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Introdução

Introdução

Da Rua à Arena: paralelos da cultura em disputa

“A história do futebol é uma triste viagem do prazer ao dever. Ao mesmo tempo em que o esporte se tornou indústria, foi desterrando a beleza que nasce da alegria de jogar só pelo prazer de jogar.” (Galeano, 2015, p.10)

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A sociabilidade derivada do modo de produção capitalista impõe ao habitante da cidade a reprodução cotidiana de tarefas cíclicas e quase mecanizadas. A monotonia da rotina, conforme conhecemos e naturalizamos, limita as possibilidades de apropriação do espaço urbano e reduz as atividades àquelas que geram valor, ou àquelas que contribuem para a reprodução do que gera valor, uma vez que este cotidiano é construído em torno do trabalho produtivo e do consumo. O trabalho, a moradia, a saúde e as demais categorias sociais urgentes que reivindicamos também podem ser analisadas sob esta ótica, e por esta questão, tornam-se pautas pró-sistêmicas; na medida em que são atendidas, não só contribuem para a manutenção desta ordem, como também sufocam outras possibilidades de expressão humana, como a cultura e a arte, por exemplo.

Assim, passa pela reivindicação de um assim chamado “direito ao ócio” a possibilidade de construir novas formas de habitar a cidade e romper a normativa produtivista que conhecemos como rotina. O papel do projeto de arquitetura neste cenário deverá ser equipar e qualificar equipamentos coletivos cujos programas estimulem atividades não-produtivas.

“As necessidades urbanas específicas não seriam necessidades de lugares qualificados, lugares de simultaneidade e de encontros, lugares onde a troca não seria tomada pelo valor de troca, pelo comércio e pelo lucro? Não seria também a necessidade de um tempo desses encontros, dessas trocas?” (Lefebvre, 2011, p.105)

A afirmação das formas de habitar a cidade que subvertam a lógica esboçada acima demanda a construção de espaços urbanos pautados por relações sociais não-produtivas, vinculadas ao lazer, aos encontros e às atividades lúdicas. Para Lefebvre, nas condições favoráveis o arquiteto pode exercer o seu papel

de auxiliar o desenvolvimento dessas relações, preparar a forma com que elas aconteçam, mas não criá-las (Lefebvre, 2001).

Dessa maneira, partindo do pressuposto do trabalho com formas de relação social já consolidadas, que se enquadram nas ideias de renovação da atividade urbana dadas por atividades coletivas, espaços de troca e promoção de encontros, temos o futebol como uma potente ferramenta de manifestação cultural do nosso tempo. No seu sentido mais amplo possível, o futebol nasceu e resiste no espaço urbano, tendo a rua e os campos como palcos para a sua realização, e repercute à sua volta os valores de coletividade necessários e intrínsecos à vida humana.

Na mesma medida, a inserção urbana dos campos de futebol, quando públicos, exerce um papel fundamental de promoção não só da prática do esporte, como também de lugar cívico, espaço de encontros e de atividades culturais diversas. Ao tratar da cidade latino-americana, Gorelik sugere que antes de uma forma, ela é uma categoria do pensamento social latino-americano. Ainda que, sob o ponto de vista da forma, esta categoria se expressa, sobretudo, nas áreas de precariedade urbana: sejam elas as villas, barriadas, ou favelas (Gorelik, 2005). Faz-se necessário ressaltar nestes espaços os campos de futebol; grandes áreas livres em cenários de altíssima densidade populacional, muitas vezes planejados e geridos pelas populações locais, demonstrando a apropriação e a importância destas áreas.

A relação urbana dos campos de futebol nas periferias das cidades latinas ressalta aos olhos ao contrastar o vazio do campo com uma morfologia urbana que avança sobre todos os espaços disponíveis e parece não obedecer limites espaciais pré-definidos. Esta relação evidencia a centralidade destes espaços, e foi objeto de estudo da exposição “Pelada” do fotógrafo Leonardo Finotti (2011) e do ensaio “Terrão de Cima”, de Renato Stockler (2012):

“A imagem de um campo como um oásis na paisagem urbana transforma o vermelho da terra em palco para a resiliência do futebol popular e comunitário. Mas são raros hoje. São poucos os campos de várzea remanescentes: espaços que sobrevivem e resistem aos processos de ocupação e especulação imobiliária e que se tornam o retrato da urgência por espaços coletivos e públicos na periferia.” (Stockler, 2012)

Foto 1: Ensaio

“Terrão de Cima”. Fonte: Acervo do fotógrafo Renato

Stockler.

Foto 2: Ensaio

“Terrão de Cima”. Fonte: Acervo do fotógrafo Renato

Stockler.

Foto 3:

Exposição “Pelada”. Fonte:

Acervo do fotógrafo

Leonardo

Finotti.

Foto 4:

Exposição “Pelada”. Fonte:

Acervo do fotógrafo

Leonardo

Finotti.

Dessa forma, por um lado o futebol se expressa como uma manifestação popular da cultura brasileira e é visto como uma ferramenta potente de formação humana, sendo na cidade e nos bairros os lugares onde acontece e é celebrado. Porém, por outro lado, como qualquer forma de expressão da cultura ele passa por locais de disputa, e dentre os quais aqui serão identificados a mercantilização e a espetacularização.

“Toda a vida das sociedades nas quais reinam as modernas condições de produção se apresenta como uma imensa acumulação de espetáculos. Tudo o que era vivido diretamente tornou-se uma representação.” (Debord, 2017, p.37)

Ao diagnosticar no livro “A Sociedade do Espetáculo” como a realidade tem se estabelecido a partir de uma relação imagética entre tudo e todos, ainda que não tenha mencionado diretamente, Debord de certa forma previu as movimentações do mundo do futebol ao longo dos últimos anos. A “indústria da bola” tem modificado a forma com a qual se encara o esporte em todos os seus aspectos no caminho da sua produção espetacular. Desde domesticações ao modo como se comportam os espectadores nos estádios, até as movimentações financeiras milionárias do futebol-mercadoria, a hegemonia do esporte - e a sua relação com quem o acompanha - tem se descolado da realidade material e transferido sua vivência à realidade imagética.

Estes fenômenos amplos abrangem diversas categorias da cultura, na medida em que identificado o seu potencial de rentabilidade. Devido a este fato, aqui encontramos aproximações importantes entre o futebol e a arquitetura. Ao descrever o cenário da produção de arquitetura das últimas duas décadas, o arquiteto Pedro Arantes parece ter diagnosticado uma nova forma de gerar renda descoberta por este novo ciclo, que superou a velha renda fundiária. Este movimento aparece como uma característica central na era da arquitetura das marcas. Novos edifícios, os quais devem esbanjar as formas mais complexas possíveis, necessariamente assinados pelas mais expoentes estrelas do cenário global, são disputados por cidades que, no intuito de incluírem-se num seleto grupo, adequam as suas formas urbanas e re-caracterizam (ou criam) suas imagens para o mundo através da arquitetura (Arantes, 2012).

Ao passo que o objetivo da arquitetura hegemônica deixa de ser a solução de problemas reais e de grandes escalas, passamos à produção de mercadorias de um tipo especial, que carregam consigo a exclusividade, o ineditismo e a inovação, isto é, edifícios tão únicos quanto as cidades ‒ ou as marcas ‒ que representam. A relação com o ambiente construído deixa de ser material e passa ao plano imaterial, na medida em que o consumo não se dá somente pelo uso, mas principalmente pela imagem, ou, por sua vez, nas palavras de Debord, “a realidade vivida é materialmente invadida pela contemplação do espetáculo e retoma em si a ordem espetacular à qual adere de forma positiva” (Debord, 2017, p.39). Nesta arquitetura do espetáculo, “a forma se torna capital por meio de um fenômeno imagético, no qual é remunerada como capital simbólico, por uma espécie de renda da forma” (Arantes, 2012, p.55).

A expressão máxima da produção espetacular da arquitetura e do futebol, agora em conjunto, pode ser explicitamente representada pela Copa do Mundo de Futebol da Fédération Internationale de Football Association (FIFA). Sob o ponto de vista do esporte é o momento no qual o mundo inteiro volta a sua atenção para a forma máxima deste futebol hegemônico. Já sob o ponto de vista da arquitetura é o momento no qual os países disputam a exclusividade de obras assinadas pelos expoentes máximos da contemporaneidade, as quais estarão imersas neste circuito reconhecido por Arantes.

O legado da Copa do Mundo de 2014 nas cidades brasileiras ainda é um objeto amplamente estudado, e aponta como consequências diretas remoções, bairros gentrificados e descaracterização das paisagens urbanas. Já para a Copa do Mundo do Catar, a ser realizada em 2022, o casamento entre as formas hegemônicas do futebol e da arquitetura produz efeitos ainda mais preocupantes. Segundo investigação publicada em 2013 pelo jornal inglês The Guardian, os estádios da copa estavam sendo construídos sob condições de trabalho análogas à escravidão, e pelo menos 44 trabalhadores haviam morrido em decorrência das obras (The Guardian, 2013). O mesmo veículo, em 2019, revelou também que no pico da construção dos estádios, em regimes de 10 horas por dia sob temperaturas de até 45°C foram centenas os trabalhadores mortos (The Guardian, 2019). Na lista da autoria dos estádios, aparecem escritórios de arquitetura como Foster + Partners e Zaha Haddid Architects, por exemplo.

Foto 5: Acima o está-

dio Lusail, por Manica Architecture e Foster + Partners (Qatar 2022 Bid), abaixo o estádio Al Wakrah, por Zaha Haddid

Architects (AECOM).

A partir dos fenômenos apresentados, o projeto reconhece o futebol e a arquitetura como categorias sociais cujas lógicas de produção estão em permanente disputa pelos seus agentes. Nesta medida, através da elaboração de um novo espaço construído é pretendido disputar estas categorias, sob a perspectiva de defesa de um futebol reconectado com as suas origens populares, desvinculado da lógica mercantil que carrega hoje e reconhecendo o seu potencial de contribuição pelo direito à cidade. Já pelo lado da arquitetura, busca-se a elaboração de um programa público capaz de fomentar as contribuições dadas pela prática do esporte.

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