíveis e às ruas, pensadas como elementos conectores. Concomitantemente, porém, é intenção do projeto recuperar a estrutura básica tradicional da casa, com pátios, elementos de transição entre o movimento público da rua, e o privado, familiar, com uma consequente relação entre moradores ao redor dos espaços verdes interiores4. De forma similar, numa dicotomia entre tradição e modernidade, se dá a estética do conjunto. As arcadas brancas, colunas7 e fachadas amarelas tradicionais marcam, na face pública do projeto5, uma linguagem em concordância com a essência arquitetônica colonial da cidade. Já na face privada6, em meio aos pátios internos e de acesso voltado aos habitantes do conjunto, nota-se uma linguagem moderna e uma articulação do uso destinado a esses espaços e aos balcões dos apartamentos3, evidenciando, no projeto, um forte ecletismo. Marca-se, assim, o sincretismo da obra de Villanueva naquele momento, da mesma forma que ilustra o contexto transicional da época, como já mencionado.

2. Croqui do arquiteto: blocos e pátios centrais.

3. Tipologias típicas de apartamentos.

4. Vista aérea do conjunto.

5. Praça Urdaneta.

6. Pátio central e balcões.

7. Colunas e arcadas.

Carlos Raúl Villanueva *1900 (Londres, Reino Unido) †1975 (Caracas, Venezuela)

Arquiteto formado pela Escola de Belas Artes de Paris, Villanueva se destaca dentre os maiores representantes da arquitetura moderna venezuelana. Sua obra, marcada principalmente pelos projetos da Universidade Central de Venezuela em Caracas, a Reurbanização do conjunto El Silencio e o Museu de Belas Artes de Caracas, se caracteriza pela criação de espaços modernos, abertos e fluidos. Sua produção arquitetônica se une a suas diversas publicações escritas acerca da arquitetura moderna e contemporânea, assim como sobre sua própria obra, para construir a imagem da própria arquitetura moderna na Venezuela.

Fonte: ALMANDOZ, Arturo. Urbanismo europeo en Caracas (1870-19400). 2ª Ed. Caracas: Fundaación para la Cultura Urbana, 2006. MONTANER, Josep Maria. Arquitetura e crítica na América Latina. São Paulo : Romano Guerra, 2014. VILLANUEVA, Carlos Raúl. La Caracas de ayer y de hoy su arquitectura colonial y la reurbanizacion de “El Silencio”. Paris, 1950. DE SOLA, Ricardo. Reurbanizacion El Silencio. INAVI, 1987. MOHOLY-NAGY, Sibyl. Carlos Raul Villanueva y la arquitectura de Venezuela. 0ª Ed. Caracas: Editora Lectura, 1964.


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Porto PortoAlegre, Alegre,Brasil Brasil Porto Alegre, Brasil

Projeto Projeto1942-1943 1942-1943 Projeto 1942-1943

Realização Realização1946 1946 Realização 1946

CONJUNTO IAPI CONJUNTO IAPI IAPI CONJUNTO PASSO D’AREIA PASSO D’AREIA D’AREIA PASSO

Anna Luiza Zanata Juliana Guelfi de Almeida

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m foi escolhido oo terreno mm1942, 1942 terreno para construção do 1942 foi foi escolhido escolhido o terreno para paraaaaconstrução construçãodo do conjunto habitacional, situado no bairro recém conjunto criado Passo conjuntohabitacional habitacional, ,situado situadono nobairro bairrorecém recémcriado criadoPasso Passo D’Areia. D’Areia. área se configurava na década de 1940 como um D’Areia.AAAárea árease seconfigurava configuravana nadécada décadade de1940 1940como comoum um polo atrativo industrial devido sua proximidade com polo principoloatrativo atrativoindustrial industrialdevido devidosua suaproximidade proximidadecom comoooprinciprincipal pal eixo de ligação com restante do país. Além disso, por paleixo eixode deligação ligaçãocom comooorestante restantedo dopaís. país.Além Alémdisso, disso,por por estar em uma cota alta, apresentava a vantagem dos estar baixos estarem emuma umacota cotaalta, alta,apresentava apresentavaaavantagem vantagemdos dosbaixos baixos riscos riscos de alagamento, fator importante considerando históriscosde dealagamento, alagamento,fator fatorimportante importanteconsiderando considerandoooohistóhistórico de enchentes ocorridas em Porto Alegre. rico ricode deenchentes enchentesocorridas ocorridasem emPorto PortoAlegre. Alegre. AAAgleba gleba era delimitado por importantes vias que conecglebaera eradelimitado delimitadopor porimportantes importantesvias viasque queaaaconecconectavam com o centro da cidade: as Estradas Passo tavam D’Areia tavam com com oo centro centro da da cidade: cidade: as as Estradas Estradas Passo PassoD’Areia D’Areia aaanorte norte da Pedreira sul leste, conhecidas atualmente norteeeeda daPedreira Pedreiraaaasul suleeeleste, leste,conhecidas conhecidasatualmente atualmente como Assis Brasil e Plinio Brasil Milano. como Já limite oeste era comoAssis AssisBrasil BrasileePlinio PlinioBrasil BrasilMilano. Milano.Já Jáooolimite limiteoeste oesteera era demarcado pelo Cemitério São João. Apesar de estar demarcado localizademarcadopelo peloCemitério CemitérioSão SãoJoão. João.Apesar Apesarde deestar estarlocalizalocalizado do na periferia de Porto Alegre, acesso ao centro da cidade dona naperiferia periferiade dePorto PortoAlegre, Alegre,oooacesso acessoao aocentro centroda dacidade cidade eeeconsequentemente aos postos de trabalho, comércio consequentemente serconsequentementeaos aospostos postosde detrabalho, trabalho,comércio comércioeeeserserviços viços era facilitado por uma rede de bondes que cobria raio viçosera erafacilitado facilitadopor poruma umarede redede debondes bondesque quecobria cobriaoooraio raio de de 6km entre eles. de6km 6kmentre entreeles1. eles. O projeto OOprojeto desenvolvido deveria, portanto, lidar com tais diprojetodesenvolvido desenvolvidodeveria, deveria,portanto, portanto,lidar lidarcom comtais taisdidinâmicas urbanas e enfrentar o desafio da topografia irregular nâmicas nâmicasurbanas urbanaseeenfrentar enfrentaroodesafio desafioda datopografia topografiairregular irregular eeeos os numerosos cursos d’água existentes no terreno, cujas osnumerosos numerososcursos cursosd’água d’águaexistentes existentesno noterreno, terreno,cujas cujas qualidades levaram naturalmente a sua seleção. qualidades qualidadeslevaram levaramnaturalmente naturalmenteaasua suaseleção.1 seleção.1 O OOanteprojeto anteprojeto foi desenvolvido pelo engenheiro João Tomé anteprojetofoi foidesenvolvido desenvolvidopelo peloengenheiro engenheiroJoão JoãoTomé Tomé de Saboia e Filho no escritório central do IAPI no Rio de de JadeSaboia SaboiaeeFilho Filhono noescritório escritóriocentral centraldo doIAPI IAPIno noRio Riode deJaJaneiro. neiro. Três elementos serão estruturadores da proposta de neiro.Três Trêselementos elementosserão serãoestruturadores estruturadoresda daproposta propostade de Saboia: Saboia: centro social, que tinha como foco complexo esSaboia:ooocentro centrosocial, social,que quetinha tinhacomo comofoco focoooocomplexo complexoesesportivo; portivo; traçado da avenida principal que interligava as esportivo;oootraçado traçadoda daavenida avenidaprincipal principalque queinterligava interligavaas asesestradas da Pedreira e Passo D’Areia da qual derivavam as tradas vias tradasda daPedreira PedreiraeePasso PassoD’Areia D’Areiada daqual qualderivavam derivavamas asvias vias secundárias secundárias sinuosas, configurando os quarteirões que sosecundáriassinuosas, sinuosas,configurando configurandoos osquarteirões quarteirõesque quesosofreram poucas alterações até o projeto final e a alameda freram que frerampoucas poucasalterações alteraçõesaté atéooprojeto projetofinal finaleeaaalameda alamedaque que interligava interligava parte alta da vila, oeste, com centro social, interligavaaaaparte partealta altada davila, vila,aaaoeste, oeste,com comooocentro centrosocial, social, que evitaria o surgimento de um tráfego de travessia que nas vias queevitaria evitariaoosurgimento surgimentode deum umtráfego tráfegode detravessia travessianas nasvias vias eeese se destacaria como elemento paisagístico no bairro. sedestacaria destacariacomo comoelemento elementopaisagístico paisagísticono nobairro. bairro. Muitas soluções do anteprojeto foram mantidas, mas

1.1.Inserção Inserção urbana do conjunto habitacional 1. Inserçãourbana urbanado doconjunto conjuntohabitacional habitacional

2.2.Planta Plantado doprojeto projetofinal final 2. Planta do projeto final, os edifícios estão categorizados por um gradiente de cinza, os mais escuros correspondem as tipologias de menor gabarito, casas térreas.


Projeto de habitação social

61

houve algumas modificações resultantes das demandas legais, topográficas, especificidades locais e até mesmo da incomum preocupação com a preservação ambiental para a época. A maiores mudanças ocorreram, entretanto, com o acréscimo de uma gleba a pedido da diretoria local do IAPI. O que possibilitou a criação de outra via de acesso à vila. A “Avenida de Ligação”, como ficou denominada, interligava o ponto final da da rede de bondes, localizado na entrada principal do conjunto, com o entroncamento das Estradas da Pedreira e Passo d’Areia no extremo oposto, demarcando um traçado viário em forma de Y característico do projeto final2. Outra solicitação do IAPI, foi o aumento da densidade populacional. Para solucionar essa demanda da diretoria, muitas unidades individuais foram substituídas por prédios multifamiliares de até 4 pavimentos, o que levou à elevação da densidade máxima para 230 habitantes/ha finais e a configuração de uma barreira visual ao longo da Avenida Central para o interior do conjunto4. Apesar disso, a vila ainda difere radicalmente das tipologias dos grandes conjuntos habitacionais de bairros operários contemporâneos, incorporando conceitos comuns das teorias das Cidades-Jardim já presentes no anteprojeto como a hierarquia viária com suas respectivas prioridades de modais de transporte, a organicidade do traçado e intensa arborização, que proporcionam a diversidade dos quarteirões3. Porém é possível notar a tentativa de evitar uma marca recorrente em muitos desses projetos, pátios internos de caráter semipúblico. Em seu lugar, o projeto propõe em consonância com as tradições locais, espaços que se comprometem com a resolução de problemas cotidianos, incluindo desde os coradouros e depósitos até mesmo áreas livres para a instalação de galinheiros individualizados. Esse pensamento acaba se refletindo na linguagem arquitetônica empregada, cujas marcas vernaculares e a simplicidade de suas formas não deixam de ter sua identidade e encontram pontualmente algumas expressões monumentais, como no centro social ou em alguns edifícios que demarcam a entrada da vila. Ao todo existem treze tipos de casas, desde individuais a geminadas, e quatorze de blocos, que incluem edifícios de dois a 4 pavimentos com eventuais usos comerciais. A incorporação de elementos ornamentais destoa do purismo adotado pelo modernismo contemporâneo. Priorizando a privacidade dos moradores em detrimento da crescente valorização dos espaços comunitários, estabelece divisões claras entre os diferentes níveis de publicidade

EDMUNDO GARDOLINSKI

dos espaços. O mesmo pode ser observado na defesa da autonomia de acessos a unidades, que nos edifícios verticais atendem no máximo duas unidades. Apresenta algumas características comuns ao movimento moderno, como a implantação dos edifício independente das linhas definidas pelo loteamento e a tipologia dos prédios em lâmina. O sistema construtivo adotado também se atém às técnicas tradicionais. Explorando fundações de pedra com porões de ventilação, tijolos de barro para vedação e telhas cerâmicas com estrutura em madeira, o projeto das edificações tem apenas a laje dos edifícios multifamiliares em tijolos armado como elemento experimental. Tal opção se distancia da industrialização empregada em projetos contemporâneos de grandes conjuntos habitacionais modernos, revelando os limites da industrialização local.

3. Vista aérea do conjunto, onde a diversidade tipologica e os espaços livres dialogam.

4. Foto de época de um dos conjuntos de edifícios da avenida central.

*1914 (São Mateus do Sul, Brasil) †1974 (Porto Alegre, Brasil) Filho de imigrantes poloneses, Edmundo Gardolinski estudou em um colégio bilingue em Curitiba. Aos 24 anos se formou como engenheiro civil, de pontes e arquiteto na Faculdade de Engenharia do Paraná com a tese de conclusão de curso sobre moradias populares. Após trabalhar dando aulas particulares e como topógrafo e engenheiro auxiliar da aeronáutica durante a graduação, Gardolinski se mudará para Porto Alegre em 1942, quando é contratado pelo IAPI. Ele será, então, o responsável pelo projeto final e acompanhamento das obras do Conj. Res. Passo D’Areia. Gardolinskoi também foi um grande colabordor da Enciclopédia Rio Grandense, contribuindo com artigos e publicações além de um vasto acervo de fotos, documentos e entrevistas referente a vida dos imigrantes e a história da colonização polonesa.

Fonte: BONDUKI, Nabil; KOURY, Ana Paula. Os pioneiros da habiatação, Volume 2. 1ª Ed. São Paulo: Editora Unesp; Edições Sesc, 2014. BOTAS, Nilce Cristina. A Cidade Industrial Brasileira e a Política Habitacional na Era Vargas (1930-1954). DEGANI, José Lourenço. Tradição e modernidade no ciclo dos IAPs. Dissertação de mestrado - PROPAR, Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Porto Alegre. 2003. NUNES, Marion Kruse; COUTINHO, Mário; Abrão, Janete. A vila do IAPI. 1ª Ed. Porto Alegre: SM Cultura,1991. WENCZENOVICZ, Thais Janaína. Edmundo Gardolinski: um engenheiro memorialista. Secretaria de São Matheus do Sul.


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Lima, Peru

Projeto 1944-1945

Realização 1945-1949

UNIDAD VECINAL N.3

Ana Beatriz Santos Perez Ygor de Goes Sena

D

esde o começo do século XX, a cidade de Lima já vinha sendo objeto de propostas e intervenções urbanas que se vinculavam a elaborações de projetos pontuais de melhoramentos ou de embelezamento da cidade. Nos anos 30, no entanto, devido à crise política do país, iniciou-se uma busca por uma nova consciência de vida peruana. No âmbito do pensamento urbanístico moderno foram levantados temas relacionados com a situação da moradia (em especial, da classe operária) e da expansão da capital do Peru, abordado por profissionais das áreas de engenharia e, posteriormente de arquitetura. Eram notórios os estudos que se centravam em propostas de expansão da cidade e de sua área edificável, em resposta à crise de habitação que vinha se agravando, devido à desproporção entre a área construída e a população e o encarecimento do valor da propriedade e do custo da construção. O projeto da Unidad Vecinal 3, do arquiteto e então deputado Fernando Belaúnde Terry, fazia parte do primeiro plano de moradias populares do Governo peruano, o Plan de Viviendas (1945). Implantado pela Corporación Nacional de la Vivienda (CNV), o plano propunha diversas unidades de vizinhança para a cidade de Lima sendo a UV3 a primeira a ser construída. A proposta do Plan de Viviendas se vinculava à Carta de Atenas e à teoria das neighborhood-units americana, considerando o problema da falta de moradia e a descentralização da capital. Uma de suas justificativas era o fato de que nos últimos vinte anos os lugares de trabalho se haviam deslocado, paulatinamente, do centro da cidade. Isto havia acarretado que as distâncias entre a moradia (localizadas no centro da cidade) e os lugares de trabalho tornaram-se cada vez mais longas. Portanto a ideia era que todas as unidades de vizinhança fossem autossuficientes, sendo necessário que

tivessem os serviços básicos correspondentes a um número definido de habitantes e que estivessem próximas aos locais de trabalho. A UV3 foi implantada em uma área naquele momento ainda rural, a caminho do porto de Callao e próxima a zona industrial. Sua imagem era poderosa entre campos de cultivo, de implantação triangular e composta de blocos lineares e volumes puros na paisagem. O conjunto foi afastado aproximadamente 40m com relação à hoje Avenida Colonial. Assim evitava-se o contato direto com essa via principal. Esse espaço de transição arborizado constituía-se em um “filtro urbano”, com a finalidade de minimizar a poluição do ar e sonora1. Foram construídos 55 edifícios de moradia, de dois e quatro andares, e um total de 1.112 unidades de habitação, de 1 à 5 quartos2. Esses edifícios eram organizados a partir de um espaço central, principal do conjunto. Foram propostos dois tipos de espaços semi-públicos, um que dava acesso aos edifícios e outro que era destinado aos estacionamentos. Isto permitiu que fossem separadas as circulações de pedestres e veículos (cul-de-sac), sendo que estas últimas se restringiam somente ao entorno do conjunto. Nesse mesmo lado do conjunto, foi localizado o centro cívico e social. No espaço central foram projetadas as escolas elementares (para meninas e meninos), a infraestrutura esportiva e a igreja3. Ainda com relação à circulação de pedestres, os membros da CNV garantiam que estas haviam sido projetadas com largura e arborização adequadas. Sua presença solitária no meio dessa paisagem agrícola se converte em uma contundente intervenção e demonstração de potencialidade por parte do governo em busca do progresso social da nação. Através do espaço público e das áreas verdes4 buscava-se monumentalizar duas necessida-


Projeto de bairro ou cidade nova

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des básicas do homem: a habitação e recreação. Sua área total era de aproximadamente 30 hectares, dos quais 12% correspondiam à área coberta e 88% às áreas livres. Comparada a toda extensão urbana de Lima, 4000 hectares para 650 mil pessoas, a UV3 representava quase 10% do total. Sua geometria industrial em meio de terras de cultivo proporcionou a UV3 uma aura de proposta utópica. A construção se converteu simbolicamente no padrão de vida mínimo para os trabalhadores, assumindo o verdadeiro significado de monumento de equipamento urbano para a classe trabalhadora

do Peru moderno. Para Belaunde Terry, era uma cidade que havia surgido da “noite para o dia”, finalizada suas obras em 1947, e simbolizava a “obra más audaz y más revolucionaria jamás emprendida en nuestro país en materia de habitaciones populares” (BELAUNDE TERRY, 1947).

1. Organização espacial da Unidad Vecinal nº 3

3. Programa da Unidad Vecinal nº 3

2. Tipologias da Unidad Vecinal nº 3

4. Disposição do espaço público da Unidad Vecinal nº 3

FERNANDO BELAÚNDE TERRY

*1912 (Lima, Peru) †2002 (Lima, Peru) Fernando Belaúnde (Lima, 1912-2002) estudou arquitetura nas Universidades de Miami (1930-33) e Texas (1934-35). Ao retornar para sua cidade natal em 1936, trabalha na Sociedad de Beneficencia Pública de Lima e funda a revista El Arquitecto Peruano (EAP). Em 1943, é nomeado professor de Urbanismo da Pontífica Universidad Católica del Peru (IUP). Em 1944, fundou com outros colegas o Instituto de Urbanismo del Peru (IUP) e publicou o artigo “Algunos aspectos generales del problema urbano en Lima” em que propõe uma espécie de Carta de Atenas para a capital. No ano seguinte, é eleito deputado por Lima, escreve os artigos “Qué es una unidad vecinal?” e “Plan de vivienda del Gobierno Peruano” e inicia as gestões para aprovação da construção da Unidad Vecinal nº3 (UV3) na Câmara dos Deputados. Foi Terry quem elaborou o “Proyecto Experimental de Vivienda (PREVI)” em 1966 e foi também presidente do país duas vezes em 1963-69 e, posteriormente, 1980-85.

Fonte: ESPINOZA, José C. Fernando Belaunde Terry e o ideário moderno na arquitetura e no urbanismo no Peru entre 1936 e 1968. Tese de doutorado. Salvador, 2012. GARCÍA-HUIDOBRO, Fernando; TORRITI, Diego; TUGAS, Nicolás. ¡El Tiempo Construye! Time Builds! Barcelona, 2008. ISAACS, Reginald R. Concepto de la unidad vecinal en la teoria y en la practica. 1965. KAHATT, Sharif S. Utopías Construidas: Las Unidades Vecinales de Lima. Peru, 2015. TORRES, Patricia. Transferencia de la idea urbana de ciudad-jardín y apropiación del modelo construido de la “Unidad Vecinal” en Lima. Revista INVI. Chile, Vol. 31, N. 88, 2016.


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CADERNO DE PROJETOS URBANOS NA AMÉRICA LATINA (1845-1945) V.1 Impressão: LPG FAU-USP Tipologia: família Franklin Gothic Número de páginas: 64 Tiragem: 75 Formato: 21 x 29,7 cm Capa: papel branco com alvura 120g Miolo: papel jornal 57g




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