Decifrando rendas: processos, técnicas e história

Page 1



NOÇÕES HISTÓRICAS

1


NOÇÕES HISTÓRICAS

2


NOÇÕES HISTÓRICAS

3


© Vera Felippi 1ª edição 2021. Todos os direitos reservados.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Felippi, Vera Decifrando rendas [livro eletrônico] : processos, técnicas e história / Vera Felippi ; [ilustração Luciana Rocha]. -- 1. ed. -- Porto Alegre, RS : Ed. da Autora, 2021. PDF Bibliografia ISBN 978-65-994186-1-7 1. Artesanato 2. Indústria têxtil 3. Rendas (Indústria têxtil) 4. Rendas (Indústria têxtil) História 5. Rendas (Indústria têxtil) - Produção 6. Tecidos (Indústria textil) I. Rocha], [ilustração Luciana. II. Título.

21-61417

CDD-677.653 Índices para catálogo sistemático:

1. Tecidos : Rendas : Indústria têxtil : Tecnologia : História 677.653 Aline Graziele Benitez - Bibliotecária - CRB-1/3129







DECIFRANDO RENDAS

por Evelise Anicet Rüthschilling A primeira renda que eu vi... Não lembro, mas sinto que me impressionou.

Tento lembrar e trazer para a consciência. Por que aprecio as rendas? Quais aspectos? Talvez não tenha importância elencá-los, mas com certeza foi o todo, o conjunto de elementos visuais e táteis daquele tecido tão delicado e complexo. Acho que todos concordam que o fascínio que as rendas despertam em nós talvez advenha da combinação expressiva de sua poesia visual, técnica apurada, habilidade manual, inteligência, conhecimento, dedicação e muito amor. Amor, sim. As rendas estão presentes em momentos especiais da nossa vida e de tantos povos, como este livro demonstra tão bem - o trajeto histórico das rendas de bilro e de agulha na civilização europeia e brasileira, da Renascença aos dias atuais. Este rico texto é o resultado de muita dedicação, perseverança, competência e amor da autora, Dra. Vera Lucia Felippi da Silva, a quem tive o prazer de acompanhar como sua orientadora desde seu trabalho de conclusão de curso no Bacharelado em Artes Visuais (UFRGS). Em 2011, recebemos, no Núcleo de Design de Superfície da UFRGS, uma doação maravilhosa da amiga e expert em design, Profa. Dra. Lucy Niemeyer. Tratava-se da coleção de rendas de sua família, construída ao longo de várias gerações, no Rio de Janeiro. As lindas peças, na sua maioria feitas à mão, olhavam para mim, e eu para elas; foi um diálogo em nível de pensamento, mas muito intenso. Alguma coisa tinha que ser feita! Imediatamente, me lembrei da Vera, porque, além de designer têxtil e tecelã, havia se formado há pouco tempo em Artes Visuais, com um trabalho de conclusão de curso justamente tratando das relações entre arte, artesanato e design têxtil.

10


PREFÁCIO

O encontro da Vera com essas rendas também foi emocionante. Quando as viu, seus olhos se encheram de lágrimas e suas mãos cobriram sua boca, demonstrando o fascínio. E, como o melhor critério para selecionar pessoas para trabalhar conosco é o coração, encorajei-a a submeter pesquisa à seleção de Mestrado em Design no Programa de Pós-Graduação em Design da UFRGS, no que teve êxito pela consistência de sua proposta de pesquisa. E assim, por dois anos, a Vera se dedicou ao estudo das rendas. Ela queria saber como são feitas e construir critérios para classificá-las. O objetivo era catalogar todas aquelas 201 peças de renda da coleção Niemeyer. A pesquisa de dados se fundamentou em informações advindas de todas as fontes possíveis - repositórios de pesquisas, plataformas de dados, Internet, visitas físicas e virtuais a museus, coleta de imagens, entrevistas pessoais com artesãos, etc. - porque a bibliografia era escassa e, majoritariamente, internacional. Nessa época, fiz pós-doutorado e estive em viagem de estudos no Reino Unido, quando fui acolhida pela Profa. Dra. Amanda Briggs-Goode, reconhecida designer de superfície, diretora da School of Art&Design e coordenadora do grupo de pesquisa Lace Heritage que mantém o maior acervo de rendas da Inglaterra - The Nottingham Trent University Lace Archive, que abriga 75.000 itens de renda. Lá também conseguimos dois livros específicos que embasaram a pesquisa. Outra grande contribuição foi o fato de a Vera ter sido acolhida pela Profa. Dra. Teresa Cristina Toledo de Paula no Setor de Têxteis do Serviço de Conservação do Museu Paulista, onde fez uma visita técnica de 60 horas. Aprendeu a fazer limpeza e acondicionamento de peças têxteis para preservação. Agora o acervo estava salvo! Faltava ainda fotografar e catalogar todas peças, mas para isso precisava saber identificar os diferentes tipos de rendas. A dissertação de mestrado, intitulada Acervo de rendas Lucy Niemeyer: uma contribuição para o design, foi julgada pela própria Profa. Dra. Lucy Niemeyer, representando a ESDI- Escola de Desenho Industrial do RJ, que viu suas rendas virarem patrimônio cultural; pelas professoras 11


DECIFRANDO RENDAS

Dra. Lauren da Cunha Duarte e Dra. Gabriela Trindade Perry, do PGDesign/UFRGS do PGDesign/UFRGS, e pela Profa. Joana Bosak de Figueiredo, de História da Arte e Moda, do Instituto de Artes da UFRGS. O trabalho de higienização, fotografia, acondicionamento, catalogação e classificação a partir da descrição das técnicas estava pronto, e seu conteúdo, salvaguardado no texto da dissertação, mas não estava acessível à população. Então, novamente, a Vera foi encorajada a seguir sua jornada, avançando no Doutorado em Design do PGDesign da UFRGS, quando o objetivo foi desenvolver um museu virtual que pudesse acolher os resultados de sua pesquisa anterior e, ao mesmo tempo, disponibilizá-los à população. Porém, como não tinha background em tecnologia digital, outro grande desafio se apresentou. Sempre abençoada, foi acolhida pela Profa. Dra. Gabriela Trindade Perry, coordenadora do Núcleo de Apoio Pedagógico à Educação a Distância - NAPEAD/UFRGS, que passou a atuar como coorientadora. Formamos, então, uma equipe multidisciplinar que se complementava em saberes e trabalhava num ritmo de serenidade ativa. Mais quatro anos de trabalho, observando profundamente o funcionamento online dos museus mais importantes do mundo - Rijksmuseum, de Amsterdã, Países Baixos; o PowerHouse Museum, de Sidney, Austrália; The Metropolitam Museum, de Nova Iorque, Estados Unidos; Victoria and Albert Museum, de Londres e Fashion Museum Bath, ambos na Inglaterra; Hermitage Museum de São Petersburgo, na Rússia, entre outros e como eram disponibilizados os conteúdos relativos a rendas e assemelhados. Esses dados foram convertidos em funcionalidades no ambiente digital desenvolvido pela equipe do NAPEAD com dedicação e competência. O ambiente acolheu os dados sistematizados pela autora e, hoje, os disponibiliza online no endereço: http://www.ufrgs.br/mmt. A tese, intitulada Museu Moda e Têxteis UFRGS: fonte de preservação e pesquisa em ambiente digital, foi homologada por banca composta, novamente, pelas doutoras Lucy Niemeyer e Joana Bosak de Figueiredo, mas com o olhar novo da Profa. Dra. Francisca Michelon, que desenvolve pesquisa em Artes com ênfase em Patrimônio Cultural e Gestão de Acervos na Universidade Federal de Pelotas, e do Prof. Dr. Régio Pierre da Silva, 12


PREFÁCIO

coordenador do Programa de Pós-Graduação em Design da UFRGS. O Museu Moda e Têxteis – MMT- foi acolhido carinhosamente pela equipe do Museu da UFRGS, tendo recebido especial atenção de sua coordenadora, Cláudia Aristimunha, e da museóloga Eliane Muratore. Hoje, o MMT está ligado ao Instituto de Artes, tendo a Profa. Dra. Joana Bosak de Figueiredo como coordenadora e eu como presidente do conselho deliberativo. Ele agora faz parte da Rede de Museus e Acervos Museológicos da UFRGS. Como mais um êxito a ser celebrado, o trabalho foi contemplado pela Secretaria de Estado da Cultura do Rio Grande do Sul no Edital Sedac/RS no. 09/2020 de “Produções Culturais e Artísticas” com financiamento da Lei n° 14.017/2020, para publicação deste livro. Assim, o conhecimento construído e o compromisso de sua divulgação à sociedade foram devidamente valorizados. Convidamos à leitura agradável e pitoresca deste livro com que a autora nos brinda, repleto de ilustrações, refletindo a convicção de que as rendas são muito mais que um fazer artesanal feminino desenvolvido ao longo dos séculos e culturas ocidentais. Elas são uma rica fonte de conhecimento, poesia e inspiração para inovação em vários campos, como os de têxteis, arte, arquitetura e design. Dra. Evelise Anicet Rüthschilling Professora aposentada da UFRGS e designer do Atelier Contextura Porto Alegre, fevereiro de 2021.

Figura 1: Design têxtil de Evelise Anicet. Frente e costas de vestido de noiva, construído em peça única, sem costuras, tecido em renda irlandesa por artesãs da cidade de Divina Pastora, Sergipe, em 1980.

13


DECIFRANDO RENDAS

por Teresa Cristina Toledo de Paula Tecendo a manhã Um galo sozinho não tece uma manhã: ele precisará sempre de outros galos. De um que apanhe esse grito que ele e o lance a outro; de um outro galo que apanhe o grito que um galo antes e o lance a outro; e de outros galos que com muitos outros galos se cruzem os fios de sol de seus gritos de galo, para que a manhã, desde uma teia tênue, se vá tecendo, entre todos os galos. E se encorpando em tela, entre todos, se erguendo tenda, onde entrem todos, se entretendendo para todos, no toldo (a manhã) que plana livre de armação. A manhã, toldo de um tecido tão aéreo que, tecido, se eleva por si: luz balão. João Cabral de Melo Neto, 1966

Nunca é simples falar daquilo que se preza sem limites, menos ainda repetir, a cada dia, o quanto esse valor - esse amor- nos faz ser quem somos e atuar como atuamos. Os têxteis têm sido meu foco de encantamento e a eles devo o que tenho de melhor. Eles me trouxeram até aqui. Em 1993, quando retornei de meu aperfeiçoamento como bolsista da Fundação Samuel Kress, assumi para mim o compromisso de ser o primeiro galo, tal qual dito acima no poema de João Cabral de Melo Neto e lancei-me num primeiro grito. Sabia que seria necessário permanecer gritando até que fosse ouvida e recebesse a réplica. E deu certo, aconteceu. Aos poucos, outros tantos galos e cantos foram surgindo, e depois mais outros juntaram-se a mim: quando me dei conta, trinta anos haviam se passado e um lindo coro estava sendo tecido por muitas mãos desse país. Sorte a minha ter sido ouvida por tanta gente determinada e competente, gente 14


PREFÁCIO

que não faz ideia do quanto me ensinou, do quanto aprendi. Vera Felippi, autora deste livro, faz parte dessa gente. Toda e qualquer pessoa que se comprometa a preservar um têxtil precisa tentar responder algumas perguntas, assim que o primeiro momento de admiração se esvai. Que tecido é esse? De que material é feito? Quem o fez? Quando e como o fez? Diferentemente do que se pensa, o especialista não é aquele profissional que tem todas as respostas, que tudo conhece, mas, sim, aquele que sabe como, onde e porquê deve procurar respostas. Engana-se quem pensa ser possível dominar o conhecimento da diversidade dos materiais têxteis; que se possa apenas olhá-los brevemente e já ter consigo todas as respostas. Claro que a experiência nos sugere, sempre, alguns palpites, algumas possibilidades sobre o material estudado, mas é só isso, palpite. O passo seguinte, sempre, é procurar respostas, referências confiáveis que apoiem nossas suspeitas e ajudem a esclarecer nossas dúvidas e fornecer as respostas que precisamos. E assim, caras e caros leitores deste livro, é que se inicia uma nova fase do trabalho de preservação, com certeza a mais difícil delas: encontrar a bibliografia de referência, manuais, catálogos, livros, que contenham o repertório necessário ao encontro de todas aquelas respostas. Apesar de extensa fora do país, a bibliografia brasileira de referência sobre os têxteis - em todas as suas possibilidades-, é ainda insuficiente. No caso das rendas não havia muito a encontrar até então. Espero que você, que procura por esta publicação sobre Rendas, se dê conta da importância deste livro aqui enquanto bibliografia de referência ao estudo das rendas, de suas técnicas e possibilidades no país. Vera Felippi, artista que é, nos traz aqui, organizado e reunido, o melhor de sua consistente trajetória como pesquisadora e artista dedicada às rendas. Anos de experimentações, ensaios e estudos minuciosos com fios e rendilhados inspiraram a construção deste livro. Seu texto claro e atento reúne um conteúdo relevante de apoio ao estudo e à identificação das rendas e todos os seus haveres: frivolité, labirinto, cravo, renascença, bilro, macramé e mais outras tantas a conhecer. E nas imagens reunidas, a tradução visual das técnicas e a beleza de cada volta de fio que, ao se fazer entretecida e dependente de outras voltas de fio ou fios, constroem cada renda. Nada é ao acaso. Nada é mais bonito que um fio e um espaço vazio. Rendam-se todos a essa bela publicação. Teresa Cristina Toledo de Paula Conservadora de têxteis São Paulo, março de 2021.

15


DECIFRANDO RENDAS

Decifrando Rendas: processos, técnicas e história é um livro sobre rendas, como o título já indica. Mas a obra vai além, contemplando desde os processos manuais e os industriais de produção até as diferentes técnicas empregadas para tecê-las. Afinal, a compreensão de seu surgimento e desenvolvimento, bem como das transformações ocorridas nas formas de produção, não seria possível sem uma abordagem sobre seus antecedentes históricos, que remetem à Europa do século XV. No universo têxtil, a renda sempre teve espaço e destaque, principalmente na moda. Apesar disso, para muitos, ela ainda é um enigma. Amanda Briggs-Goode, que lidera o grupo de pesquisa Lace Heritage (do qual fazem parte especialistas nas áreas de História da Renda e Práticas Criativas Contemporâneas), da Universidade de Nottingham, na Inglaterra, e Joy Buttress afirmam que o estudo das rendas costuma ter um foco histórico, justificado pela escassez de experts com conhecimento específico sobre processos e técnicas (Briggs-Goode; Buttress, 2009). Tal afirmação pode ser constatada pela curta bibliografia relacionada ao tema, fator que também serviu de motivação para a elaboração deste livro. O conhecimento registrado nas páginas que seguem decorre do trabalho de uma década de pesquisas acadêmicas por parte da autora trabalho este que resultou em dissertação de mestrado (Silva, 2013)1 e tese de doutorado (Silva, 2018) -, mas também emerge dos mais de vinte anos de atuação prática na criação e produção de tecidos, entre eles rendas manuais. Assim, pode-se dizer que este livro está amplamente ancorado em experiência acadêmica e profissional, sendo um reflexo do aprendizado obtido por meio da dedicação à análise de inúmeras coleções de rendas e publicações. A fundamentação teórica dos estudos acadêmicos é de autores do final do século XIX (Bury Palliser, que autora do livro A History of Lace, de 1865, e Thérèse Dillmont, que escreveu Encyclopedia of Needlework, em 1884) e do início do século XX (C.R Clifford, autor de The Lace Dictionary, de 1913, e George Middleton, com as publicações Imitation of Hand-made Lace by Machinery Part I e Part 1 Em dissertação, tese, currículo lattes e alguns artigos você encontrará a autora referenciada como Silva, por conta de seu nome completo.

16


INTRODUÇÃO

Figura 2: Vera Felippi Maxi colete com técnica de renda de agulha, 2020. Coleção da autora, Porto Alegre, RS, Brasil.

II, de 1938 e 1939), somados a publicações recentes, especialmente de Pat Earnshaw (1983; 1988; 1991; 2000). Instituições museológicas, entre as quais o Victoria & Albert Museum (Farrel, 2007) e o Powerhouse Museum (Shepherd, 2003) foram outras fontes relevantes para a elaboração dos conteúdos históricos ou técnicos presentes nesta obra. Vale ressaltar que essas instituições, assim como o Rijksmuseum, de Amsterdã, e o The Metropolitan Museum, de Nova Iorque, disponibilizam seus acervos de rendas pertencentes a diferentes períodos históricos de modo on-line2, e muitas imagens foram gentilmente cedidas para ilustrar este livro. Nota-se que as bases desta obra estão alicerçadas sobretudo em autores internacionais por conta da falta de bibliografia nacional que trate do 2 Muitos outros museus disponibilizam acervos de rendas, mas, neste livro, optou-se pelas instituições mencionadas por conta da facilidade de acesso, da diversidade do acervo e dos conteúdos oferecidos.

17


DECIFRANDO RENDAS

tema de forma ampla. Por esta razão, Decifrando rendas: processos, técnicas e história faz uma costura envolvendo o conhecimento proveniente dessas fontes e a realidade brasileira; nossa história, nossa produção, nossos conhecimentos (populares e científicos) relacionados às rendas.Por tudo isso, este é o primeiro livro lançado no país que trata do assunto de maneira abrangente, abarcando produção manual, industrial e história. Foi escrito para pesquisadores, estudantes e profissionais de áreas diversas (como História, Moda, Museologia, Design, Antropologia, Artes, entre outras), além de artesãos e interessados que queiram aprofundar seus conhecimentos ou ter uma aproximação inicial ao tema. E, por oferecer um panorama da história, da produção de rendas e de suas técnicas, configura-se como um guia para o estudo, classificação e análise de rendas, contribuindo para atividades de identificação de processos e técnicas, com base no entendimento das estruturas têxteis resultantes das diferentes formas de produção e seus resultados visuais. O livro está organizado em quatro capítulos. No primeiro, foi traçada uma linha do tempo com acontecimentos históricos relacionados às rendas, introduzindo o leitor às origens desse tecido. O texto avança apresentando reis e rainhas que contribuíram para que as rendas manuais se tornassem valiosas e cobiçadas na Europa, principalmente até o século XVIII – a partir desse período, ocorrências como a Revolução Francesa e a Revolução Industrial resultaram em uma alteração de cenário, e as rendas produzidas manualmente perderam espaço para as tecidas em teares mecânicos. Questões que dizem respeito ao Brasil também são expostas, com o intuito de registrar como ocorreu a chegada das rendas manuais e das industriais ao país. Ao final, o conceito de renda é apresentado com o objetivo de preparar o leitor para os capítulos seguintes, que focam aspectos técnicos. O segundo capítulo trata do processo manual de produção de rendas. Propõe uma classificação quanto ao uso ou não de agulhas e apresenta diferentes suportes e instrumentos utilizados. Descreve as principais técnicas, com foco na produção brasileira. Rendeiras e rendeiro de diferentes locais do país, mestres em seus ofícios, que contribuíram para ilustrar este livro com seus fazeres são mencionados com suas respectivas

18


INTRODUÇÃO

técnicas junto a uma breve biografia3. É importante ressaltar que algumas técnicas podem suscitar discussões quanto a sua classificação enquanto renda ou bordado, como é o caso das técnicas filé e labirinto ou crivo. O Programa Nacional do Artesanato, publicado em 2018, reconhece a primeira tanto como bordado quanto como renda; já a segunda é definida apenas como bordado. Torna-se importante levar em consideração a forma como instituições reconhecem ou conceituam rendas, visto que podem viabilizar (ou inviabilizar) projetos que dizem respeito a uma ou outra técnica. Contudo, ambas constam neste livro, para que o público não perca a oportunidade de conhecê-las. O terceiro capítulo, por sua vez, trata do processo industrial de rendas. Inicia-se apresentando o agrupamento dos teares por suas características de entrelaçamento dos fios, seus inventores e locais de ocorrência. Na sequência, os principais teares são abordados com a intenção de mostrar suas particularidades ao leitor e ilustrações com esquemas da movimentação dos fios contribuem para esse entendimento. Já o quarto capítulo é dedicado à identificação de rendas. Para isso, foram elencados métodos e recursos que levam em consideração questões ligadas as análises de elementos técnicos e visuais. Ilustrações com esquemas da movimentação dos fios e quadros comparativos demonstram e reforçam o conhecimento apresentado no decorrer do livro, auxiliando no entendimento das estruturas têxteis das rendas. É muito importante ressaltar que o tema é vasto e que podemos considerar, pelo menos, cinco séculos na “história das rendas”. Então, não esqueça que o assunto não se resume a este livro. Muitas técnicas e muitos detalhes históricos, de diversos países, não foram contemplados nesta obra, mas, mesmo assim, ela pode contribuir para suprir a lacuna imposta pela falta de publicações sobre o assunto, além de conduzir o leitor a descobertas incríveis. 3 O uso de máscaras por parte das pessoas que aparecem nas fotos se deve ao estado de pandemia que o mundo enfrenta atualmente, crise imposta pelo novo coronavírus. Aquelas que optaram por não usar a proteção estavam em local onde todos os protocolos de segurança foram seguidos para o registro fotográfico.

19


NOÇÕES HISTÓRICAS

20


NOÇÕES HISTÓRICAS

CAPÍTULO

1

21


DECIFRANDO RENDAS

Iniciar este livro traçando a história das rendas ao longo dos séculos é uma forma de compreender sua importância nos diferentes países, principalmente no cenário europeu. A partir do século XV, o uso de rendas aparece com maior ou menor intensidade no vestuário em diferentes épocas, disputando espaço com os bordados ou complementando-se com os tecidos usados na confecção das roupas. As duas principais formas de produção, a renda de agulha e a renda de bilros, destacaram-se na Europa, e não existe uma data precisa para seu surgimento. Os indícios de datas e de sua importância são obtidos em fontes como livros, pinturas, listas de inventário de nobres e documentos que registram leis e decretos. Como as fontes bibliográficas estão, em sua maioria, em inglês, em italiano ou em francês, aqui são mencionados também os nomes das técnicas nesses idiomas para que não se perca a referência. Algumas técnicas de rendas feitas com agulha, até chegar à forma como conhecemos hoje, evoluíram a partir do bordado e passaram por três estágios. 22


NOÇÕES HISTÓRICAS

O primeiro estágio ocorreu no século XV, na Europa, destacando-se a técnica chamada, em inglês, cutwork, punto tagliato em italiano e point coupé em francês (Clifford, 1913). Havia diversas maneiras de serem produzidas, sendo que a mais comum consistia em retirar fios de urdume e da trama de tecidos -geralmente de linho - e finalizar as bordas com um ponto de caseado. No decorrer dos séculos XV e XVI, a técnica foi sofisticando-se. Era também considerada muito cara por seus admiradores e compradores que faziam parte da nobreza e da realeza. Ainda nesse estágio, a técnica evoluiu para o punto tirato (em italiano), drawnwork (inglês) ou file tiré (francês). O punto tirato consiste em formar desenhos/padrões a partir da união de fios. Em muitos casos, punto tirato/ drawnwork e punto tagliato/cutwork são combinados para formar desenhos mais complexos e belos.

Figura 3: Ilustrações com esquemas de confecção da técnica cutwork.

Figura 4: Autor desconhecido (Grécia) Detalhe de fronha adornada com técnica cutwork, c. 1600. 40,6 x 50,8 cm. The Metropolitan Museum of Art, Nova Iorque, EUA

23


DECIFRANDO RENDAS

Segundo alguns historiadores, a técnica punto tirato é antiga, e as primeiras evidências remontam aos egípcios, há 1.000 anos a.C. (Clifford, 1913; Earnshaw, 1988).

Figura 5: Esquema de construção do punto tirato/drawnwork/file tiré.

Figura 6: Autor desconhecido (Itália) Fragmento de renda com técnica drawnwork/punto tirato, séc. XVI, 39,4 x 17,8 cm. The Metropolitan Museum de Nova Iorque, EUA.

Com o tempo, os espaços vazios do tecido começam a ficar maiores e passam a ser preenchidos, surgindo a técnica reticella que demarca o segundo estágio. Na técnica, os espaços vazios e cheios equilibram-se, resultando em um tecido cada vez mais leve e delicado. 24


NOÇÕES HISTÓRICAS

O registro mais antigo consta na lista de inventário da importante família de governantes italiana Sforza, em 1493, onde foi empregada a palavra redexela - uma variação local para a palavra reticella (Earnshaw, 2000; Etcheverry, 2013). Os registros também encontram-se em livros de pontos e desenhos para a reticella, como o Les singuliers et nouveaux pourtraicts4 publicado pela primeira vez em Paris no ano de 1588 com desenhos criados pelo italiano Federico Vinciolo (c.1587-?).

Figura 7: Autor desconhecido (Itália) Gola feita com a técnica reticella, c. 1575-1600. Linho e tecido de algodão, 47cm × 42cm. Rijksmuseum, Amsterdã, Holanda.

4 Este livro ainda é reimpresso, sendo mais facilmente encontrado pelo título em inglês Renaissance Patterns for lace, embroidery and needlepoint.

25


DECIFRANDO RENDAS

26


NOÇÕES HISTÓRICAS

Figura 8: Federico Vinciolo Capa e página do livro Les Singuliers et Nouveaux Portraicts, 1588. Desenhos para rendas e bordados de Federico Vinciolo publicado por Jean Le Clerc. The Metropolitan Museum of Art, Nova Iorque, EUA.

27


DECIFRANDO RENDAS

No terceiro estágio, os pontos tornam-se totalmente independentes dos tecidos, e surge o punto in aria (italiano), ou ponto no ar, que consiste na construção da renda com pontos de caseado, feitos com agulhas e fios (linho, seda, ouro e prata), sobre um suporte temporário, geralmente papel ou pergaminho, que continha o desenho da renda. Quando o trabalho estava finalizado, era retirado do suporte. Nos desenhos, predominavam formas geométricas, consequência da evolução a partir dos processos anteriores. O primeiro registro do termo punto in aria, em italiano, ocorreu no século XVI, nos livros de Matio Pagano (1515-1588), um veneziano que criou inúmeros desenhos para rendas e divulgou em vários livros que publicou entre 1542 e 1557 (Earnshaw, 1988).

Figura 9: Autor desconhecido (Itália) Borda com pássaros e cachos de uvas feito em punto in aria, c.1600 - 1620. Linho, 85 cm × 18 cm × 25,5 cm. Rijksmuseum, Amsterdã, Holanda.

No decorrer dos séculos XVI e XVII, cada país desenvolveu as técnicas a seu modo. O punto in aria foi amplamente usado para decorar as famosas golas - os rufos - usadas na Europa de meados do século XVI até o final do século XVII. Para se ter ideia da delicadeza e da riqueza das rendas nesse período, no reinado de James I (1566-1625), rei da Inglaterra e Escócia, facilmente se chegava a 23 metros de renda para a confecção de um único rufo (Earnshaw, 2000). 28


NOÇÕES HISTÓRICAS

Figura 10: Lawrene Hilliard (atribuído) Retrato de James I (1566-1625), Rei da Inglaterra, c. 1600 - 1625. Miniatura (pintura), 5,2 cm × 4,7 cm. Rijksmuseum, Amsterdã, Holanda.

29


DECIFRANDO RENDAS

Palliser (1869) comenta que os italianos reivindicam a invenção da renda feita com agulha, apontando a existência de inúmeras evidências documentais de famílias nobres italianas desde o século XV, que justificam tal reivindicação. Sobre os primórdios da técnica no país, a autora menciona que existem teorias diversas apontando que a renda pode ter derivado da arte do bordado dos gregos, como também que as rendas evoluíram a partir do bordado feito pelos sarracenos da Sicília, assim como os espanhóis absorveram esta arte dos mouros de Granada e Sevilha. Como se pode perceber, não há como apontar certezas históricas, pois há muitas possibilidades a serem consideradas, principalmente nos primeiros séculos de surgimento das rendas como as conhecemos hoje. Os locais de produção de rendas mais importantes nos primórdios das técnicas feitas manualmente, principalmente em grandes quantidades, eram os conventos italianos. Até mesmo o famoso padre Girolamo Savonarola (1452-1498), em seus sermões na Florença do período do Renascimento, censurava as freiras por “dedicarem seu tempo à vã fabricação de rendas de ouro para enfeitar as casas e as roupas dos ricos” (Palliser, 1902, p. 68). Há de se destacar que nesse período Flandres (região da Bélgica) disputava com a Itália a produção de rendas. Em boa parte do século XVI, na Itália, predominava a renda de agulha, enquanto, no norte da Europa, a renda de bilros era o grande destaque. De acordo com Earnshaw (1988), a origem da renda de bilros pode ser facilmente mal interpretada, pois algumas formas de bilros (o instrumento) eram muito diferentes do que conhecemos atualmente. Em vez das opções de madeira, como conhecemos hoje, eram utilizados ossos, nos quais os fios eram presos para fazer trançados. Assim como na renda de agulha, as evidências de seu uso nos séculos passados são encontradas em inventários, na literatura, em pinturas e em livros. Em 1651, Jacob V. Eyck (c.1590-1657), um dos músicos mais conhecidos na Holanda desse período, teceu elogios à confecção de rendas em versos: De muitas artes, uma supera todas; os fios tecidos pelo estranho poder da mão, fios que a aranha em vão tentaria imitar, e que Pallas confessaria que nunca conhecera (Eyck apud Palliser, 1902, p. 112).

30


NOÇÕES HISTÓRICAS

As pinturas, mesmo com algumas alegorias, contribuem para registrar e para rastrear locais de produção, quem as usava e quem as produzia. Conforme as fontes pesquisadas, o registro mais antigo de renda de bilros se dá em uma partilha de bens, em 1493, entre as irmãs Angela e Ippolita da família Sforza (Palliser, 1902). Outra referência é uma pintura de 1495 feita na Bélgica que representa uma mulher produzindo pillow lace ou, numa tradução livre, renda de almofada, pois, nesse período, o termo bobbin lace ou renda de bilros ainda não estava consolidado. A obra foi atribuída a Quentin Massys (1466-1530), mas acredita-se que a pintura foi feita por um de seus filhos, Jan ou Cornelis, num período posterior (Earnshaw, 1988). Em 1580, Martin de Vos (c. 1534-1603), pintor belga, produziu a obra Vênus, da série Os sete planetas. Na obra, a deusa se reclina em uma nuvem. Abaixo há um homem com um falcão pousado em seu dedo e, ao lado, há uma mulher tecendo e uma jovem fazendo renda. A gravura é mencionada como uma das primeiras a representar uma rendeira (Palliser, 1902; Earnshaw, 1988).

Figura 11: Adrien Collaert a partir de desenho de Martin de Vos Vênus, da série The seven Planets, c.1581. Gravura, 30,5 x 21,5 cm. © The Trustees of the British Museum, Londres, Inglaterra.

31


NOÇÕES HISTÓRICAS

Rufos Foi no século XVII que os rufos se destacaram. Inicialmente eram confeccionados, em sua maioria, em tecidos de linho e adornados com bordas em rendas de agulha ou bilros. Palliser (1865) aponta que os primeiros rufos foram usados na França, em 1540, e adotados pelo rei Henrique II (1519-1559) para esconder uma cicatriz que tinha no pescoço. Em 1579, os rufos tornaram-se tão volumosos que as pessoas mal conseguiam virar a cabeça, mas no início do século seguinte perderam sua força na moda francesa da época. Na Inglaterra, os rufos chegaram muito antes do reinado da rainha Elizabeth I (1558-1603) mas foi com ela que o acessório aumentou de tamanho e se destacou. Para manterem-se no formato, eles eram estruturados com varetas metálicas e engomados. Com esses recursos, assim como ocorreu na França, aumentaram cada vez mais de tamanho - principalmente os usados pela rainha - e demandavam grandes quantidades de rendas, que, nesse período, vinham da França, Flandres ou Itália (Palliser, 1865). O uso do rufo, na Inglaterra, perdurou até o final do reinado de James I, em 1625. Seu filho Charles I (1600-1649), que reinou entre 1625 e 1649, passou a ser retratado com gola de renda que cai nos ombros, sinalizando que a moda mudou no país. Já, na Holanda, os rufos foram usados por mais tempo do que em outros países, avançando no século XVII. Acredita-se que a moda demorou a mudar por conta do conservadorismo protestante (Etcheverry, 2013). Nesse país, a fabricação de rendas teve um passado glorioso que despertou ciúmes em outras nações europeias. Sua prosperidade impulsionou Flandres, região da Bélgica que fica ao sul da Holanda, e influenciou a arte de produzir rendas em países do norte da Europa, como Alemanha e Inglaterra. Flandres era tão importante na produção de rendas que chegou ao ponto de aprovar uma lei, em 26 de dezembro de 1698, ameaçando com punição qualquer um que subornasse seus trabalhadores e tentasse levá-los para outro país (Palliser, 1902). 32


NOÇÕES HISTÓRICAS

Figura 12: Autor desconhecido (Inglaterra) Elizabeth I, rainha da Inglaterra, c.1550-1599. Óleo sobre tela, 34,5cm × 30,5cm. Rijksmuseum, Amsterdã, Holanda.

33


Figura 13: Michiel van Mierevelt Portrait of a lady, 1628. Óleo em painel de carvalho, 61,7 x 56,1 cm. © The Trustees of the Wallace Collection. Descubra mais sobre a coleção em wallacecollection.org, Londres, Inglaterra.

NOÇÕES HISTÓRICAS

34


NOÇÕES HISTÓRICAS

E a Europa do século XVII agita-se cada vez mais com as rendas... Na Inglaterra, em 1662, o parlamento inglês, alarmado com as somas de dinheiro gastas com rendas e desejoso de proteger a manufatura inglesa de renda de bilros, aprovou uma lei proibindo a importação de todas as peças estrangeiras. Apesar da lei: Os comerciantes de renda ingleses, sem saber como fornecer o ponto de Bruxelas exigido na corte de Carlos II, convidaram os rendeiros flamengos a se estabelecerem na Inglaterra e aí iniciaram a manufatura. O esquema, entretanto, não teve sucesso. A Inglaterra não produziu o linho necessário e as rendas feitas eram de qualidade inferior. Os mercadores, portanto, adotaram um expediente mais simples. Possuidores de grande capital, compraram as melhores rendas do mercado de Bruxelas e, em seguida, contrabandeando-as para a Inglaterra, vendendo-as sob o nome de point d’Angleterre, ou English Point (Palliser, 1902, p. 117).

Figura 14: Autor desconhecido (Flandres) Touca em renda de bilros com point d’Angleterre, início do séc. XVIII, 14 cm x 20,3 cm. The Metropolitan Museum, Nova Iorque, EUA.

35


NOÇÕES HISTÓRICAS

Contrabando Com as proibições impostas pela Inglaterra e posteriormente por países como a França, práticas clandestinas de compra e venda de rendas entram em cena. O contrabando de rendas, analisado sob a ótica da atualidade, desperta muita curiosidade, isso porque os contrabandistas eram incrivelmente “criativos” e destemidos. Palliser (1865; 1902) dedica em seus livros capítulos específicos para tratar do tema, e algumas passagens são aqui descritas para ilustrar as ocorrências, pois foi travada uma guerra entre os oficiais que fiscalizavam as importações e a sociedade, visto que, no contrabando, estavam envolvidas damas da alta sociedade, criadas, marinheiros... Para a Inglaterra, eram contrabandeadas rendas francesas e, em 1751, a alfândega usou de alto grau de severidade para evitar e punir tal ato. As casas eram revistadas (principalmente as próximas aos portos), ateliês de alfaiates eram vistoriados com frequência, e toda renda encontrada importada ilegalmente era confiscada. Documentos e jornais ingleses estão repletos de relatos sobre apreensões feitas pela alfândega, os quais descrevem e enumeram os produtos. Nem mesmo caixões com cadáveres eram poupados das revistas - isso porque as artimanhas para o contrabando não poupavam nem os mortos: há registro de uma apreensão feita durante o translado do corpo de

36


NOÇÕES HISTÓRICAS

um clérigo falecido. O caixão foi transportado dos Países Baixos para ser enterrado na Inglaterra, mas dentro dele restavam apenas a cabeça, as mãos e os pés do cadáver, pois o corpo havia desaparecido, sendo substituído por renda de Flandres, de imenso valor (Palliser, 1902). Outra situação descrita por Palliser se refere ao contrabando de rendas da Bélgica para a França, no século XVIII. Nesse caso, cães eram treinados para esse fim. A estratégia consistia em domesticar um cão na França, dando comida e carinho para, depois de uma temporada, enviá-lo para o outro lado da fronteira. Na Bélgica, ele era amarrado, maltratado e mal alimentado. A artimanha, então, consistia em sobrepor a pele de um cachorro maior sobre a deste cão no território francês, e o espaço intermediário entre a pele e o corpo era preenchido com renda. Em seguida, o animal era solto e voltava sozinho para casa, onde era, gentilmente, recebido com sua carga de contrabando. Contudo, em algum momento, a farsa foi descoberta. Palliser aponta que, entre 1820 e 1836, 40.278 cães foram mortos, pois caçadores recebiam recompensas para capturá-los. Essas são algumas histórias surpreendentes que ilustram o que as rendas representaram em séculos passados, mas elas não param por aqui...

37


DECIFRANDO RENDAS

Ainda no século XVII, um dos personagens de grande importância no que diz respeito ao desenvolvimento de uma das rendas mais importantes produzidas na França foi Jean-Baptiste Colbert (1619-1683), ministro de Estado e da Economia do rei Louis XIV (1638-1715). Anteriormentea seu governo, vários decretos foram emitidos na França proibindo a importação de rendas, porém eles não eram obedecidos, visto que as Figura 15: Robert Nanteuil Jean-Baptiste Colbert, 1668. Gravura, 54 × 43 cm. rendas dos países vizinhos, Rijksmuseum, Amsterdã, Holanda. principalmente da Itália e de Flandres, eram mais belas e delicadas. Então, Colbert optou por mudar a estratégia e promoveu o desenvolvimento da produção na França com a consideração de que “se fortunas fossem desperdiçadas com esses luxos, em todo caso o dinheiro não deveria ser enviado para fora do reino para adquiri-los” (Palliser, 1902, p. 154). A partir de troca de correspondências com Monsenhor de Bonzy (16311703), bispo de Béziers, então embaixador em Veneza, houve estímulo para que se instituísse na França a fabricação de rendas, ao que o Bispo escreveu: Vejo que você ficaria muito feliz em estabelecer no reino a manufatura dos pontos de Veneza, o que poderia ser feito enviando algumas filhas dos melhores trabalhadores que possam educar os da França ao longo do tempo (Bonzy, 1664 apud Palliser, 1902, p. 154).

O local escolhido para estruturar a produção foi Alençon, e pessoas de várias idades, inclusive homens, passaram a trabalhar na produção de rendas. Assim, a técnica veneziana passou por adaptações, criando a 38


NOÇÕES HISTÓRICAS

versão francesa, tão ou mais importante que a original. Para se ter uma ideia da complexidade dessa técnica, para tecer 1cm², são necessárias cerca de sete horas de trabalho. A renda de Alençon é conhecida como a “renda das rainhas e a rainha das rendas” e consiste em uma técnica feita com agulha. Sua história iniciou por volta de 1665 e seu auge foi por volta de 1717. Segundo o Atelier Conservatoire National de la Dentelle d’Alençon, para sua confecção é necessário cumprir dez etapas; uma das curiosidades é que, ao final, os pontos são alisados com uma garra de lagosta. O domínio dessa técnica requer de sete a dez anos de aprendizagem, e ela é considerada patrimônio cultural francês. A aceitação das peças produzidas em Alençon foi uma unanimidade na corte do rei Louis XIV, e seu uso passou a ser obrigatório. Mas a cidade de Veneza sofreu por essa perda nos negócios, argumentando que se tratava de um crime contra a República produzir o ponto veneziano fora de Veneza (Earnshaw, 1988).

Figura 16: Autor Desconhecido (França) Renda d’Alençon, séc. XVIII, 154,9 cm x 8,9 - 17,8 cm. The Metropolitan Museum, Nova Iorque, EUA.

39


DECIFRANDO RENDAS

Figura 17: Escola Francesa Madame de Ventadour com Louis XIV e seus herdeiros, c. 1715-1720. Óleo sobre tela. 127,6 x 161 cm. © The Trustees of the Wallace Collection. Descubra mais sobre a coleção em wallacecollection.org, Londres, Inglaterra.

Com o passar dos séculos, as rendas ficaram cada vez mais complexas de serem produzidas. A confecção era lenta e, tanto as rendas de bilros quanto as rendas de agulha, eram de alto valor. As rendas tinham importância econômica nos países europeus, e os gastos eram exorbitantes, pois grandes metragens eram usadas pela realeza e nobreza para embelezar roupas e acessórios. Sendo que as vestimentas masculinas eram tão adornadas com rendas quanto as femininas e, tais adornos, conferiam status e limite de classes. De fato, o uso da renda era feito conforme a necessidade: em decotes, punhos, golas, chapéus, leques ou de acordo com a moda de cada período. Mas, no século XVIII o cenário mudou e a produção de rendas passou por adversidades... 40


NOÇÕES HISTÓRICAS

Logo no início do século, ocorreu a Guerra de Sucessão Espanhola, entre 1701-1714, e Earnshaw (1991) aponta que o evento impactou na produção de rendas de diversas cidades nos diferentes países europeus. Cidades italianas como Veneza, Milão e Gênova perderam a notoriedade na produção, principalmente no caso de Milão, por conta da invasão austríaca. Em Flandres, onde elas eram consideradas commodities, o mercado entrou em depressão. A França estava falida por ter financiado o embate. Na Inglaterra, por estar distante dos campos de batalha, a produção continuou. Em outros países a produção de rendas também teve um cenário próspero. Por exemplo, na Dinamarca houve um aumento exponencial de rendeiras: em 1717 existiam apenas sete rendeiras de bilros, já em 1780 a produção ocupava 10.000 rendeiras tamanha a demanda pela produção (Etcheverry, 2013). Com o final da guerra, a França logo se voltou às frivolidades, e a ornamentação das roupas com rendas reapareceu e permaneceu até o final do século, quando novamente houve uma reviravolta no cenário, por conta da Revolução Francesa (1789-1799). Apesar de as rendas serem um adorno de extrema importância comercial e de ostentação na França, elas saíram de cena no período da Revolução Francesa. Com isso, praticamente houve o encerramento da produção de renda d’Alençon neste período.

Figura 18: François-Hubert Drouais Maria Antonieta, rainha da França, em traje de corte, 1773. Óleo sobre tela, 84 x 74 x 7 cm. © Victoria and Albert Museum, Londres, Inglaterra.

41


DECIFRANDO RENDAS

Com a Revolução Francesa, os adornos excessivos deram lugar a peças mais simples, pois qualquer pessoa que aparentasse pertencer à nobreza corria risco de perder a vida (Köhler, 1993). Rendeiras e rendas praticamente desapareceram. A Revolução impactou também a produção em outros países, como foi o caso da Bélgica. Em Flandres, 12.000 profissionais perderam seus empregos por conta dos conflitos causados pela Revolução. No início do século XIX, por conta das alterações ocorridas na moda que predominava na França, as rendas caíram em desuso, mas Napoleão Bonaparte (1769-1821), a partir de sua ascensão como imperador, restabeleceu seu uso para adornar roupas. A renda d’Alençon retornou à moda e o imperador, inclusive, usou uma gravata desta técnica em sua coroação, em 1804. Apesar dessa iniciativa, a partir de meados deste século, elas começaram a perder importância no vestuário masculino. O grande destaque do século XIX é a produção de rendas industriais. Para isso, ocorreram melhorias em equipamentos existentes, bem como a invenção de novas máquinas, e os aperfeiçoamentos foram também aplicados no processo de fiação, principalmente do algodão. Dentre as máquinas, a Bobbinet, criada em 1808 na Inglaterra por John Heathcoat (1783- 1861), foi a primeira a usar o fio de algodão para tecer redes, que são as bases de rendas bordadas e que nos dias de hoje conhecemos como tule (Earnshaw, 1991). No início, tais redes eram adornadas à mão com aplicação de motivos feitos com agulha ou bilros. Com o passar do tempo, máquinas foram criadas para bordá-las e sua evolução culminou com a invenção de teares específicos para as rendas, os quais teciam a base (rede), motivos e detalhes ornamentais, (por exemplo, como os contornos dos motivos), ao mesmo tempo. Earnshaw (1991) aponta que, nas duas primeiras décadas do século XIX, houve uma dicotomia entre as rendas produzidas por máquinas e as feitas à mão. Mas foi a questão econômica teve peso importante nas decisões de comercialização. Para que o comércio das rendas feitas à mão fosse viável para os comerciantes, as rendeiras passaram a ganhar um salário baixíssimo, enquanto os operários especializados que trabalhavam em máquinas, diante de um mercado em expansão, tinham um salário quase 20 vezes maior. 42


NOÇÕES HISTÓRICAS

Até mesmo as famosas rendas produzidas na cidade francesa de Chantilly, feitas à mão, passam a ser imitadas em teares mecânicos. Isso ocorreu por volta de 1836. Neste período, os teares teciam a base e os desenhos, mas o fio de contorno, que adornava os motivos, era costurado à mão. Mais tarde, a partir de 1840, a renda passa a ser reproduzida em teares Pusher e Leavers, conferindo uma imitação quase perfeita aos produtos produzidos manualmente. Até por volta de 1840 a produção de renda manual era feita em grandes volumes, em locais que reuniam um alto número de rendeiras, porém Earnshaw (1991) afirma que, a partir dessa década, muitas técnicas passaram a ser produzidas no âmbito doméstico. Isso ocorre principalmente na Irlanda, onde a população enfrentou grandes crises, como a Grande Fome (1845-1849). Neste país, as freiras ensinavam famílias com poucos recursos, técnicas como irish crochet, frivolité, carrickmacross, entre outras com o intuito de comercialização para assim terem chances de garantir meios de subsistência. Segundo a organização inglesa The Lace Guild5 (2019), até 1870 praticamente, toda técnica de renda feita à mão tinha sua cópia feita à máquina, o que dificultou muito a vida das rendeiras que ganhavam a vida tecendo. Por outro lado, o aumento de produção por conta do uso de teares mecânicos contribuiu para o acesso aos produtos para uma gama maior da população. Mesmo com cenário adverso, em alguns países como a Bélgica, a produção manual constituiu uma fonte abundante de riqueza nacional e contribuiu para que moradores de cidades em declínio financeiro se sustentassem, principalmente a mão de obra feminina. Dizia-se que um quarto de toda a população (150.000 mulheres) estava, assim, engajada na produção rendeira em 1861 (Palliser, 1902). Porém, pelos relatos históricos, acredita-se que essas ocorrências não foram as que predominaram, pois o destaque era a indústria. Ao final do século XIX, foi a chemical lace - numa tradução literal, “renda 5 Organização sem fins lucrativos que reúne coleções, promove cursos e exposições, publica revistas e livros sobre rendas. Mais informações podem ser acessadas no site da organização: https://www.laceguild.org/.

43


DECIFRANDO RENDAS

química”- produzida nos teares suiços Schiffli, que dominou o cenário. Como se pode observar, os teares mecânicos foram destaques naquele momento, porém as origens das máquinas de tecer remontam ao século XVI. Essa evolução, bem como detalhes sobre os equipamentos aqui mencionados, é especificada no Capítulo 3, Processo de Produção Industrial. No século XX mais mudanças ocorreram. Na França, com o período da Belle Époque, estilistas influentes como Jacques Doucet (1853-1929), Paul Poiret (1879-1944) e Madame Paquin (1869-1936) decretaram a renda como demodé (Earnshaw, 1991). Apesar disso, nos primeiros anos desse século, elas ainda eram usadas para adornar pequenas partes do vestuário feminino. No que diz respeito àquelas feitas à mão, algumas técnicas sobreviviam graças à intervenção de senhoras da aristocracia e nobreza, que mantinham escolas para que as técnicas não se perdessem. No entanto, grande parte das iniciativas não sobreviveram aos inúmeros acontecimentos do início do século XX, entre os quais a I e a II Guerra Mundial, a crise econômica nos Estados Unidos, causada pela queda da bolsa de valores em 1929, e a Guerra Civil Espanhola, entre 1936 e 1939. Com as guerras mundiais, houve a necessidade de as mulheres irem para o trabalho no campo ou nas indústrias, o que contribuiu para a diminuição da produção de rendas. Depois desses eventos, essas peças raramente apareciam. Até mesmo o cultivo de plantas a partir das quais eram produzidos os fios usados na produção foi destruído, como foi o caso das plantações de linho na Bélgica (Earnshaw, 1991). Mas, segundo o The Lace Guild (2019), antes das Guerras a situação das rendas feitas à mão já estava, praticamente, comprometida por conta da mecanização. Por exemplo, na Inglaterra, a maior parte delas havia desaparecido em 1900. Pequenas organizações apoiavam as rendeiras e ajudavam-nas na comercialização de seus trabalhos. Entretanto, com o colapso até mesmo dessas entidades, por fim foram os indivíduos que passaram a ter a responsabilidade de preservar essas técnicas. Assim, no século XX, a produção de renda feita à mão reconfigurou-se. 44


NOÇÕES HISTÓRICAS

Cresceu e se tornou um ofício feito mais por prazer do que uma profissão (The Lace Guild, 2019). Earnshaw (1991) destaca que, por volta de 1960, muitos artefatos que fizeram parte do passado, inclusive as rendas, voltaram a ter valor e ser comercializados. Foi nesse século que a indústria iniciou a inserção de fibras sintéticas na produção de rendas, e os teares que se destacaram foram os Barmen e Raschel, sobre os quais nos aprofundaremos no Capítulo 3. No século XXI, as rendas seguem em uso com mais ou menos intensidade, dependendo da moda, mas seus elementos técnicos e visuais passaram a inspirar e a serem inseridos em estruturas que vão além da área têxtil. Suas referências podem ser vistas em elementos arquitetônicos e decorativos de grandes e pequenas dimensões, em joias, nas artes e no design. Atualmente, teares modernos e eletrônicos fornecem uma imensa possibilidade de rendas industrializadas, que coexistem com a produção manual, a qual persiste e resiste nas mãos de habilidosas rendeiras. Segundo Briggs-Goode e Buttress (2009), as rendas, com seu design, sua linguagem, suas técnicas e suas texturas, podem oferecer uma matriz de relações complexas, com oportunidade de contribuir para o futuro da prática da arte e do design. Questões estas que são colocadas em prática em instituições, principalmente europeias, que aliam o conhecimento histórico e técnico sobre rendas para inspirar e também reinseri-las em propostas contemporâneas aliadas com tecnologias disponíveis, como corte a laser e impressão 3D (Silva, 2013).

45


Figura 19: Augusto Müller Baronesa de Vassouras, d. Ana Alexandrina Teixeira Leite, 1861. 157 x 124 cm Acervo Museu Imperial/ Ibram/ MTur, Petrópolis, RJ, Brasil

DECIFRANDO RENDAS

46


O BRASIL E AS RENDAS

No Brasil, acredita-se que foi com a chegada de D. João VI (1767-1826) e da corte portuguesa que a necessidade de produção e de uso de rendas acentuou-se, pois os eventos sociais tornaram-se suntuosos e a elite passou a fazer uso de roupas mais elaboradas, principalmente sob influência da moda inglesa e francesa da época - e, dentre os dois países, a moda francesa foi a que mais sobressaiu. Porém, nem sempre a situação foi favorável para os franceses e seus produtos aqui no Brasil. Conforme Silva (2010), até 1814, ser francês era motivo de medo e vergonha por conta do que ocorria na França no período, e seus produtos não eram aceitos no país. Mas o cenário mudou a partir de 1815 por conta da derrota dos exércitos de Napoleão e da restauração dos Bourbons ao poder. Como resultado, os portos brasileiros se abriram para os franceses e suas mercadorias, entre as quais estavam muitas rendas. Em pouco tempo tais peças eram referência de elegância e bom gosto. Os carregamentos recém chegados eram anunciados na Gazeta do Rio de Janeiro para conhecimento dos clientes abastados. Dentre os inúmeros anúncios, este alertava para, entre outros produtos, rendas pretas e brancas produzidas em Chantilly que aqui aportaram: Carlos Durand, e C.a, rua Direita Nº 9, acaba de receber de França um grande sortimento de plumas de avestruz, de todos os tamanhos e qualidades; de sabres e espadas bem douradas, vários objetos de prata para serviço de mesa, como colheres, garfos, açucareiros, saleiros, galhetas, cafeteiras, bules, &c; de perfumaria de Paris de M. L’angiere Pai e Filho; de meias de seda branca superiores; de sarjas de lã e de seda de várias cores de gosto mais moderno para vestidos, e como nunca aqui apareceu; de chapéus de todas as qualidades, e de todos os feitios; toucas feitas e por fazer; veludo preto de Lion superfino; palha para chapéus; rendas de seda pretas, e brancas, da famosa fábrica de Chantilly; plumas e penachos pretos; guarnições de vestidos de todas as qualidades; sedas da última moda e de todas as cores, espigas de trigo, flores de cetim, fuma e outros artigos para luto, xales de algodão branco; tudo pelos preços mais cômodos (Gazeta do Rio de Janeiro, 1819, n º 27 apud Silva, 2010, p. 67).

47


DECIFRANDO RENDAS

Além dos produtos, senhoras da sociedade escravagista também importavam livros e revistas francesas que ensinavam técnicas manuais, entre as quais rendas de agulha e bilros (Calage et al, 2002). Eram as mulheres da elite que tinham acesso a essas publicações, mas não produziam o suficiente para adornar seus vestidos e assim “[...] copiavam os riscos e os ensinavam às mulheres do povo dispostas a aprender o ofício e trabalhar sob encomenda” (Calage et al, 2002, p. 16). Figura 20: Manuel Marques de Aguilar Carlota Joaquina Brasiliae Princeps, s.d. Gravura em metal sobre papel, 35,8 cm x 26 cm. Acervo Banco Itaú, São Paulo, Brasil. Foto: Iara Venanzi/ Itaú Cultural.

No universo feminino da época, há de se destacar que, para a mulher ser socialmente aceita, eram levados em consideração os padrões de comportamento e seus atributos. Os valores ligados ao universo feminino, no período compreendido entre 1890 e 1930/40, eram: submissão, delicadeza no trato, pureza, capacidade de doação, prendas domésticas e habilidades manuais (Biasoli-Alves, 2000). Principalmente no Brasil do século XIX, muitas tinham como ocupação o trabalho manual, e essas atividades foram retratadas em obras como as de Jean-Baptiste Debret (1768-1848) no período em que esteve no país, entre 1816 e 1831.

48


O BRASIL E AS RENDAS

As aquarelas de Debret ilustram costumes e vestimentas e, com isso, colaboram também para o estudo da forma de vestir-se no país, que seguia a moda europeia, na qual as rendas, visivelmente, adornavam as roupas das damas.

Figura 21: Jean-Baptiste Debret Uma senhora de algumas posses em sua casa, 182. Aquarela, 16,2 cm x 23 cm. Museus Castro Maya, Rio de Janeiro, RJ, Brasil. Fotógrafo: Horst Merkel.

Figura 22: Jean-Baptiste Debret Funcionário do governo saindo a passeio, c.1820-1830. Aquarela, 19,2 cm x 24,5 cm. Museus Castro Maya, Rio de Janeiro, RJ, Brasil. Fotógrafo: Horst Merkel.

49


DECIFRANDO RENDAS

Figura 24: Miguel Navarro y Cañizares Princesa Isabel, 1888. Óleo sobre tela, 66,5 x 55,5 cm Acervo Museu Imperial / Ibram / MTur, Petrópolis, RJ, Brasil

Figura 23: Autor desconhecido Leque, pertenceu a Gabriela Hermínia de Robert d'Escragnolle Taunay, Baronesa de Taunay, s.d. Renda chantilly e tartaruga, 67 x 35 cm Acervo Museu Imperial/ Ibram / MTur, Petrópolis, RJ, Brasil

50


O BRASIL E AS RENDAS

No que diz respeito aos registros escritos sobre rendas, de acordo com Ramos (1948), quase não há relatos sobre sua origem no Brasil. Em sua afirmação, o autor e colecionador refere-se às rendas de bilros, mas suas afirmações são pertinentes também para as de agulha: Infelizmente os dados históricos são praticamente inexistentes, pois a renda de bilros, entre nós, como, aliás, toda e qualquer forma de artesanato, jamais mereceu a menor proteção ou orientação oficiais, e são deixadas aos azares da improvisação, o que significa abandono quase completo. As referências de alguns documentos oficiais à “rendas”, nos primeiros tempos, dizem respeito às rendas de procedência europeia, francesas, italianas ou flamengas, utilizadas nas vestes das classes abastadas [...] As nossas humildes rendeiras, em cujas mãos até hoje vem se mantendo o artesanato das rendas, continuam no anonimato do seu árduo labor, apesar de alguns esforços mais recentes em reconhecer-lhes o mérito. Alguma alusão incidental, aqui e ali, indica apenas de leve a procedência portuguesa da sua arte popular (Ramos, 1948, p. 35-36).

Em livros, talvez o registro mais antigo sobre rendas feitas no Brasil tenha sido feito por Mrs Bury Palliser, em 1869, quando a autora comenta que aqui se fazia uma renda de bilros estreita e grosseira para o consumo doméstico. Clifford, em 1913, também cita o Brasil em seu livro, com uma ilustração de uma renda de bilros, tecida com fibra de bananeira. Talvez um dos prováveis motivos para a falta de registros esteja vinculado à informalidade do ensino e propagação da técnica se dar entre mulheres de uma mesma família ou círculo social, visto que não há informações acerca de seu aprendizado formal, diferente do que ocorreu no país vizinho, a Argentina. Em Buenos Aires, há dados do século XIX decorrentes do curso de rendas de bilros criado por escolas ligadas ao Ministério da Educação (Etcheverry, 2013). Mesmo não havendo um aprendizado formal no Brasil, Brussi (2009) questiona como se explicaria a rápida difusão da técnica de forma tanto geográfica quanto social. A autora sugere que tal difusão tenha acontecido por vias não oficiais, nas quais o saber-fazer da renda de bilro “percorreu vias consideradas ‘informais’, como aquelas do parentesco, da amizade e da vizinhança. Nesse sentido, a casa se apresenta como espaço privilegiado de incorporação de tais hábitos e habilidades” (Brussi, 2009, p. 24). 51


DECIFRANDO RENDAS

Esta realidade se verifica ainda hoje no quotidiano de várias comunidades produtoras de rendas de diversas técnicas. Segundo o IBGE (2015), no Brasil, há, aproximadamente, 395 cidades e municípios que produzem rendas de diversas técnicas, as quais estão distribuídas de norte a sul do país, concentrando-se nas áreas litorâneas. Aqui, as rendas têm uma importância tanto social (ligada às comunidades de artesãos) quanto estética (ligada à riqueza visual e técnica) e, certamente, comercial. As diversas técnicas produzidas no país são apresentadas no Capítulo 2.

52


DECIFRANDO RENDAS

53


Figura 25: Mapa meramente ilustrativo de produção de renda com localização aproximada, revisado e ampliado a partir de Silva (2013). Segundo o IBGE (2015), no Brasil, há, aproximadamente, 395 cidades e municípios que produzem rendas de diversas técnicas.

DECIFRANDO RENDAS

54


RENDA: MAIS DO QUE UM TECIDO, UM PATRIMÔNIO CULTURAL

As rendas estão envoltas em uma aura que mistura admiração e curiosidade por estarem relacionadas à raridade de alguns itens, à beleza, à complexidade de produção e ainda por adornar roupas suntuosas do passado e do presente. Por conta disso, tornaram-se objetos tão valorizados na sociedade que passaram a ser colecionáveis e valiosos para museus e colecionadores particulares. Conforme Etcheverry (2013), durante a primeira metade do século XX, as rendas antigas, sobretudo dos séculos XVII e XVIII, passaram a ser alvos de interesse em razão de sua riqueza visual, perfeição e exclusividade, e, na aristocracia, a moda era colecioná-las. O valor de algumas poderia estar vinculado, também, à matéria-prima empregada, como fios de ouro e de prata. Colecionadores chegaram ao ponto de rivalizarem suas coleções com as dos museus, reunindo peças mais raras. Toda essa valorização fez crescer o número de falsificadores que chegaram ao nível de fazer uso de tingimento com café e casca de cebola para obter um efeito de envelhecimento pelo tempo e assim tentar obter ganhos maiores na comercialização para colecionadores e museus. O primeiro museu a expor rendas foi o Cluny, na cidade de Paris, em 1851, sendo seguido pelo Victoria and Albert Museum, de Londres, que na época chamava-se Museu de Kensinton (Edgar, 2013). Na sequência, em 1878, influenciada pelo Kensinton Museum, a cidade de Nottingham, importante produtora de rendas da Inglaterra, disponibilizou coleções de rendas em espaço expositivo permanentemente no Nottingham Castle Museum (Edgar, 2013). No século XX, o interesse de museus em ter coleções sobre o assunto espalhou-se pelo mundo. Entre os muitos locais e acervos que contemplam rendas, destacam-se, nos Estados Unidos, o The Metropolitan Museum of Art (MET), de Nova Iorque; na Inglaterra, o Nottingham Trent University, que possui o Lace Archive, pertencente à School of 55


DECIFRANDO RENDAS

Art and Design, com um acervo de mais de 75.000 itens; na Austrália, o Powerhouse Museum, que mantém o Lace Study Centre e, na Holanda, o Rijksmuseum. Sendo esses alguns dos museus que cumprem com sua missão de conservar, promover exposições e viabilizar pesquisas deste importante patrimônio cultural da humanidade. No Brasil, itens de rendas podem ser vistos em diversos museus brasileiros, sejam eles históricos, de arte, de moda ou têxteis adornando itens de vestuários e acessórios. Destaco aqui duas coleções, especificas de rendas: a coleção de Arthur e Luisa Ramos, composta por mais de 1.700 itens, que pertence à Universidade Federal do Ceará e está exposta na Casa José de Alencar, em Fortaleza; e a coleção de rendas Lucy Niemeyer, do Museu Moda e Têxtil da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, com 201 itens de rendas, os quais foram digitalizados e estão disponíveis on-line do site do museu6. Além das instituições, coleções particulares também são responsáveis pela preservação de relevantes coleções de rendas. O problema é que muitas delas estão “invisíveis”, longe dos olhos do público e, por motivos diversos, inacessíveis até mesmo para pesquisadores. Contudo, há de se reforçar que elas são igualmente importantes, pois podem ajudar a compreender a história, as formas de vida social, cultural, a memória e a identidade da sociedade no qual os objetos foram produzidos e interagiram.

Figura 26: Autor desconhecido Renda de agulha, s.d. Coleção Heloisa Conceição Annes, Porto Alegre, RS, Brasil

6 O site do Museu Moda e Têxtil UFRGS pode ser acessado em: www.ufrgs.br/mmt (Silva, 2018).

56


RENDA: MAIS DO QUE UM TECIDO, UM PATRIMÔNIO CULTURAL

Figura 27: Autor desconhecido Renda de sianinha, assim nomeada por Nina Sargaço, s.d. A sianinha contorna os desenhos, os pontos de preenchimento e ligação entre os módulos são feitos em crochê. Coleção Nina Sargaço, São Paulo, SP, Brasil

57


DECIFRANDO RENDAS

Figura 28: Autor desconhecido (Alagoas) Renda de bilros tecida com fibra de bananeira, c. 1930. Coleção Nina Sargaço, São Paulo, SP, Brasil

58


RENDA: MAIS DO QUE UM TECIDO, UM PATRIMÔNIO CULTURAL

O patrimônio cultural tem a função de representar a memória e a identidade, ou seja, o conjunto de características de pessoas e sociedades, bem como a compreensão de suas significações em um determinado contexto. Para a Unesco (Bo, 2003) patrimônio se define como nossa herança do passado, nossos bens atuais e o que deixamos para gerações futuras. As rendas, nesse caso, nos proporcionam um repertório rico para estudo tanto histórico e social quanto técnico e visual. Elas podem ser compreendidas como patrimônio cultural no que diz respeito a sua materialidade - enquanto objeto em si -, bem como a sua imaterialidade - o saber-fazer. Além disso, carregam traços de identidade individual (no caso de mestres artesãos) e coletiva que transmitem códigos culturais através de características próprias na forma com que determinados indivíduos ou grupos confeccionam pontos de renda ou tipos de renda. Um dos exemplos é a renda tramoia produzida especificamente em Santa Catarina, sobre a qual falaremos mais adiante. No Brasil, é o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) que zela pelas questões que abrangem o patrimônio cultural. Estudos feitos pelo Ministério da Cultura (2010) e IBGE (2015) apontam que há uma desaceleração na produção de rendas artesanais no país7. Contudo, em outro sentido, há também a proteção de algumas técnicas, como, por exemplo, a renda irlandesa, a renda renascença e filé. A renda irlandesa, feita em Sergipe, consta no registro do IPHAN como Patrimônio Cultural Imaterial Nacional e possui, desde 2012, o selo de Indicação Geográfica concedida pelo Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI). Este selo também foi concedido, em 2013, para a renda renascença, produzida no Cariri Paraibano. A técnica de filé, produzida na Região das Lagoas Mandaú-Manguaba, Maceió, no estado de Alagoas, teve seu registro em 2016. De acordo com o SEBRAE, As indicações geográficas são ferramentas coletivas de valorização de produtos tradicionais vinculados a determinados territórios. Elas agregam valor ao produto, permitindo estabelecer um diferencial competitivo frente aos concorrentes e possibilitam a organização produtiva e a promoção turística e cultural da região (SEBRAE, 2016). 7 Refere-se à comparação entre dois estudos. O primeiro, em 2006, intitulado Cultura em Números (Ministério da Cultura, 2010), e o segundo, em 2014, intitulado Perfil dos Estados e Municípios Brasileiros (IBGE, 2014). Em 2006 havia 7,5% dos municípios brasileiros com produção de alguma técnica de rendas. Em 2014 esse percentual caiu para 7,1%.

59


NOÇÕES HISTÓRICAS

Segundo Palliser (1902), a palavra inglesa lace deriva do latim lacinia, que significa bainha ou franja. Entretanto, a autora acrescenta que está mais inclinada a considerar a origem como anglo-normanda, do termo lacez, uma espécie de trança usada para unir diferentes tecidos e que foi traduzida pelos ingleses do século XV como lace. Ela comenta que, nesse período as rendas na França eram denominadas passament, termo comum para tranças ou entrelaçamentos de fios. Nesse contexto, seu comércio estava inteiramente nas mãos dos passementiers de Paris, e o mesmo termo era aplicado para as mais diversas técnicas. A palavra passement continuou a ser usada até meados do século XVII, sendo especificada como passements aux fuseaux (a palavra fuseaux remete a bilros), passements à l’aiguille (a palavra aiguille remete a agulha). A palavra francesa dentelle (renda) é um termo moderno e seu surgimento deriva-se da expressão passement dentellé, usada na moda francesa dos séculos passados, que significa uma espécie de trança recortada (serrilhada) (Palliser, 1902). Para Earnshaw (2000), a palavra lace deriva do latim laqueus e significa laçada, ou laço, sendo formada por um espaço vazio delineado por um cordão ou fio. Tecidos abertos, com espaços vazios e cheios são produzidos e usados desde a época do Antigo Egito e dos povos assírios, mas o termo renda não era usado no período. Conforme Clifford (1913), tal termo foi empregado por alguns tradutores, principalmente de línguas como hebraico e árabe, mas a palavra renda, como conhecemos hoje, só apareceu no século XV. Em português, o termo tem origem incerta. Em Bueno (1988), a palavra renda pode ser uma derivação da versão em espanhol randa, que remete à renda realizada a mão. O conceito de renda adotado neste livro é a de um tipo de tecido com estrutura têxtil independente, ou seja, não há necessidade de outro suporte para existir, como é o caso do bordado, que necessita de uma base. Ela é construída pela movimentação do fio (ou de múltiplos fios) têxtil, formando, por seu entrelaçamento, um tecido composto por espaços vazios 60


NOÇÕES HISTÓRICAS

e cheios. É pela combinação e harmonia de todos esses elementos em sua estrutura que sua beleza e riqueza visual se revelam. O seu desenho pode ser formado por um único módulo ou pela repetição de módulos, onde estão inseridos os elementos formais. O processo de confecção das rendas pode ser manual ou industrial, havendo possibilidade de empregar diferentes matérias-primas, ou seja, fios produzidos com fibras naturais ou químicas, em composição única ou combinada, que vão lhes conferir diferentes resultados visuais e táteis (Silva, 2013). Figura 29: Autor desconhecido. Exemplo de renda com módulo único, s.d. Renda Filé. Coleção Lucy Niemeyer, Museu Moda e Têxtil UFRGS, Porto Alegre, RS, Brasil

Figura 30: Autor desconhecido. Exemplo de renda com módulos em repetição, s.d. Renda feita em processo industrial. Coleção Lucy Niemeyer, Museu Moda e Têxtil UFRGS, Porto Alegre, RS, Brasil

61


NOÇÕES HISTÓRICAS

62


NOÇÕES HISTÓRICAS

CAPÍTULO

2

63


DECIFRANDO RENDAS

O processo manual tem como principal característica o predomínio da ação da mão humana para a confecção de rendas nas diversas técnicas existentes. Em um primeiro momento, podemos classificar tais técnicas pelos instrumentos utilizados como, por exemplo, agulha ou bilros. Uma terceira forma de tecer rendas é através do arranjo de nós. Sendo assim, as rendas podem ser classificadas em três grandes grupos: as rendas produzidas com bilros, com agulhas e com nós. Este capítulo se desenvolve demonstrando diversas técnicas que compõem cada um destes três grupos, apresentando imagens de rendas, etapas de produção e instrumentos utilizados. Rendeiras e rendeiro dos mais variados pontos do país contribuíram para que o conhecimento fosse aqui apresentado de forma tão rica e esclarecedora. E, para que o leitor e a leitora os conheça, suas biografias foram escritas em conjunto e são apresentadas com suas respectivas técnicas. 64


DECIFRANDO RENDAS

65


DECIFRANDO RENDAS

66


PROCESSO DE PRODUÇÃO MANUAL

No Brasil, é chamada renda de bilros; em inglês, bobbin lace; em italiano, merletto a fusilli; e, em francês, dentele aux fuseaux.

Figura 31: Coleção com diferentes tipos de bilros pertentence a Maria da Gloria Viana Soares (Florianópolis, SC, Brasil).

Conforme Earnshaw (2000), o registro mais antigo dessa técnica em livros é de 1536, em um livro de padrões de Zurique, o Nüw Modelbuch, seguido por Le Pompe de 1557 e Parasole de 1595. Rosemary Shepherd (2003) do Lace Study Centre, importante centro de estudos do PowerHouse Museum, descreve a renda de bilros como a forma de tecer na qual os fios de urdume e de trama são constantemente trocados de lugar. A movimentação dos bilros é orientada pelo desenho e o tipo de ponto empregado na renda. Assim, vê-se que o nome da renda está diretamente ligado à principal ferramenta utilizada para tecê-la: os bilros, que são hastes/bobinas feitas em madeira nas quais os fios utilizados para tecer a renda são enrolados.

67


DECIFRANDO RENDAS

Figura 32: Renda de bilros produzida com fio de algodão pela artesã Maria da Gloria Viana Soares (Florianópolis, SC, Brasil).

Figura 33: Itens para produção de rendas de bilros: almofada, pique, alfinetes e bilros.

68

Além dos bilros, para tecer as rendas são necessários, basicamente, os seguintes instrumentos: a almofada, o molde ou o pique, os alfinetes e linhas. A renda é tecida sobre um padrão, ou seja, um molde chamado pique, que contém o desenho a ser executado preso firmemente em uma almofada por alfinetes. No Brasil, essa almofada costuma ter um formato cilíndrico, é forrada com tecido de algodão e preenchida por capim, palha de bananeira ou serragem.


PROCESSO DE PRODUÇÃO MANUAL

Em Florianópolis, Santa Catarina, observou-se uma alteração e adaptação no pique por parte de algumas rendeiras. Se antes os moldes eram feitos em papel ou papelão, agora, em alguns casos, usa-se uma fotocópia de uma renda pronta presa na almofada. Sobre essa fotocópia coloca-se um papel manteiga (atenuando o contraste), e sobre esse novo esquema se tece a renda. O desenho da renda, que antes era feito em papel perfurado e riscado, agora é substituído por cópias de rendas já prontas. E, se antes as rendeiras trocavam, emprestavam ou copiavam os piques, agora fazem o mesmo com as fotocópias.

Maria da Glória Viana Soares (1949), moradora de Sambaqui, região metropolitana de Florianópolis, aprendeu a fazer rendas de bilros, com sua mãe, com apenas sete anos de idade. Enquanto jovem, ela ajudava os pais no trabalho rural, ao mesmo tempo em que fazia e comercializava suas rendas. Desde então, a rendeira nunca deixou de lado a paixão pelo ofício e sua célebre trajetória conta com diversas participações em oficinas e em projetos culturais. Ministrou cursos de renda de bilros em Portugal e, por meio do projeto Ilha Rendada, participou da XXV Mostra de Encaixe de Camarinhas, evento internacional sobre a renda de bilros realizado na Espanha. Em 2019, foi homenageada pela Câmara de Vereadores da Cidade de Florianópolis por suas contribuições à cultura tradi-

Figura 34: Detalhe de processo de produção de renda de bilros onde o pique tradicional com papel perfurado foi substituído por fotocópia de renda sobreposta com papel transparente.

cional da cidade. Atualmente, Maria da Glória é coordenadora da Associação de Rendeiras do Sambaqui e possuiu um projeto próprio de ensino da renda de bilros chamado “Me ensina a fazer renda”.

69


DECIFRANDO RENDAS

Cada renda vai demandar uma quantidade diferente de bilros, que são trabalhados simultaneamente e variam de acordo com a complexidade do padrão. Em diversos museus, há peças que foram produzidas com grande número de bilros que facilmente chegam as centenas. O ponto, ou conjunto de pontos, recebe diferentes nomes. Muitas vezes, o mesmo ponto é denominado de forma diferente dependendo da localidade ou região em que é tecido. Por exemplo, no Brasil, o ponto que na região Sul chama-se perna-cheia, na região Nordeste, chama-se traça. Há de se destacar que os nomes dos pontos costumam ser incrivelmente interessantes e criativos, tais como: aranha, feitiço-de-quatro, coentro, tijolinho, ponto-de-rato, cocada, casco-de-besouro, entre outros. A maioria dos nomes são oriundos das localidades (cidades) onde são produzidas ou são dados por alguma característica específica do material empregado (Girão, 2013; Wendhausen, 2015). Aqui no Brasil, denominamos de maneira genérica renda de bilros. Apenas uma exceção foi identificada, a renda tramoia.

Figura 35: Processo de produção: bilros com fios coloridos sendo tramado para tecer a renda.

70


PROCESSO DE PRODUÇÃO MANUAL

Tramoia é um tipo de renda de bilros produzida em Santa Catarina. Se caracteriza por apresentar uma base de ligação aberta que contribuiu para que a figura ou forma, os quais são tecidos em ponto pano fechado, se destaque na peça. A técnica é tecida utilizando sete pares de bilros.

Ediwaldo Pedro de Oliveira (1956), mais conhecido como “Dinho Rendeiro”, é morador do Pântano do Sul, uma vila de pescadores, na cidade de Florianópolis, Santa Catarina. Aos quinze anos, quando a maioria dos meninos ia para o mar e aprendia a lidar com a pesca, Dinho aprendeu a renda de bilro com sua prima Nezinha. O rendeiro saiu ainda jovem de Florianópolis e morou em São Paulo e no Canadá. Ao retornar à cidade natal, retomou o trabalho com as rendas e, desde então, nunca mais se afastou dos bilros. Conhecido como o primeiro rendeiro da ilha de Santa Catarina, Dinho trabalha com

Figura 36: Renda tramoia produzida por Ediwaldo Pedro de Oliveira, conhecido como Dinho (Florianópolis, SC, Brasil).

as rendeiras no Mercado Público da cidade, comercializando sua arte e ministrando aulas e cursos. Ele é protagonista do documentário “As rendas de Dinho” (2019), que já foi exibido em todo o Brasil e em diversos países, como China, Alemanha, Argentina e Índia, além de ganhar prêmios em festivais de cinema.

71


DECIFRANDO RENDAS

A identificação de uma renda de bilros feita manualmente se dá pela presença e combinação de cinco pontos: pano, pano aberto ou meio-ponto, trança, traça ou perna-cheia e torcido (Felippi; Perry, 2018).

Pano Aberto ou Meio-ponto

Traça ou Perna cheia

Torcido

Pano

Trança

Figura 37: Os 5 principais pontos utilizados na renda de bilros que contribuem para a identificação da técnica.

De acordo com Earnshaw (1983), as rendas de bilros podem ser divididas em dois grupos: as contínuas e as não-contínuas. Na renda contínua, a base de ligação entre os motivos e estes próprios são feitos ao mesmo tempo e, geralmente, com o mesmo fio. Já nas rendas não-contínuas, o motivo costuma ser tecido separadamente, e, durante a tecelagem da base, eles são unidos por costuras praticamente invisíveis. Conforme o Instituto Estadual do Patrimônio Cultural do Rio de Janeiro INEPAC (2004), no Brasil, são empregados termos como “renda feita a metro”, “rendas feitas em quadros” e “aplicações”. As rendas feitas a metro, como o próprio nome indica, são produzidas para serem aplicadas em bordas ou entre dois tecidos e possuem um aspecto linear, ou seja, que seu comprimento é bem maior que sua altura, e os motivos se repetem. As rendas feitas em quadros são produzidas em formato quadrado, de tamanhos variados, que são, posteriormente, costurados uns aos outros com o objetivo de criar peças de grandes dimensões como toalhas de mesa e colchas de cama. Já as “aplicações” são tecidas em formatos específicos de folhas, flores, animais e figuras que, posteriormente, são aplicadas em peças com o intuito de decoração como em golas, punhos, decotes ou na decoração em artigos como toalhas e paninhos. Porém, é o seu uso que contribuirá para os nomes específicos, tais como: “entremeio” (possui duas ourelas) – que tem a finalidade de unir dois tecidos -, o qual também é conhecido 72


PROCESSO DE PRODUÇÃO MANUAL

como “apegamento” na região de Santa Catarina. Bico, que é a renda com ourela de um só lado, pois o outro lado é decorado com pontas em formatos de “V” ou ondulados.

Alguns nomes de rendas de bilros produzidas em diferentes países: Na Itália encontram-se rendas de bilros cujos nomes estão diretamente ligados as cidades produtoras: renda cantú (produzida em Cantú), renda genovesa (Gênova), renda milanesa (Milão), renda veneziana (Veneza), entre outras. Na Bélgica, nomes de cidades também se destacam para nomear as rendas de bilros: mechelen ou mechlin (produzida na cidade de Mechelen), renda duquesa de Bruxelas, renda de Bruges, entre outras. Na França, assim como nas anteriores, os nomes das técnicas estão vinculados às cidades como: Lille, Le Puy, Chantilly, Caen, entre outras. Na Inglaterra, os exemplos também se relacionam as cidades que dão o mesmo nome para suas rendas, sendo elas: Honiton, Bucks, Bedfordshire, entre outras.

Uma das rendas de bilros mais famosa é a chantilly, inclusive sendo uma das preferidas da rainha Maria Antonieta (1755-1793). O nome deve-se ao local onde foi criada e era produzida, a cidade de Chantilly, que fica ao norte de Paris. Ela teve grande destaque na corte francesa e concorria com a renda produzida em Alençon. Inclusive, após a Revolução Francesa e com a ascensão de Napoleão ao trono, apenas esses dois tipos podiam ser usados na corte. 73


DECIFRANDO RENDAS

Figura 38: Autor desconhecido (Chantilly-França) Xale em renda de bilros preto com buquês de rosas e linha sinuosa na ponta inferior, c. 1865. Renda de bilros, técnica chantilly, seda, 140 cm × 288 cm. Rijksmuseum, Amsterdã, Holanda.

74


PROCESSO DE PRODUÇÃO MANUAL

De acordo com Earnshaw (1991), a renda chantilly surgiu a partir da segunda metade do século XVIII e era tecida em seda, na cor preta. Com o passar do tempo, a cor branca foi introduzida, porém em menor quantidade. Acrescenta-se aqui que as peças feitas à mão na cor preta eram mais caras porque seu tempo de produção era maior, dado que o fio era difícil de ser manipulado com os bilros pelas rendeiras. A renda chantilly produzida no século XVIII tem como característica ser um produto contínuo, ou seja, o fio que tece a base e os motivos é o mesmo. Os pontos empregados é que fazem a diferença; por exemplo, na base, empregava-se o meio-ponto, que conferia leveza, e pontos fechados eram utilizados para tecer os motivos, com predomínio de desenhos florais de extrema delicadeza. Com o passar do tempo, ela também passou a ser feita na Bélgica, e algumas alterações foram feitas nos motivos e nos fios. Poucos exemplares da renda chantilly produzida no século XVIII são encontradas nos dias de hoje, isso porque, para obter a cor preta, fazia-se uso de um ácido que continha ferro, o qual, com o passar do tempo, oxidava, resultando na perda da cor e na quebra da fibra (Earnshaw, 1983). Atualmente, o termo renda chantilly é usado como nome comercial para as versões feitas industrialmente em qualquer lugar do mundo que possam ter alguma característica em comum com aquela feita manualmente.

75


DECIFRANDO RENDAS

76


PROCESSO DE PRODUÇÃO MANUAL

As rendas de agulha são aquelas em cujo processo de tecer utiliza-se a agulha como instrumento principal de construção dos pontos. São produzidas a partir de muitas possibilidades, sendo que aqui focaremos em três:

1) Com suporte: entende-se como suporte o apoio que vai conter o desenho da renda e contribuir para sua confecção. O suporte pode ser papel, tecido ou um molde que, ao término da confecção da renda, é removido. Como exemplos de rendas de agulha que usam papel ou tecido temos a renda renascença e renda irlandesa e, para os moldes, a renda nhanduti.

2) Sem suporte: neste caso a renda é tecida a partir de “receitas” ou guias. Dependendo da técnica, o formato da agulha é diferente para obter o efeito rendado. Aqui, inclui-se, principalmente, o tricô e o crochê.

3) Por bordado: faz uso de uma base, que pode ser rede ou tecido, e, a partir da confecção de pontos, constrói-se a renda. A base integra a peça; temos como exemplo a técnica filé.

Visando esclarecer cada uma das possibilidades, detalharemos as principais técnicas abordando as etapas de produção e os principais instrumentos utilizados para tecer as rendas.

77


DECIFRANDO RENDAS

A técnica da renda renascença é muito conhecida e produzida em algumas partes do Brasil, com predomínio no Nordeste. De acordo com Earnshaw (1988) e com as demais bibliografias estrangeiras, principalmente em inglês, além de renaisssance, empregam-se os seguintes nomes para as técnicas: Honiton (não confundir com a técnica de mesmo nome feita com bilros). O nome está ligado à cidade inglesa que possui um importante centro de produção de rendas desde o século XVII. Earnshaw (1988) afirma que, nos EUA, o termo Honiton lace é usado para todas as rendas feitas com uso de fitas ou lacê, a exemplo da renascença. Branscombe: nome associado ao povoado inglês de mesmo nome. Acredita-se que tenha se desenvolvido por volta de 1850. No final do século XIX, esta renda praticamente desapareceu pela concorrência com as produzidas industrialmente, mas, atualmente, há iniciativas para restaurar sua produção. Battenburg/Batterberg: o nome está relacionado à cidade alemã. Trata-se de uma das versões mais simples dessa tipologia, pois os pontos de preenchimento são mais abertos. Por volta de 1900, esta técnica era muito utilizada na decoração. Princess: tipo de renda renascença produzida na Bélgica, no final do século XIX e durante o século XX, também conhecida como Brussels princess lace (renda da princesa de Bruxelas). É importante ressaltar que existem variações no arranjo e na forma de confecção dos pontos em cada uma das formas de tecer a técnica. Isso é compreensível, visto que cada localidade procura imprimir detalhes regionais visando à distinção, ao reconhecimento e à valorização do local em que a peça é produzida. No Brasil, conforme a publicação do SEBRAE intitulada Indicações Geográficas Brasileiras: Artesanato (2016), a técnica chegou ao Nordeste no século XIX, com a ocupação do convento Santa Teresa, na Paraíba, por religiosas francesas. 78


PROCESSO DE PRODUÇÃO MANUAL

Por muito tempo, apenas as freiras confeccionavam a renda, mas na década de 1930 o conhecimento chegou até as mulheres mais humildes e a técnica se espalhou pela região contribuindo para que hoje seja considerada em patrimônio cultural nacional (SEBRAE, 2016).

Wilma da Silva (1967), nascida na cidade de Pesqueira em Pernambuco, teve seu primeiro Figura 39: Renda renascença produzida por Wilma da Silva, integrante da Associação Rendeiras da Aldeia (Carapicuíba, SP, Brasil).

contato com o universo das rendas aos nove anos de idade a partir dos ensinamentos de D. Marieta Monteiro Xavier – matriarca de uma família

A renda renascença, produzida no Cariri Paraibano, possui o selo de Indicação Geográfica, concedido pelo Instituto Nacional de Propriedade Intelectual (INPI). A técnica apresenta mais de 100 tipos de pontos catalogados.

especialista na técnica renascença. Foi na feitura das rendas que ela encontrou uma fonte de sustento, ao passo que ajudou a perpetuar essa importante tradição. Desde os anos 1980, vive na cidade de São Paulo e é uma das líderes do coletivo de artesãs “Rendeiras da Aldeia”, uma das

Ela é construída a partir do alinhavo do lacê (espécie de fita de algodão) sobre o suporte com o motivo desenhado. Posteriormente, com agulha e linha, faz-se o preenchimento dos espaços vazios entre o lacê com os pontos. Depois de feito todo o preenchimento, o alinhavo é desfeito. Ela fica pronta assim que for solta do suporte. 79

ações desenvolvidas pela Oca – Escola Cultural na Comunidade da Aldeia em Carapicuíba/SP. No âmbito desse projeto, Wilma difunde os saberes da técnica ensinando mães, avós, jovens e crianças. Em 2013, foi, oficialmente, nomeada Mestra da renda renascença pelo Ministério da Cultura.


a)

Risco do desenho da renda no suporte.

b)

Alinhavo do lacê sobre o desenho riscado e posteriormente os pontos de preenchimento são tecidos.


c)

Figura 40: Algumas das etapas do processo de produção da renda renascença: desenho, alinhavo e peça pronta.

Após o alinhavo e confecção dos pontos de preenchimento, a renda pronta é desalinhavada do suporte.


DECIFRANDO RENDAS

No Brasil, a técnica destaca-se em Sergipe e sua importância na cultura local e nacional é reconhecida, visto que seu modo de fazer consta no registro do IPHAN como Patrimônio Cultural Imaterial Nacional, possuindo também inscrição de Indicação Geográfica. Sobre o surgimento da técnica na região, o SEBRAE (2016) aponta: A técnica foi introduzida em Divina Pastora, por volta do início do século XX, por Ana Rolemberg, integrante da alta aristocracia. Os Rolembergs constituíam uma família de senhores de engenho, com destaque na vida política e muitas fazendas espalhadas por todo o vale. Abolida a escravidão, os homens e mulheres livres ainda viviam à sombra dos antigos senhores, que cederam terra para o plantio. É nesse ambiente que a renda irlandesa é introduzida na cidade, envolvendo senhoras da aristocracia local e pessoas humildes relacionadas a elas. Assim, a técnica foi difundida entre todas as mulheres da cidade, ganhando uma feição própria (SEBRAE, 2016, p. 32).

A renda irlandesa é feita com agulha e utiliza um cordão sedoso, também chamado de lacê, para dar forma e contorno aos desenhos. Em fontes Figura 41: Renda irlandesa produzida por artesãs da Associação para o Desenvolvimento de Renda Irlandesa de Divina Pastora – ASDEREN (Divina Pastora, SE, Brasil).

82


PROCESSO DE PRODUÇÃO MANUAL

bibliográficas como o Dossiê do IPHAN, é a palavra lacê que aparece indicando uma das matérias-primas, mas não confunda com o lacê de algodão usado na renda renascença. O lacê da irlandesa tem um certo brilho, é um rolitê sedoso e com volume, enquanto o da renda renascença não possui brilho e tem formato de fita. Para o seu preenchimento e construção, é usada linha de algodão e diversos pontos são empregados nesse preenchimento. Contudo, é o lacê o principal identificador desta técnica. De acordo com o Dossiê do modo de fazer renda irlandesa do IPHAN, a sequência de execução obedece às seguintes etapas:

1) Riscar ou copiar o desenho a ser elaborado em papel transparente. No caso das peças grandes, o risco é recortado e as partes são distribuídas entre várias rendeiras para executar a peça;

2) Fixar o papel riscado sobre o papel grosso;

Maria José Souza (1973) nasceu no Município de Divina Pastora, no estado de Sergipe. Ela aprendeu a fazer rendas com sua mãe, mas aperfeiçoou suas habilidades com ensinamentos que recebeu de Dona Alzira, especialista em renda irlandesa. Hoje é vice-presidenta da Associação para o Desenvolvimento da Renda Irlandesa de Divina Pastora. Com cerca de 60 integrantes, a associação

3) Alinhavar o lacê sobre o risco,

perpetua o saber-fazer da técnica

acompanhando as formas do desenho;

de forma coletiva, realizando aulas

4) Fixar o papel com o lacê já alinha-

radores do município interessados no

vado em uma pequena almofada ou travesseiro, procedimento que é mais usual quando se trabalha com peças grandes;

83

gratuitas de renda irlandesa para moaprendizado da técnica. A Associação já recebeu o certificado SEBRAE Top 100 que considera a produção da renda irlandesa de Divina Pastora um dos 100 melhores artesanatos do país.


DECIFRANDO RENDAS

5) Preencher os espaços vazios entre o lacê, utilizando vários pontos tecidos com agulha e linha. Desse modo, são interligadas as formas contornadas com o lacê, que serve de suporte à execução dos pontos. Essa é a fase mais demorada para tecer a renda;

6) Separar a renda do papel e do risco sobre os quais foi executada, cortando os alinhavos que os prendiam. No caso das peças grandes, processa-se a emenda das partes antes de separar as peças do papel;

7) Limpar a peça de renda tirando os fiapos de linha, restos do alinhavo que ficaram presos a ela. É importante ressaltar que se deve ter atenção com o termo em inglês Irish lace (renda irlandesa), porque ele é abrangente e pode remeter a técnicas que não têm nenhuma relação com a produzida no Brasil. Quando se referem a Irish lace, muitas bibliografias e materiais disponíveis na Internet remetem a uma técnica de crochê.

Figura 42: Detalhe de renda irlandesa produzida na da Associação para o Desenvolvimento de Renda Irlandesa de Divina Pastora – ASDEREN (Divina Pastora, SE, Brasil).

84


PROCESSO DE PRODUÇÃO MANUAL

Figura 43: Algumas das etapas de produção da renda irlandesa: alinhavo e confecção dos pontos.

85


DECIFRANDO RENDAS

O nome Tenerife está relacionado ao local de produção, a ilha do arquipélago das Canárias que pertence à Espanha, e os primeiros registros da renda apontam a confecção da renda desde o século XVI. Já ñanduti, vincula-se à produção no Paraguai. O termo ñanduti é uma palavra da língua guarani: ñandu refere-se à aranha e ti diz respeito à brancura, uma provável referência às teias de aranha (Etcheverry, 2013). Nas bibliografias internacionais, também encontramos nomes como soles españoles (sóis espanhóis) e roseta de Tenerife (Gonzáles, 2016).

Figura 44: Autor desconhecido (Paraguai) Xale em renda de seda creme, Tenerife, c.1912. Renda Tenerife, seda, 125 cm. Rijksmuseum, Amsterdã, Holanda.

86


PROCESSO DE PRODUÇÃO MANUAL

Aqui no Brasil, os nomes empregados são tenerife, nhanduti e renda sol. Foram identificadas duas formas de confeccioná-la. No Brasil, é tecida a partir do apoio dos fios em um bastidor (ou molde), feito de papelão firme ou de madeira – uma espécie de tear – tendo ranhuras nas bordas para prender o fio utilizado na confecção da base sobre a qual os pontos serão tecidos. As formas que predominam são as circulares, mas também é possível tecer em formatos quadrados, ovais, retangulares, entre outros, desde que o molde tenha o formato adequado. Já no Paraguai utiliza-se um tecido plano preso a um bastidor de madeira, sobre o qual o desenho é riscado e se prendem os fios de base. O processo seguinte assemelha-se à produção brasileira. Depois que a renda foi tecida, o tecido plano utilizado como molde e também como suporte é retirado, restando apenas a renda. Como a técnica consiste na construção de pequenos módulos, para confeccionar uma peça que tenha grande dimensão, os módulos são unidos com costura.

Elizabeth Horta Correa (1951) mora em Atibaia , São Paulo, e dedica-se desde 2003-04 ao resgate, pesquisa e salvaguarda da renda tenerife ou nhanduti. Formada em educação artística pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, fundou o coletivo Nhanduti de Atibaia, em nome do qual atua desde 2005. Tendo a internet como principal estratégia de promoção, leva a técnica para o mundo virtual desde 2006-07, sempre compartilhando tanto as tecelagens como as pesquisas que realiza. Em 2018 passou a compartilhar também a técnica de tecer a renda que resgatou. Nhanduti de Atibaia é ponto de cultura e Elizabeth Correa é Mestra Rendeira, ambas certificadas pelo Ministério da Cultura.

87


Figura 45: Processo de produção de nhanduti: fio preso ao bastidor (molde) e trama com agulha.

DECIFRANDO RENDAS

88


PROCESSO DE PRODUÇÃO MANUAL

Figura 46: Detalhe de renda nhanduti produzida por Elizabeth Horta Correa (Atibaia, SP, Brasil).

89


DECIFRANDO RENDAS

O crochê é uma das técnicas mais conhecidas e populares no Brasil. Para a confecção de rendados, utiliza-se um fio contínuo com agulha apropriada para a técnica, com formato de haste (geralmente metálica ou de madeira) com ponta em gancho. Segundo Earnshaw (1988), acredita-se que tenha se originado no século XVI e talvez possa ser uma evolução da técnica conhecida como renda de corrente encomendada da Itália por Elizabeth I e seus contemporâneos. Ainda segundo a autora, o nome deriva da palavra francesa croc (gancho). Thérèse Dillmont, em sua Encyclopedia of Needlework de 1884, comenta que a técnica é também uma das mais úteis, visto que pode ser aplicada às necessidades domésticas da vida quotidiana, como o vestuário e a decoração. No Programa do Artesanato Brasileiro (2018), é descrita como técnica desenvolvida com o auxílio de agulha especial e que produz um trançado semelhante à trama de uma renda, o que justifica inserir a técnica em um livro sobre o tema. No Brasil, encontramos a técnica de norte a sul, e uma infinidade de combinações de pontos são empregados para confeccionar diferentes tipos e formatos de peças.

Figura 47: Lucila Chagas Itens de rendas de crochê em algodão, séc. XX. Coleção Heloisa Conceição Annes, Porto Alegre, RS, Brasil

90


PROCESSO DE PRODUÇÃO MANUAL

Dillmont (1890) afirma que o tricô é uma das primeiras formas de tecer fios com agulhas, acrescenta que é muito difícil criar novos pontos. Earnshaw (1988) comenta que ele pode datar do século XII, mas a data em que foram introduzidos os pontos abertos que permitiriam que fosse considerada uma forma de renda é incerta. Já Harris (2010) comenta que é possível que a técnica tenha entrado na Europa a partir da Ásia ou como resultado das invasões mouras na Espanha (711 - 712 d.C).

Figura 48: Autor desconhecido (Itália) Luvas, séc. XVI. Tricô, fio de seda e metal, 29,2 x 15,2 cm. The Metropolitan Museum of Art, Nova Iorque, EUA.

Figura 49: Lucila Chagas Detalhe de toalha de tricô redondo, c. 1940. Tricô de 5 agulhas, algodão, 25 cm. Coleção Heloisa Conceição Annes, Porto Alegre, RS, Brasil

91

Assim como a técnica de crochê, o tricô também é amplamente conhecido e produzido no Brasil. A técnica consiste em formar o tecido a partir de laçadas com fio contínuo, geralmente usando duas agulhas (ou mais). O uso de mais de 2 agulhas ocorre, por exemplo, na técnica de tricô redondo, onde são necessárias 5 agulhas para a execução da técnica.


DECIFRANDO RENDAS

O subtítulo foi colocado em forma de pergunta porque a discussão é polêmica, pois alguns autores defendem-na como renda e outros como bordado. A posição aqui é estudá-la como renda. Porém, a leitora e o leitor ficam convidados a tirar suas próprias conclusões e/ou discordar. No Programa do Artesanato Brasileiro (2018), há a seguinte descrição: “Também conhecida como uma técnica de bordado, porém não utiliza o tecido como suporte, podendo se classificar como renda”. O nome filé deriva do francês filet, que significa rede, e a técnica existe desde o século XVI. Porém, Palliser (1902) aponta que a palavra lacis também era usada para a técnica confeccionada nesse período, assim sendo, para fins de pesquisa em fontes internacionais e antigas deve-se considerar a busca por este termo. A autora descreve a técnica como um bordado que emprega pontos de tapeçaria sobre malha quadriculada e de fácil execução.

Figura 50: Mostruário de pontos de renda filé produzida pelo Instituto Bordado Filé da Região das Lagoas MundaúManguaba – INBORDAL (Maceió. AL, Brasil).

92


PROCESSO DE PRODUÇÃO MANUAL

Segundo o SEBRAE (2016), esta técnica aportou no Brasil colonial, onde, possivelmente, esteve inclusa na educação das escolas católicas, que ensinavam prendas às mulheres. Hoje, a renda filé produzida na região das Lagoas Mundaú-Manguaba, em Alagoas, possui registro de Identificação Geográfica. A técnica consiste no preenchimento da rede de base, também chamada de malha, com pontos bordados que formam os desenhos. Essa malha é confeccionada com a mesma técnica usada nas redes de pesca. Sendo assim, para produzi-la, primeiro é necessário tecer a rede.

Instituto Bordado Filé da Região das Lagoas Mundaú e Manguaba é um organismo O

que tem por objetivo proteger e promover a tradição do bordado filé Figura 51: : Processo de produção da malha utilizada como base para tecer a renda filé.

desta região. O instituto, criado em 2014, visa assegurar a qualidade do autêntico filé alagoano, Patrimônio Cultu-ral Imaterial do estado de Alagoas desde 2014. Conta com cerca de 30 bordadeiras/rendeiras associadas que proveem, com essa atividade artesanal, o sustento das suas famílias. Em 2016, o Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI) concedeu ao INBORDAL o registro da IG Região das Lagoas Mundaú e Manguaba para o bordado filé. A instituição desde então vem promovendo, junto com parceiros, projetos culturais e educativos através de editais, buscando difundir e aprimorar os saberes das técnicas tradicionais desse genuíno artesanato

93


DECIFRANDO RENDAS

Figura 52: Processo de produção da renda filé. Bordado sobre a base de malha preso ao bastidor.

94


PROCESSO DE PRODUÇÃO MANUAL

A renda buratto, produzida na Itália, é uma técnica que se assemelha muito à renda filé. Porém, em vez de ser confeccionada sobre uma rede feita com nós, ela é “tecida”: em um dos sentidos, 2 cabos de fios são torcidos, e outro fio passa perpendicularmente (Fig. 54).

Figura 53: Autor desconhecido (Itália) Borda, séc. XVII. Técnica buratto, 83,8 cm x 19,1 cm The Metropolitan Museum of Art, Nova Iorque, EUA.

Para diferenciar as técnicas, a melhor maneira é analisar a malha de base. No filé observa-se nós nos quatro cantos de cada quadriculado, enquanto no buratto observa-se o entrelaçamento dos fios.

Figura 54: Ilustração com esquema da malha de base para técnica de filé onde a malha é formada por nós e buratto, onde a base é produzida com fios trançados.

95


DECIFRANDO RENDAS

O crivo ou labirinto é uma técnica produzida em diversas regiões brasileiras, predominando no Nordeste do Brasil. De acordo com o Programa do Artesanato Brasileiro, enquadra-se como bordado. Ainda, em alguns trabalhos científicos ele é tratado como renda (Silveira, 2018); em outros, transita entre o bordado e a renda (Cunha; Vieira, 2009). De toda forma, a intenção de apresentar a técnica neste livro se volta para o interesse em informar o leitor e contribuir para a divulgação da técnica, mais do que enquadrá-la em uma ou outra classificação. Sob a ótica histórica, trata-se de uma técnica muito antiga, sendo a combinação do punto tirato com o punto tagliato, mencionados no Capítulo 1.

Figura 55: Renda labirinto produzida por Rute da Costa (Biguaçu, SC, Brasil).

96


PROCESSO DE PRODUÇÃO MANUAL

A produção da renda labirinto compreende dez etapas (Silveira, 2018):

1) Riscar no tecido o(s) desenho(s); 2) Cortar o tecido, pois os cortes vão ajudar no desfiado e na formação do desenho;

3) Desfiar o tecido para formar pequenas aberturas e construir o desenho e a base da renda;

4) Encher ou preencher alguns espaços, recolocando fios;

5) Torcer ou dar acabamento na base quadriculada, resultado da retirada dos fios da trama;

6) Paletar, ou seja, evidenciar e destacar partes do desenho;

Rute Silva da Costa (1957) nasceu no município de Governador Celso Ramos, em Santa Catarina, cidade em que reside até hoje. A tradição do crivo entre as mulheres da sua família percorre gerações. Com sete

7) Casear os desenhos para que não

anos de idade, ela aprendeu a técnica com sua mãe que, por sua vez, herdou

se desfiem ou se deformem;

os conhecimentos sobre o crivo de

8) Lavar para retirar impurezas;

Nunes da Silva, mãe de Rute, ainda

sua avó. Com 90 anos de idade, Maria produz peças com este tipo de técnica. Rute já realizou viagens pelo país para

9) Engomar;

compartilhar seus trabalhos em feiras e em exposições e ministrou cursos

10) Dar acabamento com a retirada de fios excedentes.

no estado de São Paulo, na cidade de Santo André. Atualmente, a rendeira transmite o saber-fazer da técnica do crivo para sua neta Marcela com objetivo de manter viva essa tradição em sua família.

97


Figura 56: Algumas etapas da produção do labirinto/crivo: desfiar o tecido plano, prender no bastidor, casear e/ou preencher os espaços para formar desenhos.

DECIFRANDO RENDAS

98


PROCESSO DE PRODUÇÃO MANUAL

Existem inúmeras outras técnicas de produção de renda com agulhas que são feitas ao redor do mundo. O que as difere são as características próprias dos locais em que são tecidas, mas todas têm em comum o uso predominante de agulha no processo. Neste livro foram priorizadas algumas rendas, principalmente as brasileiras, mas, para fins de conhecimento, vale mencionar algumas técnicas relevantes em diferentes países:

Itália: renda veneziana, gros point de Veneza, rose point, renda Burano. França: point de France, renda d’Alençon, argentella. Bélgica: renda de Bruxelas. Inglaterra: renda ponto da Inglaterra.

99


DECIFRANDO RENDAS

100


PROCESSO DE PRODUÇÃO MANUAL

Dentre as rendas formadas por nós, também podemos apontar as que podem ser tecidas com ou sem nenhum instrumento. No primeiro caso, citamos como exemplo o frivolité, a renda singeleza ou renda turca e a grampada. No segundo, o exemplo é a técnica de macramê.

Em português frivolitê ou frivolité; em inglês, tatting; em francês, frivolité. A técnica, assim como as demais, tem uma longa história que remonta ao século XVIII, visto que as navetes de frivolité são mencionadas no inventário feito na corte de Luiz XV (1710-1774). O texto escrito e publicado por Fernand Engerand (1899), na verdade, refere-se às pinturas encomendadas e compradas pela administração do rei. A página 346 do inventário menciona e descreve a pintura feita em 1756, intitulada Madame Adelaide de France faisant des noeuds, pintada por Jean-Marc Nattier (1685-1766). Em uma das mãos, Madame Adelaide (1732 - 1800) segura uma navete de frivolité8. 8 A obra pertence à coleção do Palácio de Versalhes.

101


Figura 57: Fernand Engerand Inventário de pinturas encomendadas e adquiridas pela direção dos edifícios do rei (1709-1792): inventários das coleções da coroa. Escrito e publicado por Fernand Engerand Engerand. Bibliothèque Nationale de France, Paris, França.


Figura 58: Detalhe da página 346 do Inventário do rei Luíz XV. A palavra frivolité é mencionada na Nota 1 (grifo da autora).


DECIFRANDO RENDAS

De acordo com Earnshaw (2000), a técnica data do século XVIII, mas só teve destaque em 1850, quando Mlle. Riego (1828-1887) publicou várias instruções e desenhos e ganhou diversos prêmios na Exibição Internacional de 1880. Ainda segundo a autora, muitas inovações na técnica devem-se à rainha Elizabeth da Romênia (1843-1916). No Brasil, a renda frivolité é encontrada, principalmente, nas regiões Sudeste e Sul e consiste na confecção de nós duplos com uma navete apropriada ou agulha longa. A navete é composta de uma parte central coberta com duas formas elípticas. Nela, o fio para tecer a renda fica depositado na parte central. As agulhas longas, de diferentes espessuras, também são muito utilizadas e apontadas por alguns artesãos como uma forma mais fácil para executar a técnica. Para a construção dos pontos, com a navete ou com a agulha, além dos nós o picot é presença constante, tanto para ornamentar quanto para servir de apoio para a união de arcos e anéis.

Figura 59: Frivolité produzido por Maria Cuadros (Porto Alegre, RS, Brasil).

104


PROCESSO DE PRODUÇÃO MANUAL

Os arcos, anéis e picots são dispostos formando módulos com formatos diversos (quadrados, triângulos, losangos, etc.) que podem ser aplicados de forma isolada ou em repetição. Para a construção de peças em grande formato, é comum obtê-las a partir da união pequenos módulos.

Maria Cuadros

(1970)

nasceu no sul do Estado de Minas Figura 60: Navete de produção de frivolité, linha e caderno de “receita” de pontos e desenhos.

Gerais, na cidade de Itajubá, mas mora em Porto Alegre desde 2013. A artesã produz renda há cerca de dezoito anos e aprendeu a técnica frivolité de maneira autodidata, através de conteúdos que encontrou pela internet. Desde 2013, ela ministra aulas de frivolité, na cidade de Porto Alegre. Iniciou com um grupo de mulheres em situação de vulnerabilidade social através do Projeto Ação Solidária Minha Paróquia, da Paróquia Santo Antônio. Maria possuiu um canal no YouTube chamado “Carinho em Nós - frivolité, chiacchierino, tatting” com mais de 100 tutoriais sobre a técnica. Em 2017, teve seu trabalho exposto no 7º Fórum Nacional dos Museus,

Figura 61: Detalhe de fivolité e navetes.

realizado em Porto Alegre.

105


DECIFRANDO RENDAS

Renda singeleza, renda turca e renda turca de bicos: esses três diferentes nomes são empregados no Brasil. O termo singeleza ocorre com mais frequência para a técnica produzida em Alagoas, já os demais são, frequentemente, usados em Minas Gerais e em São Paulo. Em pesquisas bibliográficas de língua inglesa, o termo encontrado foi netting. Nessa renda, o fio de algodão é o mais usado, principalmente no Brasil. Porém, pelo mundo, há outras possibilidades de materiais em uso. Na Croácia, mais precisamente no Mosteiro de Hvar, as monjas beneditinas colhem talos de aloe vera, esperam secar e retiram fios para fazer a renda (Pompeu, 2016; World Heritage Journeys9, s/d). O mosteiro existe desde 1664, mas as freiras só começaram a tecer a renda de agave – nome dado naquela localidade – no século XIX. A peça produzida em Hvar consta na Lista do Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade da Unesco desde 2009. De acordo com Pompeu (2016), a renda Tucumán, produzida na província de mesmo nome, na Argentina, utiliza um bastidor circular para a confecção da técnica. Apesar da diferença no suporte, a construção das laçadas e dos nós assemelha-se às produzidas no Brasil. Na Itália, na cidade de Latrônico, região da Basilicata, há um grupo de artesãs que também tecem uma renda chamada puntino ad ago que muito se assemelha à singeleza produzida no Brasil. A técnica brasileira consiste na construção de um tecido aberto, onde os pontos são feitos com nós, utilizando, como ferramenta, um bastão que pode ser de madeira (em algumas comunidades de Alagoas, talos de coqueiro são utilizados) ou metálico. O bastão serve também como o suporte onde os pontos são apoiados. Para o entrelaçamento do fio e a construção do ponto, ele é conduzido com uma agulha. O caminho que percorre, inserido na agulha e tendo o bastão como apoio, permite a confecção das laçadas e dos nós. 9 O site é uma iniciativa da Unesco, em colaboração com a National Geographic.

106


PROCESSO DE PRODUÇÃO MANUAL

O resultado visual que predomina são pontos em formato quadrado ou de losango, agrupados de diferentes maneiras.

Solange Oliveira (1956), natural de Bauru, São Paulo, aprendeu a fazer rendas com uma vizinha quando tinha apenas treze anos de idade. Há muitos anos, a artesã trabalha com produção da renda turca em seu ateliê em Bauru, sendo uma referência dessa Figura 62: Renda turca produzida por Solange Oliveira (Bauru, SP, Brasil).

técnica. Seu trabalho fez parte de dossiê elaborado por pesquisadoras italianas por ter similaridade com uma renda que é feita na cidade de Latronico em Potenza (Itália). As italianas reivindicam junto à UNESCO o reconhecimento de “Patrimônio da Humanidade”. Fez parte na dissertação de mestrado em arquitetura de Helga M. C. F. Pompeu, defendido na UFMG. O trabalho de Solange já foi destaque em livro francês e argentino, blogs, sites e programas de TV. A rendeira já lançou duas edições da revista “Renda Turca”, editada pela Editora Minuano, assim como já trabalhou com estilistas e

Figura 63: Processo de produção da renda turca: bastão metálico para entrelaçamento dos fios.

107

designers como Ana Sudano e Luciana Haddad.


DECIFRANDO RENDAS

A técnica de grampada também é conhecida como crochê de grampo. O termo em inglês é hairpin crochet lace ou hairpin lace. É produzida em diversas partes do mundo com destaque para o Oeste Europeu, as Ilhas Britânicas e a América do Norte (Leslie, 2007). Foi muito popular durante o período Vitoriano, mas sua origem exata não é clara. Leslie (2007) aponta que, em 1884, Thérése De Dillmont (1846- 1890) publicou um livro com pontos de rendas, no qual a técnica estava inclusa. A autora comenta que esta renda era produzida (e usada) por pessoas com menor poder aquisitivo, pois era de rápida confecção, o que a tornou uma substituta para peças mais caras. Acredita-se que a grampada tenha surgido por influência chinesa e, no Brasil, tenha sido trazida pelos açorianos. Foi provavelmente uma forma criativa inventada para fazer renda e distrair: “com seus ‘grampos de cabelo’, em forma de garfo, as mulheres tramavam com fios que lhes eram disponíveis (de junco, por exemplo) a fim de passar o tempo” (Cunha; Eggert, 2011, p. 60). Esta renda é confeccionada tendo como ferramentas um grampo em forma de “U” e uma agulha de crochê. Os grampos têm hastes paralelas entre as quais são feitos nós com a agulha de crochê e geralmente são metálicos, mas também é possível encontrá-los em madeira. O resultado são tiras de rendas estreitas, porém longas, que são unidas para a confecção de peças de vestuário e de decoração. No Rio Grande do Sul, a técnica é muito usada para a confecção do fichu, adorno usado sobre os ombros, muito presente na indumentária tradicionalista gaúcha feminina10.

10 Salienta-se que a peça não é exclusividade da indumentária gaúcha. O fichu destacou-se na Europa, no século XVIII, para proteger e adornar os ombros e o colo. Era confeccionado com tecidos e, muitas vezes, com rendas de diversas técnicas.

108


PROCESSO DE PRODUÇÃO MANUAL

Paula Stringhi

(1979)

é natural da cidade de Tramandaí, no Rio Grande do Sul. Mora na cidade de Caxias do Sul, lugar onde conheceu a renda grampada, através da sua atuação no Conjunto Folclórico Tropeiros da Tradição. Paula participou de alguns cursos para aprender a técnica e começou a produzir fichús em grampada para grupos de dança e para Centros Tradicionais Gaúchos da região. A partir de seu trabalho com artesanato nos CTGs, Paula criou uma página no Figura 64: Grampos para tecer grampada de Paula Stringhi (Caxias do Sul, RS, Brasil)

Facebook chamada “Paula Stringhi Fichús Artesanais” para divulgar suas produções. A artesã também percorre diversos festivais de música e poesia, rodeios e eventos de entidades tradicionalistas para divulgar seu trabalho e a técnica da renda.

109


DECIFRANDO RENDAS

a)

b)

Entrelaçamento do fio no grampo.

pontos tecidos com ajuda da agulha de crochê apoiados no grampo.

Figura 65: Algumas das etapas de produção da grampada.

110

c)

tiras de grampada prontas, que posteriormente serão unidas para formar a peça.


PROCESSO DE PRODUÇÃO MANUAL

Figura 66: Grampada produzida pela artesã Paula Stringhi (Caxias do Sul, RS, Brasil)

111


DECIFRANDO RENDAS

Apesar de a ideia de considerar o macramê como renda não soar familiar, as bibliografias estrangeiras especializadas consideram-no como tal, apontando-o como uma das formas mais antigas de produção de renda. Earnshaw (1988) afirma que a técnica aparece em pinturas de paredes de dois mil anos atrás, na civilização dos antigos assírios, decorando túnicas. A palavra macramé tem derivação árabe, e inicialmente se configurava por ser uma franja ornamental produzida pelo nó, entrelaçamento e amarração de fios. Ela era, geralmente, produzida em algodão, linho ou seda. Em italiano, a técnica é conhecida como punto a groppo, e Clifford (1913) acredita que esta renda tenha chegado à Itália no século XV. Palliser (1902), em seu livro, traz uma passagem interessante sobre a sua produção em Gênova: Existe uma obra bela e engenhosa ensinada nas escolas e conventos da Riviera. É levada com grande perfeição em Chiavari e também no Albergo dei Poveri em Gênova. Você vê isso em todas as fases. É quase o primeiro emprego dos dedos que as crianças pobres de ambos os sexos aprendem. Esta arte é principalmente aplicada na ornamentação de toalhas, denominada macramé, uma longa franja de linha sendo deixada em cada extremidade com o propósito de serem amarradas juntas em desenhos geométricos. Os macramés do Albergo dei Poveri eram feitos anteriormente com uma franja trançada simples, até que em 1843 a Baronesa A. d’ Asti trouxe uma de Roma, ricamente ornamentada, que ela deixou como padrão. Marie Picchetti, uma menina jovem, teve paciência para desfazer a franja e descobrir como era feita. Uma variedade de desenhos é executada agora, os mais experientes inventando novos padrões enquanto trabalham. Alguns são aplicados aos propósitos da igreja. Espécimes de mão de obra elaborada estavam na Exposição de Paris de 1867. Esses macramés ricamente recortados formam um item do enxoval de casamento de uma senhora genovesa, enquanto os tipos mais comuns se encontram à venda no país e também são exportados para a América do Sul e Califórnia (Palliser, 1902, p. 79).

A técnica consiste em combinar nós, feitos com as mãos, para formar pontos e, consequentemente, desenhos geométricos. 112


PROCESSO DE PRODUÇÃO MANUAL

Figura 67: Autor desconhecido (Itália) Fragmento, séc. XVI. Macramê, 11,4 cm x 10,2 cm. The Metropolitan Museum of Art, Nova Iorque, EUA.

Figura 68: Francisca Fraga de Almeida Itens em macramê, 2020. Coleção Nina Sargaço, São Paulo, SP, Brasil

113


NOÇÕES HISTÓRICAS

114


NOÇÕES HISTÓRICAS

CAPÍTULO

3

115


DECIFRANDO RENDAS

Foi a produção de rendas manuais que inspirou a sua versão industrial. Até o século XIX, a maioria das técnicas feitas manualmente eram inacessíveis a quem não pertencesse à nobreza e não tivesse alto poder aquisitivo, mas, com a produção mecanizada, as rendas passaram a ser mais acessíveis devido ao aumento de volume de produção e à ampliação da oferta. Inicialmente, as versões industriais reproduziam as manuais, imitando pontos e desenhos. Porém, com o passar do tempo e com as melhorias dos equipamentos (teares), a renda produzida industrialmente passou a ter características próprias nos desenhos e estruturas têxteis resultantes da evolução no desenvolvimento de fibras e fios e suas possibilidades de entrelaçamento nos diferentes teares. Neste capítulo, o destaque fica por conta das principais máquinas utilizadas e de seus detalhes técnicos. A história também é abordada para contribuir com o conhecimento sobre a percepção da evolução dos equipamentos no decorrer dos séculos. 116


PROCESSO DE PRODUÇÃO INDUSTRIAL

Apesar de todo o romantismo que envolve o uso das rendas artesanais, não podemos esquecer que a produção é árdua porque demanda tempo, exige rigor técnico, habilidade e destreza manual. Embora ela esteja ligada ao universo feminino e a certa delicadeza e sensualidade, Earnshaw (1991) lembra-nos que o seu processo de produção, principalmente no passado, nada tinha de romântico, pois o contexto estava ligado a trabalho árduo, dinheiro e status. As pessoas ligadas à sua produção tinham longas jornadas de trabalho, eram extremamente mal pagas e, muitas vezes, enganadas pelos comerciantes. A autora não faz referência a um país específico, mas, pelo contexto, entende-se que essa situação ocorria em toda a Europa. Earnshaw faz também uma consideração interessante ao apontar que: As máquinas têm a chave do futuro das rendas, pois mais complexo e belo pode ser o design e mais econômico para produzir. Enquanto a renda feita à mão é perpetuada como arte, preservando para a posteridade técnicas engenhosas de rendas antigas, as máquinas são ideais para disseminá-las em uma sociedade atualmente ocupada (Earnshaw, 1991, p. 115).

Segundo Midleton (1938), a origem das máquinas de produção de rendas pode ser atribuída à máquina que tecia meias, sendo esta inventada por William Lee (1563-1614) em 1586, em Calverton, perto de Nottingham, na Inglaterra. Segundo o autor, em 1771, Robert Frost (?-?) aprimorou o tear e fez algumas tentativas de reproduzir as rendas feitas à mão nas máquinas de malha. No entanto, foi com a Revolução Industrial, em meados do século XVIII, que ocorreram avanços significativos na produção industrial de rendas, quando máquinas mecanizadas propiciaram o aumento de fabricação e a consequente diminuição dos preços. Foi atribuída ao inventor britânico John Heathcoat (1783-1861) a criação da primeira máquina que imitava com sucesso as rendas de bilros, em 1809 (Middleton, 1938). A invenção de Heathcoat, em Loughborough, na Inglaterra, chamada de Mechlin Machine, fez uma cópia exata da renda manual de mesmo nome, a mechlin.

117


DECIFRANDO RENDAS

Pouco depois de Heathcoat ter criado sua máquina, outro inventor inglês, John Levers (?-?), apresentou uma versão ao mercado que imitava, principalmente, a renda chantilly. Porém, ela não saía totalmente pronta do tear; alguns detalhes ainda precisavam ser feitos à mão para caracterizá-la como renda chantilly, como a aplicação de fio de contorno no desenho.

Foi somente a partir de 1841, com o sistema de armazenamento de dados em cartões perfurados, inventado pelo francês Joseph-Marie Jacquard (1752–1834), que permitia a tecelagem e malharia de desenhos complexos, que os teares que teciam rendas foram aprimorados e as rendas passaram a ser tecidas de forma completa. Assim, o século XIX foi marcado pelo auge da criação de teares de rendas na Inglaterra e na França (Farrel, 2007). Figura 69: F. Richter Retrato de Joseph-Marie Jacquard, 1800-1899. Gravura em aço. 16cm x 12,2cm. Rijksmuseum, Amsterdã, Holanda.

Por volta de 1860, surgiu a Schiffli machine, inventada por Issac Groebli (1822-1917), na Suíça. Essa máquina é até hoje conhecida por produzir a chemical lace (renda química). Trata-se de um processo em que os motivos são bordados, em geral, utilizando fios de algodão sobre uma base que, posteriormente, é removida quimicamente. Para uma melhor compreensão dos tipos de teares e também de sua evolução histórica, o quadro organizado a partir da publicação de Farrel (2007) sugere o agrupamento em quatro famílias de teares: 118


PROCESSO DE PRODUÇÃO INDUSTRIAL

TEAR

DATA DA INVENÇÃO

LOCAL

CARACTERÍSTICAS

1ª FAMÍLIA Stocking frame

1586, por William Lee

Inglaterra

Pontos que lembram uma “corrente”.

Warp frame

1770 - a partir dessa data inúmeros teares desse tipo surgiram.

Inglaterra

Teares de produção de bases/redes, sobre os quais eram bordados ou aplicados motivos para resultar em renda.

Raschel

Criado em 1859 e adaptado para rendas em 1950

Alemanha

Tear Raschel é amplamente usado devido à alta produtividade e à diversidade de desenhos.

2ª FAMÍLIA Bobbinet Machine

1809, por John Heathcoat

Inglaterra

Tecelagem de bases/redes, também conhecida como tule.

Pusher

1812, por Samuel Clark e James Mart.

França

Leavers

1813, por John Levers* *O “a” do nome do equipamento foi adicionado.

Inglaterra

Lace Curtain

1846, por John Livesey

Inglaterra

Capacidade de imitar rendas feitas à mão devido a diversidade de pontos, principalmente, quando adicionado o dispositivo Jacquard; produção de rendas de grandes dimensões (largura e comprimento).

3ª FAMÍLIA “Hand” embroidery machine

Schiffli

1828, por Joshua Heilman

1865, por Isaac Groebli

França

Usava um sistema de pantógrafo para transferir os pontos para uma série de agulhas resultando em uma renda bordada. Havia possibilidade de uso de fio de seda. Produzia broderie.

Suíça

A renda é feita por bordados sobre material solúvel; tece versões com dimensões variadas; capacidade de imitar grande número de peças feitas à mão; predominam fios de algodão.

4ª FAMÍLIA Barmen – Circular Machine 1890

Alemanha

Tear circular que imita renda de bilros; produz rendas com largura limitada (estreitas).

Quadro 1: Família de teares para produção de rendas com base em Farrel (2007)

119


DECIFRANDO RENDAS

Os teares mencionados são detalhados no decorrer do capítulo, mas vale ressaltar que um dos nomes de grande destaque na história da produção de renda industrializada é o de John Heathcoat, que criou o tear Bobbinet Machine, no início do século XIX. Isso porque grande parte das máquinas criadas posteriormente foram adaptadas a partir de sua invenção. Importante destacar que, antes da invenção de Heathcoat, os teares descritos como warp frame, do século XVIII também produziam bases para rendas, nas quais eram bordadas ou feitas aplicações manuais. Com o passar do tempo, as bases e a tecelagem dos motivos das rendas foram se sofisticando. Por algum tempo, a ação humana para decorá-las, como, por exemplo, aplicar fios de contornos dos desenhos, foi necessária, mas logo os teares deram conta do trabalho. Posteriormente, com a evolução tecnológica do final do século XX e início do século XXI, os teares passaram a ser operados eletronicamente e se tornaram capazes de produzir complexos desenhos e detalhes. Os dois primeiros teares mencionados no quadro não são produzidos atualmente, os da Pusher deixaram de ser produzidos no início do séc. XX, e o Lace Curtain, em 1980, mas vale ainda ressaltar que, mesmo sem serem mais fabricados, em maior ou menor escala, alguns ainda encontram-se em funcionamento em algumas regiões da Europa.

Figura 70: Autor desconhecido Camisete de tule com gola de renda aplicada com medalhões e rosetas. c. 1860-1880. Tule e renda produzidos em tear industrial. 46cm x 42cm. Rijksmuseum, Amsterdã, Holanda.

120


TEARES DE PRODUÇÃO DE RENDAS

O quadro histórico da invenção e do agrupamento por família dos teares fornece subsídio para a construção de um esquema para classificação das rendas industriais e sobre as quais aprofundaremos o estudo visando à compreensão das características de cada um. O quadro de classificação das rendas industriais, apresenta 3 grupos: teares específicos, ou seja, aqueles que foram criados com o objetivo de tecer rendas; teares de renda por malhas, o objetivo destes teares são de produzir tecidos de malhas e o efeito rendado se dá a partir de programação do tear; e, teares ou equipamentos onde as rendas são obtidas a partir de bordados. Para facilitar o entendimento, cada um dos grupos é tratado separadamente com ilustrações e imagens que visam a compreensão das estruturas têxteis resultantes.

Bobbinet Pusher TEARES ESPECÍFICOS

Teares específicos que se caracterizam por produzir rendas e que surgiram com o intuito de imitar rendas feitas à mão.

Leavers Lace curtain

Tear tipo Barmen PROCESSO INDUSTRIAL

TEARES DE RENDA POR MALHAS

POR BORDADO

Raschel – malharia por urdume Equipamentos de malharia retilínea por trama

Tear circular de pequena dimensão. Produz rendas que imitam as feitas à mão e, geralmente, são estreitas.

Produzem estruturas rendadas com pontos corrente simples e complexos.

Renda química

Imita diversas técnicas de rendas a partir de bordado em base que se dissolve em processo químico.

Bordado sobre rede

Equipamentos de bordados sobre base (tule)

Quadro 2: Classificação de rendas industriais

121


DECIFRANDO RENDAS

Em bibliografias internacionais, encontra-se este tear com o nome de Bobbin net ou Bobbinet derivado da combinação dos dispositivos do tear que torcem os fios da estrutura – os bobbins – com net, devido ao produto final, a rede (Earnshaw, 2000). O tear foi criado com a intenção de imitar as bases de rendas feitas com bilros e se mantém tendo como principal característica produzir bases ou redes com formatos hexagonais, as quais, comercialmente, chamamos de tule.

Diferentes composições de fios podem ser utilizadas neste tear, como seda, poliamida e algodão. O tecido (tule) confeccionado nesses teares são, geralmente, utilizados para, posteriormente, serem bordados à mão ou, até mesmo, serem usados sem nenhuma interferência ou adorno.

Figura 71: Esquema do movimento de fios na rede produzida em tear Bobbinet.

Os tules comercializados nos dias de hoje dificilmente são tecidos neste tipo de tear. Isto porque atualmente existem teares mais modernos e rápidos do que o Bobbinet. 122


TEARES ESPECÍFICOS

Figura 72: Autor desconhecido Detalhe de renda com base (rede) tecida com estrutura similar a bobbinet, s.d. Coleção Lucy Niemeyer. Museu Moda e Têxtil UFRGS, Porto Alegre, RS, Brasil

123


DECIFRANDO RENDAS

Foi inventado em 1812, na França, e, a partir de 1840, houve a inserção do dispositivo Jacquard, que ampliou as possibilidades de produção. Nos primeiros equipamentos, elementos decorativos, como fios de contorno nos motivos, eram aplicados à mão até 1860, quando, então, foi inventada a máquina Cornelly, que passou a fazer esse trabalho. No tear Pusher, há um cruzamento em diagonal dos fios, similar ao meioponto da renda de bilros. A observação do percurso e da maneira com que o fio está entrelaçado é o principal indício para a identificação do equipamento utilizado na confecção da renda. Neste tear, os principais fios usados são os de algodão e de seda. Acredita-se que restam poucos teares desse tipo atualmente. Provavelmente os que estão em funcionamento voltam-se para a produção de rendas destinadas à alta costura, já que são teares que permitem grande diversidade e riqueza nos desenhos, mas são lentos e de baixa produtividade e, além disso, requerem manutenções constantes.

Figura 73: Esquema que ilustra a movimentação do fio em rendas tecidas no tear Pusher.

124


TEARES ESPECÍFICOS

Figura 74: Autor desconhecido Detalhe de renda tecida em tear Pusher, s.d. Coleção Lucy Niemeyer. Museu Moda e Têxtil UFRGS, Porto Alegre, RS, Brasil.

125


DECIFRANDO RENDAS

O tear Pusher teve um forte concorrente, o tear Leavers, criado em 1813 na Inglaterra por John Levers. O termo tear Lever, sem a letra “a” foi usado até, aproximadamente, 1846. Esse maquinário não é mais fabricado desde o início dos anos de 1900, devido ao alto custo de produção e à complexidade de manuseio. Porém, ainda se encontra em uso em indústrias por ser uma máquina que produz uma renda com alta definição de desenho devido ao grande número de fios com que se pode operar. Em meados do século XIX, o tear Leavers imitava os vários tipos de rendas de bilros produzidas na Europa, tais como: valenciana, cluny, maltesa e honiton. Nele o fio percorre um caminho em “zigue-zague” combinado com linhas paralelas. Essa é uma característica importante de análise para identificar o processo e o equipamento utilizado para tecer a renda.

Figura 75: Esquema da estrutura têxtil das rendas tecidas no tear Leavers.

126


TEARES ESPECÍFICOS

Figura 76: Autor desconhecido Detalhe de renda tecida em tear Leavers, s.d. Coleção Lucy Niemeyer. Museu Moda e Têxtil UFRGS, Porto Alegre, RS, Brasil.

127


DECIFRANDO RENDAS

O tear Lace Curtain foi inventado em 1846 por John Livesey. Assim como muitos outros teares, evoluiu a partir da invenção de John Heathcoat, o tear Bobbinet (Farrel, 2007). De acordo com Earnshaw (1988) no final do século XIX, o local de maior concentração de produção deste tipo de renda foi em Nottingham, na Inglaterra. A estrutura têxtil das rendas produzidas neste tear caracteriza-se por ser de grande largura e usado para tecer peças igualmente largas, como, por exemplo, rendas para uso em cortinas. A estrutura têxtil caracteriza-se pelas malhas quadradas, mas nela notam-se linhas paralelas, e, nos espaços preenchidos, o fio faz um movimento em “V”.

Figura 77: Esquema de estrutura têxtil das rendas tecidas no tear Lace Curtain.

Para obter desenhos complexos, o dispositivo Jacquard também foi acoplado a este tear. Apesar de ter feito muito sucesso na decoração das amplas janelas das construções vitorianas inglesas, este tear deixou de ser produzido a partir de 1980. A produção de rendas para cortinas passou então a ser feita em teares Raschel, com predomínio de fios sintéticos. 128


TEARES ESPECÍFICOS

Figura 78: Autor desconhecido Detalhe de renda com estrutura similar à produzida em tear Lace Curtain. Coleção Lucy Niemeyer. Museu Moda e Têxtil UFRGS, Porto ALegre, RS, Brasil.

129


DECIFRANDO RENDAS

Criado em 1890, na Alemanha, trata-se de um tear circular de pequena dimensão que reproduz, fielmente, a renda de bilros. É fácil confundir a versão feita no tear Barmen com a renda de bilros feita à mão. Sugere-se três estratégias para analisar esse tipo de renda e confirmar se é feita manual ou industrialmente:

1) Análise do fio: a existência de mais de um tipo na estrutura da renda é um indício de produção industrial, principalmente se as espessuras forem muito diferentes ou se um dos fios for tão fino a ponto de ser identificado apenas com uso de lupa. Além disso, fios muito elaborados não costumam ser usados pelas artesãs, visto que, em sua maioria, elas abastecem-se de fios comercializados no varejo (grande parte das rendas de bilros manuais comercializadas são de algodão).

2) Análise dos motivos/desenhos: mesmo sabendo que há rendeiras que chegam à perfeição na confecção da peça, aqui é importante a análise da repetição dos pontos. Se um dos motivos apresentar alguma diferença no tamanho ou número de pontos em sua repetição, há grandes chances de ser artesanal. Máquinas, geralmente, são programadas para que seja perfeita, ou próxima disso. Mas também não podemos ignorar que algum defeito no equipamento pode ocasionar defeitos no produto.

3) Conhecimento de catálogos de rendas de empresas que usam esse tipo de tear. Muitos catálogos comerciais e amostras de rendas estão disponíveis na internet, facilitando o acesso ao repertório de produtos. Como se pode perceber, a identificação de rendas nesse tipo de tear não é muito fácil e deve-se estar atento aos mínimos detalhes na análise dos objetos.

130


TEARES ESPECÍFICOS

Figura 79: Autor desconhecido Detalhe de renda tecida em tear circular, s.d. Coleção Lucy Niemeyer. Museu Moda e Têxtil UFRGS, Porto Alegre, RS, Brasil.

131


DECIFRANDO RENDAS

Teares de renda por malha caracterizam-se por terem na estrutura têxtil pontos em formato de malhas ou laçadas. Inserem-se aqui os teares de malha retilínea e os de malha por urdume. Neste último grupo, destaca-se o tear Raschel, inventado em 1859 na Alemanha mas, somente em 1950 foi adaptado para rendas. Ele descende dos teares warp frame inventados a partir de 1770. É responsável por grande parte das rendas produzidas na atualidade, por ser moderno, veloz e pela vasta diversificação de níveis de sofisticação dos controles eletrônicos. Funciona a partir da movimentação de agulhas que tecem os pontos no sentido do comprimento (urdume). As rendas tecidas em teares de malharia são identificadas pelos pontos em formato de laçadas.

Figura 80: Esquema de uma das inúmeras possibilidades de estrutura têxtil dos teares de malha por urdume.

132


TEARES DE RENDA POR MALHA

Figura 81: Autor desconhecido Detalhe de renda tecida em tear de malharia por urdume, s.d. Coleção Vera Felippi, Porto Alegre, RS, Brasil.

133


DECIFRANDO RENDAS

Neste grupo, inserem-se basicamente dois tipos de produção de rendas, as tecidas em teares Schiffli e as rendas bordadas à máquina sobre redes/ bases tipo tule. Apesar de estarem no mesmo grupo, apresentam resultados visuais e estruturas têxteis distintas, mas igualmente ricas e muito apreciadas nos dias de hoje na indústria da moda.

Inventado em 1865, na Suíça, trata-se de um equipamento de grandes dimensões, onde o processo para tecer rendas consiste no bordado dos motivos/desenhos sobre uma base (geralmente um não-tecido), sendo esta removida por processo químico, restando apenas o bordado. Para dissolver a base, o material é submerso em solvente, geralmente a base de aguá ou, em processos mais modernos, por calor. O fio que predomina neste tipo de renda é o algodão. O tear possibilita a reprodução de muitas técnicas de rendas feitas à mão. A melhor forma de identificar o processo é pela análise com lupa, pois, dessa forma, observam-se os fios que são bordados de forma bastante compacta, com pontos justapostos. No Brasil, é comum encontrar este tipo de renda pelo nome comercial, renda guipure (ou guipir na forma mais popular).

134


TEARES DE CONFECÇÃO DE RENDAS INDUSTRIAIS POR BORDADO

Figura 82: Rendas guipure produzidas pela Fábrica de Rendas e Bordados Hoepcke (Florianópolis, SC, Brasil).

135


DECIFRANDO RENDAS

As rendas produzidas a partir de bordado sobre redes, geralmente tules, são bastante comuns. Para a confecção deste tipo de renda de maneira industrial, são empregados teares de grandes dimensões (largura) que bordam sobre a superfície das bases. Dependendo do equipamento, emprega-se ponto corrente ou pontos semelhantes ao ponto cheio do bordado à mão para formar o desenho. Os desenhos, em geral, são feitos com pontos muito próximos, apresentando volumes. Esse tipo de renda pode ter, além da base, que é o tule, fios diferentes aplicados para bordar os desenhos (se houver fios mais grossos contornando-os, eles estarão apenas no lado direito da renda).

Figura 83: Autor desconhecido Detalhe de renda com bordado sobre rede, s.d. Coleção Lucy Niemeyer. Museu Moda e Têxtil UFRGS, Porto Alegre, RS, Brasil.

136


TEARES DE CONFECÇÃO DE RENDAS INDUSTRIAIS POR BORDADO

Há também as rendas que são construídas a partir da sobreposição de motivos feitos com outra rede ou tecido plano leve, sendo eles costurados sobre a base; um exemplo é a renda carrickmacross.

Figura 84: Autor desconhecido (Irlanda) Fragmento, 1802. Aplicação com técnica carrickmacross, 30,5 cm x 22,9 cm. The Metropolitan Museum of Art, Nova Iorque, EUA.

Neste capítulo foi apresentado os principais teares para a produção de rendas industriais e, por tratar-se de um processo em que alguns equipamentos operam de forma totalmente diferente do feito à mão e, em outras muito similares (como é o caso do tear Barmen), ao analisar rendas, torna-se importante usar lentes de aumento e realizar a avaliação também do lado avesso, pois este pode apontar indícios de como a renda foi construída. E justamente sobre esse e alguns outros métodos e recursos para identificar rendas que aprofundaremos no próximo capítulo. 137


DECIFRANDO RENDAS

138


DECIFRANDO RENDAS

CAPÍTULO

4

139


DECIFRANDO RENDAS

Este capítulo é dedicado à identificação dos diversos tipos de renda, trabalho que demanda uma série de análises que, por sua vez, são compostas por atividades com diferentes níveis de complexidade – desde a observação visual do objeto físico até o uso de equipamentos sofisticados em laboratórios, como microscópios potentes. Aqui, com o objetivo de mostrar como são executados alguns procedimentos de identificação, elencamos três tipos de análise: análise dos elementos constitutivos da linguagem visual e técnica; análise de técnicas e análise de materiais (fibras e fios). A partir da análise rigorosa da renda, e dependendo da experiência e nível de conhecimento sobre o tema por parte do observador, é possível classificá-la como produzida manualmente (com o emprego de técnicas de bilros, agulhas ou nós, conforme apresentado no Capítulo 1) ou industrialmente (como as possibilidade apresentadas no Capítulo 2). 140


DECIFRANDO RENDAS

141


DECIFRANDO RENDAS

Toda técnica de confecção de rendas, independentemente de qual seja, possui elementos visuais e técnicos que devem ser levados em conta durante a sua produção, e estes elementos não podem ser ignorados quando colocados em análise. Earnshaw (1983) propôs um esquema no qual menciona tais elementos, porém a autora refere-se apenas às rendas de bilros, sendo elas: unidade do desenho, bordas, base de ligação, fios de contorno, pontos de preenchimento e picots. A partir desse esquema, uma adaptação foi feita para ser aplicada tanto na observação dos elementos das rendas manuais quanto na das industriais11. unidade do desenho

espaços vazios

base de ligação entre os motivos

borda fios

Figura 85: Elementos visuais e técnicos constitutivos das rendas, com base em Earnshaw (1983).

A Figura 85 ilustra o esquema adaptado e propõe um roteiro que consiste na análise dos seguintes itens: 11 O esquema adaptado foi posto em prática na dissertação de mestrado e na tese de doutorado da autora para o estudo da Coleção de rendas Lucy Niemeyer, disponível no site do Museu Moda e Têxtil UFRGS.

142


ANÁLISE DOS ELEMENTOS CONSTITUTIVOS DA LINGUAGEM VISUAL E TÉCNICA

1) Motivos ou unidade do desenho: formas que podem ser tecidas durante a confecção da renda ou bordadas sobre a base de ligação, dependendo da técnica empregada na produção.

2) Fios que compõem a renda: algumas estruturas, principalmente as industriais, podem conter mais de um tipo de fio. Em alguns casos, a inserção de fios de diferentes espessuras tem a finalidade de ornamentar e realçar os desenhos - caso do fio de contorno, por exemplo, que pode ser aplicado a mão ou a máquina.

3) Bordas: podem ser retas ou adornadas com diferentes formatos e pontos. Sua forma é determinada pelo uso que será dado à renda.

4) Base de ligação entre os desenhos: há uma infinidade de possibilidades de base de ligação; algumas são em forma de rede, por exemplo, tule, outras são em forma de “barras” construídas com diferentes pontos ou tranças (comum em rendas de bilros e em renda química - por bordado).

5) Espaços vazios e espaços cheios: contribuem para o efeito visual e tátil da peça. Na análise, contempla-se o modo como está formada a parte preenchida (os pontos utilizados) e os espaços vazios, considerando sua distribuição na renda.

6) Detalhes complementares: aqui, observa-se e, caso necessário, registra-se elementos não mencionados anteriormente, como os picots, que são pequenas laçadas. Na renda manual, eles têm basicamente duas funções: decoração ou apoio para unir pontos e motivos. Na industrial, costumam ser meramente decorativos.

Picot

Figura 86: Picots em renda frivolité. Nesta técnica, os picots são utilizados para decorar a renda e unir os motivos.

Fazer a leitura dos elementos visuais e técnicos no estudo das rendas é uma maneira não só de conhecê-las como também de preparar-se para a análise das possibilidades de processos e técnicas empregados em sua construção. 143


DECIFRANDO RENDAS

O Powerhouse Museum (Shepherd, 2003) aponta que a técnica é o meio mais eficiente enquanto ponto de partida para a classificação de tipos de rendas. O museu defende que, a partir do estudo da técnica, podem ser esclarecidos outros aspectos das rendas, como data, estilo e local em que foram manufaturadas. Para analisar aspectos técnicos, é muito importante ter posse do objeto físico, pois existem algumas armadilhas na identificação devido à capacidade que determinadas máquinas têm de imitar, com alto grau de perfeição, o ponto de rendas manuais. O contrário também pode ser verdadeiro: existem rendeiras tão habilidosas, e que executam os pontos com tanta perfeição, que podem fazer crer que o produto passou por processo industrial. É a movimentação do fio, analisada com lente de aumento, que apontará respostas para as questões relacionadas a processos e técnicas empregados na construção da renda. No processo manual, o movimento da agulha e dos bilros são muito diferentes. Enquanto o primeiro se caracteriza por laçadas e nós (Fig. 87), o segundo se caracteriza por fios que se cruzam (Fig. 88).

144


ANÁLISE DOS PROCESSOS E TÉCNICAS

Figura 87: Ilustrações com exemplos de movimentação do fio em rendas de agulha feitas manualmente.

Figura 88: Ilustrações com esquemas de movimentação de fios em rendas de bilros.

145


DECIFRANDO RENDAS

A partir do entendimento da movimentação do fio, torna-se necessário conhecer as diferentes técnicas de produção manual de rendas para classificá-las. O Quadro 3 apresenta o comparativo dos resultados das estruturas têxteis produzidas manualmente e o resumo das técnicas abordadas no capítulo 2, evidenciando os resultados visuais das técnicas.

Renda de bilros

Renda renascença

Renda irlandesa

Nhanduti

Crochê

Tricô

Filé

Labirinto

Macramê

Frivolité

Renda turca/ singeleza

Grampada

Quadro 3: Comparativo dos resultados das estruturas têxteis de rendas produzidas com diferentes técnicas manuais.

146


ANÁLISE DOS PROCESSOS E TÉCNICAS

Em relação aos equipamentos industriais, por sua vez, cada tear apresenta uma forma diferente de tramar o fio e, assim como ocorre no processo manual, isso resulta em diferentes estruturas, conforme pode ser verificado no Quadro 4.

Tear Pusher

Tear Leavers

Malha por urdume

Lace Curtain

Schiffli

Barmen

Bordado sobre rede

Quadro 4: Comparativo dos resultados das estruturas têxteis de rendas produzidas em teares industriais.

No processo industrial, a variedade de tipos de fios utilizados na produção de rendas é consideravelmente maior do que a do processo manual, principalmente nos dias de hoje. Isso porque, diferentemente das artesãs, que geralmente compram seus insumos em redes varejistas, com limitações de cores e variedades, a indústria tem a possibilidade de desenvolver fios específicos para suas necessidades e de combinar fios de diferentes espessuras, composições e cores em seus teares. E é justamente sobre fibras e fios que a etapa seguinte da análise de rendas discorre.

147


DECIFRANDO RENDAS

Identificar fios e fibras não é uma tarefa fácil. Há basicamente três maneiras de fazer isso, e elas variam em níveis de assertividade - indo da observação mais frágil até a mais confiável -, sendo elas: a visual, o teste de queima e, por último, a análise por microscopia ótica. A identificação de maneira visual tem uma margem alta de erros, e mesmo um profissional com experiência pode encontrar dificuldades em algumas situações, uma vez que certas fibras e fios podem ter aspecto visual semelhante - poliéster e poliamida, por exemplo.

Figura 89: Análise de fio de item de renda da Coleção Lucy Niemeyer, do Museu Moda e Têxtil UFRGS, em microscópio eletrônico de varredura (MEV) do Laboratório de Design e Seleção de Materiais da UFRGS. Na imagem, o fio teve aumento de 100x, permitindo concluir, pela observação da morfologia da fibra, de que se tratava de algodão. 2011.

Bibliografias específicas sobre as propriedades de fibras e fios têxteis podem contribuir para algumas análises que dizem respeito a aspecto visual (brilho ou opacidade), resistência e resiliência. Por exemplo, quanto ao brilho ou à opacidade: o fio de seda tem mais brilho do que o fio de algodão; quanto à resistência: o fio de seda é mais resistente do que o fio de algodão; e quanto à resiliência: o fio de linho amarrota, enquanto a seda não. 148


ANÁLISE DE MATERIAIS: FIBRAS E FIOS

Outra opção é o teste de queima. Este método consiste em queimar fios e observar o seu comportamento no calor, os resíduos deixados e os odores emanados no processo (Maluf; Kolbe, 2003). Para o teste, é necessário utilizar uma quantidade considerável de material, pois trata-se de um método destrutivo, de emprego inviável em objetos museológicos. O Quadro 5 apresenta o comportamento das fibras em teste de queima.

FIBRA

NO CALOR

ODOR

RESÍDUO

Algodão

Queima devagar

Papel queimado

Cinza esbranquiçada

Queima devagar

Pelo queimado

Cinza granulada e quebradiça (escura)

Linho

Queima devagar

Papel queimado

Cinza esbranquiçada

Seda

Queima devagar

Papel queimado

Bola redonda e escura

Acetato

Queima fundindo

Vinagre (ácido acético)

Bola negra e quebradiça

Acrílico

Queima rapidamente e funde-se

Picante

Bola dura, quebradiça e escura

Poliamida

Queima devagar e funde-se

Cheiro quase nulo

Bola dura e clara

Poliéster

Queima devagar e funde-se

Leite queimado

Bola dura e escura

Fibra metálica

Não queima, mas funde-se

Sem cheiro

Não tem

Quadro 5: Características das fibras em teste de queima.

Importante ressaltar que é a Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT) que dispõe de normas que orientam as análises de materiais têxteis como a "NBR 13538:1995: material têxtil - análise qualitativa" e "NBR 7031:2014: indicação do sentido da torção dos fios têxteis e produtos similares – procedimento". 149


DECIFRANDO RENDAS

Aliado ao conhecimento técnico e científico, o conhecimento histórico de datas que remetem ao surgimento de determinada fibra/fio ou período em que passaram a ser empregadas na confecção das rendas também é levado em consideração na análise de materiais empregados nas rendas. Neste sentido, Farrel (2007) faz algumas considerações: Linho: utilizado na confecção de rendas desde o século XVI. Seda: compõe rendas desde o século XVII. Algodão: fiado industrialmente e utilizado em máquinas de tecer a partir do século XIX. Nylon ou poliéster: usados em rendas a partir de 1950. Lã: raramente usada em rendas. As análises não seriam completas, no entanto, se desconsiderássemos onde e quando as rendas foram produzidas, aspecto sobre o qual também se faz necessário tecer algumas considerações.

150


CONSIDERAÇÕES SOBRE PROCEDÊNCIA E PERÍODO DE PRODUÇÃO DE RENDAS

Para determinar a procedência e o período de produção das rendas, principalmente as europeias, as análises são feitas com base no somatório de evidências técnicas (desenhos e materiais) e documentais (Earnshaw, 1983). Não há dúvidas de que estamos falando de milhares de possibilidades a serem consideradas quanto a locais e períodos, e, a partir da invenção e do aprimoramento das máquinas de produção de rendas, a tarefa ficou ainda mais complexa. No caso da renda industrial, é importante salientar que os teares, especialmente os modernos, estão espalhados por toda parte; os seus pontos podem ser copiados e os desenhos, replicados. Até mesmo técnicas de rendas manuais podem ser reproduzidas em diferentes lugares. Earnshaw (1983) comenta que as cópias de rendas, no decorrer dos séculos, foram motivadas pelos ganhos comerciais, e as reproduções podem ocorrer a partir de algumas combinações entre tempo (rendas do passado ou do presente), local e técnicas. Ou seja: quando uma técnica entra em evidência e/ou na moda em algum lugar, ela pode ser copiada e reproduzida em um local diferente. Para isso, a técnica empregada pode ser a mesma ou, caso o nível de exigência não seja muito alto, pode ser utilizada alguma outra que seja parecida e ofereça um aspecto visual semelhante. A dimensão da dificuldade para a identificação de local e data pode ser ilustrada pelo que ocorreu no início do século XX, quando as rendas eram cobiçadas por colecionadores e museus, período em que elas ficaram escassas por conta das Guerras Mundiais e chegaram (pelo menos algumas delas) a ser falsificadas e “envelhecidas” com tingimentos a base de chás (fato mencionado no Capítulo 1). Apontar origem e local de produção, portanto, consiste em uma pesquisa igualmente rigorosa. Como se pode verificar, o assunto é amplo, complexo e desafiador e, por conta disso, tende a ser negligenciado e até mesmo evitado nas discussões sobre têxteis. Mas, devido a tudo que foi apresentado, não deixa de ser motivador e instigante pesquisar e se aprofundar no conhecimento sobre o tema. 151


DECIFRANDO RENDAS

152


DECIFRANDO RENDAS

153


DECIFRANDO RENDAS

ATELIER CONSERVATOIRE NATIONAL DE LA DENTELLE D’ALENÇON. Le savoir-faire de la dentelle au point d'Alençon. Disponível em: https://www.pci-lab.fr/en/fiches-d-inventaire/fiche/198. Acesso em: 15 nov. 2020. BO, João Batista Lanari. Proteção do patrimônio na UNESCO: ações e significados. Brasília: UNESCO, 2003. Disponível em: https://unesdoc.unesco.org/ark:/48223/pf0000129719. Acesso em 01/02/2020. BIASOLI-ALVES, Zélia Maria Mendes. Continuidades e rupturas no papel da mulher brasileira no século XX. Psic.: Teor. e Pesq. [online], v. 16, n. 3, p.233-239, 2000. Disponível em: https://www. scielo.br/pdf/ptp/v16n3/4810.pdf. Acesso em: 11 nov. 2020. BRASIL. Ministério da Cultura. Cultura em números: anuário de estatísticas culturais. 2. ed. Brasília, DF: MinC, 2010. Disponível em: http://rubi.casaruibarbosa.gov.br/handle/20.500.11997/6687. Acesso em: 16 dez. 2020. BRASIL. Ministério da Indústria, Comércio Exterior e Serviços / Secretaria Especial da Micro e Pequena Empresa. Portaria nº 1.007-SEI, de 11 de junho de 2018. Institui o Programa do Artesanato Brasileiro, cria a Comissão Nacional do Artesanato e dispõe sobre a base conceitual do artesanato brasileiro. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 1 ago. 2018. Seção 1, p. 34. Disponível em: https:// www.in.gov.br/web/dou/-/portaria-n-1-007-sei-de-11-de-junho-de-2018-34932930. Acesso em: 15 jan. 2021. BUENO, Francisco da Silveira. Grande Dicionário Etimológico-Prosódico da Língua Portuguesa. São Paulo: Lisa, 1988. v. 7. BRIGGS-GOODE, A.; BUTTRESS, J. A. Taxonomy of Pattern through the Analysis of Nottingham Lace. FTC Association of Fashion and Textile Courses. University of Liverpool, 17-18 November, 2009. Liverpool. BRUSSI, Júlia Dias Escobar. Da “renda roubada” à renda exportada: a produção e a comercialização da renda de bilros em dois contextos cearenses. 2009. 145 f. Dissertação (Mestrado em Antropologia) – Departamento de Antropologia, Universidade de Brasília, Brasília, DF, 2015. CALAGE, Eloi; JOPPERT, Gilda; FAJARDO, Elias. Fios e fibras - oficina de artesanato. Rio de Janeiro: Senac Nacional, 2002. CLIFFORD, C. R. The lace dictionary. New York: Clifford & Lawton Publishers, 1913. CUNHA, Aline Lemos; EGGERT, Edla. O ensino do crochê de grampada como possibilidade emancipatória para mulheres negras. In: EGGERT, Edla (org.). Processos Educativos no fazer artesanal de mulheres do Rio Grande do Sul. Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 2011. Disponível em: https://www.unisc.br/pt/servicosonline/biblioteca/biblioteca-virtual/e-books. Acesso em: 2 dez. 2020. CUNHA, Tania Batista da; VIEIRA, Sarita Brazão. Entre o bordado e a renda: condições de trabalho e saúde das labirinteiras de Juarez Távora/Paraíba. Psicologia: ciência e profissão, Brasília, v. 29, n. 2, 2009. Disponível em: https://www.scielo.br/scielo.php?pid=S1414-98932009000200005&script=sci_ arttext. Acesso em: 18 jan. 2021.

154


DECIFRANDO RENDAS

DILLMONT, Thérèse. Encyclopedia of needlework. Mulhouse, Alsace: Brustlein & Co, 1884. Disponível em: https://archive.org/details/encyclopediaofne00dill_0. Acesso em: 19 jan. 2021. EARNSHAW, Pat. Bobbin & Needle lace: identifications and care. London: Batsford Craft, 1983. EARNSHAW, Pat. A dictionary of lace. London: Shire Publications, 1988. EARNSHAW, Pat. Lace in fashion: from the sixteenth to the twentieth centuries. Guildford: Gorse Publications, 1991. EARNSHAW, Pat. The Identification of Lace. 3rd ed. London: Shire Publications, 2000. EDGAR, Judith. Nottingham city museums and galleries. In: BRIGGS-GOODE, Amanda; DEAN, Deborah. Lace, Here, Now. London: Black Dog Publishing, 2013. ENGERAND, Fernand. Inventaire des tableaux du roi (1709-1710). Paris: Ernest Leroux Editeur, 1899. Disponível em: https://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k6340828v/f422.item.r=frivolit%C3%A9. Acesso em: 15 dez. 2020. ETCHEVERRY, Délia. Encajes: historia y identificación. Buenos Aires: Fundación Museu del Traje, 2013. FARREL, Jeremy. Identifying Handmade and Machine Lace. Nottingham: The Museum of Costume and Textiles, 2007. Disponível em: https://www.dressandtextilespecialists.org.uk/wp-content/ uploads/2015/04/Lace-Booklet.pdf. Acesso em: 2 dez. 020. FELIPPI, Vera; PERRY, Gabriela. Rendas de bilros: estudo de pontos tecidos nas regiões nordeste e sul do Brasil. ModaPalavra E-Periódico, v. 11, n. 21, p. 125-146, 2018. Disponível em: https://revistas. udesc.br/index.php/modapalavra/article/view/10352. Acesso em: 5 nov. 2020. GIESBRECHT, Hulda Oliveira; MINAS, Raquel Beatriz Almeida de (coord.). Indicações Geográficas Brasileiras: artesanato. – 2. ed. Brasília, DF: Sebrae: INPI, 2016. GIRÃO, Valdelice Carneiro. Renda de bilros. Fortaleza: Instituto do Ceará, 2013. GONZÁLEZ, Milagros Amador. La roseta de Tenerife, origen y expansión. Revista de Historia de Canaria, n. 198, p. 167-178, 2016. Disponível em: http://riull.ull.es/xmlui/handle/915/4680. Acesso em: 1 dez. 2020. HARRIS, Jennifer. 5000 years of textile. Washington: Smithsonian Books, 2010 INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA – IBGE. Coordenação de População e Indicadores Sociais. Perfil dos estados e dos municípios brasileiros: cultura: 2014. Rio de Janeiro: IBGE, 2015. Disponível em: https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv95013.pdf. Acesso em: 30 nov. 2020. INSTITUTO ESTADUAL DO PATRIMÔNIO CULTURAL (RIO DE JANEIRO). Divisão de Folclore. Rendeiras de Bilro no Estado do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: INEPAC, 2004. Disponível em: http://www.inepac.rj.gov.br/application/assets/img/site/RendeirasdeBilro.pdf. Acesso em: 1 dez. 2020.

155


DECIFRANDO RENDAS

INSTITUTO DO PATRIMÔNIO HISTÓRICO E ARTÍSTICO NACIONAL – IPHAN. Modo de fazer Renda Irlandesa. Brasília, DF: IPHAN, 2009. Disponível em: http://portal.iphan.gov.br/pagina/detalhes/68. Acesso em: 30 nov. 2020. INSTITUTO DO PATRIMÔNIO HISTÓRICO E ARTÍSTICO NACIONAL – IPHAN. Dossiê Modo de fazer renda irlandesa tendo como referência este ofício em Divina Pastora – SE. Brasília: IPHAN, [20--]. Disponível em: http://portal.iphan.gov.br/uploads/ckfinder/arquivos/Dossie_modo_fazer_ renda_irlandesa(1).pdf. Acesso em 01.12.2020. KÖHLER, Carl. História do vestuário. São Paulo: Martins Fontes, 1993. LESLIE, Catherine Amoroso. Needlework through history: an encyclopedia. USA: Greenwood Press, 2007. MALUF, Eraldo; KOLBE, Wolfgang. Dados Técnicos para a Indústria Têxtil. 2. ed. São Paulo: IPT – Instituto de Pesquisas Tecnológicas do Estado de São Paulo: ABIT – Associação Brasileira da Indústria Têxtil e de Confecção, 2003. MIDDLETON, George. Imitation of Hand-made Lace by Machinery. Bulletin of the Needle and Bobbin Club, New York, v. 22, n. 1-2 –, p. 3-25, 1938. Disponível em: http://www.cs.arizona.edu/ patterns/weaving/periodicals/nb_39_1.pdf. Acesso em: 30 nov. 2020. MIDDLETON, George. Imitation of Hand-made Lace by Machinery Part II. Bulletin of the Needle and Bobbin Club Volume, New York, v. 23, n. 1 1939. Disponível em: http://www.cs.arizona.edu/ patterns/weaving/periodicals/nb_39_1.pdf. Acesso em: 30 nov. 2020. PALLISER, Bury. A history of lace. London: Sampson Low, Son, and Marston, 1865. Disponível em: https://play.google.com/books/reader?id=viEMAAAAYAAJ&hl=pt&pg=GBS.PA1. Acesso em: 26 nov. 2020. PALLISER, Bury. A history of lace. 2nd ed. London: Sampson Low, Son, and Marston, 1869. Disponível em: https://play.google.com/books/reader?id=CyoGAAAAQAAJ&hl=pt&pg=GBS.PA86 Acesso em: 26 dez. 2020. PALLISER, Bury. A history of lace. London: William Clowes and Sons, 1902. Disponível em: http:// www.gutenberg.org/files/57009/57009-h/57009-h.htm#page26. Acesso em: 26 nov. 2020. POMPEU, Helfa Maria Costa Freitas. Narrativas e o lugar: sobre o artesanato tradicional da renda turca de bicos de Sabará. 2016. 174 f. Dissertação (Mestrado em Arquitetura) – Programa de Pós Graduação em Ambiente Construído e Patrimônio Sustentável, Escola de Arquitetura, UFMG, Belo Horizonte, 2016. Disponível em: http://hdl.handle.net/1843/MMMD-B2JHUY. Acesso em: 2 nov. 2020. POWERHOUSE MUSEUM. Lace Study Centre. Disponível em: http://www.powerhousemuseum. com/collection/database/?irn=132841&search=bobbin+lace&images=&c=&s=. Acesso em: 22 dez. 2020. RAMOS, Luisa; RAMOS, Arthur. A renda de bilros e sua aculturação no Brasil: nota preliminar e roteiro de pesquisa. Rio de Janeiro: Sociedade Brasileira de Antropologia e Etnologia, 1948.

156


DECIFRANDO RENDAS

SHEPHERD, Rosemary. Powerhouse Museum Lace Collection: Glossary of terms used in the documentation – Blue files and collection notebooks. Powerhouse Museum, Lace Study Centre, 2003. Disponível em: https://maas.museum/app/uploads/2017/03/Glossary-of-Lace-and-LacemakingTerms.pdf. Acesso 05 jan. 2020. SILVA, Camila Borges da. O símbolo indumentário: distinção e prestígio no Rio de Janeiro (18081821). Rio de Janeiro: Secretaria Municipal da Cultura: Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro, 2010. Disponível em: http://www.rio.rj.gov.br/dlstatic/10112/4204431/4101446/livro_o_simbolo_ indumentario.pdf. Acesso em 25 Dez 2020. SILVA, Vera Lucia Felippi da. Museu Moda e Têxtil UFRGS: fonte de preservação e pesquisa em ambiente digital. 2018. 180 f. Tese (Doutorado em Design) – Programa de Pós-Graduação em Design, Escola de Engenharia, Faculdade de Arquitetura, UFRGS, Porto Alegre, 2018. Disponível em: https:// lume.ufrgs.br/handle/10183/188046. Acesso em: 15 dez 2020. SILVA, Vera Lucia Felippi da. Acervo de rendas Lucy Niemeyer: uma contribuição para o design. 2013. 173 f. Dissertação (Mestrado em Design) – Programa de Pós-Graduação em Design, Escola de Engenharia, Faculdade de Arquitetura, UFRGS, Porto Alegre, 2013. Disponível em: https://lume. ufrgs.br/handle/10183/101205?locale-attribute=es. Acesso em: 29 nov. 2020. SILVEIRA, Gisele Monteiro. Entre desfiados e nós: o saber popular no contexto da renda labirinto na comunidade de Paripueira, Beberibe. 2018. 125 f. Dissertação (Mestrado em Educação) – Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, 2018. THE LACE GUILD. The craft of lacemaking. Stourbridge, UK, c2019-2020. Disponível em: https:// www.laceguild.org/a-brief-history-of-lace. Acesso em: 8 dez. 2020. WENDHAUSEN, Maria Armênia Müller. Renda de bilros - um legado açoriano transcendendo séculos em Florianópolis. Blumenau: Nova Letra, 2015. WORLD HERITAGE JOURNEYS. Agave Lace. Disponível em: https://visitworldheritage.com/en/ eu/agave-lace/ef9957bd-1f01-48e0-8107-095c24d13670. Acesso em 28/11/2020. Sites de museus consultados: Bibliothèque Nationale de France: https://www.bnf.fr/fr Museus Castro Maya: http://museuscastromaya.com.br/ Museu Imperial: https://museuimperial.museus.gov.br/ Museu Moda e Têxtil UFRGS: www.ufrgs.br/mmt Nottingham Trent University: https://www.ntu.ac.uk/research/groups-and-centres/groups/laceheritage Powerhouse Museum: https://maas.museum/powerhouse-museum/ Rijksmuseum: https://www.rijksmuseum.nl/nl The Royal Collection Trust: https://www.rct.uk/ The British Museum: https://www.britishmuseum.org/ The Metropolitan Museum of Art: https://www.metmuseum.org/ The Wallace Collection: https://www.wallacecollection.org/ Victoria & Albert Museum: https://www.vam.ac.uk/

157


NOÇÕES HISTÓRICAS

158


NOÇÕES HISTÓRICAS

159


Autora Gestão de projeto Produtora Assistente de produção Diagramação Designer de ilustrações e capa Revisoras

Vera Felippi Carolina Bouvie Grippa Taís Cardoso Daniela Guedes dos Santos Caju Comunicação Luciana Rocha Laís Webber, Consuelo Vallandro e Caroline Ferrari

Assessoria de imprensa

Katiana Ribeiro e Pietro Ferreira

Fotógrafas e fotográfos

Andrea Fiamenghi (coleção Nina Sargaço) Arêh Fotografia (tenerife) Bruna Conforte (bilros, crivo e tramoia) Desirée Ferreira (frivolité) Isis Oliveira (renda irlandesa) Janete Kriger (grampada) Rinaldo Martinucci (renda renascença) Walter da Silva Rosa (acervo pessoal Vera Felippi)

Edição de fotografia Edição de vídeos Coleções particulares

Walter da Silva Rosa CAV Produtora e Joana Bernardes Nina Sargaço Heloisa Conceição Annes

Empresa Museus nacionais

Fábrica de Rendas e Bordados Hoepcke SA Itaú Cultural Museus Castro Maya Museu Imperial Museu Moda e Têxtil UFRGS

Museus internacionais

Bibliothèque Nationale de France Rijksmuseum The British Museum The Metropolitan Museum of Art The Royal Collection Trust The Wallace Collection Victoria and Albert Museum

Essa publicação utiliza as fontes Libre Barskeville e Raleway. Na versão física, foi impresso sobre papel couche fosco 150g (miolo) e papel supremo duo design 300g (capa). 900 unidades foram produzidas pela Gráfica Ideograf em março de 2021.




Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.