SAGARANA - JOÃO GUIMARÃES ROSA

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e tem folga p'ra se poderr comer mais! - E ele foi logo fazendo assim, do jeito como tinha falado; mas nós nem podíamos pensar em fazer que nem ele. Porque a gente come o 322 !li capim cada vez, onde o capinzal leva as patas e a boca da gente ... "Outra vez, boi Rodapião disse: - Quando o boi Carinhoso ficou parado, na beirada do valo do pasto, e não quis comer de jeito nenhum, o homem veio e levou o boi Carinhoso no curral, e pôs p'ra ele muito sal, no cocho... Se nós ficarmos também sem comer, todos, parados na beirada do valo, o homem. nos dará milho e sal, no curral, no cocho grande. .. - E ele fez assim mesmo, e aquilo deu certo; e boi Rodapião comeu sal muito e ficou alegre. Nós, não." O rangido do carro de novo se reforça. Brilhante dormiu. Veio um silêncio. E todos, de olhos quase fechados, ficam vivendo na cabeça coisas mais fundas que o pensamento e o sonho, e, assim, sem pressa, chegam ao vau do ribeirão. Está um mormaço pesado, mas o ribeirão corre debaixo de árvores, no bem-bom. Tiãozinho entra, até os joelhos, na água, fria que faz cócegas. Molha os pulsos. O chapeuzinho furado é peneira para vazar. Então, ele abaixa as mãozinhas juntas, e bebe. A junta da guia, com simetria perfeita, baixa os três arcos da canga, para trazer as belfas ao rés da correnteza; e, abrindo as fuças em conchas moles, os bois sorvem, demoradamente. De eis, Buscapé, e depois Namorado, acabaram; sacodem o molhado das caras, lambem os beiços, devagar, e ficam espiando, à espera. Que santos de grandes, e cheirando forte a bondade, bois companheiros, que não fazem mal a ninguém; criação certa de Deus, olhando com os olhos quietos de pessoa amiga da gente! ... E Tiãozinho corre os dedos pelo cenho de Buscapé, e passa também mão de mimo no pescoço de Namorado - imóveis, os dois. Todos já beberam; mesmo Realejo não tem mais sede: mantém o focinho abaixado, só porque, no limo que se esfiapa das pedras do fundo, supõe talvez uma raça de capim de luxo, que deve de ser macio... Aí é que Agenor Soronho está mesmo com o demo: 323 - Vam'bora, lerdeza! Tu é bobo e mole; tu é boi?! ... Carece de ficar aí a vida inteira, feito estaca de dentro d'água, feito esteio de moinho? ! ... Vamos, Canindé!.. . Dançador! Vamos! ... Quando as rodas entram no córrego, Agenor Soronho não se molha, porque já está trepado, entre o pigarro e a chavelha, no cabeçalho, que avança como um talhamar. E fez bem, porque, depois da passagem, por metros, há um alagadiço


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