Revista Vaidapé #03

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Nossas ideias são controladas. O mecanismo é complexo, mas o objetivo é claro: reprimir e inibir eventos que abalem a estrutura do sistema de dominação. A civilização impõe limites à produção material e à difusão do pensamento, aos quais a Revista Vaidapé está sujeita e sempre fará oposição. Um aspecto do controle dos discursos é a segregação da loucura. As ideias dos loucos são consideradas nulas e inválidas. São apagadas e abafadas pelo discurso dos homens de bem: aqueles que têm o aval do cheiro azedo da velha mídia para fazer “justiça” com as próprias mãos. Os loucos, no entanto, representam algo maior na crise da sociedade: são o cúmulo da marginalidade, afinal, o que falam não é “verdadeiro”. A obsessão pela verdade é outro fator que controla o que dizemos e ouvimos: os discursos são neutralizados por não corresponderem aos conceitos e valores que mantém o atual estado das coisas. Como as ocupações que eclodem na zona sul de São Paulo, focos de resistência surgem e se consolidam na luta contra as opressões. Nesta edição, a Revista Vaidapé traz as lições de vida da arte de rua, a carga histórica da capoeira como manifestação cultural, o futebol como elemento de mobilização popular e o desafio diário das mulheres negras. A terceira edição da Revista Vaidapé que você tem agora em mãos é a conquista de um coletivo que é visto na “contramão” da história por alguns, por publicar uma revista em papel, algo não lucrativo. Distribuir gratuitamente do centro às periferias de forma independente? Muito menos. O papo é sem curva. Informação não é mercadoria.



diagramação joão miranda Vinícius pereira

ilustração arthur amaral janaína viegas matheus bagaiolo Helena Obersteiner

IMPRESSÃO & distribuição gráfica cillpress papel: 420 x 277 gramatura: 90 TIRAGEM: 1.000 EXEMPLARES

ong ação educativa

colaboradores

marketing caio arruda deco napchan gabriel guerra

Redaçao

alyne silva antonio amaral cAROLINA PIAI isabel harari João M. Previatelli Paulo Motoryn roberto oliveira thiago gabriel ubirajara iglecio victor santos

aMANDA mIRANDA breno ferreira brunna soares fabrizio pepe Greta rodrigues joão rabello julia mente lAURA MOTTA lUCAS PAZETTO marco oliveira pedro lopes do val thiago michelucci thomas conti

acesse www.revistavaidape.com.br facebook.com/revistavaidape


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Artista Convidado

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Entrevista com Arthur Amaral

meu trampo

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A arte da resistência

a rua grita Capoeira e cultura negra

De Ibicaraí ao Jd. Marajoara Bola e luta

Todos precisam de afeto Uma noite qualquer

Ocupações da Zona Sul

Valendo nota

24 26 30 34 40 44 46

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Segurança e Controle

brasil barraca

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Alforria Mental

quadrinhos

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colunistas

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arthur amaral ENTREVISTA COM O ARTISTA CONVIDADO fotos por joão miranda e vinícius pereira

Mais conhecido como Tuta, tem 22 anos e mora na Lapa, São Paulo. Desenha desde pequeno e desde cedo se envolve com o graffiti, primeiramente por causa do seu pai, Rui Amaral, um dos pioneiros do movimento no Brasil.

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VAIDAPÉ_Como grafitar?

você

começou

a

_Quando eu nasci, meu pai, o Rui Amaral, já era um famoso artista plástico. Eu era molequinho e ele já me levava [para grafitar], mas eu só fui levar a sério há uns dois, três anos. A primeira vez que eu grafitei foi um desenho muito tosco, mas o louco é que eu ia para escola todo dia e passava na frente do poste, via meu trampo… VDP_Quais são suas maiores influências? _Eu trabalho com animação, sempre pirei em desenho animado, desde criança assistia TV depois da escola, então mais do que grandes nomes do grafite, essa é uma das minhas maiores influências. VDP_Quais os materiais mais utilizados para a construção de suas obras? _Sou fã do nanquim. Gosto de “não poder arrumar”, conviver com o erro. Não usar borracha e conviver com o inusitado. Quando vou pra rua costumo usar o rolinho e o spray. VDP_Você tem preferência por cores? _Cor é um negocio complicado. Acho que você não pode ficar restrito a uma cor só e pintar apenas personagem laranja ou azul a vida inteira. É um negócio ilimitado, nós mesmos não vemos todas as cores que existem.

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VDP_Gosta de criar personagens, certo? _Tenho mais vontade de desenhar personagens do que cenários, paisagens. Rola um negócio comigo dum autorretrato, querer me colocar na rua, mostrar que estou vivo. Até nos meus cadernos, se qualquer um abrir vai perceber que a maior parte são personagens. VDP_Está sempre ouvindo algo enquanto desenha? Curto escutar um rock, mas não tenho muita preferência, a não ser por Led, Doors, Sabbah... Cada momento é um momento. Tem hora que você escuta e tem hora que não. Não sou desses que falo: “Só vou desenhar ouvindo música, ou só vou desenhar fumando um!” VDP_O que você prefere: a liberdade de grafitar um grande muro ou desenhar nos cadernos? _Muro é um trampo que demora mais, dá mais emoção por ser um trabalho que exige muito mais tempo e dedicação. Mas o desenho no nanquim ou até mesmo no computador é um estudo para poder grafitar bem. VDP_O que é ser um artista para você, Tuta? _Aí você me fode. Cada um tem sua visão sobre a arte, mas para mim acho que artista é aquele que consegue viver apenas da sua arte. Animação, meu trampo, é uma arte. Posso não estar apenas grafitando, mas trabalho numa empresa de desenho animado, então, tecnicamente eu vivo da arte.

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laura motta



meu Trampo REVISTA #03 VA DAPÉ

Entrevista com Piauí

a Arte da resistência por victor santos

E

fotos por greta rodrigues

m samba antigo, o poeta dizia: “Só quem mexe na terra, sabe o cheiro do chão”. Não tome por absoluto, mas, quem estaria mais apto a falar do cheiro do chão brasileiro, como alguém que passou pela seca do sertão nordestino, pela violência das ruas de São Paulo, além do vício do crack e do álcool, e hoje ainda mora na periferia da capital paulistana, trabalhando nas ruas do centro? Figura resistente no cotidiano de um dos maiores símbolos do sistema capitalista da América Latina, a avenida Paulista, Antonio José da Silva, o Piauí, saiu da pequena cidade de Picos, no sertão do Estado do Piauí, com 14 anos, sozinho. Ele recorda que, na infância, morava numa casa de taipa, feita de farinha e barro, uma esteira de palha servia de porta. Foi nesse con-

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texto que iniciou a sua trajetória artística: “Quando eu morava lá no nordeste fazia a maior arte de todas as artes. Trabalhava com a arte de encher a barriga dos outros: eu plantava”, lembra. Nessa época ainda não sabia ler e nem fazer artesanato. Na estrada, que foi longa, é onde se deu seu aprendizado: “Conheço todas as capitais brasileiras. Viajei sem dinheiro, o que já é uma arte. Viajei nos maiores rios do Brasil, aprendi um pouco da cultura brasileira – coisa que muita gente, que se diz artista, só conhece a cultura internacional”. Por 16 anos, Piauí foi morador de rua: “Já mijaram em cima de mim, jogaram merda em cima de mim, tocaram fogo na minha coberta”. As drogas entraram na sua vida antes mesmo da arte, lamenta: “Eu usei crack, maconha, cigarro eu fumava 70 por dia, fui alcóolatra... A vida de drogado é sofrimento. Quando eu era criança tinha vontade de tocar violão, mas eu não tinha um”. Preso pelas autoridades em quatro situações diferentes, Piauí faz 50 anos em outubro, é casado e tem duas filhas, 17 e 18 anos.


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“Aqui no MASP, quantas vezes a mídia mostrou os malucos fumando um? Mas nunca veio mostrar o nosso trabalho!”

Hoje é morador da periferia paulistana, no Jardim Vista Alegre, localizado na Zona Norte. Quase todos os dias vende seu trabalho em, principalmente, dois lugares: a esquina da avenida Paulista com a Rua Augusta e o vão livre do MASP. O trampo vai além daquilo que ele produz, “de repente eu me preocupo em ganhar dinheiro aqui, moldando algo, de repente eu não ganho. Mas de repente através de uma expressão lá do outro lado eu ganho um amigo. Então a arte não é só ganhar dinheiro”. Reclama dos oito duros anos que os artistas de rua sofreram com a repressão promovida pelas gestões do PSDB e do DEM. “Teve um amigo meu, na época do Kassab, que foi preso porque estava tocando guitarra na rua! Tem até vídeo na internet”, comentando o caso do músico Rafael Pio. Sobre a gestão atual, do PT, comenta que a situação melhorou um pouco, se referindo à lei nº 15.776, aprovada em maio de 2013, que facilitou o trabalho dos artistas de rua e alterou a orientação das forças coerci-

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distribuição das artes de rua em sp

valores em porcentagem (para cada categoria)

2 4 7

palhaços, poesia malabarismo literatura e desenho mágica

artistas plásticos e outros

8 16 61

dança

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estátuas vivas

músicos

tivas. Piauí já teve seu trabalho apreendido 14 vezes na Paulista, o que hoje não acontece mais. Mas ele pede apoio: “Hoje deixam a gente trabalhar, só que ninguém chega pra nos ajudar”. Também fala da fala da mídia, “Aqui no MASP, quantas vezes a mídia mostrou os malucos fumando um? Mas nunca veio mostrar o nosso trabalho!”. Não tem religião, mas crê em Deus: “Se Deus não existisse esse sistema que olha pra nós com desprezo já tinha passado a borracha”. Piauí ainda assegura que os artistas de rua são unidos. Conjuntamente, promovem a “Feira de Troca de Livros”, com trocas não monetarizadas e apresentações, a programação pode ser acompanhada através da página do Facebook chamada “Invasão Cultural”. “Eu quero chegar lá, mas quero que todos os meus irmãos venham comigo”, resume Piauí. Ainda protesta contra o preconceito reproduzido pela mídia e diz que os hippies são pessoas de responsabilidade. A riqueza material não é sua prioridade, assim consegue dedicar bastante tempo para desenvolver sua arte. Piauí critica os grandes designers: “Eles vêm aqui na Paulista, vão lá em Copacabana, no Rio, onde os hippies estão, copiam nosso trabalho e levam para joalheria. Eles não têm tempo de criar, são capitalistas, aí colocam na vitrine e dizem que foi o designer que criou”. Piauí cria petecas, sandálias, bolsas, carrinhos de madeira, brincos, colares, entre outros objetos. Sobre o processo de produção, dá o exemplo da peteca, que custa cerca de 20 reais. O couro é fruto do descarte de grandes empresas de bolsas e sapatos e as penas são as sobras de grandes granjas, que levam o alimento para


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“Quando eu morava lá no nordeste, fazia a maior arte de todas as artes. Trabalhava com a arte de encher a barriga dos outros: eu plantava!” o supermercado e a matéria prima vai para o aterro sanitário. Não existem dados sobre o número de artistas de rua atuantes na cidade de São Paulo, porém, a São Paulo Turismo, por meio do Instituto de Pesquisa, Estudos e Capacitação em Turismo, fez um estudo (ao lado) com 104 artistas e 20 grupos de rua, em que os artistas plásticos, como Piauí, ficavam em quarto lugar. Ao andar pela cidade de São Paulo, abra os olhos para a arte de rua. É o pedido de Piauí: “Você vê um malabarista aqui no sinal, pô, abre o vidro do carro, dá uma moeda pro cara. O cara tá tocando um violão na rua, pô ele tá tocando, cara. Não se paga 300, 400 reais para assistir um show do Black Sabbath sem o Ozzy? Por que é que você não dá 1, 2, 5 reais para o cara que tá tocando ali na rua?”.

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brunna


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soares

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pilares da história do Brasil, Capoeira e a cultura negra POR Patricia Iglecio, Isabel Harari e Bira Iglecio A importância histórica da capoeira, um dos maiores movimentos de resistência negra, se encontra na Ocupação São João e na história de Dô, mestra de capoeira da Angola. fotos por julia mente

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U

ma vez invadida as terras brasileiras, seus colonos foram em busca de mão de obra para erguer a colonização do Brasil. Foi o povo sequestrado do continente Africano, subordinado aos selvagens colonos que buscavam mais terras, destinado para a realização do trabalho árduo em baixo do sol. A partir daí, nasce a cultura afro-brasileira, e dela nasce um dos movimentos de resistência mais importantes em toda a história do país, a capoeira. A escravidão tornou-se mola propulsora do projeto de desenvolvimento da colônia recém-descoberta. Frente à opressão a que eram submetidos, os negros se mostravam. Insatisfeitos por justa causa suicidavam-se, evitavam a reprodução e fugiam constantemente, para demonstrar que lutariam pela liberdade. Foi nas senzalas que o negro conseguiu fugir da dura realidade: a dança e a reza deixavam a África mais perto. Acredita-se que assim nasceu a capoeira, com intuito de usar o corpo como arma para a liberdade. O jogo nada mais é que a essência da resistência da cultura negra. Sutil, a capoeira conseguia disfarçar seus ataques, confundir capitães do mato e unir cada vez mais os negros escravos. Não demorou muito, contudo, para associarem o capoeirista com o malandro, ladrão, preguiçoso, começando assim, uma caça aos praticantes. Marechal Deodoro da Fonseca criminalizou a capoeira: em 1890 colocou em vigor a lei nº 487, que proibia a prática, com pena de dois a seis meses de trabalho forçado em Fernando de Noronha. A criminalização se estendeu por anos, marginalizando-a por um único motivo: a cor da pele dos esportistas. Em 1932, mestre Bimba leva a ca-

poeira de rua para as academias e não demora para que o governo reconheça a capoeira como esporte e não mais como crime. Desde então, a maior herança da cultura afro-brasileira começou a ser reconhecida como um dos maiores tesouros da história do Brasil. Capoeiristas tentam se enquadrar no novo perfil da capoeira, agora também jogada por brancos e pela classe média para aprimorar condicionamento físico, porém ainda permanece como símbolo de resistência e luta contra as opressões. Logo no início da Avenida São João, região central de São Paulo, um edifício de 1910, abandonado há 20 anos, tomou vida novamente em 2010, época em que seu interior foi ocupado pelo movimento FLM (Frente de Luta por Moradia). O grupo já ocupa 19 prédios no centro de São Paulo. “Aqui tem muita gente que pagava aluguel, que entrou para o movimento porque não aguentava mais os altos preços. Tem muita gente que faz faculdade, que trabalha, mas que não tem dinheiro para pagar esses preços ou para financiar uma casa. É muita gente esperando moradia, não dá pra suportar, tem muita gente na rua, tem muito barraco...tá um caos!”, explica Nazaré Brasil, que mora na ocupação há quatro anos. Hoje o edifício é tombado e existe um projeto de reforma destinado à construção de moradia popular no local. A luta por habitação segue em paralelo com projetos culturais, foi criado um centro cultural que comporta aulas de capoeira, saraus, biblioteca, atividades de contação de histórias, exposição de arte, cineclube, dentre tantas outras atividades. “Nós mantemos a resistência, tanto cultural quanto de mediação com a Prefeitura”, continuou Nazaré.

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Alunos do mestre Zelão jogando capoeira durante aula na ocupação São João.

Lá, o mestre Zelão coordena as lições de capoeira da Angola, que acontecem três vezes por semana. Crianças, jovens e adultos se revezam na roda, no berimbau, pandeiro e atabaque: o movimento de resistência da prática da capoeira encontra-se com a resistência da ocupação São João. “A ocupação não é um espaço seu, é um espaço que a gente está ocupando por uma questão política. Isso que a gente faz é um movimento de resistência tanto da capoeira quanto do movimento”, colocou Zelão. Para o mestre, a capoeira de Angola em si já é uma resistência frente à realidade cada vez mais rápida e mecanizada, “a proposta é de fazer mais lento, não entrar numa paranoia de rapidez, de levar as pessoas a pensar com o corpo e não mecanizar o movimento. A capoeira angolana está mais

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enraizada com a questão do negro, tem esse papel de trazer a questão do negro junto com o discurso e a prática política da capoeira”. A mestra de capoeira de Angola, Dô, nasceu no dia 4 e novembro de 1951. Conheceu Zelão através das rodas de capoeira do mestre Cavaco e tornaram-se grandes amigos. Apesar de ter nascido em São Paulo, se considera baiana, pois ainda muito nova foi para Salvador com os pais adotivos. Cresceu na periferia da capital junto com os irmãos de consideração, e ainda ‘moleca’, como diz ela, começou a jogar capoeira nas ruas de Salvador. Por volta de seus 15 anos, Dô se mudou para o Rio de Janeiro para arranjar emprego, trabalhava limpando casas de família. Ficava entre a rua e as casas que trabalhava, sempre envolvida com a capoeira, o candomblé e os tambores da cultura negra. Casou-se e teve quatro filhos, um morreu ainda muito bebê, e o outro foi assassinado com 25 anos. Mudou para São Paulo antes dos 30 anos, onde passou a frequentar rodas de capoeira e conheceu o mestre Alcides, que foi quem deu para Dolfona (como Dô também é conhecida) a medalha que lhe garantiu o título de mestra de capoeira. Dô deu aula na Escola Paulo Freire, para crianças da periferia, na antiga IBGI (a primeira escola a dar capoeira para crianças de dois anos), e no colégio Equipe, onde ensina até hoje. Para Dô a capoeira continua resistente, embora ela ache errado academias que cobram caro para


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os aprendizes. “A capoeira é para todos, eu sempre digo para os donos de academia: se a criança pode pagar um pouco, deixe ela fazer pagando um pouco.” A mestra considera que a capoeira não pode ser apenas um exercício físico, deve trabalhar noções de coordenação, espaço e equilíbrio. “A capoeira me salvou, se não eu estaria na margi-

nalidade”, afirma Dolfona, com os olhos profundos e que transmitem muita experiência. Assim, a capoeira continua a representar a cultura negra e sua resistência, seja em ocupações, seja na academia. A capoeira é mais do que um aprimoramento físico, ela é a expressão da história negra no Brasil, através de movimentos do corpo. A resistência continua.

Mestre Zelão explicando para seus alunos a origem do berimbau.

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de ibicaraí ao jd. Marajoara POR carolina piai desenho por jay viegas

E

m Ibicaraí, Aureliza Alves do Nascimento queria se divorciar do marido, com quem tivera seis filhos. Aureliza descobriu que o pai de seus filhos saía com outra mulher. Mas, a separação lhe foi negada: o marido prometera-lhe a morte. Fugiu então das terras baianas, que lhe eram originárias, e teve como rumo São Paulo. Queria fazer a vida ali e recuperar suas crias. Ao se estabilizar como doméstica na cidade, regressou à sua cidade natal para recuperar os filhos, que foram, ainda que temporariamente, abandonados com o pai. Das seis, quatro crianças voltaram a ser suas. Em Madureira, Cláudia Silva Ferreira saiu para comprar pão. No cruzar de uma esquina, foi, por surpresa, baleada. Uma operação policial, por engano, cravou-lhe o peito. Depois de ser desajeitadamente colocada no porta-malas da viatura para que fosse levada ao hospital, caiu para fora do compartimento no meio do caminho. Cláudia teve, assim, seu corpo arrastado pelo quente e áspero concreto das cariocas ruas da zona norte durante extensos 250 metros. Os policiais, ao serem alertados da situação, não fizeram nada mais do que ignorarem-na. Em São Remo, Clariane Maria de Jesus Santos alisava os cabelos e passava pó branco no rosto até que não houvesse mais nenhuma frestinha parda. Clariane nunca se vira como negra, até que a insultaram na escola. A tradição de sua família era assim: sua mãe aprendera que tinha que ser mais clara que os pais, que seus filhos deveriam ser mais claros que ela e os netos ainda mais claros. Logo, para a mãe, Clariane não podia ser negra. Ainda assim, a jovem garota sentia na pele a opressão imposta por sua cor: “mico mico macaco” era seu apelido para alguns. “Já percebia que era uma agressão, mas eu não entendia isso dessa forma, então o que eu fazia era chorar”, conta.

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Clariane só fazia chorar. No Jardim Marajoara, Luciana Santos Barbosa era a única aluna negra de sua série. Luciana também alisava os cabelos. Além do pó, passava batom para afinar os lábios. Luciana era xingada pelos colegas de sala. Tentava ser branca, mas não o era. Ao se reconhecer como negra, foi marginalizada por pessoas do movimento negro que a consideravam menos negra por não ser periférica. Aureliza na Bahia nos anos 60. Cláudia no asfalto das favelas do Rio, em 16 de março de 2014. Clariane na favela São Remo, em São Paulo, hoje. Luciana, pedagoga, na Água Branca, em São Paulo, hoje. Aureliza, Cláudia, Clariane e Luciana são retratos do que é ter a pele negra no Brasil, do que é ser atacada por ser mulher, do que é ser atacada por causa da cor de sua pele. Antes da luta contra essas opressões, veem-se a postos contra elas mesmas: há um conflito perturbador no reconhecimento de si mesma como negra. Para Clariane Santos, 19 anos, militante do coletivo feminista Levante Mulher, a agressão contra sua identidade começava em casa: “Minha mãe nunca aceitou meu cabelo”. Com Luciana Barbosa, 31 anos, que realizou um mestrado contando a história de sua avó, Aureliza do Nascimento, tudo se deu de uma forma um pouco diferente, mas igualmente violento. Como única aluna negra de escola particular, relata: “Você não só se acha inferior, como se acha anormal. Não tem mais ninguém que tem o cabelo, a pele, a boca iguais os seus. Passei por um processo de mutilação”. Passado o sofrimento, aproximando-se

da cultura negra, essas mulheres começaram a se reconhecer mais. Clariane, hoje, vê-se como negra. Luciana, como mestiça. Apesar de toda a complexidade desse reconhecimento, para o Estado e para a maior parte da sociedade as coisas são claras. De acordo com o Mapa da Violência 2012, em 2010, 139% mais negros foram assassinados do que brancos no país. No mesmo ano, quase 50 mil pessoas foram vítimas de homicídio – 70,6% eram negras, certificam os dados do Sistema de Informações sobre Mortalidade do Ministério da Saúde. O genocídio contra a população negra e parda é estarrecedor, o que aconteceu com Cláudia é prova da enfática postura racista do Estado e de suas instituições. A postura opressiva não encontra seu fim aí. O Brasil é um dos principais exportadores de corpos para o mercado do sexo internacional e a maioria das vítimas são jovens negras, segundo a Pesquisa sobre Tráfico de Mulheres, Crianças e Adolescentes para fins de Exploração Sexual Comercial (Pestraf). “Acredito que o maior drama da mulher negra ou da mulher mestiça no Brasil vem dessa hiper-sexualização da mulher. Isso começou na colonização, quando as mulheres escravas eram colocadas nas casas e eram estupradas sempre”, comenta Luciana, que enxerga, na mídia, a mulher negra e mestiça sendo representadas como “estupráveis”. “Você percebe que os interesses vão sempre pras meninas mais brancas, de cabelo liso, olho claro. Quando você olha pra mulher negra, ela é a carne mais barata. No carnaval, por exemplo, rola muito assédio”, relata Clariane, fazendo coro ao que afirma Luciana. A jovem ainda dá voz à Elza Soares e relembra: “A carne mais barata do mercado é a carne negra”. Isso acontecia já no tempo de Aureliza, avó de Luciana Barbosa. Naquele contexto, esperava-se inclusive que ela seria prostituta, era esse o destino da maior parte das baianas negras ou mestiças e desquitadas. Porém, transgrediu essa convenção social. A neta, orgulhosa, assegura: “Essa mulher não é sexualizada, essa mulher é guerreira, tem uma opinião forte, uma forma de entender o mundo e lutar para não ser mais oprimida”. Cláudia, Clariane e Luciana também são guerreiras.

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MULHER NEGRA

NãO VIVe Q

uantas mulheres negras você conhece ocupando cargos de médicas, advogadas, engenheiras, arquitetas, psicólogas etc.? Quantas mulheres negras você conhece ocupando cargos de cobradoras de ônibus, auxiliares de limpeza, empregadas domésticas? Não, não estou dizendo que as primeiras profissões são melhores ou mais importantes que as segundas, mas com esse questionamento começo a puxar o novelo da opressão da mulher negra que, se esticadinho, chega a quilômetros e quilômetros de comprimento: são séculos de opressão. Ser mulher negra é carregar na pele, nas ancas e na carteira de trabalho as centenas de anos da escravidão que se mantém atados aos nossos pés, como as bolas de ferro que nossas antepassadas tinham presas aos seus tornozelos. O nosso papel na sociedade machista e racista é, desde a Casa Grande, de satisfazer os fetiches sexuais de homens brancos e mesmo de homens negros, afinal nós, mulheres negras, temos “a cor do pecado”, nós temos “o requebrado”, nós somos “quentes na cama”, nossos corpos são “quase que uma afronta”. Sim, a abolição veio, mas ainda somos escravas dos fetiches sexuais que circundam o imaginário popular. Não é à toa que estatisticamente somos as maiores vítimas de abusos sexuais e violência doméstica.

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um manifesto por alyne silva

E, então, surge um primeiro grande impasse: como, ao mesmo tempo, nós somos sexualmente desejadas e esteticamente rejeitadas? Afinal de contas, o nosso cabelo crespo, o nosso nariz largo e a nossa testa grande não estão enquadrados no padrão de beleza eurocêntrico que se perpetua pelo mundo inteiro, mas as nossas ancas largas, os nossos lábios e coxas grossos são desejados, muitas vezes em segredo, não é mesmo? Logo, a menina negra entende que existe a diferença em ser a moça bonita pra casar e a moça gostosa pra transar. A mesma moça negra começa a tomar consciência de quantas coisas lhe foram privadas pela cor da sua pele e, com isso, algumas delas conhecem um movimento que levanta a bandeira de luta pelas mulheres, pensando, por alguns minutos, que talvez tenha encontrado voz e vez, que agora talvez o caldo ganhe corpo e as coisas possam mudar. O movimento feminista, sem dúvidas, contribui muito para que a tomada de


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consciência aconteça, afinal, ser mulher não é fácil e fica um pouco mais leve quando temos outras mulheres lutando conosco. Mas, em dado momento, o feminismo começa a despertar alguns incômodos, afinal, todas somos mulheres e temos opressões em comum. Mas a cada vez que nos sentamos para discutir igualdade salarial entre homens e mulheres, acende aquela luzinha, afinal na escala salarial qual lugar eu, mulher negra, estou em relação às mulheres brancas que muitas vezes protagonizam os discursos? A minha luta pela igualdade salarial, em primeira instância, é pela igualdade com a mulher branca, que ganha mais que eu, e ocupa cargos os quais dificilmente mulheres negras acessam. Em algumas posições, elas ganham mais, inclusive, que os homens negros. O movimento feminista precisa ter recorte de classe, precisa ter recorte de raça, precisa ter recorte de orientação sexual, precisa falar de mulheres trans, precisa falar também das mulheres com deficiência e se desprender desse histórico que é um feminismo burguês, branco, heterossexual, cisgênero e capacitista. Muitas vezes dentro do próprio feminismo, o apagamento das questões relativas às mulheres negras, a massificação das demandas sem

distinguir as necessidades específicas das mulheres negras, e de muitos outros grupos marginalizados no próprio movimento, fez com que o espaço que supostamente deveria ser de segurança e amparo fosse mais um espaço de opressão. É necessário enegrecer o feminismo e é necessário que isso aconteça para ontem. Afinal, se dentro da luta feminista ainda formos marginalizadas, e as nossas demandas diluídas em um discurso com uma falsa simetria, a luta fora do círculo chamado feminismo continuará cada dia mais difícil. Por um feminismo mais negro.

Eu sou mulher não luto em vão contra o racismo e pela revolução 33


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bola e luta por Paulo Motoryn e Roberto Oliveira Não apenas os avanços sociais do governo de Pepe Mujica fazem o Uruguai servir de inspiração ao Brasil: entenda como o Mundialito de 1981 pode servir de inspiração para as lutas populares durante a Copa do Mundo de 2014.

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ssim que o Brasil foi escolhido para sediar a Copa do Mundo da Fifa de 2014, numa terça-feira, 30 de outubro de 2007, em Zurique, na Suíça, o país se voltou apaixonadamente para acompanhar o processo de construção do segundo Mundial a ser jogado em solo nacional. Mas foi entre junho e julho do ano passado, justamente durante a Copa das Confederações, evento de teste um ano antes da Copa, que o assunto se acirrou a ponto de virar pauta na agenda política nacional. Desde a confirmação do Brasil como sede, não faltam críticas à construção do torneio, como também sobram opiniões que evocam o orgulho e o desenvolvimento nacional. O dilema impõe os próximos meses como determinantes no processo de construção histórica da identidade brasileira: afinal, as grandes empresas patrocinadoras do evento e o próprio governo confiam que a população sucumbirá diante dos encantos dos modernos estádios e do espetáculo. Denaldo Alchorne de Souza é mais um desses brasileiros que terá sua essência colocada à prova durante a Copa do Mundo. Sua dedicação ao futebol é tanta que o carioca cursa pós-doutorado, das mais altas graduações acadêmicas, estudando justamente a paixão nacional. “Já é do passado a visão de que o futebol é ópio do povo, segundo a qual o futebol serve para distanciar a população de seus reais interesses, que seriam as lutas sociais”, ele diz. “Eu trabalho o futebol discutindo identidade nacional”. É nos livros de história e em análises documentais que ele baseia seus argumentos sobre a relação entre esporte e manifestações populares. “Como eu vejo o futebol? O futebol faz parte da sociedade, e as contradições sociais o permeiam. O futebol é sim, por vezes, utilizado de cima para baixo, como controle social. É ilusão, no entanto, achar que a população aceita isso automaticamente”, argumenta Denaldo. Um exemplo que comprova a tese do pesquisador é quando, em 1981, a Ditadura no Uruguai resolveu criar e sediar um grande evento, o Mundialito. Ele explica: “O Uruguai já não era a seleção vitoriosa das décadas anteriores, mesmo assim foi campeão após uma final contra o Brasil. O que os militares esperavam? Receber um bônus político pelo investimento. O que receberam? A torcida e a sociedade gritando juntas pela primeira vez: ‘Vai passar, vai passar, a Ditadura vai acabar’”. Denaldo espera um processo similar no Brasil: “A geral era um lugar no Maracanã em que o torcedor podia pagar o ingresso com o preço de um bilhete de ônibus. Isso não existe mais. Se antes nesse espaço havia um cidadão desdentado, rindo de um drible de Garrincha, agora há a elite celebrando”. Ele entende que a população não se sentirá parte da festa e, bem como no ano passado, terá na ocupação do espaço público sua melhor alternativa: “Não é à toa que a Copa das Confederações virou a Copa das Manifestações”.

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7 argumentos REVISTA #03 VA DAPÉ

CONTRA A COPA DO MUNDO NO BRASIL

• Os operários que constroem os estádios da Copa trabalham sob

condições precárias. Até o mês de março de 2014, seis operários da construção civil já haviam falecido em acidentes de trabalho: três na Arena Amazônia, em Manaus; dois na Arena Itaquera, São Paulo; e um no Mané Garrincha, no Distrito Federal.

• As obras da Copa resultam em um modelo de cidade neoliberal. Nela,

além do malabarismo jurídico, decisões políticas e urbanísticas estão subordinadas aos interesses privados. Existe um controle do espaço público para atender aos patrocinadores e empresas privadas.

• Um estudo da fundação francesa Scelles comprova que as grandes competi-

ções internacionais permitem que as redes de prostituição criminosas “aumentem a oferta”. O Brasil possui um dos maiores níveis de exploração sexual infanto-juvenil do mundo, o que deve aumentar com a Copa.

• Estudos efetuados posteriormente às Copas da Alemanha (2006) e

da África do Sul (2010) indicam que os efeitos positivos para a economia nacional foram insignificantes, seja em relação ao crescimento do PIB ou à geração de empregos. Mesmo o setor de turismo teve ganhos muito aquém dos projetados antes do torneio.

• Projetos de Lei que tipificam o crime de terrorismo e atacam diretamente

o direito constitucional de manifestação tramitam no Congresso. Criminalizam os movimentos sociais e reforçam a violência contra a população.

• Como se já não bastasse o deficit habitacional no Brasil e o contingente

populacional em situação de rua, segundo a Articulação Nacional dos Comitês Populares da Copa, entre 150 e 200 mil pessoas foram removidas de suas casas e territórios para construção de estádios e obras de infraestrutura.

• A Fifa exige que se crie um tribunal de exceção com raio de ação de

um quilômetro ao redor dos estádios com suas próprias regras, ferindo artigos e incisos da Constituição. Nesse perímetro só poderão ser comercializados produtos de patrocinadores.

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7 argumentos

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a favor

dA COPA DO MUNDO NO BRASIL • A Copa vai consumir quase 26 bilhões de reais. A construção de estádios

(8 bi) é cerca de 30% desse valor. Cerca de 70% dos gastos da Copa não são em estádios, mas em infraestrutura, serviços e formação de mão de obra.

• Os estádios geraram, até a Copa das Confederações, 24,5 mil empregos diretos. O megaevento, aliás, aumenta a demanda do setor de construção civil, um dos principais propulsores da economia nacional.

• Em 2014, a saúde terá o maior orçamento da sua história, sen-

do que o orçamento de direitos básicos, como saúde e educação, são determinados pelo governo através de leis orçamentárias anuais,que definem quanto do PIB vai para cada setor, independentemente de eventos pontuais como a Copa.

• A vinda de turistas estrangeiros pode não representar ganhos concretos para a grande maioria da população, mas configura uma oportunidade de mostrar o Brasil como ele realmente é: um país repleto de problemas e diversidades no seu processo de desenvolvimento.

• O evento acelerou políticas sociais esportivas. Uma medida provisória enviada por Dilma e aprovada pelo Congresso (entrará em vigor em abril deste ano) limita o tempo de mandato de dirigentes esportivos. Os atletas também terão direito a voto e participação na direção.

• A Copa castrou a apatia dos governantes para realizar diversas obras públicas de infraestrutura relevantes para a fluidez no território nacional.

• O sentimento anticopa é fomentado pelos meios de comunicação e pe-

las oposições de direita e de esquerda ao Governo Federal. Há o receio de forças comprometidas com o resultado eleitoral, se apropriarem do movimento.

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“todos precisam

de afeto.”

por antonio amaral Inspirado na relação afetiva do abraço, programa da prefeitura “Braços Abertos” vem reduzindo o uso do crack no centro de SP. fotos por fabrizio pepe

Tina Galvão, idealizadora do Movimento Aquele Abraço.

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Chuva, violência, lixo. Não há nada que espante o fluxo diário do crack no centro de São Paulo. As pessoas que perambulam pelas imediações da alameda Dino Bueno com a rua Helvétia evidenciam o abandono social mascarado pelo tráfico de drogas. A região embelezada pela antiga arquitetura tornouse palco de uma “cidade sem lei”: compras, vendas e trocas de objetos e eletrônicos pela pedra ocorrem ao estilo livre-comércio.


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A “Feira do Crack”, como foi denominada pela grande imprensa, vem recebendo cada vez mais atenção da mídia por conta de políticas sociais e episódios de repressão policial. O projeto Braços Abertos foi implementado pelo prefeito Fernando Haddad e vêm conseguindo reduzir o uso da droga na região de acordo com os dados oficiais. A iniciativa da Prefeitura foi inspirada no Movimento Aquele Abraço, implementado há anos na região. O trabalho é feito de forma independente e voluntária,

pela assistente social Tina Galvão, balizando o tratamento aos usuários no afeto, no diálogo e em um simples e poderoso abraço. Segundo um balanço do programa realizado pela Prefeitura no dia 14 de fevereiro, desde que entrou em ação, houve uma redução média de 50% a 70% do uso da droga entre os inscritos no programa. Uma das participantes do projeto é Dani. Ela reconhece a oportunidade de retomada da sua vida: “O projeto é uma chance pra todo mundo que quer sair do crack, é

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o primeiro passo. O mais difícil é a escolha”, conta. A política implementada por Tina na região é a principal mediadora da relação entre Dani, os demais usuários e a Prefeitura. Ela crê no fracasso da repressão no combate às drogas. “Um sonho nosso é promover uma oficina de arte entre os usuários para que todos possam ver que eles têm capacidade, que são pessoas, e não os olhem só como viciados. Eu já vi trabalhos incríveis feitos por eles, não há nada mais justo do que pensar em uma exposição”, afirma. Segundo Tina, as políticas sociais do Estado conduzem o tratamento e o contato de maneira equivocada, o que alimenta desconfiança. Dani ainda relatou recorrentes confrontos com policiais e guardas metropolitanos que, segundo ela, não são mostrados pela mídia. No último dia 13 de março, houve correria e diversos estabelecimentos fecharam as portas por conta das bombas de gás lacrimogênio lançadas pela Guarda Civil Metropolitana.

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De acordo com comerciantes, a Prefeitura tem o dever de se empenhar para acabar com o uso de crack na região, principalmente durante o dia, por conta de escolas próximas. Para que isso ocorra, Tina Galvão é peça fundamental: popular e querida entre os dependentes. “Na base da violência é sempre mais difícil, eles sabem que conversando se resolve mais fácil e por isso me procuram”, conta. Dani reforçou a importância de Tina no local: “Ela traz alegria por aqui, é a nossa rainha”, brinca. O poder público também diz estar gastando energias para concretizar a filosofia do afeto. O balanço do programa Braços Abertos apontou que já foram feitas mais de 3 mil abordagens por agentes de saúde e 355 atendimentos médicos para o tratamento dos usuários. O programa atende cerca de 400 pessoas que estão frequentando cursos de capacitação e trabalhando em frentes de trabalho definidas pela Prefeitura. Os beneficiados ganham cerca de R$ 15 por dia trabalhando.


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uma noite qualquer por joão marcos previattelli desenho por Matheus Bagaiolo Raphaelli

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Q

uando cai a noite, as primeiras malocas são erguidas sob a proteção das lajes de bancos ou lojas, verdadeiros castelos para usuários. Em um dos templos montados, entra um rapaz com roupa simples, trabalhador: sai com o rosto avermelhado, os olhos vidrados. Entram dois jovens com roupa de marca: saem olhando para baixo, apressam o passo. Chega por ali mais um jovem e pergunta: “Aí, Ska, quebra essa para mim e troca uma?” Na altura da Rua Haddock Lobo, passam personagens carimbados das noites nas ruas do centro expandido de São Paulo. Uma delas é Ska, que, com uns 18 ou 20 anos, tem um lindo sorriso. Chega agitando o lugar, é a dona da maloca que fica na marquise de um banco na avenida Paulista. Entra na banca de jornal ao lado, pede uma vassoura, varre sua maloca, tudo com muita naturalidade e, sim, dignidade. Come algo, fuma um cigarrinho... Mesmo descalça e no frio, sabe que não vai ficar doente, algo quase inexplicável. Respirar é sua resistência. Depois entra na maloca, usa o cachimbo e sai pulando, gritando, pilhada: “Quitéria, troca dez para mim?”. Comprar crack com moeda não é algo muito fácil. Com Quitéria, caixa e responsável por aquela banca de jornal há treze anos, não é fácil conseguir troco. Ela fala forte, explica que as vendas não estão boas na madrugada, que não tem como trocar. Pede para Ska não causar lá dentro. Resiste mantendo o lugar na maior perfeição, como deveria ser toda banca de jornal. Quem chega por lá, sabe que é lugar de respeito. Não senta no degrau, não bagunça as revistas e não fuma dentro. Mas quem chega lá também sabe que é lugar de ser respeitado também. Seu Carlos faz companhia à Quitéria. Ele é a resistência de uma

São Paulo que já não existe mais, expulsa do centro pela política higienista, pela especulação imobiliária. Apesar de seu baixo salário, ainda mora em um prédio nos arredores da Paulista. Ele logo conta como a noite na avenida mudou. Sabe que agora durante as madrugadas é o crack que corre pelas ruas e calçadas. Sabe onde compra, conhece quem compra e onde se usa. Assim como Carlos, Alice é outra que conhece como ninguém o universo do crack. Já beirando o cinquentenário, Alice trabalha há dez anos nas esquinas da rua Augusta, em uma das profissões mais antigas da humanidade. Ela demonstra em cada gesto simplicidade e uma vontade de ajudar quem não conhece. Seus olhos ficam tristes ao ver professores, advogados, pedreiros, jornalistas que simplesmente desapareceram por trás da dependência. Ela também não tem casa. Dorme todos os dias no metrô. Volta para a banca e come alguma coisa. Para e conversa. Comer, conversar e dormir também é resistir. Chega mais uma pessoa na banca, alto, forte, sujo e desconfiado: “Quitéria, não da para arranjar um cigarrinho?” O homem se chama Camilo. Ele não usa crack há quatro meses, trocou pela maconha. Agora já pensa em voltar a trabalhar. Mas, antes disso, passou madrugadas dedicadas exclusivamente ao crack. Passar três dias sem dormir era comum para Camilo, mesmo que implicasse em dormir durante o dia seguinte inteiro. Lembra da primeira vez na antiga Cracolândia, onde foi enganado e teve que aprender a lutar por seu espaço. A larica bate, come algumas bolachas e volta a falar alto. Faz graça da sua desgraça, mas resiste: morrer não é uma opção. A rua é uma escola da resistência: à química, aos outros, à solidão, à São Paulo.

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vila nova palestina Ao lado do Parque Guarapiranga, 30 mil pessoas reivindicam moradia em uma área de um milhão de metros quadrados.

fotos por carolina piai, victor santos e vinícius pereira. Texto roberto oliveira.

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O Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto (MTST) ocupa um terreno de quase 1 milhão de metros quadrados ao lado da rua Clamecy, na região do Jardim Ângela: a Vila Nova Palestina. Hoje, a ocupação tem cerca de 30 mil pessoas divididas em 21 grupos. Cada grupo tem uma média de cinco coordenadores que ajudam a organizar as tarefas do cotidiano, como fazer a coleta do lixo, buscar água e manter a infraestrutura. O MTST reivindica que a Prefeitura revogue o Decreto de Interesse Social lançado na gestão Kassab, que determina a construção de um parque na região e assegura apenas 10% de área edificada. A luta é pela mudança do tipo de zoneamento para uma Zona Especial de Interesse Social 4, em que 30% da área possa ser habitada.

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jardim união

No Grajaú, distrito mais populoso de São Paulo, com 450 mil habitantes, o Jardim União apresenta novas estratégias de luta por moradia digna.

fotos por carolina piai, isabel harari, joão miranda e victor santos. texto de isabel harari.

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No dia 12 de outubro#03 VA DAPÉ de 2013, cerca de 250 pessoas ocuparam um terreno na região do Grajaú, zona Sul de São Paulo. Hoje a ocupação Jardim União, nome escolhido pelos moradores, abriga 1200 famílias em uma área de 85 mil mteros quadrados. A área ocupada sofre com ameaças de reintegrações de posse e com o descaso da Prefeitura Municipal e da CDHU frente à questão da moradia. O déficit habitacional é latente: estimase que 1 milhão e 200 mil pessoas estejam na lista por moradia, sendo que o Plano Diretor promete a construção de apenas 55 mil edificações. A luta se dá nas ruas e no interior da própria ocupação. A Rede Extremo Sul, movimento popular atuante na zona Sul, auxilia na desconstrução de princípios de hierarquização e burocratização da luta. Tudo é decidido coletivamente e de forma horizontal, por meio de reuniões e mutirões semanais.

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valendo nota

por thiago michelucci

O texto é uma versão reduzida de um Trabalho de Conclusão de Curso, apresentado em 2013 na Faculdade de Ciências Sociais da PUC de São Paulo. 56


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A

necessidade do Estado surge, segundo Thomas Hobbes, filósofo inglês do século XVII, a partir da compreensão de que os indivíduos se unem em uma organização com a finalidade de evitar a morte violenta e a desordem. É a partir do medo e do desespero que os indivíduos se unem e optam por algo que seria uma espécie de oposição ao medo: a segurança. Podemos dizer que desde Hobbes a preocupação central da política está na questão da segurança, e esse é o princípio regente do Estado Moderno. À segurança é atribuída uma necessidade constante de aperfeiçoamento e de expansão de sua área de alcance. O ponto de partida para a análise e para a compreensão dos dispositivos de segurança é a análise da noção de governo. Com o aparecimento de um certo tipo de literatura acerca da “arte de governar”, que surge entre os séculos de XVI e XVII, o filósofo francês do século XX, Michel Foucault, aponta uma mudança no modo de se pensar a política. A política como se pensava até então tinha como pressupostos básicos as reflexões a respeito de como gerir, de maneira a ser justo e prudente, respeitando os “costumes humanos”, para um lógica preocupada em como desenvolver o Estado. Daí em diante a racionalidade que vigora e se desenvolve não se relaciona tanto com a lógica de ser soberano sobre seu território: é a que procura inteirar e aperfeiçoar o poderio do Estado. O desenvolvimento de uma razão do Estado criou as condições para a criação de tecnologias políticas que desenvolvam o Estado tanto externamente como internamente. Além da tecnologia diplomáticomilitar, há a polícia. A lógica desse movimento é a de aumento po-

pulacional e, com isso, aumento da produção devido ao aumento da mão-de-obra, da exportação e da produção de riqueza, voltada para obtenção de maior poderio armamentício. Começa aí uma ascensão da segurança como ponto a ser priorizado nas políticas estatais. A partir do século XVIII, por meio de uma lógica econômica dos fisiocratas, a segurança torna-se um instrumento de governo que tem características próprias e que não se assemelha aos outros instrumentos utilizados. Em vez de criar um estado de isolamento a partir de uma disciplina aplicada de maneira a evitar e prevenir possíveis vulnerabilidades, esse modo de ação visava a regulação de consequências. As questões relativas à segurança funcionam sempre com o auxílio da lei e da disciplina, não há nenhuma sucessão de uma à outra e é a aplicação dos dispositivos de segurança que vai tornar os outros dispositivos, da lei ou disciplinar, auxiliares. E não somente a segurança com relação ao inimigo, mas em relação direta com as questões relativas à medicina, por exemplo. A segurança se relaciona à regulação de consequências e por isso precisa de um desenvolvimento da situação para, então, regular seus escapes, suas desordens. Onde esse princípio de segurança é o motor, os inimigos são aqueles que precisam ser exterminados, pois são uma ameaça à comunidade, à população e à raça. Por isso não se refere mais ao que me fará mal ou me afetará individualmente, mas ao inimigo que afeta a vida de toda sociedade. Nesse momento começa-se a perceber que no Estado onde a segurança ascende cria-se um estado onde o que se produz são as crises e emergências.

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A quem a lógica da segurança contempla Atualmente, mais do que em outros tempos, a segurança adquiriu um papel central de direção das políticas de Estado. A proporção que a ideia de segurança tomou fez com que, onde existe Estado, todos são potenciais terroristas. Giorgio Agamben, filósofo italiano contemporâneo, ressalta que “um estado que faz da segurança sua única tarefa e fonte de legitimidade é um organismo frágil; ele é sempre passível de ser provocado pelo terrorismo, até se tornar ele mesmo terrorista”. A relação entre segurança e terrorismo abre uma nova discussão: para quem ela serve? Para compreender a maneira como Agamben conduz seu pensamento é importante entender os dispositivos que operam essas políticas de segurança. Dispositivo é um conceito de que Agamben se apropria e que Foucault desenvolve. Na compreensão de Agamben, um dispositivo tem, resumidamente, três características: “a. É um conjunto heterogêneo, linguístico e não-linguístico, que inclui virtualmente qualquer coisa no mesmo título: discursos, instituições, edifícios, leis, medidas de polícia, proposições filosóficas etc. O dispositivo em si mesmo é a rede que se estabelece entre esses elementos. b. O dispositivo tem sempre uma função estratégica concreta e se inscreve sempre numa relação de poder. c. Como tal, resulta do cruzamento de relações de poder e de relações de saber.”

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Para Agamben, não existe um “uso correto” de um dispositivo, compreendendo que o modo de uso do dispositivo não pode ser utilizado contra essa maneira de funcionamento do Estado perante a sociedade. E a cada dispositivo de controle, somos submetidos de maneira mais profunda a uma prisão que controla as nossas vidas. Ao mesmo tempo, cada vez mais os “seres viventes” se tornam potenciais terroristas, do ponto de vista do poder. O neoliberalismo trouxe consigo uma forma de se gerir a vida humana de maneira a atingir um grau de controle das condutas como nunca houve antes. Essa nova forma de governar a sociedade que Gilles Deleuze, filósofo francês do século XX, denomina “sociedade de controle” foi tomando o lugar das sociedades disciplinares e, a cada dia mais, vai refinando a maneira como ela exerce esse modo de governar. Essa mudança no capitalismo é crucial para o mundo da segurança. Essa mudança se dá no mercado como começo e fim das relações de poder. Os dispositivos de segurança estabelecem quais são as emergências que se deve regular. O projeto neoliberal das sociedades de controle, pautado na segurança como seu principal instrumento de governo, tem nos levado a um mundo de medo onde em nome da segurança se constrói uma vida humana cada vez mais vigiada, rastreada e controlada. O estado de exceção tornou-se o modo como o Estado implementa suas medidas e se coloca a cada instante em nossas vidas. Vemos que os dispositivos de segurança utilizados na sociedade de controle conduzem a política à uma forma de utilização da segurança que não contempla grande parte da população que ela diz contemplar. Ela é a segurança do poder de es-


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Chelsea Manning Serviu ao exército estadunidense e, em maio de 2010, foi presa por divulgar informações sigilosas. A acusação é de que, enquanto militar, concedeu documentos sigilosos sobre episódios como a Guerra do Iraque, para o WikiLeaks. Edward Snowden Ex-analista da Agência Nacional de Segurança dos Estados Unidos (NSA) e ex-técnico da Agência Central de Inteligência (CIA) que denunciou ações de espionagem do governo estadunidense em 2012. Julian Assange Fundador do WikiLeaks, organização responsável pela publicação de informações sigilosas do governo de diversos países, como os telegramas secretos da diplomacia dos Estados Unidos.

tado e das grandes empresas que financiam esse tipo de governo. Noam Chomsky, filósofo estadunidense contemporâneo, coloca a questão da segurança como “conceito controverso”. Para ele, não há momento em que a segurança esteja em nome do cidadão. Muito claramente isso se manifesta em qualquer parte do mundo. Os Estados e seus governantes a cada dia aperfeiçoam seu discurso acerca da segurança como forma de lidar com os mais diversos problemas e crises que possam surgir. A ideia de terrorismo foi a que surgiu de forma a conseguir disseminar como nunca essa lógica da segurança para todo o mundo. Basta ver como os Estados se manifestam contra qual-

quer infortúnio que possa atingir o Poder de Estado com seus governantes e grandes empresários, os arquitetos das políticas. Depois desse desenrolar é que podemos ver os casos de Edward Snowden, Chelsea Manning e Julian Assange (veja na tabela ao lado) para perceber que a população não está nos planos dos governantes e outros que exercem mais poder. As questões relativas à segurança são sempre segredo de Estado sendo que muitas das pessoas envolvidas nos planos, como soldados em guerras, nem sabem quais são os reais interesses em questão. As revelações de Snowden confrontam o governo dos Estados Unidos justamente por ele defender que as pessoas deveriam ter direito de saber sobre seu destino. Graças a Snowden, tivemos acesso à informação de que vários países, inclusive os Estados Unidos, foram espionados via internet e ligações telefônicas pela CIA (em inglês, Central Intelligence Agency). O mais intrigante foi que Snowden foi considerado um traidor de sua pátria quando o que ele fez foi justamente mostrar como a segurança de que tanto falavam não incluía a segurança da população e de outros povos espionados. Poderia citar mais de trinta intervenções feitas pelos Estados Unidos em nome da segurança nacional. Mas basta ver os casos atuais do Iraque e Afeganistão para saber que, em nome da segurança, milhares de vidas foram tiradas tanto de soldados dos Estados Unidos e dos países invadidos, como de civis. Fica clara a posição dos Estados Unidos com relação aos povos dos países invadidos: mata-se aleatoriamente e domina-se a região. Nada tem a ver com a liberdade de um povo, e sim com os interesses geopolíticos e econômicos envolvidos.

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conclusão “É notório que os dispositivos de segurança, quando tornam-se a principal tecnologia de governo, podem conduzir o mundo a um caminho sem volta.“

O que sabemos, com todos esses acontecimentos, é que se caminha para um mundo onde as fronteiras estarão em sérias mudanças, e não me parece que será para um melhor arranjo para os povos. A população não estará mais próxima de estar segura, até porque cada um de nós está mais próximo de ser tratado como um terrorista do que como um cidadão. O mundo não está caminhando para uma maior interação entre todos, a fim de que seja mais horizontal. Estamos cada vez mais distantes de um mundo democrático, ao contrário do que dizem as grandes mídias e os políticos. O fato é que esses interesses geopolíticos e econômicos foram os responsáveis por milhares de vidas e por todo um desenvolvimento da segurança que não existe para proteção às pessoas, mas sim à certas pessoas e ao capital. Enquanto acreditarem nessa democracia neoliberal, que não tem nada de democrático em seu conteúdo, estaremos sujeitos à todos os tipos de privação de liberdade que esse sistema propõe. E as privações não são poucas. A sociedade de controle a cada dia aumenta sua vigília e os cidadãos se submetem a um novo dispositivo de controle e de segurança. Um lugar onde todos são virtuais terroristas não pode ser chamado de um lugar melhor. É, no entanto, o lugar que está no limite para a barbárie. Aliás, a barbárie me parece o único lugar aonde esse modo de viver é conduzido. É notório que os dispositivos de segurança, quando tornam-se a principal tecnologia de governo, podem conduzir o mundo para um caminho sem volta.

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Conheça a programação no Site: www.50anosdogolpe.prefeitura.sp.gov.br

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Brasil Barraca REVISTA #03 VA DAPÉ

CARAÍVA, LITORAL DA BAHIA

alforria mental por paulo motoryn fotos por victor santos

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ara um paulistano típico, a fuga da selva de concreto causa um adormecimento momentâneo, um congelamento de sentidos, uma efusividade inexplicável ao perceber que é possível viver sem meios de transporte motorizados, sem calçados, sem camiseta, sem relógio e sem computador. O intenso ritmo de vida da cidade de São Paulo, contrastando com a calmaria de uma viagem de barraca pelos rincões do Brasil, por vezes cega o nosso olhar para questões marcantes do solo nacional.

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Essa é a sensação de pisar em Caraíva, uma pequena vila de pescadores no sul da Bahia. A península, isolada de um lado pelo Rio Caraíva e do outro pela reserva indígena de Barra Velha, é um distrito de Porto Seguro e fica na Costa do Descobrimento: nome dado à faixa litorânea onde Pedro Álvares Cabral e sua embarcação chegaram ao Brasil, em 22 de abril de 1500. Não por acaso, perto de Caraíva fica o Monte Pascoal, pedaço de terra que motivou

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o lendário grito: “Terra à vista”. O charme das ruas de areia fofa, a rusticidade do vilarejo e a simpatia dos moradores de Caraíva petrificam os turistas, que não se dão conta que o genocídio contra os indígenas, promovido a partir da invasão europeia à terra dos nativos, começou ali pertinho. O fato: a Aldeia Barra Velha, composta por índios da etnia Pataxó, apesar de ignorada pelos visitantes de Caraíva, é um livro de história a céu


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“Somos índios. Quem diz que não somos mais é porque está de olho em nossas terras” Luan, nome aportuguesado de Uakiti, indígena de origem Pataxó e estudante de ciências sociais.

aberto, contado pelos verdadeiros donos do território brasileiro. A Aldeia Barra Velha é uma enorme faixa de areia, que vai de Caraíva à Ponta do Corumbau, outra praia paradisíaca da região. Lá não existem mais ocas: os índios dormem em casas de alvenaria ou, no máximo, em construções de pau-a-pique. As tradições indígenas, durante os 514 anos de contato com europeus, foram aos poucos se ocidentalizando, mas ainda existem. “Somos índios. Quem diz que não somos mais é porque está de olho em nossas terras”, afirma Luan, nome aportuguesado de Uakiti, de 25 anos, indígena e estudante de ciências sociais em Porto Seguro. O que Luan diz faz sentido. Apesar de estar em plena Costa do Descobrimento, a região ainda não foi totalmente explorada pelo turismo, sendo que a enorme faixa de areia onde se encontra a Aldeia Barra Velha é intocada, mas constantemente assediada para servir a grandes empreendimentos imobiliários. O assédio, hoje feito por grandes empresas, já foi protagonizado pela Polícia Militar, responsável por um grande massacre de indígenas da tribo na década de 50, após a acusação de que índios teriam roubado uma casa na Ponta do Corumbau. A questão indígena, um dos aspec-

tos mais marcantes de Caraíva, ainda se confunde com outros traços do lugar: as duras condições de vida para os pescadores e a escalada de um turismo cada vez mais elitizado - fatos que se misturam e estão diretamente ligados. Afinal, a subida dos preços de grande parte dos estabelecimentos da península, obriga os locais a morarem do outro lado do rio: não mais na nobre e charmosa Caraíva, mas sim em uma improvisada, recente e pobre Nova Caraíva, outro distrito de Porto Seguro. Um dos moradores de Nova Caraíva é Formiga. Entre gole e outro de seu “Corote”, como chama a cachaça fechada em uma pequena garrafa plástica, ele diz ter 35 anos e ter nascido no interior de Minas Gerais. Formiga, bem como seu amigo João do Pão, é uma das figuras conhecidas da região. Na linha tênue entre a simpatia e a inconveniência, exibem seus dotes etílicos para todos os grupos de turistas que estão na vila, sempre pedindo mais um troco para o próximo “Corote”. A comicidade dos “malucos beleza” do vilarejo contrasta com histórias de vida duras, sofridas e revoltantes: uma aula de Brasil. No fim de uma noite de intenso desempenho alcóolico, Formiga, ao lado de um casal de argentinos e uma du-

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pla de amigos paulistanos, contou como haviam sido seus últimos meses de trabalho, em um lugar não muito distante de Caraíva. Os sorrisos, as risadas e as brisas em torno de uma fogueira, incandescente na escuridão da praia, cessaram assim que aquelas pessoas se deram conta do que Formiga dizia. “Eu trabalhava na roça que ninguém daqui tem coragem de ir”, ele se gabava.“É a roça em que vários amigos meus morreram, lá eles não tem dó. Levam a gente para casa branca e já era”. A casa branca, segundo Formiga, é o lugar onde moram, durante a época da colheita, os trabalhadores que pedem demissão ou que assumem não querer trabalhar mais com os pés de café. “Eu dormi dois meses lá. Todo mundo morreu, só eu que fiquei porque sabia levar o Valdomiro [Formiga não explicou exatamente quem era Valdomiro, provavelmente um capataz da fazenda] na conversa. Na última semana, morei sozinho na casa branca”, lembra. As condições de trabalho na roça de Formiga eram assustadoras: “A gente acordava às quatro da manhã, preparava a marmita e, às seis, quando entrava na plantação, todo mundo já tinha tomado um litro de cachaça”, gargalha. “Era o jeito, pô? Você acha que sóbrio alguém aceita ganhar 40 centavos por pé de café?”, questiona. E o problema maior, para Formiga, não era nem o preço pago pelo serviço, mas o quanto ele gastava na venda: “Às seis da tarde a gente chegava lá no Seu Joaquim e bebia até onze da noite: todo mundo perdia mais dinheiro bebendo que ganhava trabalhando em um dia”. A história de Formiga em um trabalho análogo à escravidão tem contornos ainda mais dramáticos. Depois de sua última fuga da roça, uma fazenda

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“Você acha que sóbrio alguém aceita ganhar 40 centavos por pé de café?” Formiga, morador de Nova Caraíva. Durante a baixa temporada, trabalha em roças de café na região.

à qual ele não sabia nem o nome nem o dono, no meio de uma madrugada em novembro do ano passado, ele chegou à Caraíva e logo foi trabalhar em uma das barracas de comida e bebida na beira da praia. Um de seus primeiros clientes? Valdomiro, a quem tinha enganado para escapar da morte. “Os olhos dele sangravam de raiva, nós dois ficamos paralisados na frente do outro. Mas aí ele disfarçou, não me enfrentou. Ele estava com a família inteira, não podia fazer nada. Eu servi ele a tarde inteira e ainda recebi um trocado de presente dele no final”, explica. “Eu não tenho medo de nada não. Quer apostar que eu volto pra roça assim que a turistada for embora?”, disse, para desespero dos argentinos e brasileiros que o rodeavam, ainda entorpecidos pela história de Formiga. “Não volta, Formiga, fica aqui em Caraíva trabalhando mesmo”, sugeriu um dos paulistanos, com os olhos vermelhos não por causa da vela que ele já nem se importava mais onde havia deixado, mas por lágrimas que ele não esperava que saíssem de seus olhos.


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thomas conti UTOPIA Há no mundo moderno um mito tão recorrente que já quase tornou-se parte indissociável da nossa paisagem de sentimentos: o mito do fim da história, do fim das utopias e do fim das grandes lutas para mudar o mundo. Esse mito, inventado nos anos 90 numa tentativa de descrever o novo período da história mundial que se iniciava, foi tão criticado quanto passado adiante. Alguém que olhasse o Brasil dos anos 90 até junho do ano passado diria que, realmente, a sociedade estava imersa num estado de “insatisfação administrada”, sem lutar por grandes rupturas, sem gritar por mudanças. Contudo, nada poderia ser mais falso. Enquanto nós olhamos para este texto, estão em conflito em uma imensa gama de utopias diferentes, defendidas por pessoas também das mais variadas. Duas delas chamam-me particular atenção, não por seus méritos e sonhos mas, pelo contrário, por serem dominantes e defenderem uma visão de mundo sofrível para as gerações futuras, ao mesmo tempo em que o fazem de forma sutil e gradual, sem nunca dizer com honestidade o que está sendo proposto. A primeira dessas “utopias” é a que eu chamaria de “utopia do homem exausto”. Seus principais defensores são milionários de capa de revista, governantes e economistas. O objetivo da humanidade na utopia do homem exausto é assegurar que todas as gerações futuras dediquem suas vidas ao trabalho. Os primeiros 20 e tantos anos de vida são para a preparação para o mercado, nos próximos 40 deve-se trabalhar no mínimo oito horas por dia, para enfim, aos 70, poder “com mérito” 74

23 ANOS, mestrando em história econômica pela UNICAMP e blogueiro.

aposentar-se e “aproveitar” a vida, ou o que sobrou dela. Para eles, todo sacrifício da população é pouco em nome do “aumento da confiança dos investidores” no país. A segunda dessas utopias é ainda mais dissimulada. É a “utopia do homem cansado”. As coisas não vão bem, o trânsito está ruim, a educação péssima, os governantes alheios aos problemas da maioria, não há tempo livre para o lazer nem espaços de convivência públicos, mas... “Sem bagunça, pessoal!”. Novamente tivemos o nosso cotidiano incomodado por pessoas se mobilizando, querendo fazer algo diferente. “Protestar para quê?”, pensa o homem cansado. “Já é tão difícil ser massacrado diariamente pela realidade cotidiana, por que não me deixam descansar em paz? Descansem também, estamos todos cansados, vamos cuidar da nossa vida...” Trabalhar até a exaustão e praticar o cansaço político é o projeto “utópico” das elites de nossos tempos para que tudo fique como está. Porém, “não existem tais lugares”, esses mundos tal como descritos por essas utopias. O que não quer dizer que elas não estejam em projeto de construção e nos sendo propostas diariamente, que não estejamos resistindo sempre que nos posicionamos contrários aos seus ideais. A experiência de junho mostrou que a história não chegou ao fim, os conflitos para mudar a atual situação das coisas estão em ebulição e ninguém está no controle desse processo. Resta pensarmos uma nova utopia.


REVISTA #03 VA DAPÉ

lucas pazetto E O KIKO? “Todo ser humano é culpado do bem que não fez” – Voltaire, escritor, ensaísta, deísta e filósofo iluminista francês. Mesmo com todas as ressalvas sobre o que Voltaire julgava ser esse “bem”, essa é uma frase que merece reverência. Isso porque traz à luz a inerência que há entre “culpa” e “omissão”. Você já deve ter visto por aí, das mesas de bar às reuniões familiares, aquele indivíduo que se diz, orgulhosamente, “apolítico”: “Ah, política não é muito a minha praia, eu não ligo muito pra essas coisas”. Eu espero que você, leitor da Revista Vaidapé, concorde comigo quando digo que isso é muito triste. Porque é mesmo. É a crença mais escancarada que temos na ilusória e ignorante abstenção. Ignorante, pois mostra um sujeito com dificuldades para estabelecer vínculos entre o espaço que o rodeia e suas próprias necessidades. Ilusória, pois não se refere aos funcionamentos concretos da realidade. Temos um indivíduo que pensa adotar uma postura independente, quando na verdade se torna escravo de sua própria inconsequência. Já dizia Platão: “Não há nada de errado com aqueles que não gostam de politica, simplesmente serão governados por aqueles que gostam”. Quer dizer, é realmente possível ser nulo? Ao meu ver, só deixando de existir. O “não fazer” é fazer algo. Nós trocamos figurinhas com o mundo até quando não queremos. Isso não é uma opção. Mas quando resolvemos participar, eventualmente pode ser. Quando damos um passo para trás diante de uma situação conflituosa, de duas uma: entregamos o poder nas mãos de quem já o tem,

21 ANOS, graduando em psicologia pela UNESP.

ou damos chance para que algo seja feito sem nosso consentimento e possibilidade de luta. No dicionário a palavra “nulo” aparece assim: adj (lat nullu) 1 Nenhum. 2 Que não é válido. 3 Sem efeito ou valor: Contrato nulo. 4 Ineficaz. 5 Frívolo. 6 Vão. 7 Inerte. 8 Inepto; sem mérito. Repare que não há a ideia de indiferença ou neutralidade, mas sim a de invalidez e ineficácia. Dois adjetivos perfeitos para expressar o peso que tais posicionamentos têm sobre o mundo. Uma vez que entendemos a física básica de nosso cotidiano – toda ação tem um efeito, por mais ínfimo que seja – compreendemos que cabe a nós sermos sujeitos ou sujeitados. Isso vale para a política, para nossas relações interpessoais, para tudo. Não há meio termo, não há abstenção. O fato de existirmos já prevê que façamos parte do jogo. No qual a verdadeira vitória se dá no jogar dos próprios dados. Como concluíra o educador Paulo Freire: “A liberdade, que é uma conquista, e não uma doação, exige permanente busca. Busca permanente que só existe no ato responsável de quem a faz. Ninguém tem liberdade para ser livre: pelo contrário, luta por ela precisamente porque não a tem. Ninguém liberta ninguém, ninguém se liberta sozinho, as pessoas se libertam em comunhão”.

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