Coletânea de Textos brasileiros

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sem compreendê-lo. E já que não têm como entender essas diferenças, buscam explicações no que se convencionou chamar de "estalo". Freqüentemente dizem: "O menino deu o estalo" ou "Ainda não deu o estalo, mas uma hora vai dar". Para se acomodar a essa teoria, o processo de ensino é caracterizado por um investimento na cópia, na escrita sob ditado, na memorização pura e simples, na utilização da memória de curto prazo para reconhecimento das famílias silábicas quando o professor toma a leitura. Essa forma de trabalhar está relacionada à crença de que primeiro os meninos têm de aprender a ler e a escrever dentro do sistema alfabético, fazendo uma leitura mecânica, para depois adquirir uma leitura compreensiva. Ou seja, primeiro eles precisariam aprender a fazer barulho com a boca diante das letras para depois poder aprender a ler de verdade e a produzir sentido diante de textos escritos. Assim, os três tipos de concepção a que nos referimos no início deste capítulo se articulam para produzir a prática do professor que trabalha segundo a concepção empirista: a língua (conteúdo) é vista como transcrição da fala, a aprendizagem se dá pelo acúmulo de informações e o ensino deve investir na memorização. Na verdade, qualquer prática pedagógica, qualquer que seja o conteúdo, em qualquer área, pode ser analisada a partir deste trio: conteúdo, aprendizagem e ensino. Para mudar é preciso reconstruir toda a prática a partir de um novo paradigma teórico Quando se tenta sair de um modelo de aprendizagem empirista para um modelo construtivista, as dificuldades de entendimento às vezes são graves. De uma perspectiva construtivista, o conhecimento não é concebido como uma cópia do real, incorporado diretamente pelo sujeito: pressupõe uma atividade, por parte de quem aprende, que organiza e integra os novos conhecimentos aos já existentes. Isso vale tanto para o aluno quanto para o professor em processo de transformação. Se o professor procura inovar sua prática, adotando um modelo de ensino que pressupõe a construção de conhecimento sem compreender suficientemente as questões que lhe dão sustentação, corre o risco, grave no meu modo de ver, de ficar se deslocando de um modelo que lhe é familiar para o outro, meio desconhecido, sem muito domínio de sua própria prática — "mesclando", como se costuma dizer. O equívoco mais comum é pensar que alguns conteúdos se constroem e outros não. O que, nessa visão "mesclada", vale dizer que uns precisariam ser ensinados e outros, não. Em outros casos o modelo empirista fica intocado e as idéias que as crianças constroem em seu processo de aprendizagem são distorcidas a ponto de o professor vê-las como conteúdo a ser ensinado. Um exemplo disso são os professores que, encantados com o que a psicogênese da língua escrita desvendou sobre o que pensam as crianças quando se alfabetizam, passaram a ensinar seus alunos a escrever silabicamente. Que raciocínio leva a uma distorção desse tipo? Se os alunos têm de passar por uma escrita silábica para chegar a uma escrita alfabética, ensiná-los a escrever silabicamente faria chegar mais rápido à escrita alfabética, pensam esses professores. Essa perspectiva só pode caber num modelo empirista de ensino, cuja lógica intrínseca é a de organizar etapas de apresentação do conhecimento aos alunos. Essa lógica não faz nenhum sentido num modelo construtivista.

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