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Desmontandoaautoria,semfazerestragos

por Giselle Ribeiro

A escrita poética pede tempo de maturação para ser projetada no mundo. Há que se fazer pesquisa, ler outros livros, ler gente, ler o mundo. É preciso se permitir esse tempo de gestação. Às vezes um poema nasce como um espirro, outras vezes ele pode levar horas, dias, semanas, para ser aceito como tal.

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Honestamente, não acredito que eu determino quando um poema está, ou não está, pronto. É a minha escrita que manda em mim, eu sou só o canal!

Hoje, cheguei aos 48 poemas do livro Mulheres que suspendem o recreio e sei que é preciso continuar escrevendo, ainda não é o tempo da publicação. Por que eu sei disso? Porque o livro me comunica. É o que tenho aprendido esses anos todos.

Ainda iniciante nesse ofício, eu tinha aspiração de “ser a tal” , aquela que faz e acontece na escrita poética. Quando se é iniciante, é natural que se tenha esses rompantes. O problema é não planejar a fuga desse estado, se deixar cair sem paraquedas e ver os estragos no chão.

Como eu descubro que não sou a tal para a minha escrita? Quando encaro um poema e fico afoita para postar e mostrá-lo, imaturamente, no meu espaço virtual, faço isso ainda hoje, algumas vezes. Depois, mais adiante, o texto que ainda não estava formado, que não se via como um poema, ri debochadamente de mim e me põe a fazer os reparos. Esse é o momento da queda de que lhes falei acima. Às vezes precisamos ser lançadas ao estado de ridícula, só para dar uma sacodida no ego e deixá-lo numa zona de menos gás. É uma questão de preparo, aprender a ser escritora é

um exercício constante. Estou na construção de uma trilogia, o segundo livro da série, o primeiro foi Escola para mulheres safo, (editora Folheando, 2020), neste livro descobri que tem alguém que se infiltra em mim e evapora os rumos da escrita dos poemas. É uma mulher, disto estou certa. Dina, esse é o nome dela, que pode ser tantas, porque se assume como vozes de muitos tempos: passado, presente, futuro. Algumas palavras dos livros da trilogia pedem para ser amoladas, feito faca cortante, elas sabem que precisam sair das páginas do livro arrancando as vísceras, a corrente lacrimal de mulheres, fazer algum lampejo de mudança na vida delas, mas não me envaidece essa fórmula. A força que pode, ou não pode, uma escrita, não me dá o direito à arrogância. Eu só preciso, como dizia Barthes, retornar ao grau zero da minha heroicidade. O que fazer quando lançamos um livro, avistamos uma fila de autógrafo e depois de algum tempo, mais ou menos longo, descobrimos aquela publicação em um sebo, um desses livros com dedicatória assinada pelo autor ou autora sendo vendido a um preço razoável? Não cortamos os pulsos, também não é o caso de ir ao confessionário pedir penitência, pode ser que aquele livro tenha caído nas mãos de uma miss que só leu capa, contracapa e orelha, ou as palavras lá de dentro do livro tenham sido negligenciadas, quero dizer, não foram amoladas o suficiente para se tornarem úteis àquela leitora, ou aquele leitor. É o caso de encarar as possibilidades de alguma verdade e repensar o percurso do livro que se escreve. Um fato curioso ocorrido comigo, uma vez enviei um livro a uma editora para avaliar a possibilidade de publicação, nunca recebi qualquer retorno. Fiquei ressentida, os ossos da minha estrutura de poeta pareciam ter sido fraturados, naqueles dias. Tive crise de escrita por algum tempo. Achei que não era esse o

meu fim, melhor seria me manter como professora de poesia e teorias da escrita literária na Universidade Federal do Pará e esquecer outras aventuras. Como já disse aqui, quando se trata de arte poética, eu não mando em mim. Passado algum tempo, lá estava eu descobrindo outras palavras inquietas me incomodando, como se quisessem saltar de dentro de mim e precisassem de um empurrão. É isso. Naquele momento descobri que somos, na verdade, emprestados a essas vozes. Recentemente, voltei ao projeto de livro que enviei à editora, me assombrei com o rascunho que mandei julgando ser aquilo um livro, já definido como tal. O tempo todo corremos o risco inoportuno da vaidade. O silêncio da editora muito me diz, desde que aprendi a pisar no freio. Tive o mesmo deslumbre quando finalizei a escrita do livro Escola para mulheres safo, (2020). Mas, desta vez, antes de encaminhar à editora Folheando, fui visitada por Dina, personagem, professora e proprietária da escola, aquela mulher que se instalou em mim e comanda a ordem da trilogia. Ela me convidou a rever aqueles escritos antes de enviar. Não muito surpresa, fiz algumas reformas, naquela casa em construção, para então encaminhar para publicação. É sempre bom desvelar o lugar do autor/da autora, reconhecendo a propriedade da obra literária, antes mesmo de entrar nas arrebentações de um livro. Diz Foucault (p. 45, 2009): Em suma, o nome de autor serve para caracterizar um certo modo de ser do discurso: para um discurso, ter um nome de autor, o facto de se poder dizer “isto foi escrito por fulano” ou “tal indivíduo é o autor” , indica que esse discurso não é um discurso quotidiano, indiferente, um discurso flutuante e passageiro. [1] Ainda no mesmo livro, o filósofo faz arremates relevantes e estabelece a presença dos vários eus, nos textos poéticos. Como podemos ver, o que importa tanto e mais é a escrita e não a sua

autoria. Quando dizemos que uma escrita é capaz de atravessar os tempos, deve ser porque o pronome de primeira pessoa se desenlaça de um “eu ” único, o autor, indo ao encontro de um “eu ” polissêmico, porque é mais coletivo, parceiro, que pede para abraçar o leitor ou leitora sem repreensões. Alerta, outra vez, Foucault (p. 36): A obra que tinha o dever de conferir a imortalidade passou a ter o direito de matar, de ser a assassina do seu autor.

[1] FOUCAULT, Michel. O que é um autor. Tradução Antônio Fernando Cascais e Eduardo Cordeiro, Nova Vega, Limitada, 7ª edição, Lisboa, 2009.

Desmontar a autoria é função de quem lê. É o que estou sempre a me dizer, quando escrevo. Se não for assim, não tem muito sentido atravessar os tempos.

Giselle Ribeiro é professora de Teoria Literária na UFPA - FALE e autora do livro

Escola para mulheres safo.