SUS e a Lei Complementar 141 comentada

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SUS E A LEI COMPLEMENTAR 141 COMENTADA


Bibliotecária: Helena Joana Flipsen - CRB-8ª / 5283

Sa59s

Santos, Lenir. SUS e a Lei Complementar 141 comentada / Lenir Santos. -- Campinas, SP : Saberes Editora, 2012.

ISBN 978-85-62844-27-0���������������������������� ��������������������������������������������� 1.Sistema Único de Saúde (Brasil) 2. Saúde pública - Legislação - Brasil. 3. Política de saúde - Brasil. 4. Qualidade vida. I. Título. CDD - 614 - 344.8104 - 362.10981 - 613.71


Lenir Santos

SUS E A LEI COMPLEMENTAR 141 COMENTADA


Copyright by © Lenir Santos, 2012 Direito desta edição Saberes Editora e Conasems, 2012

Editora Lenir Santos Projeto gráfico, capa e editoração Valéria Ashkar Ferreira Revisão Camila Tashiro Sergent

Av. Santa Isabel, 260 - sala 5 B.Geraldo - Campinas, SP - Brasil CEP 13084-012 Fone +55 19 3288.0013 saberes@sabereseditora.com.br www.sabereseditora.com.br

Nenhuma parte desta publicação pode ser gravada, armazenada em sistema eletrônico, fotocopiada, reproduzida por meios mecânicos ou outros meios quaisquer.


Sobre a autora Lenir Santos – Doutora em saúde pública pela Unicamp, especialista em direito sanitário pela USP, advogada. Coordenadora do curso de especialização em direito sanitário IDISA e consultora do Ministério da Saúde. Autora de diversas obras e artigos publicados em revistas especializadas. Conferencista.


CONASEMS Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde Antônio Carlos Figueiredo Nardi Presidente Aparecida Linhares Pimenta Vice Presidente Pedro Hermann Madeiro Vice Presidente

Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde (Conasems) Esplanada dos Ministérios Bloco G, Edificio Anexo Ala B, sala 144 CEP 70.058-900 – Brasília-DF Tel.: 61 3223 0155 www.conasems.org.br conasems@conasems.org.br


Apresentação

O Conselho Nacional de Secretarias Municipais de ­Saúde (CONASEMS) tem o prazer de apresentar, “SUS e a Lei Complementar 141 comentada”, de autoria de Lenir Santos. Trata-se de obra essencial para a melhor compre­ ensão dos ditames da Lei complementar 141 e sua aplicabilidade no âmbito do SUS. A Lei complementar 141, de 2012, levou cerca de nove anos para ser editada. Apresentada em 2004 pelo Deputado Roberto Gouveia, após inúmeras idas e vindas, acabou por ser votada, sancionada e publicada em janeiro de 2012. O que era para ter sido uma lei de redenção do financiamento da saúde pública brasileira manteve, nesse aspecto, os mesmos insuficientes recursos financeiros para garantir sustentabilidade ao Sistema Único de Saúde (SUS). Os percentuais mínimos que cabem aos Estados e Municípios aplicar em saúde continuaram os mesmos da EC 29, de 2000 (12 e 15%, respectivamente), e os valores da União que se pretendia fossem elevados para o patamar de 10% de suas receitas brutas correntes, manteve-se, também, tal qual como antes: o valor do ano anterior acrescido da variação do PIB nacional. Tampouco foi possível a criação de nova fonte de recursos para a saúde pública, com a criação da contribuição social para a saúde.


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Nesse aspecto a Lei Complementar 141 não inovou. Daí diversas críticas que surgiram após a sua edição, além de outras ressalvas que se fizeram em razão de sua má ­técnica legislativa, de sua complexa forma de fiscalização, controle e avaliação, além de ter trazido algumas complicações, principalmente para os municípios de menor porte econômico e demográfico, por exigir sejam todos os fundos de saúde unidades orçamentária e gestora de todos os recursos da saúde em contraponto a ser um fundo contábil, tão somente. Outros aspectos poderiam ser destacados, mas entendemos que esses talvez sejam os mais nevrálgicos pontos da Lei Complementar 141. Contudo, não poderia deixar de ser destacado o seu mérito. Mérito de a saúde pública brasileira ter em seu arcabouço jurídico uma lei que impõe mínimos percentuais de receitas tributárias para a saúde; que esclarece, de uma vez por todas, o que são gastos com saúde no tocante à neces­sária separação das atividades condicionantes e determinantes da saúde daquelas que são atribuição específica do SUS, conforme já determina a Constituição Federal, art. 200 e o art. 6º da lei 8.080, de 1990. Atividades que interferem com a saúde são inúmeras, havendo de se separar as atividades tidas como fatores condicionantes e determinantes da saúde daquelas que se vinculam ao acesso universal e igualitário às ações e serviços de promoção, proteção e recuperação da saúde, as quais devem ser financiadas com os recursos mínimos da saúde.


Apresentação

Nesse aspecto a Lei complementar 141 garante maior clareza sobre o que cabe ao SUS como atribuição institucional e o que deve ser financiado com recursos mínimos da saúde. Desse modo, o CONASEMS entende relevante a presente publicação, de autoria de Lenir Santos, ante sua importância para os gestores municipais, especialistas, estudiosos e profissionais de saúde. Lenir Santos vem contribuindo de maneira ímpar para a estruturação do SUS e essa obra certamente apoiará a gestão da saúde por permitir que determinadas especificações da lei tenham melhor compreensão.

Antonio Carlos Nardi Presidente do Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde – CONASEMS



Glossário

ABRASCO – Associação Brasileira de Pós-Graduação em Saúde Coletiva ADCT – Ato das Disposições Constitucionais Transitórias ADIn – Ação Direta de Inconstitucionalidade ANM – Academia Nacional de Medicina APM – Associação Paulista de Medicina ATRICOM – Associação dos Membros dos Tribunais de Contas do Brasil CEBES – Centro Brasileiro de Estudos de Saúde CF – Constituição Federal CFM – Conselho Federal de Medicina CGU – Controladoria Geral da União CIB – Comissão Intergestores Bipartite CIT – Comissão Intergestores Tripartite CNS – Conselho Nacional de Saúde COFINS - Contribuição sobre o Financiamento Social CONASEMS – Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde CONASS – Conselho Nacional dos Secretários de Saúde COSEMS – Conselho Estadual de Secretarias Municipais de Saúde CPMF – Contribuição Provisória sobre a Movimentação Financeira CSS – Conselho de Seguridade Social


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CSSLL – Contribuição Social sobre Lucro Líquido DCD – Diário da Câmara dos Deputados DEM – Democratas DPVAT – Danos Pessoais Causados por Veículos Automotores de Vias Terrestres EC – Emenda Constitucional FBH – Federação Brasileira de Hospitais FENAM – Federação Nacional dos Médicos FENTAS – Fórum de Entidades Nacionais de Trabalhadores da Área da Saúde FNDE – Fundo Nacional do Desenvolvimento da Educação FNS – Fundo Nacional de Saúde FPS – Fundo de Previdência Social GM – Gabinete do Ministro IDSUS – Índice de Desempenho do SUS INAMPS – Instituto Nacional de Assistência Médica e Previdência Social IPEA – Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada IPMF – Imposto Provisório sobre a Movimentação Financeira LC – Lei Complementar LDO – Lei de Diretrizes Orçamentárias LOA – Lei Orçamentária Anual LRF – Lei de Responsabilidade Fiscal MS – Ministério da Saúde OAB – Ordem dos Advogados do Brasil OSS – Orçamento da Seguridade Social 12


Glossário

PAB – Piso da Atenção Básica PEAA – Programa Estadual de Acesso à Alimentação PEC – Proposta de Emenda à Constituição PIB – Produto Interno Bruno PLP – Projeto Lei Presidencial PLS – Projeto de Lei do Senado PMDB – Partido do Movimento Democrático Brasileiro PNS – Plano Nacional de Saúde PPA – Plano Plurianual PSDB – Partido da Social Democracia Brasileira PT – Partido dos Trabalhadores RCB – Receita Corrente Bruta RENAME – Relação Nacional de Medicamentos Essenciais RENASES – Relação Nacional de Ações e Serviços de Saúde RICD – Regimento Interno da Câmara dos Deputados SES – Secretaria de Estado da Saúde SIOPS – Sistema de Informação sobre Orçamento Público em Saúde SNA – Sistema Nacional de Auditoria SUS – Sistema Único de Saúde TAS – Termo de Ajustamento Sanitário TCU – Tribunal de Contas da União UNICAMP – Universidade Estadual de Campinas USP – Universidade de São Paulo

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Sumário

Prefácio................................................................................19 I

Introdução...................................................................25

II

Da tramitação da Lei Complementar 141....................32

III

O que a Lei Complementar regulamenta......................40

IV Da revogação de leis da saúde......................................42

4.1 A LC 141 e o decreto 7.508, de 2011....................48

V

Da aplicabilidade da Lei Complementar 141...............52

VI Das ações e serviços públicos de saúde.........................54 6.1 A dimensão do direito à saúde..............................57 6.2 Gratuidade das ações e serviços de saúde..............62 6.3 Conceituação das ações e serviços de saúde do SUS....................................................63 6.4 O que não pode ser considerado como ações e serviços de saúde................................................69 VII Da aplicação de recursos em ações e serviços públicos de saúde.........................................76 7.1. Valores dos Municípios.........................................77 7.2. Valores dos Estados...............................................78 7.3. Valores da União...................................................79 7.4. Fundo de Saúde.....................................................81 VIII Dos critérios de rateio dos recursos da União para Estados e Municípios...........................................89

8.1 Combinação dos critérios legais para partilhar os recursos da União entre os entes federativos.....97


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8.2 Procedimentos para realizar as partilhas...............102

8.3 Compatibilizando a legislação

sobre as partilhas.................................................102

8.4 O contrato organizativo da ação pública

do Decreto 7.508, de 2011...................................109

8.5 Transferências voluntárias....................................112

8.6 Os consórcios e os recursos da saúde

8.7 Resumo conclusivo sobre o critério

dos Estados para os Municípios...........................117

8.9 Disposições gerais sobre a aplicação

de rateio dos recursos da União............................115

8.8 Critérios de partilha dos recursos

e outras formas de cooperativismos......................113

dos recursos na saúde...........................................120

8.10 Suspensão das receitas tributárias dos fundos

de participação dos Estados e Municípios............125

8.11 Termo de ajustamento sanitário (TAS)..................131

8.12 Planejamento ascendente na saúde........................135

IX Da transparência, visibilidade, fiscalização,

avaliação e controle.....................................................142

9.1 Transparência e Visibilidade

9.2 Prestação de contas para o controle

da Gestão da Saúde..............................................142 interno e externo..................................................144

9.3 Escrituração e Consolidação das

Contas da Saúde...................................................147

9.4 Prestação de Contas.............................................148

9.5 Fiscalização da Gestão da Saúde...........................150

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Sumário

9.6 Responsabilidade do gestor da saúde....................153

9.7 Homologação.......................................................153

9.8 Descumprimento da Lei Complementar 141.........155

X Disposições finais e transitórias...................................158 Quadro Resumo - Lei Complementar 141..........................161 Bibliografia.........................................................................163 ANEXOS Emenda Constitucional nº 29, de 13 de setembro de 2000... 167 Lei Complementar 141, de 16 de janeiro de 2012..............173 Decreto nº 7.508, de 28 de junho 2011..............................203

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Prefácio

Apresentar o livro de Lenir Santos comentando a Lei Complementar 141, de 13 de janeiro de 2012, é uma dupla satisfação: primeiro pelo convite e segundo pelo fato de podermos contar com essa publicação tão necessária para a adequada compreensão de uma lei complexa e de grande importância para a consolidação do SUS. Lenir Santos é hoje, sem dúvida, a profissional do direito que mais tem contribuído para a construção do direito sanitário, ainda nascente no nosso país. Ela tem sido a nossa advogada sanitarista. Seu primeiro livro, em parceria com Guido Ivan de Carvalho, Comentários à Lei Orgânica da Saúde, cuja primeira edição esgotou-se em menos de quatro meses nos idos de 1993, teve o mérito de tecer comentários jurídicos sobre a lei que organiza o SUS, descortinando para os especialistas e gestores públicos da saúde maior compreensão sobre o SUS em seus aspectos organizativos e operativos. Tenho tido o privilégio de seu convívio nos campos acadêmico e operacional do SUS, tendo elaborado em 2007, em conjunto, o livro SUS: o espaço da gestão inovada e dos consensos interfederativos, o qual trouxe para o SUS um novo olhar sobre a sua organização e funcionamento e propôs a construção de novos elementos que o institucionali19


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zam, como o contrato de ação pública. Não poderia deixar de destacar a sua capacidade de olhar sempre de maneira ímpar e inovadora as questões do SUS, sempre encontrando soluções e respostas qualitativas para o seu adequado funcionamento. Nos últimos anos ela trouxe para o SUS inovações que não poderiam deixar de destacar: a proposta de construção de um projeto de lei sobre responsabilidade sanitária; o projeto da fundação estatal; a efetiva participação na reforma sanitária de Sergipe e na construção da fundação interfederativa de saúde da família da Bahia; o projeto de lei que institucionalizou as comissões intergestores na saúde, lei 12.466; e a mais recente a regulamentação da lei 8080, o decreto 7.508, de 2011, destacando-se duas grandes concepções que são: o contrato organizativo de ação pública e a Relação Nacional de Ações e Serviços de Saúde (RENASES), esta última tornando público para a população os contornos da integralidade da assistência à saúde, de suma importância para a consolidação do SUS. Tive o privilégio de com ela conviver todo esse tempo, e ultimamente compartilhar seus pensamentos e concepções, com reflexões, trabalhos e publicações que concebemos juntos, sempre instigado pelo seu pensar criativo sobre a saúde pública brasileira. Sua produção acadêmica tem sido intensa e com os comentários à Lei Complementar 141 ela traz para o SUS mais uma contribuição, uma vez que a presente lei, ainda que de difícil compreensão, tem o grande mérito de fortale20


Prefácio

cer as relações interfederativas ao dispor sobre as partilhas de recursos entre os entes federativos num reconhecimento da necessária integração das ações e serviços de saúde dos entes federativos e de esclarecer, de uma vez por todas, o que são ações e serviços de saúde separando, em definitivo, as atividades que interferem, condicionam e determinam a saúde das pessoas daquelas que são atribuições específicas do SUS, elemento muito bem comentado pela autora nesta obra. Os percentuais mínimos de receitas tributárias que devem ser vinculados e aplicados em saúde dão garantias ao financiamento do SUS, ainda que não deixemos de reconhecê-lo como insuficiente, dotando o SUS de institucionalidade no tocante à obrigatoriedade de se ter gastos mínimos com a saúde. A presente obra surge em momento oportuno por contribuir para a compreensão técnico-jurídica de mais uma lei de grande importância no arcabouço legal da saúde. São 24 anos de SUS desde o reconhecimento do direito à saúde na Constituição de 88. De lá para cá tivemos a edição de importantes leis, marcos do fortalecimento e consolidação de uma saúde pública de acesso universal, como: lei 8080, de 1990, que dispõe sobre a organização e o funcionamento do SUS; lei 8.141, de 1990, que dispõe sobre conselhos e conferências de saúde e repartição dos recursos da saúde; lei 9656, de 1998, que dispõe sobre a regulamentação dos planos de saúde; lei 12.401, de 2011 que estabelece regras sobre incorporação tecnológica na saúde; lei 12.466, de 2011, 21


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que institucionaliza as relações interfederativas no SUS e o decreto 7.508, de 2011, que regulamenta a lei 8080. Tenho certeza de que o SUS se enriquecerá com essa obra por trazer para os operadores do direito, gestores, especialistas e profissionais da saúde um novo conhecimento.

Luiz Odorico Monteiro de Andrade Professor da Universidade Federal do Ceará Secretário de Gestão Estratégica e Participativa do Ministério da Saúde

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I Introdução

A Lei Complementar 141, de 13 de janeiro de 2012 (LC 141), após anos para ser votada no Congresso Nacional, tem a finalidade de cumprir mandamento constitucional inserto no art. 198, § 3º, pela Emenda Constitucional 29, de 2000 (EC 29), assim disposto: Lei complementar, que será reavaliada pelo menos a cada cinco anos, estabelecerá: I – os percentuais de que trata o § 2º; II – os critérios de rateio dos recursos da União vinculados à saúde destinados aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios, e dos Estados destinados a seus respectivos Municípios, objetivando a progressiva redução das disparidades regionais; III – as normas de fiscalização, avaliação e controle das despesas com saúde nas esferas federal, estadual, distrital e municipal; IV – as normas de cálculo do montante a ser aplicado pela União.

A EC 29, de 2000, acrescentou os §§ 2º e 3º no art. 198 da CF, além de ter acrescido o art. 77 nos ADCT. 25


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Antes de adentrar nas finalidades da LC 141 não poderíamos deixar de tecer comentários a respeito da sua importância institucional por dotar a saúde pública de normas que lhe garantem percentuais de receitas tributárias; impor a obrigatoriedade de os entes federativos partilharem recursos reconhecendo ser o SUS um sistema de interdependências e por exigir cooperação entre os entes federativos. Sem dúvida essa institucionalidade em relação às partilhas de recursos orçamentários é um grande ganho para a consolidação do SUS, mesmo que se possa tecer críticas quanto aos valores ainda insuficientes do financiamento e alguns dos critérios para a partilha, entre outros aspectos. Entretanto não se pode negar a sua relevância no tocante a ser uma lei que impõe percentuais mínimos para a saúde e institucionaliza as partilhas interfederativas e a cooperação. Retomando o tema central, dentre as finalidades da LC 141 deve-se ressaltar a sua intenção em promover a equidade orçamentária entre União, Estados e Municípios em razão das suas assimetrias socioeconômicas e populacionais, definindo critérios para rateio de recursos entre os entes federativos para serem aplicados na saúde pública e vinculando receitas tributárias. Contudo pode-se afirmar que mesmo tendo essa finalidade, o alcance dessa equidade poderá ser dificultado pelo fato de ter excluí­do de seus regramentos algumas possibilidades como a de se instituir transferências per capita, como ocorre hoje com o PAB fixo Piso da Atenção Básica. 26


I

Introdução

e pelo fato de preferir a ampliação das transferências federativas (recursos da União, em especial) ao invés de promover algumas mudanças na arrecadação tributária para dotar os entes federativos de maiores recursos próprios para serem aplicados na saúde. Essas condutas na nossa Federação são frequentes ante as práticas mais centralizadoras que federativas. A nossa Constituição, em diversos artigos, em especial os financeiro-tributários, explicitam, entre outras funções dos orçamentos públicos, a de reduzir as desigualdades interregionais, segundo o critério populacional. Aliás é princípio da nossa República Federativa, inserto no art. 3º, III, reduzir as desigualdades regionais. Nesse sentido a LC 141 deu um passo atrás ao não adotar dentre seus critérios de partilhas o exclusivamente populacional, tendo suprimido-o ao revogar o disposto no § 1º do art. 35 da lei 8080. Esclarecendo melhor: o critério populacional (demográfico) persiste, mas deve ser combinado com outros critérios e não mais como um critério per si, exclusivo de partilha federativa. Nesse passo não poderíamos deixar de citar o art. 43 da CF que confere poderes à União para articular sua ação em um mesmo complexo geoeconômico e social, visando ao seu desenvolvimento e à redução de suas desigualdades regionais, dispondo sobre a integração de regiões em desenvolvimento. Em relação à saúde é necessário ter equilíbrio entre receitas e despesas (gastos públicos), tendo em vista o fato de a CF conferir competência comum aos entes federativos para a execução de ações e serviços de saúde 27


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independentemente das assimetrias socioeconômicas e demográficas dos entes federativos. Não se pode pensar em responsabilidades iguais para entes desiguais sob o ponto de vista socioeconômico e demográfico. O art. 35 da lei 8080 visou equalizar essas responsabilidades; a questão é que esse artigo nunca foi cumprido pela União na sua completude desde sua edição em 1990. É a desigualdade dos iguais, no dizer de Silveira . A desigualdade socioeconômica brasileira é uma realidade pungente e requer forte cooperação e solidariedade federativas para a sua superação, não se podendo admitir que todos os entes federativos devam ter as mesmas responsabilidades no tocante à execução de ações e serviços de saúde para a garantia de direitos sociais e individuais. Competência plena para cuidar da saúde é um fato constitucional, porém é imperativo definir quais as atribuições dos entes para garantir conformidade à realidade socioeconômica e demográfica, com a finalidade de se evitar uma exigência incompatível com essa realidade. A competência é plena para a execução de ações e serviços de saúde que caibam nas suas características territoriais; que respeitem suas capacidades técnico-financeiras, sua condição socioeconômica e demográfica. Sua competência institucional não fica diminuída ante uma menor riqueza e capacidade Silveira, Alessandra. Cooperação e Compromisso Constitucional nos Estados Compostos. Estudo sobre a teoria do federalismo e a organização jurídica dos sistemas federativos. Coimbra, Portugal: Almedina, 2007, p.136. 28


I

Introdução

técnica. Esse respeito institucional ou o que temos chamado de alteridade institucional tem fundamental importância para o alcance da equidade no SUS. Nosso país para chegar ao equilíbrio fiscal deve chegar à justa partilha das responsabilidades em relação às receitas que possam sustentá-las. Por isso foi inserto na Constituição normas sobre partilhas de recursos para garantir equilíbrio entre responsabilidades sociais e encargos financeiros. E a saúde, em especial, necessita de regras legais sobre partilhas federativas pelo fato de o art. 198 da CF ter determinado a integração das ações e serviços de saúde de todos os entes federativos em rede regionalizada. Essa integração não é uma faculdade; é uma obrigação. Sendo uma obrigação, os recursos também devem, por conseguinte, ser integrados e partilhados. Silveira , professora na Universidade do Minho, em Portugal, em excelente trabalho sobre o federalismo brasileiro, ao analisar o SUS defende que pelo fato de a CF em seu art. 198 impor a atuação conjunta e ordenada dos entes federativos, “a cooperação já não se revela como sugestão, mas como exigência constitucional. É vedado a qualquer ente político-administrativo constituir um plano ou programa de saúde à parte do SUS, posto que a Constituição cria um sistema de serviço público unificado e fundado na obrigatória conjugação de esforços”.

Silveira, Alessandra. Op. cit. 29


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A nossa federação por ser uma federação cooperativa e organizada de modo tridimensional , exige a adoção de uma série de medidas atinentes à redução das desigualdades regionais com a finalidade de garantir equidade na divisão de responsabilidades federativas comuns a todos, sem mencionar a imperiosa necessidade de impulsionar o desenvolvimento das regiões mais carentes para chegar a um equilíbrio federativo. No ensinamento de Ricardo Lobo Torres a equidade no federalismo depende, portanto, da política orçamentária e da opção por certos princípios constitucionais. (...) a política de bem-estar e de atendimento às necessidades imediatas do cidadão privilegia o Município (...) resta que se redistribuam as despesas na via orçamentária à luz da equidade. (destaque nosso). Idealmente, deveria haver uma reforma tributária para fazer essa distribuição já nas suas fontes arrecadadoras. Mas na saúde, perante a necessidade de integrar serviços entre os entes federativos, é imprescindível ter recursos na União e nos Estados para a promoção da equidade regional, desde que os critérios de rateio sejam legais e equânimes, não se Bonavides, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 26ª ed. São Paulo: Malheiros Editora, 2011. Torres, Ricardo Lobo. Curso de Direito Financeiro e Tributário. 18ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2011. 30


I

Introdução

sujeitando à vontade política dos dirigentes públicos, e sejam compatíveis com as realidades brasileiras. A LC 141 decorre, pois, da necessidade de se garantir recursos para financiar a saúde pública, definindo e vinculando percentuais das receitas fiscais e realizando partilhas ante as assimetrias dos entes subnacionai para alcançar o equilíbrio entre receitas e encargos em razão das diferenças socioeconômicas e demográficas. Ressalte-se que a LC 141 refere-se, em diversos momentos, à necessidade de redução das desigualdades regionais (arts. 17, 19, entre outros). A Constituição Federal prevê essa equidade nos arts. 43, 159, entre outros, além de ser um dos fundamentos da República a diminuição das desigualdades regionais. Para assumir encargos, o ente federativo deve contar com os necessários recursos para fazer face aos gastos públicos decorrentes. Resta saber se os critérios que definirão as partilhas doravante serão suficientes para se promover a tão necessária equidade regional. Essa meta constitucional não será atingida se determinados critérios não visarem ao equilíbrio regional, sendo vagos ou de difícil mensuração, o que parece acontecer com alguns critérios previstos na LC 141, conforme análise de especialistas.

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II Da tramitação da Lei Complementar 141

A origem e tramitação da LC 141 foi bem descrita por Gilson Carvalho , conforme transcrito abaixo: Primeiro capítulo – dos anos 60 aos anos 2000 Anos 60/70/80 – A Pré-Constituição trazia uma luta para a saúde ter financiamento das três esferas de governo; fontes múltiplas e não apenas e principalmente a contribuição de empregados e empregadores sobre a folha; manter o que gastava o INAMPS com saúde (30% do orçamento da seguridade social) e recursos fiscais da União, Estados e Municípios. • 1988 – Constituição – A contribuição da União, para a saúde, deveria se fixar em 30% do orçamento da seguridade social em 1989 (ADCT-55) e nos outros anos o valor definido na LDO. Nas LDO da União, entre 1990-1993, sempre foi definido 30% do OSS para a saúde, mas nunca cumprido. •

Acessível no site: <www.idisa.org.br>. 32


II

Da tramitação da Lei Complementar 141

1991 – Lei do PPA define como recurso federal para a saúde 25% da Contribuição de Empregados e Empregadores sobre a Folha. 7/7/1993 – PEC-169 – Deputado Eduardo Jorge (PT) – médico sanitarista paulista fez proposta de 30% do Orçamento da Seguridade Social e 10% dos recursos fiscais da União, Estados e Municípios. 1995 – Deputado Pinotti (PMDB) – médico ginecologista paulista – professor UNICAMP-USP fez a proposta de que a União destinasse no mínimo o equivalente a 5% do PIB para a saúde (a média era de menos de 2%). 1995 – Deputado Rafael Guerra (PSDB) médico mineiro; proposta: 3% do PIB como contribuição da União, para a saúde. 1995 – PEC 82/95 – Deputado Mosconi (PSDB) – médico mineiro; proposta de que 100% da ­COFINS (contribuição sobre o financiamento social) e 100% da CSSLL (contribuição social sobre lucro líquido) fossem destinadas à saúde. 1994 (dezembro) – Conselho Nacional de Saúde (CNS) faz a proposta de manutenção e transformação do IPMF (vigência terminaria em dezembro de 1994) em CPMF destinada exclusivamente à saúde. 1995 – Adib Jatene – Ministro da Saúde – médico cardiologista paulista passou a defender a criação da CPMF, sugerida pelo CNS, não como imposto, mas como contribuição. 33


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1999 – Deputado Ursicino Queiroz (DEM) – médico baiano consolida as discussões dos vários propositores de emenda e de várias entidades – faz um projeto aglutinador das propostas em discussão que levou o número PEC 82-A com relatoria do Deputado Darcisio Perondi (PMDB) – médico gaucho. A PEC foi aprovada na Câmara e encaminhada ao Senado para votação. • 10/9/2000 – aprovação da EC-29; financiamento da saúde: União 0% do PIB; Estados 12% da receita própria; Municípios 15% da receita própria; a União desresponsabilizou-se em menos da metade dos mínimos batalhados para a União e onerou Estados em mais 20% e Municípios, mais 50%. Segundo capítulo – dos anos 2001 ao ano de 2012 •

2001 – CNS – IPEA – CONASS – CONASEMS – ATRICOM – ASSESSORIA DA CÂMARA E DO SENADO elaboram parâmetros consensuais para regulamentação da EC-29 tentando normatizar a interpretação da EC-29 até que se pudesse fazer isto por Lei Complementar prevista para cinco anos depois (2005). • 2002 – CNS produziu a resolução 316 oficializando e reforçando os parâmetros consensuais para regulamentação da EC-29. 34


II

Da tramitação da Lei Complementar 141

2002 – No Senado os senadores Tião Vianna (PTACRE) e Paulo Hartung (PSDB-Espírito Santo) propõem regulamentação da EC-29. 2002 – Na Câmara Federal o Deputado Ursicino Queiroz apresenta projeto de Regulamentação da EC-29. 2003 – Deputado Roberto Gouveia (PT) – médico sanitarista paulista apresenta o PLP 1/2003, o primeiro da legislatura, determinando que a União destine à saúde 10% de sua Receita Corrente Bruta e Estados mantenham o mínimo de 12% e Municípios o mínimo de 15%. Outro tema importante foi a definição do que são e não são ações e serviços de saúde, absorvendo a definição do Conselho Nacional de Saúde. Abre-se uma discussão nacional para aprimorar o projeto. 2003 – A XII CNS de 12/2003 aprova a proposta dos 10% da RCB como a participação da União no financiamento da saúde. 2004 a 2007 – A proposta de Roberto Gouveia passou por várias discussões e teve como relator o Deputado Guilherme Menezes (PT), médico baiano. Nenhum projeto foi tão discutido por vários segmentos da sociedade e do meio da saúde pública. Finalmente saiu o relatório. Até a manhã de 31 de outubro de 2007, o relatório trazia os 10% da RCB. No horário de almoço o governo fez uma manobra de convencimento e o projeto foi modificado 35


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mantendo o percentual do PIB para a União. Este projeto foi remetido ao Senado para votação já que tinha nascido na Câmara. O PLP 01/2003 dependia de recursos da CPMF para sobreviver. Quando caiu a prorrogação da CPMF em dezembro de 2007, o projeto da Câmara foi esquecido. • 29/3/2007 – O Senador Marconi Perillo (PSDB), goiano, apresentou o PLS 156 com a proposta de a União contribuir no mínimo com 18% da receita corrente líquida. Este projeto não saiu das comissões ao plenário. • 3/2007 – PLS 121 – Projeto de Lei Complementar do Senador Tião Viana (PT), médico acreano, professor da universidade, onde se repetiu a proposta de Roberto Gouveia defendendo os 10% da Receita Corrente Bruta como financiamento federal para a Saúde. O relator foi o Senador Augusto Botelho (PT), médico de Roraima. Teve avanços e retrocessos na tramitação, quase perdendo sua essência. Por negociação conseguiu sair inteiro e foi aprovado por unanimidade pelo Senado Federal, em abril de 2008. • 2008 – O projeto aprovado no Senado foi encaminhado à Câmara para apreciação. Chegando à Câmara foi entregue ao Deputado Pepe Vargas (PT), médico gaucho. Pepe Vargas, por orientação do Governo fez um substitutivo completo ao projeto do Tião Viana, buscando resgatar o texto de Roberto Gouveia e Guilherme Menezes. A essência foi a reti36


II

Da tramitação da Lei Complementar 141

rada dos 10% da RCB e reintrodução do percentual do PIB. Introduzia também a contribuição social para a saúde sobre movimentação financeira que foi aprovada em 2008, faltando um único destaque que só foi votado em novembro de 2011 e que derrubou a CSS por tirar-lhe a base de incidência. • 2011 – Foi reencaminhado ao senado o projeto aprovado na câmara, pois tinha havido mudanças e necessitaria de outra votação do Senado. Na votação em 13 de dezembro, foi aprovado o substitutivo da câmara que não acrescentou nenhum recurso para a saúde e manteve o montante da União em um percentual do PIB. O Senado votou exatamente contra seu projeto de anos atrás que tinha sido aprovado pela unanimidade dos senadores. Este projeto foi aprovado em dezembro de 2011 e publicado em janeiro de 2012, com alguns vetos da presidente Dilma. Terceiro capítulo – recomeçando a luta a partir do zero Atual estado de propostas pós LC 141 visando a sua alteração para que a União entre com 10% de sua receita corrente bruta para a saúde. PLP-00123/2012 – Deputado Darcísio Perondi – médico gaucho – PMDB – propõe nova regulamentação para 37


SUS e a Lei Complementar 141 Comentada

o § 3º do art. 198 da Constituição Federal para dispor sobre os 10% da RCB valores mínimos a serem aplicados anualmente pela União, revogando dispositivo da lei complementar nº 141 de 13 de janeiro de 2012. • 06/03/2012 – encaminhada às comissões de seguridade social e família; finanças e tributação (mérito e art. 54, Regimento Interno da Câmara dos Deputados) e Constituição e Justiça e de Cidadania (art. 54 RICD), a proposição sujeita à apreciação do plenário no regime de tramitação: prioridade. • 06/03/2012 – apense-se a este o PLP-124/2012. • 06/03/2012 – publicação do despacho no DCD do dia 07/03/2012. PLP-00124/2012 – Deputado Eleuses Paiva – médico paulista – DEM, • Propõe alteração na lei complementar nº 141, de 13 de janeiro de 2012, voltando. • 06/03/2012 – apense-se à PLP-123/2012. Proposição sujeita à apreciação do plenário regime de tramitação: prioridade. • 06/03/2012 – publicação do despacho no DCD do dia 07/03/2012 Projeto de iniciativa popular Em 3/2/2012 – na sede da associação médica brasileira foi apresentado um projeto de lei complementar 38


II

Da tramitação da Lei Complementar 141

para alterar a LC 141 de modo que a União destine à saúde no mínimo 10% da receita corrente bruta. Esta proposta nasce da frente nacional por mais recursos para a saúde, uma iniciativa de várias instituições (OAB, APM, CFM, FENAM, FPS, ANM, CONASS, ­CONASEMS, SES, CEBES, FENTAS, ABRASCO, FBH). Esta proposta está circulando para obter as­ sinaturas de eleitores e se tornar um projeto de iniciativa popular para o que são necessárias cerca de 1,6 milhões de assinaturas (1% dos eleitores, 0,3% de cada estado).

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III O que a Lei Complementar regulamenta

A ementa da LC 141, editada em 13 de janeiro de 2012, tem a seguinte ementa: Regulamentar o § 3o do art. 198 da Constituição Federal para dispor sobre os valores mínimos a serem aplicados anualmente pela União, Estados, Distrito Federal e Municípios em ações e serviços públicos de saúde; estabelece os critérios de rateio dos recursos de transferências para a saúde e as normas de fiscalização, avaliação e controle das despesas com saúde nas 3 (três) esferas de governo; revoga dispositivos das leis 8.080, de 19 de setembro de 1990, e 8.689, de 27 de julho de 1993; e dá outras providências. A LC 141 está dividida em cinco capítulos com os seguintes temas principais: 1. Disposições preliminares; 2. Das ações e serviços públicos de saúde; 3. Da aplicação de recursos em ações e serviços públicos de saúde; 40


III

O que a Lei Complementar regulamenta

4. Da transparência, visibilidade, fiscalização, avaliação e controle; 5. Disposições finais e transitórias. As regulamentações cingem-se fundamentalmente às questões orçamentárias e financeiras, desde a vinculação de recursos, partilhas federativas, execução orçamentária e financeira da saúde, a transparência dos gastos e consequente regime de fiscalização, avaliação e controle, bem como o que são ações e serviços de saúde para efeito da aplicação dos percentuais mínimos definidos para a saúde. A EC 29 havia detrminado (§ 3º do art. 198 da CF) que lei complementar deveria dispor sobre os percentuais dos entes federativos; os critérios de rateio dos recursos da União vinculados à saúde destinados aos entes subnacionais, objetivando a progressiva redução das disparidades regionais; as normas de fiscalização, avaliação e controle do gasto com saúde; e as normas de cálculo do montante a ser aplicado pela União.

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