Revista Viração - Edição 115 - Jul/Dez 2019

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cumprir sua jornada prisional. Ali nasce a sua prisionalização. Uma vez inserido na rotina ociosa do cárcere, as coisas mais comuns do dia a dia em liberdade começam a fazer falta – e sentido. Você começa a sentir falta. E tudo faz falta. Falta o amor, falta a amizade, falta família. Falta o calor humano, o sorriso, o conselho, o ombro, a mão estendida, falta a liberdade, falta a vida. Falta tudo. E tudo falta. Pouco a pouco, sua percepção alterada pela limitação acinzentada das muralhas faz o simples ter o real significado de grandeza. O cheiro da terra molhada trazida pelos ventos, a velocidade em que caem as gotas d’água trazidas pelas chuvas, os tímidos raios de sol que chegam mornos e quadrados em sua face, a hora neutra da madrugada em que você pode se dar ao capricho de deixar não mais que algumas poucas lágrimas rolarem discretas sobre a face pálida... Sem liberdade, você perde noção de tempo e espaço. O convívio lado a lado com as “leis do cão” vão drenando sua sensibilidade afetiva. Dia a dia respirando a maldade e subjugado aos castigos informais que os agentes do Estado incriminam àqueles que se recusam a afundar, criam-se laços de desconfiança, de dúvida. Você vive em constante estado de apreensão, de tensão, de estresse concentrado. Passei por várias rebeliões violentas. Em cada uma delas

aprendi várias lições que ainda hoje carrego comigo. Uma delas é viver cada momento como se fosse o último. Desde o massacre no Carandiru aos dias de hoje, a truculência policial e dos agentes do Estado dentro das prisões ainda são violentas, desumanas e ilegais. Vi muita gente morrendo. Vi vários companheiros de cela se suicidarem. Vi vários enlouquecerem, do nada, por causa da morte de algum ente querido, de alguma injustiça, decepção amorosa, abandono de parentes ou amigos(as). Tudo isso você vai absorvendo a tragos demorados ao longo do tempo. Assim, vão passando os dias, os meses e os anos e o que sobrou da sua vida? O que sobrou de você? Geralmente não sobra muita coisa além de si próprio e da sua capacidade cognitiva de evitar novos erros. O pior sentimento é saber que você escolheu atrasar sua jornada satisfazendo aos apelos da emoção e da irracionalidade. Quando, enfim, chega o momento da liberdade, você ainda tem a forte impressão de ser mentira, como se a liberdade fosse um imerecido presente ou um bem que se mereça – quando, na verdade, a liberdade é nada menos que o princípio vital que rege todas as coisas.

387.759.600 segundos, 6.462.660 minutos, 107.711 horas, 4.448 dias, 641 semanas, 147 meses, 12 anos. Quando me senti em liberdade – após me sentar na janela do ônibus que viajou por 9 horas até Sampa – uma das perguntas que me fiz e faço até hoje é: “O que houve com aquele mundo todo onde eu vivi antes de ser preso?”. Esse é um ponto cego, uma lacuna, um mistério, a pergunta que não quer calar.

ONDE? Ainda hoje, entre tantas recordações, procuro no espelho a pessoa que fui. Algum traço daquele rapaz que mal tinha barba no rosto quando sujou de sangue suas mãos. Ainda hoje procuro lugares, coisas e pessoas. E não encontro. Mas graças aos poderes da liberdade e da vida, hoje tenho resgatado alguns fragmentos da minha jornada. Ainda trabalho na reconstrução da minha personalidade, trabalho em prol de me reorganizar socialmente, não sem o sabor de algumas dificuldades, mas sob o paladar apurado de quem saboreou o néctar da liberdade e se embriagou de amor por ela.

Do pavilhão onde me encontrava preso quando o agente penitenciário anunciou minha condicional até o portão final onde a liberdade me esperava, contei 1.375 passos, 43 portões,

Revista Viração • Ano 16 • Edição 115

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