Revista Babel - junho de 2024

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Universidade de São Paulo

Reitor

Carlos Gilberto Carlotti Jr.

Escola de Comunicações e Artes

Diretora da ECA-USP

Brasilina Passarelli

Departamento de Jornalismo e Editoração

Chefe e vice-chefe do departamento

Luciano Guimarães e Wagner Souza e Silva

Professor responsável

Alexandre Barbosa (Mtb 28.371)

Editoras-chefe

Maria Clara Abaurre e Emilly Gondim

Editoras de arte

Brenna Oriá e Larissa Leal

Editores de infografia

Carolina Borin, José Vieira e Lívia Magalhães

Editor de fotografia

Manuel Savoldi

Editores on-line

Antônio Misquey e Julia Castanha

Editores de reportagem

Gustavo Assef, Isabella Marin, João Francisco Aguiar, João Pedro Barreto, Julia Castanha, Julia Custódio, Luisa Hirata, Mariana Carneiro, Matheus Nistal,

Natália Milena, Rodrigo Tammaro e Sarah Lídice

Colunistas

Karolina Monte, Lívia Magalhães, Lorraine Moreira,

Maria Carolina Milaré , Sarah Lídice e Thiago Campolina

Repórteres

Amanda Marangoni, Ana Paula Alves, Bianca Camatta,

Carolina Borin, Caroline Kellen, Diogo Bachega, Gabriel Gama, Isabella Marin, Isabella Oliveira,

João Pedro Barreto, José Vieira, Laura Guedes, Renato Brocchi, Rosiane Lopes

Endereço

Av. Prof. Lúcio Martins Rodrigues, 443, prédio 2

Cidade Universitária, São Paulo, SP, 05508-020. Telefone: (11) 3091-4112.

A revista Babel é produzida pelos estudantes do oitavo semestre do curso de Jornalismo como parte da disciplina Laboratório de Jornalismo - Revista.

FIOSEntre

Ababel foi, desde os detalhes gráficos até os critérios de seleção das nossas pautas e temas, pensada como um produto latino-americano, por latino-americanos, sobre latino-americanos.

Nossas cores são as cores das ruas, as cores das festas, as cores dos tecidos e dos temperos. As colagens que ilustram essa revista, inspiradas na obra de Rosana Paulino, trazem para estas páginas um mosaico que já é nosso.

Uma coleção de retratos da América Latina unindo com uma só linha os 39 países — número que considera critérios decoloniais na definição de são as nações latino-americanas. A Babel é fruto de um trabalho incansável de aproximação, do outro e de nós mesmos.

Os cordões que nos unem ultrapassam a língua e o território geográfico. Compartilhamos, como irmãos, uma série de acontecimentos históricos que marcam nossa realidade. A começar pelo processo de colonização exploratória junto à escravidão e ao apagamento dos povos indígenas.

Os cordões que nos unem ultrapassam a língua e o território geográfico. Compartilhamos, como irmãos, uma série de acontecimentos históricos que marcam nossa realidade.

O primeiro de nós a se rebelar e conquistar sua tão sonhada emancipação, se viu novamente à mercê do poderoso Norte global. Castigado historicamente, o Haiti revive continuamente a luta pela liberdade.

A América Latina foi assolada ainda pelas ondas de ditaduras. Na edição de 2023 da Babel, abordamos os 50 anos do Golpe no Chile. Este ano, lidamos com a efeméride de nosso próprio país: os 60 anos do Golpe no Brasil.

Ela vem após o difícil período de um presidente que exaltava a ditadura e o militarismo e, ao mesmo tempo, em que o atual governo, mais progressista, proibiu atos manifestantes no dia 31 de março, data que marcou o golpe. O que mostra o quanto essa ferida ainda está aberta na História do país. Enquanto estudantes da maior universidade pública do Brasil e da América Latina, ignorar todo esse contexto seria ir contra os critérios já estabelecidos nesta revista laboratório.

Bordado mexicano de Tenango Hidalgo

(bordado com símbolos da cultura Otomi) em exposição no Memorial da América Latina

As linhas que nos unem vão além da história e estão presentes na estratificação social latino-americana: o racismo, o machismo, a xenofobia não são exclusivamente nossos, é claro, mas apresentam características socioculturais particulares. Assolado por desastres ambientais, o continente com a maior reserva de água doce do mundo tem a necessidade de buscar iniciativas de sobrevivência e de desenvolvimento, em conjunto com as demais nações.. Nossa cultura é igualmente entrelaçada pelo amor. O intenso sentimento pelo futebol, que se tornou espaço de acolhimento para tantas pessoas, também ganhou uma camada política na luta pela resistência palestina, povo do Oriente Médio que encontrou no Chile um lugar para chamar de casa, mas sem esquecer do verdadeiro lar, em Gaza. Esse amor respinga na culinária. Os pontos que nos unem carregam a ancestralidade e a miscigenação de famílias que resistem nos temperos postos na mesa. Para essa edição da revista Babel, nossos repórteres mergulharam na trama inconfundível de García Márquez, buscaram a fé do Chile ao Haiti, sentiram nos ombros o peso da história e viram de perto o trabalho das mãos que bordam nossas narrativas mais fantásticas.

Os sopros das mudanças chegam a todo tempo na nossa América Latina. Em meio ao fechamento da revista, no dia 2 de junho de 2024, os mexicanos elegeram pela primeira vez uma mulher como presidente do país. Por nossas limitações temporais e humanas, não pudemos nos aprofundar na eleição de Claudia Sheinbaum, vencedora do Prêmio Nobel da Paz em 2007 por compor a equipe do Painel Internacional sobre Mudanças Climáticas (IPCC). As desconstruções patriarcais nas políticas latinas ainda são lentas, mas há esperanças. Deixamos esse e outros tantos temas para nossos futuros colegas, com a esperança de que o decolonialismo esteja cada vez mais presente em nossas pautas. Agradecemos àqueles que fizeram conosco essa revista, que bordaram as letras presentes nessas páginas e costuraram as palavras. Os pontos que a unem são os mesmos que nos mantêm firmes em nosso propósito.

editorial
1982-0925 Carolina Borin/Revista Babel
ISSN
MARIA CLARA ABAURRE E EMILLY GONDIM, Editoras-chefe
Arte da capa Brenna Oriá e Larissa Leal Reprodução/Unsplash JULHO 2024 3

GELÉIA GERAL

SUMÁRIO BABEL

A resistência cultural na ditadura militar foi plural, cheia de nuances políticas e estéticas, enquanto artistas buscavam diferentes respostas ao cerceamento da época

UM PASSADO QUE NÃO PASSA

EDITORIAL: ENTRE FIOS

Uma coleção de retratos da América Latina unindo, com uma só linha, os 39 países

UMA HISTÓRIA DE LUTA E RESISTÊNCIA

Há 220 anos, graças à revolução comandada por negras e negros, o Haiti se tornou o primeiro país independente da América Latina

MAIS DO QUE RELIGIÃO, VODOU

Essencial na construção cultural, histórica e revolucionária do Haiti, entenda a religião da primeira república a ser livre, ao mesmo tempo, do sistema colonial e do regime escravocrata na América Latina

ERA UMA VEZ, EM UM MUNDO FANTÁSTICO…

Na literatura de ficção latino-americana, ser perseguido por fantasmas e borboletas é normal

ONDES AS FLORES AMARELAS NÃO MURCHAM

Dez anos da morte de García Márquez são marcados por livro póstumo e série da Netflix

Na efeméride de 60 anos do golpe militar no Brasil e de 10 anos da Comissão Nacional da Verdade, a preservação da memória deste período ainda é um desafio para esta e para as próximas gerações

SONS DE UM FUTURO EM RUÍNAS

Festival “O Começo do Fim do Mundo” transformou a fúria da juventude punk em crítica à decadente Ditadura Militar

TENHO MEDO DE MORRER SENDO O QUE NÃO SOU Vez em quando nossa prova de vida é o passado

O FENÔMENO NAYIB BUKELE

Reeleito em El Salvador, Nayib Bukele faz sucesso nas redes e faz brilhar os olhos de líderes da direita latino-americana

MAIS QUE UM TIME, TODO UM POVO

Em 2024, o Club Deportivo Palestino, do Chile, disputa a Copa Libertadores ao mesmo tempo em que representa a luta do povo palestino

O NOVO CRISTIANISMO NO CHILE, UM PAÍS CUJA

IDENTIDADE É MARCADA PELA RELIGIÃO

A fé é tão importante para os chilenos que há um órgão estatal para promover a liberdade religiosa, a ONAR

HISTÓRIAS DE UM POVO À MESA

Babel visitou restaurantes de culinária latino-americana em São Paulo e traz dicas do que você precisa experimentar

EM BUSCA DAS PEÇAS SAQUEADAS

Retirada clandestina de fósseis valiosos do Brasil expõe colonialismo científico praticado há séculos por países do Norte Global

“SE NÃO HÁ ÁGUA, NÃO HÁ DESCANSO”

Como o não acesso à água muda vidas de comunidades rurais e indígenas pela América Latina, uma luta predominantemente feminina

QUARTO PILAR DA ECONOMIA

O trabalho do cuidado ainda é uma realidade feminina, embora sustente toda a sociedade

SABEDORIA ANCESTRAL

Baseada em conhecimentos e práticas tradicionais, a bioeconomia pela perspectiva indígena parte da conexão entre o território, seus ecossistemas e habitantes visíveis e invisíveis

IDENTIDADE EM DIFERENTES RITMOS

Mesclar línguas e culturas indígenas com ritmos como rap, pop e eletrônico tem sido uma maneira dos povos indígenas ganharem espaço no mercado musical

LÍNGUAS DESTA TERRA

As línguas indígenas brasileiras, antes contadas aos milhares, hoje se aproximam das duas centenas

SIODUHI PARA ALÉM DA ESTÉTICA

Natural do Alto do Rio Negro, no Amazonas, o estilista indígena Sioduhi Lima valoriza a ancestralidade e tece seus próprios valores e significados no mundo da moda

PONTOS QUE UNEM

O bordado na América Latina é uma expressão artística diversa, que pode se constituir como um registro da memória coletiva de grupos sociais e uma ferramenta de resistência histórica a violências na região

LOS QUILEROS

Sobre uma portuguesa, as gêmeas Aceguá, homens de fronteira e um ofício chamado jornalismo

Fotos: Cortesia/Flávia Dalmaso; Sarah Lídice, reprodução/Difilm; reprodução/ Correio da Manhã/Acervo Nacional; reprodução/@garotospodresoficial/InstagramJoão Pedro Barreto/ Revista Babel; Maria Milaré; Acervo MPPCN; Cortesia/ Edgar Kanaykõ Xakriaba; Reprodução/Acervo Museu das Culturas Indígenas; Corteseia/Andressa Anholete; Cortesia/Sioduhi

64 72 76
68
3 64 10 33 68 14 37 72 18
46 48 54 58 60 50 38 42 76 82 6 28 22
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Repórteres ISABELLA OLIVEIRA E ROSIANE LOPES

Edição e arte JOÃO FRANCISCO AGUIAR

HISTÓRIA DE

LUTA RESISTÊNCIA E

Há 220 anos, graças à revolução comandada por negras e negros, o Haiti se tornou o primeiro país independente da América Latina

Gravura de revolta dos escravizados haitianos contra seus senhores em 1791

esmo sendo um país com cultura diversa e muita força histórica, marcado por uma das revoluções mais importantes da América Latina, o Haiti sofre com um processo de apagamento de suas manifestações culturais e potencialidades, fruto da percepção formada no imaginário internacional ligada apenas ao empobrecimento, à movimentação política e à violência existentes no país.

A Babel traz um panorama sobre as origens dessas lutas históricas e o que levou ao apagamento e marginalização do Haiti.

IMPULSO DE LIBERDADE

E A LUTA NEGRA

Durante a colonização francesa (16301804), a sociedade de São Domingos contava com quatro estratos sociais: os grandes brancos, donos de amplas propriedades e envolvidos no tráfico negreiro; os pequenos brancos, pessoas que trabalhavam na cidade, mas não possuíam grandes propriedades; os negros e negras livres, filhos de brancos com negros; e a grande população de escravizados.

É essa população negra a responsável pelo processo revolucionário haitiano, entre 1791 e 1804. Dois anos antes desse período, no contexto da Revolução Francesa, já existia a luta de negros livres, mas com outro objetivo: o direito de voto e de participação na Assembleia Nacional na França.

Bethania Pereira, historiadora pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) explica que a Revolução Haitiana pode ser dividida em dois momentos distintos.

Foi de 1791 a 1793 que iniciou-se de fato a luta pela abolição da escravatura. Em agosto do primeiro ano, uma cerimônia vodu liderada pelo sacerdote Dutty Boukman marca o início da revolta de negras e negros escravizados na busca por liberdade. Dias depois do evento, o processo de destruição das plantações e morte dos senhores escravagistas foi iniciado na região norte de São Domingos.

Bethania Pereira, historiadora pela

21 A 115

ART. 12. NENHUMA PESSOA BRANCA, QUALQUER QUE SEJA SUA NACIONALIDADE, PODERÁ INGRESSAR NESTE TERRITÓRIO NA

QUALIDADE DE SENHOR OU PROPRIETÁRIO, NEM PODERÁ NO FUTURO ADQUIRIR PROPRIEDADE ALGUMA.

CONSTITUIÇÃO

HAITIANA DE 1805 BILHÕES

É A ESTIMATIVA DO PREJUÍZO DO HAITI PELO PAGAMENTO DE INDENIZAÇÃO À FRANÇA PELA INDEPENDÊNCIA.

Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) explica que a Revolução Haitiana pode ser dividida em dois momentos. No primeiro, de 1791 a 1793, iniciou-se de fato a luta pela abolição da escravatura. Em agosto do primeiro ano, uma cerimônia vodu, liderada pelo sacerdote Dutty Boukman, marca o início da revolta de negras e negros escravizados na busca por liberdade. Dias depois do evento, o processo de destruição das plantações e morte dos escravagistas começou na região norte de São Domingos. Ainda em 1791, Boukman foi capturado e morto. Decapitado, o sacerdote teve a cabeça exibida à população como uma forma de lição aos revoltosos. Não adiantou. Dias depois do assassinato, as lutas e levantes continuaram a acontecer e novos líderes passaram a se destacar, entre eles o grande líder militar Toussaint L’ouverture. A cada plantation destruída, o número de escravizados livres aumentava e as tentativas dos brancos para enfrentar a população negra eram fracassadas. Nas regiões Sul e Oeste, as revoltas eram lideradas pelos negros livres, impedidos pela população branca de exercerem o direito de voto nas Assembleias Coloniais. Contrariados com a situação, formou-se um grupo de monarquistas e anti-revolucionários na região. Representantes do governo francês começaram a negociar a liberdade de pequenos grupos de negros escravizados, desde que lutassem contra aqueles que se opunham à Revolução Francesa, numa tentativa de reestabelecer o controle sob a colônia caribenha.

Com a invasão de espanhois e britânicos, os comissários franceses foram forçados a abolir a escravidão em 1793, como forma de obter apoio dos negros libertos na luta contra Inglaterra e Espanha. O segundo período da Revolução, de 1794 a 1804, foi marcado pela luta contra os britânicos, os efeitos da liderança de Napoleão Bonaparte e o retorno da escravidão na ilha.

Depois de derrotar os ingleses, Toussaint L’ouverture tornou-se governador-geral de São Domingos, em 1801. Como governador, adotou uma Constituição que dava à região significativa autonomia em relação à França, além de proibir a escravidão e proclamar igualdade a todos os habitantes da ilha.

“Napoleão tinha uma postura de almejar restabelecer a escravidão”, diz Bethania. Por isso, em 1802, Bonaparte manda prender Toussaint L’ouverture, que é levado à França onde acaba morrendo. Jean-Jacques Dessalines então assume a liderança e expulsa os franceses que estavam na região a mando do cônsul francês.

Em primeiro de janeiro de 1804, Jean-Jacques Dessalines declarou a independência de São Domingos e renomeou a ilha: Haiti. Foi neste momento que se oficializou a primeira nação indepen-

UMA
M US$ JULHO 2024 7 revolução haitiana revolução haitiana

Líder revolucionário T'oussaint L'ouverture. Após lutar pelo seu povo, foi preso e exilado na França mando de Napoleão, onde ficou até sua morte

dente da América Latina, governada por negros e viabilizada pela força e pelo desejo de liberdade de uma população escravizada.

DEPOIS DA INDEPENDÊNCIA

O clima após a independência era de desconfiança. O colonialismo havia sido derrotado, mas floresceu uma nova divisão racial interna. Após a Revolução, os mulatos assumiram o poder na ilha enquanto os ex-escravizados negros continuaram a trabalhar nas plantações. Além disso, surgiram suspeitas em relação aos estrangeiros que permaneceram no país, o que culminou no massacre da população branca francesa entre janeiro e março de 1804. O próximo passo era receber o reconhecimento das demais nações. No entanto, esse processo foi demorado, já que as potências europeias receavam que isso afetasse seus interesses políticos e econômicos ao incentivar outras colônias a lutarem por liberdade. Apenas em 1824 a França reconheceu a independência do Haiti. Em 1805, foi aprovada a primeira Constituição pós-revolucionária do Haiti. Entre os artigos presentes no texto, estava a determinação de que nenhuma pessoa branca poderia ingressar no território na qualidade de senhor ou proprietário, nem poderia no futuro adquirir propriedade alguma, exceto poloneses, alemães e mulheres brancas naturalizadas pelo governo. Esse artigo foi revogado na Constituição de 1918 para atender aos interesses do governo dos Estados Unidos que viriam posteriormente a ocupar a ilha. Em 1825, o monarca francês Carlos X impôs o pagamento

de uma indenização no valor de 150 milhões de francos para reconhecimento da independência do país e ressarcimento da perda das propriedades francesas. Também ameaçou invadir a ilha caso a compensação não fosse paga. Por conta dessa situação, o Haiti desenvolveu uma grande dependência econômica com a França e teve que pedir empréstimos, a bancos franceses, para saldar a dívida.

Segundo uma série de reportagens publicadas em 2022 pelo The New York Times, os valores pagos pelo Haiti à França "custaram ao desenvolvimento econômico do país entre US$ 21 bilhões e US$ 115 bilhões de dólares de prejuízo em dois séculos, ou entre uma e oito vezes o Produto Interno Bruto (PIB) do Haiti em 2020". Quase um século depois, emEm 1915, começa a interferência estadunidense na política haitiana. Na época o general Jean Vilbrun Guillaume Sam tinha assumidou o comando da ilha com o apoiado de por sua milícia privada. Temendo perder o poder recém conquistado, o militar Guillaume Sam temia perder o poder recém conquistado, então mandou prender dezenas de pessoas com ordens de execuçãocome deu de execução ordem para que fossem executadas, caso algo acontecesse a ele. Pouco tempo depois, o general foi atacado, se escondeu na Embaixada Francesa e ordenou que os presos fossem assassinados. Isso gerou enorme insatisfação na população, que encontrou o esconderijo de Guillaume Sam na Embaixada Francesa e o linchou. Diante desse cenário, diplomatas estrangeiros argumentaram a urgência de uma intervenção externa no Haiti. A Casa Branca, que já tinha interesse em ocupar a região de Môle-Saint-Nicolas para impedir o acesso irrestrito de países europeus ao Canal do Panamá, abraçou a oportunidade sob justificativa humanitária.

A INVASÃO

Em julho de 1915, tropas dos fuzileiros navais dos EUA invadiram o Haiti e tomaram o poder. O governo norte-americano passou a administrar os principais setores do país, como as forças armadas, finanças, infraestrutura, alfândega e saúde pública. Os marines controlavam as províncias com poder de polícia e treinaram uma força militar conhecida como Gendarmerie d’Haïti, composta por haitianos e americanos, com o propósito de conter quaisquer revoltas populares contra a ocupação.

Quando os Estados Unidos invadiram a ilha, eles mantiveram até certo ponto os poderes da elite mulata. Mas, quando os parlamentares não aprovaram a nova Constituição elaborada pelos EUA, houve um endurecimento das relações. “Dentre

os diversos efeitos nefastos da ocupação, destaca-se a pilhagem sofrida pelo Banco Central Haitiano e a alteração da Constituição do país, que passou a autorizar a aquisição de terras por estrangeiros”, afirma Tadeu Maciel, professor e pós-doutorando do Programa de Pós-Graduação em Estudos Estratégicos da Defesa e Segurança da Universidade Federal Fluminense.

O período da ocupação foi marcado pelo racismo e abuso por parte dos marines. Essa atmosfera de violência fortaleceu movimentos nacionalistas, anti-imperialistas e de guerrilha, como o grupo liderado por Charlemagne Péralt, pequeno proprietário e oficial do antigo exército haitiano.

A ocupação chegou ao fim em 1934, quando os Estados Unidos transferiram o poder militar para a guarda nacional haitiana.

O HAITI PÓS OCUPAÇÃO

Entre 1934 e 1956, o Haiti teve uma série de governos instáveis.. Em 1957, o médico François Duvalier, também conhecido como Papa Doc, venceu a disputa presidencial.

A gestão de Papa Doc foi caracterizada pela centralização de poder, execuções, perseguições e prisões de opositores. Para pôr suas ordens em prática, o presidente se aliou à Milícia de Voluntários da Segurança Nacional (Tonton Macoute), reconhecida por perseguir qualquer pessoa que disseminasse ideias democráticas.

Em 1961, Papa Doc dissolveu a Assembleia Nacional e três anos depois se declarou presidente vitalício do Haiti. Durante os 14 anos de governo duvalierista, muitas pessoas deixaram o Haiti por conta da violência, principalmente a parcela da população com melhores condições econômicas e maior nível de escolaridade.

Quando François Duvalier morreu em 1971, seu filho Jean-Claude Duvalier, ocupou a presidência. Apelidado de Baby Doc, Jean-Claude continuou a administrar o país de maneira repressiva.

Baby Doc abandonou o Haiti em 1986 devido ao aumento da insatisfação e da violência popular. Logo, as Gendarmerie d’Haïti assumiram o poder e juntas militares passaram a governar. Entre 1986 e 1989, a ilha viveu um período de grande

A 'assistência' oferecida pela comunidade internacional predominantemente se baseia no uso da força, refletindo uma abordagem colonialista e racista que ainda não reconhece o povo haitiano como protagonista de seu próprio destino.

instabilidade política até a realização de eleições presidenciais em 1990. Em fevereiro de 1991, Jean Bertrand Aristide chegou à presidência. No mesmo ano, foi alvo de um golpe liderado pelo militar Raoul Cédras e então encaminhado ao exílio. Nas semanas seguintes, centenas de pessoas foram perseguidas e assassinadas pelo novo regime, principalmente os apoiadores do antigo presidente Aristide. Em 1993, o Conselho de Segurança da ONU interrompeu o repasse de ajuda humanitária e enviou observadores ao país. A suspensão da ajuda forçou Cédras a negociar com o governo Aristide, que foi então restituído ao poder. No momento em que a ajuda internacional voltou a chegar, porém, os ataques também recomeçaram. No mesmo ano, teve início a Missão das Nações Unidas no Haiti (UNMIH), com o intuito de recolocar Aristide no poder. Dois anos depois, René Préval, ex-ministro da gestão Aristide, ganhou o pleito presidencial na ilha. Em 1996, a ONU enviou outra missão de paz à ilha, nomeada de Missão de Suporte das Nações Unidas no Haiti (UNSMIH), com o objetivo de promover a reconciliação nacional e reabilitar economicamente o país.

HAITI, MEMÓRIA E CULTURA

“A cultura haitiana está muito além da narrativa de pobreza e de sofrimento”, relata a historiadora Bethania. A cultura do Haiti é formada pela mistura de elementos taínos, africanos, franceses e espanhóis, que são expressados na culinária, na música, literatura, religião e costumes de sua população. Munidos de memória histórica que não se apaga no presente, é possível observar o passado nas manifestações culturais haitianas.

A Soup Joumou ou sopa de abóbora/moranga é um prato famoso no Haiti, que antes da independência só era tomada pelos colonos. A sopa é um costume das famílias haitianas, feita todo 1 de janeiro, como uma forma de simbolizar a independência do país, declarada nesse dia em 1804.

Além de um país cheio de belas paisagens e pontos turísticos, o Haiti tem o gênero musical Compas Direct, fundado por Jean-Baptiste como um dos mais ouvidos da região. O carnaval do Haiti é outra manifestação cultural importante. O evento ocorre ao longo de várias semanas a cada ano, e é influenciado pelos costumes, música haitiana e pelo vodu.

Em 2001, Jean Bertrand Aristide retornou ao poder para um mandato marcado pelo caos político, fraudes eleitorais e repressão. Em 2004, ele sofreu outro golpe de Estado e deixou o país. No seu lugar assumiu Boniface Alexandre, presidente da Suprema Corte Haitiana, que solicitou auxílio à ONU. Em um primeiro momento, a organização estabeleceu uma força de paz provisória composta por múltiplas nações que prepararia a ilha para a chegada da Missão das Nações Unidas para a Estabilização do Haiti (MINUSTAH), que permaneceria originalmente no país até 2017.

O núcleo da MINUSTAH era composto pelo Core Group, constituído por Argentina, Brasil, Canadá, Chile, Estados Unidos e França. De acordo com dados do Ministério da Defesa do Brasil, ao menos 37.449 brasileiros participaram da missão.

A MINUSTAH deveria ter sido encerrada em 2008, mas o terremoto de 2010 estendeu a missão, pois o país estava em situação de grande instabilidade e precisaria ser em boa parte reconstruído. O tremor de 7.3 graus na escala Richter causou a morte de aproximadamente 230 mil pessoas e deixou mais de um milhão de desabrigados na ilha.

Desde o começo a MINUSTAH foi alvo de críticas, especialmente por haitianos que já haviam vivido sob intervenção estrangeira. Diversos capacetes azuis, como eram conhecidos os soldados da missão, foram denunciados por abuso e estupro.

Reprodução/Wikimedia Commons 8 REVISTA BABEL revolução haitiana
JULHO 2024 9 “
revolução haitiana
TADEU MACIEL

Mais do que religião,

VODOU

Repórter ANA PAULA ALVES Edição NATÁLIA MILENA

Essencial na construção cultural, histórica e revolucionária do Haiti, entenda a religião da primeira república a ser livre, ao mesmo tempo, do sistema colonial e do regime escravocrata na América Latina

vodou esteve presente durante toda a trajetória do Haiti, desde o período colonial. A religião foi uma das responsáveis por unir a população escravizada e manter vivas sua cultura e formas de pensar.

“Não dá para contar a história do Haiti sem falar do vodou”, afirma Armstrong Santos, doutorando em Letras e professor de História na Universidade Federal do Acre (UFAC).

No contexto colonial, a metrópole tomou medidas para dificultar qualquer forma de articulação da população escravizada e acabar com qualquer perspectiva de um futuro livre. Isso incluiu a proibição de suas línguas nativas e da manutenção de laços com seus locais de origem, ancestrais e famílias.

Ainda assim, esses diversos povos resistiram ao sistema de opressão em que viviam, criando formas de se comunicar e se articular. Entre elas estava o vodou e o créole, uma língua incompreensível para os colonizadores.

Disfarçados e aproveitando brechas no sistema colonial, eles exerceram suas crenças e se reuniram, com celebrações, danças, cantos e até na incorporação e ressignificação de elementos católicos.

E quando os questionamentos e revoltas contra o sistema colonial e escravista começaram a crescer, o vodou também esteve profundamente relacionado ao movimento revolucionário.

O primeiro grande levante, em 1757, é guiado pela figura de Makandal. Ele foi um grande Oungan, sacerdote no vodou, com conhecimento do uso de ervas, tanto para remédios quanto para venenos. E por meio deles, ele começa um grande movimento de mortes de senhores de escravos através de envenenamentos.

Em 1758, Makandal foi capturado e executado. Mas a mística em torno dessa figura histórica com poucos registros cresceu ainda mais. Muitos acreditavam que, em sua execução, ele se transformara em um mosquito. A crença é associada ao surto de malária vivido posteriormente, que matou milhares de europeus.

Já em 1791, foi realizado um pacto vodou, guiado pelo Oungan Boukman, em que se comprometia a libertar todos e não permitir a volta da escravidão. Considerado um dos grandes marcos e catalisadores para a Revolução Haitiana, o pacto tinha como objetivo “acabar com tudo que é branco, o que significava[, além de] matar os brancos e também acabar com todo o sistema de opressão que existia ali”, explica o professor Armstrong. Em pouco tempo, Boukman também foi executado por seu papel nos movi-

ELES IRIAM CRIAR UMA REPÚBLICA, LIVRE E NEGRA — AQUILO QUE NÃO SE PODIA PERDOAR.

ARMSTRONG SANTOS

mentos contra a metrópole colonial. Mas assim como Makandal, a mística da sua figura cresceu, fazendo com que ele se tornasse mais um símbolo para os revolucionários.

Apesar disso, a religião continuou a ser perseguida, mesmo após a derrota da metrópole colonial. Isso devido à grande presença católica no Haiti e aos resquícios da colonização, que não aceitava o caráter revolucionário que a religião carrega. Armstrong diz que “o colonialismo não terminou após a independência, ele é o colonialismo do ser, dos saberes, dos gestos, a gente é colonizado”. E entre as consequências disso, a visão do vodou como algo maligno permanece na sociedade.

VODOU É PRA JACU?

Muito da visão que temos do vodou é fruto das representações distorcidas na mídia estadunidense, produzidas principalmente durante o século XX, após a invasão e ocupação do Haiti pelos Estados Unidos, em 1915.

Sempre associado ao mal, o vodou aparece como uma “magia negra”, em todos os significados da expressão. Desenhos antigos, como Pica-Pau (1962), filmes de terror, como Brinquedo Assassino (1988), e até filmes mais recentes, como A princesa e o sapo (2009), da Disney, são exemplos dessa representação estereotipada. E nada disso se aproxima do que o vodou realmente é. Outro exemplo nas telas são as bonecas espetadas por alfinetes para atingir alguém, prática que tradicionalmente não existe no vodou. As bonecas que existem costumam ser utilizadas como amuletos, por exemplo, para cura, prosperidade e amor. Ou até para a comunicação com os antepassados. O zumbi é mais um conceito retirado do vodou. A zumbificação existe dentro do imaginário vodou, mas não é uma prática comum. Ela consiste em enfeitiçar alguém para tirar a sua vontade e forçá-la a trabalhar. A alma da pessoa fica presa, impedida de seguir seu caminho, sem domínio sobre o próprio corpo. Dessa forma, o zumbi não fala, não pensa, só faz zumbidos. Armstrong diz que “o zumbi pode ser pensado como uma metáfora à escravidão. O grande medo das pessoas é perder a própria autonomia”, ou seja, retornarem a um estado de escravização, sem domínio sobre si e forçadas a trabalhar para quem as “enfeitiçou”. Apesar disso, o morto-vivo se espalha pelo gênero de terror e posteriormente na cultura pop, completamente esvaziado de seus significados originais.

ALÉM DOS ESTEREÓTIPOS

Entre muitas coisas, o vodou é sobre cuidar e manter a relação com os espíritos, com os antepassados e com a própria terra. Nele, os espíritos são chamados de Lwa, os intermediários entre os seres humanos e o deus criador, chamado de Bon Dieu (bom deus). A figura de deus no vodou é muito abstrata, com o qual não se pode falar diretamente ou tratar sobre preocupações comuns. Os Lwa são mais acessíveis aos humanos e interagem diretamente com o nosso mundo, inclusive através de possessões realizadas em cerimônias. Cada família ou indivíduo tem seus próprios Lwa, a quem servem e buscam suporte.

Cortesia/Flávia Dalmaso Casa dos lwa, quarto
onde se guardam os objetos dos lwa.
O “
JULHO 2024 11 revolução haitiana revolução haitiana

Interior da casa dos lwa, localizada em um ounfó de Jacmel.

Além deles, o vodou também cuida dos antepassados, que não necessariamente se tornam espíritos Lwa, embora isso também possa acontecer. E quando se tem uma terra grande o suficiente, é comum enterrar seus mortos e fazer túmulos nela, que são cuidados e servidos por alguém da família.

Existem diferentes visões do pós-morte: alguns veem como estar “debaixo d’água”, outros têm a concepção da volta para Guiné, como um retorno espiritual para terras ancestrais na África. Acredita-se que os Lwa seguem por toda a família através de cada geração,

VOODOO, HOODOO, VODU OU VODOU?

VODU

É a forma escrita mais comum a ser utilizada no Brasil, já que é adaptada ao português. É uma grafia muito próxima ao termo original.

VODOU

É a forma de escrita em créole haitiano, língua oficial do país. Esta reportagem se refere ao vodou que surge e é praticado no Haiti, portanto essa é a grafia utilizada ao longo do texto.

como herança. Flávia Dalmaso, doutora em Antropologia Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, afirma que “o sangue carrega história, carrega espírito”. Os Lwa são parte da família, eles comem, bebem, moram na terra e têm necessidades. E alguém deve ser responsável por esses cuidados.

Eduardo Regis, Oungan e doutorando em Ciências da Religião na Universidade Federal de Juiz de Fora, diz que grande parte das cerimônias vodou são para celebrar e honrar os Lwa ou os antepassados, e descreve um pouco de como realiza as cerimônias no Ounfó, templo vodou: pri-

meiro, abre-se com invocações e rezas, a saudação aos quatro cantos, o mundo, e ao Poto mitan, poste central no Ounfó que liga o mundo visível e invisível e permite a entrada e saída dos Lwa. Depois disso chama-se os Lwa com canções, danças e vevés, símbolos que os representam, normalmente desenhados no chão com farinha de milho. Também se oferece comidas ou bebidas que os Lwa apreciam. Durante a cerimônia, pode ocorrer a possessão, quando um Lwa “baixa” em alguém e, através dessa pessoa, ele pode interagir, dançar, falar com os outros participantes ou fazer limpezas.

O VODOU É UMA TECNOLOGIA DE COMUNICAÇÃO COM O MUNDO INVISÍVEL.

com os povos escravizados que conheciam a religião e a necessidade de disfarces para evitar repressões. É comum o uso de rezas católicas nas cerimônias ou de santos representando os Lwa. Existem, inclusive, sacerdotes que transitam entre as religiões.

Segundo Armstrong, uma das bases do vodou é a incorporação do outro. “Quando eu incorporo essa diversidade, isso me acrescenta. É a lógica ocidental colonial que diz que a diversidade me diminui, pelo aspecto da pureza”. O vodou não tem intenção de ser uma religião “pura”, ele é feito por vários povos, com influência diversas.

ESTÁ NA VIDA, NA CULTURA, NO COTIDIANO

VOODOO

É uma forma de escrita muito utilizada nos Estados Unidos. É associada aos estereótipos criados e disseminados pela mídia estadunidense. Por isso, essa grafia pode ser considerada ofensiva.

HOODOO

Além de enfrentar a mesma problemática do anterior, com o uso associado a estereótipos, o termo se refere às práticas de magia popular, que não necessariamente se associam à religião.

As práticas do vodou e suas cerimônias são marcadas por uma grande heterogeneidade e variam muito de região para região ou até de Ounfó para Ounfó. “Cada um tem o seu jeito de fazer as coisas, não existe um dogma, uma liturgia única, isso não está escrito”, afirma Flávia.

O vodou não é formalizado por um livro com regras e dogmas, como a Bíblia, por exemplo. As práticas foram passadas principalmente de forma oral. Logo, dentro do Haiti, existem diversas formas de praticar o vodou.

Dentro delas, o sincretismo com o catolicismo é muito presente e não é considerado uma perda ou problema. Ele surgiu

Religião não é suficiente para definir o que o vodou representa. No ocidente, a religião é lida como um esfera separada da “vida mundana”, com espaço e momento específico para ser celebrada. O vodou transcende esse conceito. Eduardo considera que “não dá para separar a sua vida de maneira tão sistemática”. O vodou aparece de diversas formas dentro do cotidiano, principalmente no Haiti. Está presente na visão de mundo, na espiritualidade e dentro da família, independente de ser vodouizante ou não. O vodou acaba se tornando um termo amplo, que varia de pessoa para pessoa. Alguns vão considerar um banho de ervas curativo como uma prática vodou, outros como um tratamento alternativo. Muitos cristãos não vêem problema em buscar serviços do vodou para resolver alguma questão, alguns deles nem consideram isso como vodou. Além de que muitos ritos do vodou são praticados de forma doméstica.

Segundo Eduardo, os espíritos estão presentes no cotidiano, eles têm agência e existência. O mundo deles e o nosso estão em continuidade, um influencia o outro a todo momento. “Isso tudo muda a sua vida e a sua maneira de pensar. É viver dentro de uma realidade mais ampla e mais rica”.

O serviço aos espíritos é essencial e não é uma prática limitada pela religião da pessoa. Tanto alguém voudouzante como alguém cristão podem “servir aos espíritos”, Flávia explica.

O vodou, dessa forma, influencia toda a cultura, relações familiares, relações com a terra, história e política haitianas. Porém, sua institucionalização serve para garantir reconhecimento e direitos políticos para algo que até hoje é visto como um culto a demônios e rituais malignos, principalmente por parte de Igrejas protestantes e neopentecostais dentro e fora do Haiti. A variedade de práticas do vodou é ainda maior nos países para onde ele se expandiu. Eduardo diz que “não dá para fazer o vodou haitinano no Brasil igual se faz no Haiti. Não é idêntico e não é para ser idêntico”. A aproximação com os espíritos acontece de formas diferentes e por razões diferentes, além de existirem outras variações nas práticas.

Existem vodouizantes que são contra a presença de estrangeiros no vodou haitiano, para proteger suas tradições e cultura. Assim como existem Ounfós com restrições próprias sobre quem eles aceitam. Mas, no geral, nada impede alguém de estudar e se inserir nas práticas do vodou, desde que feito com respeito e responsabilidade.

É essencial reconhecer que o vodou é uma forma de resistência negra, um modo de enxergar e existir no mundo, uma ligação com espíritos e ancestrais. Parte de uma história e cultura riquíssimas.

Cortesia/Flávia Dalmaso
Cortesia/Flávia Dalmaso
Pintura de um dos vevés, símbolos que representam os lwas.
12 REVISTA BABEL JULHO 2024 13 revolução haitiana revolução haitiana
EDUARDO REGIS

Na literatura de ficção latino-americana, ser perseguido por fantasmas e borboletas é normal é normal

em um mundo fantástico Era uma vez,

Gabo, Allende,

Carpentier, Llosa, Veiga, Sabato, Donoso

Repórter ISABELLA APARECIDA Edição e arte SARAH LÍDICE

JULHO 2024 15 literatura literatura 14 REVISTA BABEL

Hhá muito tempo histórias que transcendem os limites da realidade têm fascinado a humanidade. Mundos mágicos como a cidade de Macondo de Gabriel García Márquez, criaturas fantásticas e eventos inexplicáveis, tal qual conversar com espíritos, são elementos comuns nesse tipo de narrativa.

Na América Latina, a literatura fantástica encontrou um solo fértil nas tradições e costumes locais, como os festejos católicos e indígenas, a culinária típica, o consumo de frutas e as diferenças entre os países do Caribe e dos Andes. Outra característica marcante desse tipo de escrita é a presença do realismo mágico.

De acordo com Rita de Cássia Miranda Diogo, pesquisadora em Estudos Decoloniais e professora aposentada da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, trabalhar com elementos do fantástico e do sobrenatural, como assistir uma mulher se transformar em uma enorme árvore após falecer, é lidar com a nossa história como latino-americanos, que costuma ser “higienizada” pelo discurso histórico.

O realismo mágico mescla elementos da realidade com elementos mágicos de forma natural dentro do contexto da história. Os personagens lidam com eventos extraordinários como se fossem parte do dia a dia. O dilúvio que acomete Macondo durante quatro anos, onze meses e dois dias ininterruptos é um exemplo disso.

“A narrativa fantástica é um tipo de literatura que questiona os pressupostos racionais com os quais nós pensamos o Reprodução/Carybé/Editora

CONHECER A AMÉRICA LATINA

SIGNIFICA

CONHECER

MELHOR A NÓS

MESMOS, NO

BRASIL; SIGNIFICA

SABER O QUE FAZ

SENTIDO, AQUI; QUAIS CAMINHOS

NÃO SERÃO

ARMADILHAS

PARA NÓS.

mundo. A razão não pode explicar tudo”, comenta Ana Cecília Olmos, especialista em literatura e cultura hispano-americana do século XX e professora da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP. Entre os nomes mais conhecidos da literatura fantástica latino-americana destacam-se Alejo Carpentier, Julio Donoso, José J. Veiga e Gabriel García Márquez, laureado com o Prêmio Nobel de Literatura em 1982 e reverenciado pela habilidade em entrelaçar o extraordinário ao cotidiano. Anna Raíssa Guedes, revisora e apresentadora do podcast Suposta Leitura, relembra que crescemos escutando histórias de pessoas que fazem mágica, conversam com espíritos ou que morreram de uma forma insólita. “Isso causa uma aproximação, é um mágico que não nos leva para um mundo de fantasia, a fantasia é aqui.” Durante o século XX, autores como

Gabo, Mario Vargas Llosa, Ernesto Sabato e Isabel Allende utilizaram as ditaduras de plano de fundo em suas obras. A escrita fantástica serviu como uma forma de escapismo da repressão, além de permitir a crítica disfarçada dos eventos em curso. O realismo mágico era usado como ferramenta para transmitir críticas sociais e políticas de maneira metafórica sem que os escritores fossem censurados pelas autoridades.

No livro A Casa dos Espíritos (1982, Bertrand Brasil), de Isabel Allende, observamos toda a preparação para o golpe que instaurou a ditadura chilena. Já em O outono do Patriarca (1976, Record), de Gabriel García Márquez, acompanhamos a história de um ditador centenário e cruel que governa um país na região do Caribe. A literatura fantástica da América Latina se diferencia do material produzido no restante do globo por trazer uma maior conexão com as tradições orais e folclóricas e uma tendência em desenvolver temas como política, história e identidade por meio de alegorias mágicas.

Segundo Lucas Mota, escritor e também apresentador do podcast Suposta Leitura, mesmo adorando Senhor dos

Anéis (1954), de J.R.R. Tolkien, trilogia que figura entre as mais aclamadas de fantasia já escritas, existia uma distância cultural ali. “Quando eu peguei Cem Anos de Solidão para ler pela primeira vez, um livro com características muito próprias da Colômbia, parecia que eu era vizinho dessa galera. Macondo estava bem mais próximo de mim do que o Gandalf, o Bilbo e o Frodo.”

VALORIZAÇÃO

Reconhecer a literatura fantástica da América Latina é essencial para a compreensão das questões sociais e políticas da região. Além de celebrar as diferentes tradições que compõem a identidade latino-americana e mostrá-las ao mundo. Para René Duarte, fundador da Editora Peabiru, especializada em escritores e obras da América Latina, publicar novos autores latino-americanos faz parte de um projeto amplo, não só editorial, mas sobretudo político. “É preciso reivindicar a identidade latino-americana como uma identidade periférica, marginalizada, mas, ao mesmo tempo, inclusiva, múltipla, potencialmente vigorosa e essencialmente revolucionária.”

Record
Reprodução/Carybé/Editora Record
JULHO 2024 17 literatura literatura 16 REVISTA BABEL

flores amarelas

Onde as não murcham

Dez anos da morte de García Márquez são marcados por livro póstumo e série da Netflix

Repórter LÍVIA MAGALHÃES

Design e arte BRENNA ORIÁ

Muitos anos depois da morte de Gabriel García Márquez, um ex-aluno do autor havia de se recordar da Casa Branca. Não o lar neoclássico de presidentes estadunidenses, mas a residência sazonal de um escritor latino-americano em Cuba. A casa ganhou essa alcunha porque era impossível descrevê-la melhor: as paredes eram brancas, os móveis, o sofá, as cortinas. A única coisa que destoava eram as flores amarelas, imprescindíveis para que o autor exercesse seu ofício.

Gente que é gente é cheia de mania, e o Gabo não era diferente. Se questionado porque só escrevia ao lado de flores amarelas, impacientava-se, jocoso, com a pergunta besta: “como assim não escrever com flores amarelas?”.

“Ele era muito louco, mas muito metódico”, conta o ex-aluno de García Márquez e cineasta cearense Marcus Moura. O método associado à genialidade deu frutos: foram mais de trinta obras publicadas, pelo menos 10 adaptações cinematográficas, a Fundação Gabo pelo bom jornalismo ibero-americano, além de uma escola de cinema fundada: a EICTV, em San Antonio de Los Baños, Cuba.

Abril de 2024 marca os dez anos do falecimento de Gabriel García Márquez. Em clima de aparente homenagem, novidades são anunciadas no nome do autor: a obra póstuma Em agosto nos vemos chegou nas livrarias do mundo todo no dia seis de março, aniversário do escritor; e, no mês seguinte, saiu o trailer da adaptação de Cem Anos de Solidão para Netflix. Além da autoria, o que ambos os lançamentos têm em comum é que Gabo não os desejou em vida. Distante da Macondo de outros livros, Em agosto nos vemos ocorre numa ilha caribenha na qual as maiores fantasias se passam na cabeça da nossa protagonista.

ALÉM DA AUTORIA, O QUE AMBOS OS LANÇAMENTOS TÊM

EM COMUM É QUE GABO NÃO

OS DESEJOU EM VIDA

Todo ano, Ana Magdalena Bach anseia pela caída da noite do dia de agosto em que deixa um ramo de gladíolos sob o túmulo da finada mãe.

O costume fúnebre rapidamente se torna um escape para a protagonista (mais rápido do que o leitor apaixonado gostaria: são pouco mais de cem páginas de espaçamento grande e letras ainda maiores). Em uma de suas visitas à ilha, Ana “tem uma inspiração”, como a própria personagem admite, e toma a iniciativa a uma noite de paixão apressada com outro hóspede de seu rotineiro hotel. A ode à mãe vira atividade secundária nos agostos seguintes de celebrado prazer, e toda vez Ana volta à cidade, à casa, à família, ao marido, mudada.

A sensibilidade do autor conta um conto de desejo feminino geracional, sempre saciado em recôndito segredo. O próprio nome Ana Magdalena Bach, apesar de uma homenagem à família musical Bach, também carrega o simbolismo bíblico mais óbvio possível: quem representa mais a dualidade entre o sagrado e o profano do que Maria Madalena e, principalmente, as representações midiáticas da personagem? No fim, a santa é beatificada; e a outra não encontra nossos julgamentos, mas nossa simpatia. García Márquez, que trabalhou no livro durante anos, achou que as palavras finais em relação à obra seriam as que proferiu: “Este livro não presta. Tem que ser destruído”. Os filhos do autor, responsáveis pelo exemplar que temos em mãos, definem a publicação de Em agosto nos vemos como um “ato de traição” ao pai, mas se justificam nas esperanças de que os leitores apreciem o livro e, assim, sejam perdoados. Embora não tenhamos o Gabo lapidado que vemos nas suas obras mais primorosas, ainda temos, afinal, o Gabo. Em nota da edição original, o editor Cristóbal Pereira narra a cronologia da criação de Em agosto nos vemos, tanto antes da morte de García Márquez como após. Nesta obra, Cristóbal se diz um restaurador diante da tela de um grande mestre. Restaurações, contudo, visam preservar e recuperar obras já terminadas, mas danificadas pelo

resenha JULHO 2024
Cortesia/Editora Record

tempo ou condições adversas. O processo deste livro, por sua vez, lembra mais o trabalho do mestre escultor Rodin, que delegou, no mínimo, o refino das mãos e dos pés na obra prima Porta do Inferno à aprendiz (e igualmente genial) Camille Claudel. Ainda que Rodin o tenha feito por opção (Gabo era conhecidamente ciumento do próprio trabalho), me parece que o resultado foi semelhante. Porta do Inferno ainda é Rodin, assim como Em agosto nos vemos ainda é Gabo.

Vemos o processo de edição a partir das notas de Gabo nas quatro páginas de fac-símiles inclusas no final do livro, talvez o maior presente para os fanáticos do Nobel latino-americano.

Marcus Moura não leu Em agosto nos vemos, mas ouviu. Da boca do próprio autor, que ansiava pela aprovação de seus ouvintes como se os incontáveis prêmios e recordes de vendas não dissessem nada a respeito de seu talento. Moura fez parte da primeira geração de alunos brasileiros graduados na EICTV, em 1990. Durante o curso regular, não foi aluno do Gabo, mas quase quinze anos após a formatura, foi selecionado para participar de uma oficina especial ministrada pelo autor, famosamente chamada “Como contar um conto”. E lá ele conheceu Ana Magdalena Bach. Todo ano, eram dez, doze premiados. “O critério era dele”, conta Moura, “eu

Na foto acima: Wolney Oliveira, Amaury Candido, Jane Malaquias, Marcos Moura e Valderi Duarte, o primeiro grupo de alunos brasileiros da EICTV - Inauguração 1986.

Cortesia/Editora Record

entrei quando ele decidiu que o critério seria ‘ex-alunos do curso regular que escreveram algum livro ou roteiro de filme que foi gravado’, mas já teve turma só de mulheres com mais de 40 anos que escreviam novela… outras vezes era mais geral”. Enquanto Moura estava na oficina, foi convidado para dar aula na faculdade, e ocupou a cátedra de Direção.

Com maior proximidade do ídolo (e patrão), e munido de um aguçado senso de oportunidade, Moura foi um dos cineastas que pediram os direitos de gravação de Cem Anos de Solidão A fila era grande e célebre: Coppola tinha interesse, além de um Kurosawa que visionava uma releitura japonesa desse romance essencialmente latino-americano. No mínimo, interessante. Mas Gabo ria e dava uma desculpa fajuta: “Imagina o que vão dizer lá em Aracataca!”, referindo-se à cidadezinha onde cresceu e fonte inspiradora para Macondo. Essa rejeição ao cinema foi um ato de vingança. Antes de ser O Gabriel García Márquez, Gabo vivia escrevendo roteiros baratos para a indústria cinematográfica mexicana. Muito do que entrou na história dos Buendía foi o que não emplacou nos roteiros. “Quando eu vi o trailer [da adaptação pela Netflix], só me lembrei dele dizendo, em aula, que nunca iria dar os direitos de Cem Anos”.

Podemos nos apoiar na noção reducionista, ainda que não de toda errada, de que o dinheiro é a força motriz que move tudo. Capitalizar na morte alheia é um comportamento que categorizamos rapidamente como repulsivo, e ao pegar Em agosto nos vemos para ler, tive a esperança masoquista de não apreciá-lo. Essa teria sido a reação apropriada. Mas voltar para a prosa de Gabriel García Márquez, depois de tanto tempo, é um prazer maior do que qualquer dilema ético.

Já em relação à adaptação para Netflix, temos um desrespeito claro do desejo de um artista durante toda a vida dele. No caso de Em agosto nos vemos, Gabo trabalhou na obra com o objetivo de que fosse lançada, e desistiu dela posteriormente. Os filhos do autor argumentam que, por causa da velhice, ele estava senil demais para compreender a qualidade literária da obra póstuma, e por isso o lançamento seria adequado. Já para Cem Anos de Solidão, não é possível dar a mesma desculpa. A vontade do criador foi desconsiderada quando ele não tinha mais possibilidade de se defender. Para nosso bem, nos apeguemos ao otimismo: que uma nova geração visite Macondo e isso estimule a leitura deste

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resenha
Cortesia/Abaré Editora
DOSSIÊ Reprodução/Wikimedia Commons Reprodução/Renato Laky/Pixabay Reprodução/Urânio Filmes Ltda

G E L e IA G E RAL

A resistência cultural na ditadura militar foi plural, cheia de nuances políticas e estéticas, enquantoartistas buscavam diferentes respostasao cerceamento da época.

Repórter DIOGO BACHEGA

Edição e arte MATHEUS NISTAL

acabou nosso carnaval/ Ninguém ouve cantar canções/ Ninguém passa mais brincando feliz/ E nos corações/ Saudades e cinzas foi o que restou”. Anterior ao regime militar, a letra de Marcha da Quarta-Feira de Cinzas, de Vinicius de Moraes, parece prever o momento vindouro. A esperança anunciada nos versos “A tristeza que a gente tem/ Qualquer dia vai se acabar”, levaria 21 anos para se concretizar.

A canção fez parte do espetáculo Opinião, primeira grande reação, por meio do teatro ligado à cultura de esquerda, ao golpe de 1964. Principal espaço de sociabilidade da classe média universitária, o teatro não precisou esperar a chegada do Ato Institucional Nº 5 para conhecer a mão cerceadora da ditadura.

Com estreia no Rio de Janeiro, a peça leva o nome do grupo que a organizou, uma trupe criada após o golpe e colocada na ilegalidade, formada por artistas antes ligados ao Centro Popular de Cultura (CPC), da União Nacional de Estudantes (UNE). O espetáculo contou com a direção de Augusto Boal, do paulistano e já consolidado Teatro de Arena.

O show, que iniciava a tradição dos

AS NOSSAS RIQUEZAS, AS NOSSAS CARNES, AS VIDAS, TUDO! VOCÊS VENDERAM TUDO! AS NOSSAS ESPERANÇAS, O NOSSO CORAÇÃO, O NOSSO AMOR, TUDO! VOCÊS VENDERAM TUDO!

TERRA EM TRANSE, de Glauber Rocha

Reprodução/Difilm
golpe de 64 golpe de 64 22 REVISTA BABEL JULHO 2024 23

Maria Bethânia substituiu Nara Leão no espetáculo Opinião, com seu “talento dramático que Nara estava longe de possuir”, nas palavras de Caetano Veloso.

musicais de protesto, buscava encontrar uma resposta para o novo regime na união de classes, política defendida pelo Partido Comunista Brasileiro (PCB), com o qual o CPC era alinhado. Numa decisão nada arbitrária, escolheu como protagonistas, nas primeiras encenações, Zé Kéti, João do Valle e Nara Leão — um sambista do morro, um camponês do norte e uma jovem da classe média. O trio interpretava canções do repertório de Valle, músicas da cultura popular e composições dos bossanovistas — entre elas, a música de Vinicius de Moraes, com melodia feita por Carlos Lyra. “Nas mais diversas áreas da cultura, havia uma ideia de revolução brasileira que passava também pela utopia de aproximar os artistas e intelectuais do povo”, conta Marcelo Ridenti, professor do curso de Sociologia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). “Usando a metáfora do Rio de Janeiro: aproximar a favela do asfalto”, explica Ridenti. Um ano depois, outro espetáculo, Arena Conta Zumbi, sob a batuta do mesmo Boal, traria outra leitura do momento. A peça buscava, no Quilombo de Palmares e no líder do movimento, uma forma de dizer que as tentativas de alianças de classe, que pautaram a política do Partido Comunista Brasileiro até então, abriram espaço para o golpe militar. Ainda que com visões opostas, as duas peças ajudam a dar a largada para a resistência cultural dos anos seguintes.

A CULTURA TOMA A FRENTE

Uma forma de entender o florescer cultural no início da ditadura militar é pensar na arte e na intelectualidade como, a um só tempo, os espaços que sobraram para a resistência — uma vez que os movimentos operários, camponeses e populares foram brutalmente combatidos desde os primeiros dias do regime — e o principal ambiente de uma análise de trajetória da esquerda vencida.

O governo de João Goulart representava uma guinada em direção aos interesses desse grupo e, o interrompimento dessa virada, ainda mais com pouca resistência do presidente, causou perplexidade. É o que explica Marcos Napolitano, professor do curso de História da Universidade de São Paulo, no livro Coração Civil (2017, Intermeios), que investiga a vida cultural brasileira no regime militar.

A obra, publicada originalmente em 2010, é valiosa por destacar um aspecto por vezes ignorado da resistência artística da época: foi um período marcado por pluralidade, com diversos grupos e artistas propondo diferentes formas de responder ao terror instaurado.

Os primeiros anos da ditadura militar, que antecedem o decreto do AI-5, são marcados por uma censura mais desarticulada. A lei de janeiro de 1946, que previa o controle das diversões públicas e havia sido decretada no primeiro ano do governo Dutra, era o único instrumento que o governo militar tinha à disposição, numa época em que ainda se buscava ares de legalidade para o golpe.

A arte engajada desse período se dividia entre a tentativa de continuar os projetos anteriores ao golpe e de processar a derrota da intelectualidade de esquerda, explica Napolitano, em entrevista à Babel.

“O chamado ‘nacional-popular’ de esquerda dava o tom na música e no teatro, principalmente. Nestas duas áreas, o tema da resistência era mais forte. No cinema, apesar das continuidades estéticas do cinema autoral que marcou o movimento do cinema novo, o tema era a 'derrota' e os impasses vividos pelos intelectuais”, afirma Napolitano. “Na literatura, idem. Nas artes visuais, o figurativismo e a Nova Objetividade tentam responder ao dilema de conciliar experimentalismo e crítica à ditadura às novas realidades impostas pelos meios de comunicação de massa no campo cultural”.

Augusto Boal esteve entre os vencedores de 1963 do Prêmio Molière, um dos mais prestigiosos do teatro

Essas disputas invadiriam os festivais de música, organizados pelas emissoras Excelsior, Record e Globo. O terceiro Festival de Música Popular Brasileira da Record, de 1967, é simbólico dentre eles por ter tido em seu páreo Ponteio, de Edu Lobo e Capinam, a canção vencedora, Domingo no Parque, de Gilberto Gil, Roda Viva, de Chico Buarque e Alegria, Alegria de Caetano Veloso.

Briga parecida percorria as outras artes. Plínio Marcos, Oduvaldo Vianna Filho e Augusto Boal, nomes de peso do teatro nacional, discordavam em pontos essenciais, como na defesa da luta armada, mas se uniam na rejeição ao trabalho de José Celso Martinez Corrêa, o Zé Celso, do Teatro Oficina, e as encenações agressivas, vistas por muitos como prejudiciais ao projeto de conquistar o público para as lutas de resistência.

No cinema, Terra em Transe (1967), de Glauber Rocha; Vidas Secas (1963), de Nel-

O ecletismo e a busca de caminhos para a resistência artística pautaram a arte nacional engajada dos anos 1960. Na música, artistas como Geraldo Vandré, defensores das canções mobilizadoras, se opunham à contracultura tropicalista, que devorava elementos da cultura estrangeira e abraçava o iê-iê-iê da Jovem Guarda, tida por muitos como alienada e pró-situação.

son Pereira dos Santos; e Os Fuzis (1964), de Ruy Guerra foram marcos do Cinema Novo, e Bandido da Luz Vermelha (1969), de Rogério Sganzerla, se tornaria um marco do Cinema Marginal. Os dois movimentos se opuseram, porém ambos tinham atrito com um terceiro movimento, um cinema engajado mais tradicional, defendido por artistas ligados ao CPC da UNE.

“A partir de 1968, essa crítica cultural se radicaliza, com o Tropicalismo, que coloca em xeque as bases da arte engajada de esquerda e a visão essencialista da cultura brasileira, também compartilhada pela direita. O ano de 1968 é marcado por um grande debate sobre os rumos da arte engajada, tanto no plano dos temas e abordagens, como no plano estético”, diz Napolitano.

Caetano Veloso, Gilberto Gil, Tom Zé e Gal Costa, tropicalistas, e também Os Mutantes de Rita Lee e a bossanovista Nara Leão lançam, em julho do mesmo ano, Tropicália ou Panis Et Circenses, disco-manifesto do movimento de contracultura.

O álbum tomou seu nome da instalação de Hélio Oiticica, um dos nomes mais inventivos das artes plásticas da época, cujo

O MONUMENTO NÃO TEM PORTA/ A ENTRADA DE UMA RUA ANTIGA, ESTREITA E TORTA/ E NO JOELHO UMA CRIANÇA SORRIDENTE, FEIA E MORTA / ESTENDE A MÃO.
Reprodução/Acervo Nacional
TROPICÁLIA,
de Caetano Veloso
Reprodução/Fundo Correio Nacional JULHO 2024 25 golpe de 64 24 REVISTA BABEL golpe de 64

Caetano Veloso no 3º Festival da Música Popular, em 1967

DA VELA, de Oswald de Andrade

projeto conversava com o dos músicos. Um ano antes, o Teatro Oficina, grande representante da contracultura e do tropicalismo nas artes cênicas, levava pela primeira vez ao palco O Rei da Vela, peça irreverente escrita em 1933 por Oswald de Andrade. A encenação despertou o interesse da classe média e incendiou a cena cultural, dividindo artistas e intelectuais entre os interessados na agressividade da trupe e os que a viam como leviana e alienada.

O restante da contracultura foi alvo de críticas parecidas vindas da esquerda nacionalista, principalmente dos setores ligados ao Partido Comunista Brasileiro.

O ano de 1968, no entanto, foi marcado por outro grande acontecimento na história brasileira. No dia 13 de dezembro, o presidente Artur da Costa e Silva decretou o Ato Institucional nº 5, abrindo a era mais repressiva da ditadura militar.

O AI-5 permitiu que o presidente retirasse os direitos civis de quaisquer cidadãos, interviesse em estados e municípios e cassasse mandatos do

A GENTE QUER TER VOZ ATIVA/ NO

NOSSO

DESTINO

MANDAR/ MAS EIS QUE

VIVA, de Chico Buarque

legislativo. Munida de novos poderes, a ditadura entrou num momento ainda mais agressivo de censura e cerceamento de liberdades.

“O AI-5 atinge todas as manifestações e correntes engajadas, seja o campo nacional-popular, sejam as vanguardas mais radicais. A censura recairá sobre todos. Ao mesmo tempo, se aprofunda a percepção dos impactos da modernização no campo cultural, com a televisão e a indústria cultural como um todo sendo o espaço de atuação destes artistas, que já não podiam atuar em movimentos sociais ou sindicatos”, diz Napolitano.

NOVO CENÁRIO, NOVOS CAMINHOS

Após o decreto do AI-5, o experimentalismo radicaliza, com o Cinema Marginal, o Conceitualismo e outras vanguardas mais radicais. "Para estes, era preciso reinventar as formas e a função da arte na sociedade, ao mesmo tempo que se combatia o moralismo imposto pela ditadura”, conta Napolitano.

“Muitos artistas tiveram que fugir do Brasil porque estavam sendo perseguidos. A repressão que era forte se tornou quase insuportável, quebrando esse florescimento cultural que vinha desde o começo dos anos 1960”, complementa Ridenti.

Após o decreto, os artistas tiveram que encontrar respostas para o novo momento do país. No começo dos anos 1970, rusgas entre criadores de tendências diferentes atenuaram-se, ainda que nunca tenham sumido completamente. Nessa época, o artista engajado — e a arte que buscava

representar o popular — precisam se adequar à modernização que mudava a face do país, e o experimentalismo passa a ser mais aceito entre essa vertente.

“Por volta de 1972 o tema da frente cultural ganha espaço, unificando todas as correntes, defendidas sobretudo pelo PCB. Há uma volta ao teatro realista, às canções de denúncia, ainda que a partir de letras sutis e alegóricas, em muitos casos, e aos filmes com temática sociológica, representando microcosmos autoritários”, explica Napolitano.

Esse seria o cenário da arte até a abertura, a partir de 1979, momento em que ela busca se aproveitar de uma maior liberdade recém conquistada, com o abrandamento da censura, para intensificar seu diálogo com as massas.

Por outro lado, para Napolitano, “explode o caso das ‘patrulhas ideológicas’, à medida que muitos artistas reclamam mais liberdade para criar, sem seguirem uma estética engajada moldada ainda nos anos 1960, como defendia a esquerda mais ortodoxa.”

“Neste momento, também temos a crise do campo ‘nacional-popular’ e a busca de novas bases conceituais e estéticas para orientar a arte engajada, como as vanguardas, a contracultura, e a cultura popular fora do mercado”, aponta Napolitano. Rock, punk e black music entram em cena. O movimento operário cresce, enquanto a hegemonia cultural da esquerda é posta em cheque. Com a abertura política, um novo cenário, com novos problemas e novas respostas, emerge.

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MEDIEVAL COMO NOSSO, QUEM SE ATREVE A PASSAR OS UMBRAIS
UMA VELA NA
HERDO UM TOSTÃO DE CADA MORTO NACIONAL!”
PAÍS
DA ETERNIDADE SEM
MÃO?
Reprodução/Arquivo Acervo Nacional REI
CHEGA A RODA VIVA/ E CARREGA O DESTINO PRÁ LÁ.
26 REVISTA BABEL JULHO 2024 27 golpe de 64 golpe de 64
RODA

PASSADO

QUE PASSA UM NÃO

Repórter LAURA GUEDES

Edição JOÃO PEDRO BARRETO

Na efeméride de 60 anos do golpe militar no Brasil e de 10 anos da Comissão Nacional da Verdade, a preservação da memória deste período ainda é um desafio por esta e pelas próximas gerações

o capitão maurício lima disse: ‘Agora você vai morrer, você já deu o que tinha que dar, agora você vai morrer.’ Pensei: ‘Graças a Deus’. Realmente, ele achou que estava me dando uma má notícia, mas era uma ótima notícia”. Este é o relato de Carlos Russo Júnior, ex-membro da Ação Libertadora Nacional (ALN), sobre a intensa tortura que sofreu por agentes do Estado durante a Ditadura Militar do Brasil. Passados 60 anos do golpe que ceifou a democracia no país por 21 anos, grupos da sociedade relativizam os horrores do período — e até pedem seu retorno. Diante de apagamentos e distorções, o Brasil ainda precisa enfrentar a memória e responder a questões deste intervalo histórico tão recente e violento, como o reconhecimento do papel do Estado nas mortes e desaparecimentos e as implicações da censura na vida política do país.

Dos instrumentos públicos para a preservação da memória, provavelmente o mais importante foi a Comissão Nacional da Verdade (CNV), instituída no governo Dilma Rousseff, em 2012. O dispositivo visava investigar as graves violações de direitos humanos praticadas por agentes públicos ou pessoas a serviço de instituições governamentais, com apoio ou interesse no Estado, entre 18 de setembro de 1946 e 5 de outubro de 1988. O relato de Russo foi um dos coletados no levantamento.

O órgão foi criado por lei e previa somente a existência, mas, em função das atividades, passaram a ser fundadas outras comissões em estados e municípios. Seja por atos go-

434

MORTES E DESAPARECIMENTOS DURANTE A DITADURA MILITAR SÃO RECONHECIDOS PELA COMISSÃO NACIONAL DA VERDADE.

vernamentais, legislativos, iniciativas de universidades ou da sociedade civil, diversos grupos emergiram em um esforço para documentar não apenas os dados, mas as histórias das vítimas e das respectivas famílias.

A CNV reconhece 434 mortes e desaparecimentos políticos durante o regime militar. Porém, “os números verdadeiros, certamente, são maiores”, afirmou Pedro Dallari, coordenador e relator da comissão entre 2013 e 2014. “Escrevemos isso no relatório final: que não era nem o começo nem o fim das apurações”, completou. Na conclusão, o colegiado propôs 29 recomendações para que não se repitam as crueldades registradas na época. No entanto, apesar de entendê-las como “robustas e consistentes”, Dallari reconhece que a maior parte não foi cumprida. Segundo da-

dos do Instituto Vladimir Herzog, apenas 2 sugestões foram colocadas em prática e 6 parcialmente realizadas, somando aproximadamente 28% do total.

AS RAÍZES DO PROBLEMA É praticamente unanimidade entre os estudiosos da Ditadura Militar que a impunidade daqueles ligados aos crimes cometidos no período é a principal raiz da problemática envolvendo a memória no Brasil. Em 1979, a Lei da Anistia foi aprovada, mas não serviu somente para os presos políticos, exilados e todos que tiveram seus direitos suspensos, também contemplando os militares. No cenário internacional, a Corte Interamericana de Direitos Humanos declarou que a Lei da Anistia impedia investigações e punições contra as graves violações do re-

Reprodução/Comissão Nacional da Verdade 28 REVISTA BABEL JULHO 2024 29 golpe de 64 golpe de 64

gime. Em 2010, o Supremo Tribunal Federal (STF) julgou e negou o pedido da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) por uma revisão na legislação.

Em 2008, o Ministério Público Federal de SP ajuizou a primeira ação civil-pública contra a União e dois militares acusados de assassinatos e torturas, o coronel Brilhante Ustra e o coronel Audir Maciel. No mesmo ano, Ustra foi apontado pela Justiça como culpado por crimes de tortura e, em 2012, condenado a pagar indenizações por danos morais.

O torturador nunca foi preso e faleceu aos 83 anos em decorrência de problemas de saúde. Suas filhas recebem até hoje do Estado uma pensão de mais de 15 mil reais cada. Estima-se que ele é responsável por 60 mortes e 500 vítimas de tortura.

A exemplo de tamanha negligência processual, a primeira vez que a justiça condenou penalmente um agente da ditadura pela participação na repressão foi em 2021. Carlos Alberto Augusto, delegado aposentado do Departamento de Ordem Política e Social (DOPS) de São Paulo, foi condenado a dois anos e 11 meses de prisão pelo sequestro e cárcere privado de Edgar de Aquino Duarte, desaparecido desde 1971.

VEIAS ABERTAS

Em outros países da América Latina, essa história foi diferente. No Chile, que viu o fim da ditadura sanguinária de Augusto Pinochet em 1990, a Suprema Corte decidiu, em 1998, que a Lei da Anistia não poderia ser aplicada aos casos de violações de direitos humanos. Durante seu governo, pelo menos 40 mil pessoas foram executadas, desaparecidas e torturadas pelo Estado por motivos políticos, revelam dados do relatório da Comissão Valech.

Já a Argentina conseguiu condenar 500 agentes que participaram da ditadura e mataram 30 mil pessoas, relembrou César Novelli, membro do Núcleo de Preservação da Memória Política (NM).

No caso dos argentinos, a historiadora Carla Teixeira aponta que o regime foi muito mais violento do que no Brasil. “A ditadura brasileira manteve uma série de instituições em funcionamento, o rasgo no tecido social na Argentina foi mais evidente. [Com a redemocratização] os generais foram presos, a população foi às ruas pedindo para que fossem mortos”, ela explicou. “A nossa abertura lenta, gradual e segura. Garantiu um controle do processo de transição para os militares”, acrescentou a pesquisadora.

DE FRENTE COM OS FANTASMAS

Com raízes comprometidas, poucos espaços de memória floresceram no Brasil. O único museu dedicado ao período é o Memorial da Resistência de São Paulo, sediado no lugar onde funcionou, entre 1940 e 1983, o DOPS de São Paulo, uma das polícias mais truculentas do país.

Em comparação, a Argentina possui cerca de 36 lugares identificados como “sítios de memória” e ligados à última

ANOS

FOI A IDADE NA QUAL O TORTURADOR CORONEL

CARLOS ALBERTO BRILHANTE

USTRA MORREU, SEM NUNCA TER SIDO PRESO.

ditadura cívico-militar. A maioria são ex-centros clandestinos de detenção que foram transformados em espaços de cultura. Os visitantes podem até mesmo observar como funcionavam os centros de tortura.

Mas é o Chile que possui um dos mais impressionantes museus de memória do mundo: o Museu da Memória e Direitos Humanos. Lá estão mais de 140 mil documentos, 39 mil fotos, centenas de depoimentos em vídeo e objetos dos desaparecidos durante a ditadura militar chilena. Quem visita pode pesquisar desde as sentenças judiciais até os lugares de detenção e as vítimas.

Já no Uruguai, o Centro Cultural e Museu Memória fica na capital e tem uma exposição permanente com objetos, fotografias e documentos. As salas contam todo o processo ditatorial — desde a instauração até a redemocratização — passando pela resistência, pela repressão e pelas histórias que até hoje nãoforam concluídas.

No Brasil, além da falta de espaços de preservação, as homenagens aos ditadores em nomes de ruas, avenidas e edificações continuam numerosas. A Ponte Rio-Niterói, que liga as duas cidades, é popularmente conhecida assim, mas o nome oficial é outro: Ponte Presidente Costa e Silva. Segundo dados do portal Agência Pública, são aproximadamente 160 km homenageando os que resistiram à ditadura contra mais de 2000 km de vias que fazem referências aos algozes. Na Marginal Tietê, em São Paulo, a Avenida Castelo Branco fica a menos de 500 metros da rua Vladimir Herzog, que homenageia o jornalista torturado e morto em 1975.

Ainda que esforços como a mudança do nome do “Minhocão” de Elevado Costa e Silva para Elevado Presidente João Goulart tenham sido realizados, a estrada para se percorrer ainda é longa.

Nesse sentido, em abril deste ano, a Comissão de Direitos Humanos do Senado

A passeata dos 100 mil foi uma das principais manifestações populares durante o regime militar e antecedeu o recrudescimento da ditadura, em 1968

aprovou uma proposta que impede o governo federal de batizar rodovias, edifícios e bens públicos da União com nomes de agentes públicos que violaram direitos humanos durante a ditadura militar. O texto também define que bens da União já batizados em homenagem a criminosos elencados pela CNV deverão ter os nomes alterados em até seis meses. A proposta segue para discussão na Comissão de Educação da Casa e depois vai diretamente para análise da Câmara dos Deputados.

PRESENTE E FUTURO O apagamento das memórias da repressão nas décadas de 60, 70 e 80 tem efeitos maléficos para o hoje e o amanhã do país. Dentre eles, a eleição de governos que flertam com o fascismo e a continuidade da tortura e das violações aos direitos por alguns grupos de agentes públicos em periferias, Novelli listou. A exaltação do regime se agravou durante a gestão de Jair Bolsonaro. Antes de ser chefe do Executivo, o ex-presidente, na época deputado, chegou a proferir

2,9 mil km HOMENAGEIAM TORTURADORES HOMENAGEIAM VÍTIMAS

164 km

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Reprodução/Júlia LIma/Flickr
Em
Dilma recebeu o relatório final da Comissão Nacional da Verdade
83
dezembro de 2014, a presidente
Reprodução/Evandro Teixeira/Acervo Arquivo Nacional x OS ALGOZES DA DITADURA SÃO MAIS HOMENAGEADOS
AGÊNCIA
EM VIAS PÚBLICAS DO QUE OS QUE MORRERAM EM SUAS MÃOS -
PÚBLICA/2017.
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%

DOS BRASILEIROS

ACHAM QUE O DIA DE ANIVERSÁRIO DO GOLPE

DEVE SER DESPREZADO, SEGUNDO O DATAFOLHA.

exaltações, em pleno Congresso, à Ustra no julgamento do impeachment de Dilma Rousseff, que foi torturada pelo criminoso no início dos anos 1970. Ainda parlamentar, não sofreu nenhuma consequência legal.

O político já havia dito que “o erro da ditadura foi torturar em vez de matar”. Mesmo assim, foi eleito com 55% dos votos em 2018.

O cenário despertou em muitas pessoas a dúvida se, realmente, há esperança por uma maior conscientização acerca da memória do período. Entretanto, de acordo com pesquisa do Datafolha, 63% dos brasileiros acham que a data de aniversário do golpe deve ser desprezada, enquanto 28% acreditam que deveria ser comemorada. Entre as possíveis medidas a serem tomadas na atualidade, a principal demanda é o restabelecimento da Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos.

Instituída em 1995, no governo Fernando Henrique Cardoso, a Comissão foi encerrada por Bolsonaro em 2022. Sua retomada foi prometida pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva durante as eleições, mas desde que assumiu o poder, em 2023, não deu andamento ao projeto.

“É algo que se o governo não fizer, ninguém tem condições jurídicas de fazer. É restaurar os mecanismos que permitam a identificação de informações sobre o des-

tino dado a esses mortos e desaparecidos políticos cujos restos mortais se desconhecem”, afirmou Dallari. “Outro aspecto relevante é a luta pelo cumprimento da promessa da campanha do Lula de criar o Museu da Democracia, que não saiu”, lembrou Teixeira.

Mais um exemplo de atuação é o Núcleo de Preservação da Memória Política (NM). Criado por ex-presos políticos em 2009, o instituto tem o objetivo de preservar a memória daqueles 21 anos e dar visibilidade ao que foi o período. “Isso acontece por meio de ações de educação e direitos humanos, como visitas guiadas ao antigo DOI CODI de São Paulo, o projeto Sábado Resistente com o Memorial da Resistência, os cursos e visitas a escolas e universidades”, detalhou Novelli.

Além disso, o NM também busca a criação de mais lugares de memória. O grupo tem trabalhado na construção do Memorial da Luta pela Justiça Social no local onde funcionavam as antigas auditorias militares de São Paulo, que julgavam os presos políticos acusados pela Lei de Segurança Nacional. “Estamos trabalhando com a OAB para abrir em 2026, na Avenida Brigadeiro Luís Antônio”, revelou Novelli. O núcleo também integra um grupo de trabalho que luta desde 2018 para construir um memorial no DOI CODI.

Tenho medo de morrer sendo o que não sou

oque minha avó e Lélia Gonzalez têm em comum? A pele não é, decreta o registro de óbito; a avó morreu como branca. Mas consigo apontar algumas semelhanças. Ambas eram filhas de pais pobres, da periferia. Lélia com muita batalha e vontade terminou o Ensino Médio nos anos 1950 e a graduação em História e Geografia na década seguinte.

Tide, minha avó, depois que aprendeu a ler e escrever, e sentia o deleite constante da atividade, largou a escola por ordem do pai, ainda muito jovem. Acatou o que lhe foi imposto: trabalhou, casou, teve três filhas, a última delas com a minha idade agora, aos 27 anos, minha mãe. Foi perto dos 30, em 1978, que adotou seu quarto e último filho, preto.

Foi perto dos 40 que Lélia Gonzalez auxiliou na fundação do Movimento Negro Unificado (MNU), e que era o resultado da vontade de respostas e ações para a efervescência do debate sobre racialidade no país, no mesmo ano de 78.

O movimento clamava por justiça racial, e não aceitaria mais consternar sobre a impedição de quatro jovens negros de usarem a piscina do Clube de Regatas Tietê, ou o assassinato do trabalhador Nilton Lourenço pela polícia militar, no bairro da Lapa.

Em pleno ápice da ditadura militar brasileira, com AI-5, tortura e repressão incessantes, o MNU surge como resposta a toda a injustiça e ao mito de democracia racial. Para que situações como a de Robson Silveira, acusado de roubar bananas de um feirante quando estava na volta para casa, na zona leste de São Paulo, não passassem impunes. Para que jovens negros e periféricos tivessem o direito de ir e vir, inclusive dentro de espaços acadêmicos. Foi o que Lélia fez ao se formar bacharel.

E foi o que Tide fez, também em 78, ainda parda, ao voltar para a escola, seu lugar de desejo e de pertencimento. Ao se formar bacharel, assim como Lélia, pela primeira vez em meados dos anos 80. Ao finalmente se filiar ao Clube de Regatas Tietê.

O MNU surge como resposta a toda a injustiça e ao mito de democracia racial. Para que jovens negros e periféricos tivessem o direito de ir e vir.

Moradora da zona norte de São Paulo, Tide sabia o que significava entrar na piscina do Clube Tietê.

Ocuparam espaços repressivos para mulheres negras, se fizeram inseridas e abriram portas para o que era delas, e também pelos seus, cada uma à sua maneira. Uma, ativista política, escritora, filósofa, líder. A outra, ativista na luta antimanicomial, funcionária do sistema público, assistente social, mãe parda de menino preto. Ambas lutavam pela melhoria de vida da população negra e pobre do país.

Mas é pelo fato de não ser educada para se casar com um "príncipe encantado", mas para o trabalho, que a mulher negra não faz o gênero da submissa, já dizia a filósofa. A mentalidade machista assombrava as duas, fato que se tornou relevante para ambas, que foram buscar espaço no movimento feminista, ainda muito branco, classista e nada racializado. Lélia escreveu para o mundo sobre o sexismo silenciador para as mulheres, e Tide colocou tudo isso em prática, voltando a trabalhar, estudar e se fazer ouvida.

Dentro da universidade, Lélia confrontou de forma constante o academicismo e linguagem gramatical duras, que dificultavam o acesso de seus pares negros à educação. Tide colocou em prática as falas de Lélia, entrou na academia e reformulou a linguagem para o que fosse de seu entendimento. Formou-se em três graduações e tornou-se professora universitária.

E meu medo tem tudo a ver com isso. É entendendo a luta de Luiz Gama — maior abolicionista do Brasil e, agora, mais de um século depois de sua morte, Doutor Honoris Causa pela maior universidade da América Latina — que hoje ocupo espaço nesta revista uspiana.

É pela luta do MNU no maior período repressivo do país que ocupei espaço em minha primeira graduação, em instituto particular, como bolsista por cotas raciais. É por eles que sei como devo chegar, como mulher negra, mas sem deixar de ocupar espaços. Porque Luiz Gama, Lélia e Tide sabiam o que eram a vida toda. Suas lutas, por mais duras que sejam, são vitoriosas. É por eles que sou quem eu sou.

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Reprodução/Correio da Manhã/Acervo Arquivo Nacional
“Eu não gosto do Roberto Carlos. Eles colocavam para tampar os gritos dos torturados”, relatou Dirce Machado Silva para a CNV
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Divulgação/Jesus Carlos/MNU
Texto KAROLINA MONTE
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Edição e arte LORRAINE MOREIRA

SONS DE UM FUTURO EM RUÍNAS

Festival "O Começo do Fim do Mundo" transformou a fúria da juventude punk em crítica à decadente ditadura militar brasileira

Repórter AMANDA MARANGONI Edição e arte MARIANA CARNEIRO

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Mao também cita a loja Punk Rock Discos, fundada por Fábio Sampaio, vocalista da banda Olho Seco, em 1979, na Galeria do Rock. O local foi um dos pontos de encontro entre os punks na época, e também responsável pela circulação da música e cultura do movimento no exterior para a juventude brasileira.

Ele se refere ao ABC paulista como o “olho do furacão”, em alusão ao movimento sindicalista, especialmente ativo na região. Mao conta que matou aula para assistir a assembleias e greves, e relembra a indignação deixada pela violência do aparato policial contra os trabalhadores. “O sentimento de opressão perpassava o cotidiano, e a violência da ditadura era difusa em toda a sociedade”, ressalta.

A experiência de Mao foi similar à de milhares de jovens que, assim como ele, encontraram no movimento punk uma forma de canalizar a revolta pela opressão que permeava a realidade brasileira. “O punk foi, naquele momento, a principal ferramenta para externalizar a inquietação dos jovens contra um mundo no qual eles não se sentiam representados”, explica o historiador Vieira.

À medida que o tempo passava, o movimento se amplificou. Clemente Tadeu Nascimento, hoje vocalista e guitarrista dos Inocentes e da Plebe Rude, diz que “[as autoridades] só foram perceber que a gente existia quando a cena já estava muito grande”.

Reprodução/@garotospodresoficial/Instagram

O ÁPICE

Os sentimentos compartilhados pelos punks também apareciam na estética do movimento – seja ela representada na música, ou na forma como se vestiam. A estética do punk era agressiva, de forma a denunciar a revolta interna à opressão — a postura contestatória e um visual pesado, com jaquetas de couro, correntes, moicanos e coturnos compuseram a imagem disruptiva do punk. “Era uma novidade marcante, porque identificava quem tinha uma postura crítica à sociedade e ao regime. A música seguia o mesmo contexto. Era um tipo de rock novo, e toda aquela cultura jovem assustava e gerava as mais diversas reações”, conta Clemente. Sobre a indignação do punk contra a ditadura, Clemente diz que o movimento lutava pelo fim do regime e pelo retorno das liberdades democráticas, mas que esse posicionamento trouxe consequências. “A polícia passou a nos perseguir sistematicamente, mas fazia parte do contexto de quem se posicionava contra a Ditadura Militar”, lembrou.

No festival O Começo do Fim do Mundo, um dos maiores momentos do punk brasileiro, Clemente tocou como baixista dos Inocentes e recorda como o festival foi organizado. Ele pontua como o escritor, jornalista e dramaturgo Antônio Bivar, que faleceu em 2020, foi essencial para que o festival se tornasse realidade. “Só aconteceu por causa dele, que fez as primeiras

A ESTÉTICA DO PUNK ERA AGRESSIVA, DE FORMA A DENUNCIAR A REVOLTA INTERNA À OPRESSÃO.

matérias para a grande imprensa e escreveu o livro O Que é Punk?, publicado pela editora Brasiliense em 1982. O festival aconteceu junto com o evento de lançamento do livro e foi a primeira vez em que os punks tocaram no circuito oficial da cidade.”

No sábado de 27 de novembro de 1982, a força da revolta punk tomou forma bem definida no Sesc Pompeia. Milhares de pessoas — tanto adeptos ao movimento, quanto as que ainda não eram familiares com o punk — se reuniram para assistir aos shows. Entre as principais bandas do dia estavam Cólera, Inocentes, Ulster e Dose Brutal.

Alguma espécie de confusão já era esperada num evento que borbulhava no caos elemental do punk, ainda mais se combinado com as brigas e rixas entre os envolvidos. Apesar da expectativa, Clemente conta que o primeiro dia correu bem, mesmo com a atmosfera naturalmente volátil.

O dia seguinte também teve um início promissor. À medida que o ambiente foi preenchido pelo som de afronta vindo de grupos como Olho Seco, Ratos de Porão e Lixomania, o festival seguiu sem conflitos. Os últimos momentos de O Começo do Fim do Mundo, no entanto, foram marcados pela repressão autoritária característica do período. No fim do segundo dia, a polícia invadiu o Sesc Pompeia e tropas de choque puseram um fim ao festival e ainda prenderam alguns dos punks que estavam presentes.

A inserção do punk na cena cultural de São Paulo foi excepcional na mesma intensidade com que foi momentânea. Após o ápice, representado pelo O Começo do Fim do Mundo, a perseguição e a censura já enfrentadas pelo movimento foram exacerbadas, e quaisquer manifestações punks na mídia adquiriram uma conotação negativa. A partir daí, a força do movimento se dissipou.

Olhando para trás, Clemente vê essa época como um momento que formou a maneira com que ele vê o mundo. “Moldou minhas convicções, meu jeito de pensar e de compor. Tirando aquele comportamento, típico de adolescente, sou o que sou hoje por causa dessa época”, diz.

Mao também fez parte do evento, mas como público – O Começo do Fim do Mundo antecedeu a fundação da sua banda, os Garotos Podres. Para ele, que tinha 19 anos quando o festival aconteceu, o punk proporcionava a sensação de fazer parte de algo grande, que questionava uma sociedade autoritária sufocante. Ele diz que a opressão incessante alimentava o sentimento – se fosse revistado por um policial, pensava: “olha como eu tô incomodando!”. Hoje, mais de 40 anos depois, reflete: “era uma coisa um pouco pueril, mas foi importante para a minha formação. Uma espécie de escola de rebeldia”.

Ao fim, além da marca na memória dos que estiveram presentes, O Começo do Fim do Mundo foi gravado e lançado como LP e, mais tarde, relançado em formato de CD. Em comemoração aos 30 anos do festival, em 2012, o Sesc Pompeia realizou um documentário intitulado O Fim do Mundo, Enfim, dirigido por Camila Miranda, que contém depoimentos dos artistas e mostra os bastidores da produção do evento. Muito mais que uma simples importação, o punk no Brasil adquiriu perspectiva própria e atuou como uma manifestação contra os dilemas vividos pelos brasileiros na época. A dura testemunha de desintegração econômica, política e social do cotidiano brasileiro permitiu que os jovens encontrassem na radicalidade do punk uma catarse compreensível, e o resultado foi uma manifestação cultural única.

Reprodução/Andrew Spencer/Unsplash
Reprodução/@pleberude/Instagram 36 REVISTA BABEL JULHO 2024 37 golpe de 64 golpe de 64

O "fenômeno"

NAYIB BUKELE

Reeleito em El Salvador, Nayib Bukele faz sucesso nas redes e brilha os olhos de líderes da direita latino-americana

o dia 5 de fevereiro de 2024, o presidente de El Salvador, Nayib Bukele, proclamou, antes dos resultados oficiais, a própria vitória na disputa pela reeleição à cadeira presidencial salvadorenha, algo inédito desde o fim da guerra civil no país, em 1992. O resultado oficial: 84,6% da população votou para que Bukele continuasse com seu plano para a segurança do país.

Mas, antes de driblar a Constituição de El Salvador para se manter no poder, Bukele já acumulava uma considerável trajetória política. O presidente é filho de Armando Bukele, empresário salvadorenho bem sucedido e influente no meio político. Com esse histórico familiar, Nayib Bukele começou a trajetória como prefeito de Nuevo Cuscatlán, cidadezinha na região metropolitana da capital San Salvador. “É importante não esquecer que Bukele não vem da extrema-direita, como outros novos autoritários do continente. Ele surge como alguém diferente, um jovem dirigente de centro-esquerda com sentido de eficiência ‘empresarial’”, explica o professor de Filosofia da Universidade Centroamericana José Simeón Cañas, Ricardo Roque.

Naquele momento, Bukele era do principal partido de esquerda de El Salvador, a Frente Farabundo Martí de Libertação Nacional (FMLN), que dividia com o Arena, de direita, o cenário político do país marcado pelo bipartidarismo. A fama de “empresário eficiente” não era à toa: além do pai, Bukele já tinha negócios no setor publicitário, ramo de sua formação. De Nuevo Cuscatlán, Bukele alçou

voos mais altos e venceu a disputa para a prefeitura de San Salvador. Até então, apesar da rápida ascensão e do ganho de popularidade, o político era um prefeito de um partido tradicional que focava em investimentos sociais e na infraestrutura de suas cidades. Mas, assim como fez quando saiu de Nuevo Cuscatlán para San Salvador, Bukele iria usar sua gestão como propaganda para um objetivo maior, a presidência do país.

Com pouco espaço no FMLN, Bukele usou uma série de desentendimentos dentro do partido para endossar sua posição de suposto “outsider”. Foi expulso da legenda, lançou sua candidatura e um novo partido, o Novas Ideias. O nome dá

a entender a estratégia de apresentar aos salvadorenhos uma terceira via, liderada por ele e que mudaria a política do país. E assim, foi vitorioso. Aos 37 anos, Bukele se tornou presidente de El Salvador, concorrendo pelo partido Grande Aliança pela Unidade Nacional (Gana). Seu novo partido não foi instalado a tempo de concorrer às eleições, mas, mesmo assim, Bukele levou ao poder uma legenda recém-criada e quebrou o bipartidarismo que reinava no país desde 1992. “O boicote dos meios de comunicação tradicionais a Bukele deu a oportunidade de gerir sua comunicação e campanha à margem desses veículos, recorrendo às redes sociais”, comentou Roque sobre a

BUKELE SE APRESENTA SOB

A ESTRATÉGIA POPULISTA DE DEFENSOR DO CIDADÃO CONTRA

A CLASSE POLÍTICA CORRUPTA E INEFICAZ, ALÉM DE SER O LÍDER

SINCERO QUE FALA "SEM MEIAS

PALAVRAS" E ENFRENTA QUEM QUER

QUE SEJA QUE TENHA DE ENFRENTAR.

vitória de Bukele em fevereiro de 2019 quando não participou de nenhum debate, nem deu entrevistas a meios de comunicação independentes e tinha o exército de trolls divulgando seu nome por meio das redes sociais e de ‘fake news’.

ESCALADA AUTORITÁRIA

No dia 9 de fevereiro de 2020, pouco mais de 8 meses depois de assumir, Bukele invadiu a Assembleia Nacional ao lado de militares e apoiadores. Na ocasião, os deputados do país haviam recusado um pedido de empréstimo de mais de 100 milhões de dólares feito por Bukele para financiar a política de segurança.

Segundo Roque, esse foi o primeiro momento em que foi notável a veia autoritária de Bukele. Apesar da ofensiva contra a Assembleia, ainda dominada pelos dois partidos tradicionais, Bukele deu um passo atrás após pressão internacional. “Se eu fosse um ditador ou alguém que não respeitasse a democracia, agora teria assumido o controle de tudo. Segundo as pesquisas, 90% das pessoas nos apoiam”, disse, na época, o presidente ao jornal espanhol El País.

O que deu as armas necessárias para que Bukele se transformasse de vez em um líder

autoritário foram as eleições legislativas de 2021. Após uma rigorosa atuação frente à Covid-19, uma leve redução nos índices de criminalidade e uma estratégia de comunicação agressiva, o partido Novas Ideias, em sua primeira eleição, já conseguiu a maioria do Congresso: 56 das 84 cadeiras, 66% dos votos. O Arena foi o segundo mais votado, com apenas 12% e 14 cadeiras.

Com a maioria na Assembleia, Bukele rapidamente enviou um projeto que destituía o Procurador-Geral da República e os cinco ministros da Suprema Corte. “O primeiro passo é controlar o judiciário e isso é feito ou aposentando os juízes que mantêm sua autonomia, como foi o caso de El Salvador, ou aumentar o número de magistrados para nomear juízes simpáticos ao regime”, explica o consultor da Secretaria de Administração Penitenciária do Pará, André Silva de Oliveira, sobre a decisão tomada pelos deputados em maio de 2021.

Após a mudança na Suprema Corte, Bukele deu outro passo essencial para líderes autoritários: a manutenção do poder.

Em setembro, os novos ministros, alinhados ao presidente, aprovaram a possibilidade de uma reeleição, algo proibido pela constituição do país. Em tom de deboche,

BUKELE E OS GOVERNANTES

AUTORITÁRIOS DE OUTROS PAÍSES

DETESTAM A LEI

PORQUE SABEM DA SUA IMPORTÂNCIA, PORQUE SABEM QUE É A ÚNICA

COISA QUE OS DETÊM.

CARLOS CRUZ-COKE CARVALLO

RICARDO ROQUE

Nayib Bukele tomou posse para o segundo mandato no último 1° de junho, com a Assembleia Nacional dominada por seu partido

38 REVISTA BABEL JULHO 2024 39 política política
N
“ Reprodução/Wikimedia Commons

Bukele mudou sua biografia do twitter para “O ditador mais cool do mundo”, após ser criticado por suas ações.

Além de tudo isso, Bukele sofre denúncias a todo momento de perseguir adversários políticos e jornalistas. O maior portal jornalístico do país, El Faro, teve que mudar sua sede administrativa para a Costa Rica.

Em um comunicado oficial, o veículo afirma ter sido submetido, durante a gestão Bukele, a campanhas de deslegitimação e difamação produzidas por funcionários e deputados governistas; a vigilância e ameaças; a assédio de anunciantes; e a auditorias do Ministério da Fazenda com “acusações fabricadas”, replicadas até mesmo pelo presidente que os acusou de lavagem de dinheiro.

A escalada autoritária no país não parou por aí. Os deputados salvadorenhos aprovaram, no dia 29 de abril, uma mudança na Constituição que deixa muito mais fácil para que os parlamentares alterem a Carta Magna do país.

Antes, para mexer na Constituição, os deputados de uma legislatura precisavam dar um aval a uma mudança aprovada na legislatura anterior. Agora, eles podem fazer isso sempre que obtiverem o número de votos necessários para isso – 45 de 60. A legislatura que assumiu no dia 1° de maio, no entanto, é formada por 54 deputados do partido de Bukele. Essa alteração abrirá margem para novas arbitrariedades do Governo, incluindo o número de reeleições possíveis no país.

POLÍTICA DE SEGURANÇA

Desde que assumiu a presidência em 2019, Nayib Bukele adotou medidas controversas para combater a criminalidade e a violência no país. Estas políticas incluem o uso das forças armadas para lidar com questões de segurança interna, bem como a detenção em massa e o desrespeito aos direitos humanos.

De acordo com dados do governo salvadorenho, em 2015 a taxa de assassinatos era de 107 homicídios para cada 100 mil habitantes. Essa situação colocava El Salvador entre os países com uma das taxas de violência mais elevadas da América Latina. A escalada era impulsionada especialmente pela atividade das gangues e pelo tráfico de drogas.

Em 2021, o jornal salvadorenho El Faro

apurou que Bukele negociava com as três principais gangues do país: a Mara Salvatrucha (MS-13), Barrio 18 Sureños (B18-S) e Barrio 18 Revolucionarios (B18-R). Isso explicaria a drástica redução na taxa de assassinatos, em 2023, para 2,3 homicídios por 100 mil habitantes. O periódico ainda documentou que algumas gangues deixaram de matar após diálogos com o governo. Para Roque, a política de segurança de Bukele foi eficaz no desmantelamento das pandillas (gangues). Embora elas não tenham sido extintas completamente, a sua capacidade de controle territorial desapareceu e teve como efeito a quase destruição do Estado de direito e do processo legal.

As detenções em massa em El Salvador envolvem denúncias de abuso, prisões arbitrárias e falta de evidências para justificar o encarceramento. De acordo com a ONG Socorro Jurídico Humanitário, de março de 2022 a março de 2024, 241 pessoas morreram nos presídios salvadorenhos e aproximadamente 26 mil foram presas injustamente. O governo alega que os alvos são membros das gangues, porém pessoas que de alguma forma se opuseram a gestão Bukele também já foram presas.

“Estima-se que cerca de 70 mil pessoas foram presas (mais de 1% da população do país), na sua maioria homens jovens e de baixa renda, em condições desumanas que desrespeitam os seus direitos básicos”, comenta Roque.

Em março de 2022, a Assembleia Legislativa de El Salvador aprovou, a pedido de Bukele, a instauração de um regime de emergência para controlar as ações da Mara Salvatrucha, após o registro de mais de 70 homicídios em um único final de semana.

O regime de exceção restringiu a liberdade de reunião, estendeu os poderes da polícia e autorizou prisões sem ordem judicial.

Ainda assim, parte da população aceita o método e afirma que é uma maneira de lidar com a violência provocada pelas organizações criminosas. “Um número considerável de cidadãos discorda do regime de exceção, mas está disposto a aceitá-lo por recear o regresso da violência das gangues”, explica Ricardo.

Em janeiro de 2023, o governo Bukele inaugurou uma mega-prisão com capacidade para 40 mil presos. O Centro de Confinamento Contra o Terrorismo (Cecot) é o maior presídio das Américas, ocupa uma área total de 166 hectares e já possui 23 hectares construídos na zona rural de Tecoluca. Segundo o governo salvadorenho a prisão é reservada para pessoas que ocupam altas posições nas gangues MS-13, B18-S e B18-R.

Em abril de 2024, Gustavo Villatoro, ministro da Justiça e Segurança de El Sal-

BUKELE MUDA A CÂMARA CONSTITUCIONAL A VONTADE E TAMBÉM O

PROCURADOR, NÃO

RESPEITA OS PRINCÍPIOS DA SEPARAÇÃO DE PODERES, DO ESTADO DE DIREITO, DA INDEPENDÊNCIA

JUDICIAL, DA LIBERDADE DE IMPRENSA. A LONGO PRAZO, SEM O APOIO DO POVO, QUE SABEMOS SER VOLÁTIL, IRÁ

SE TORNAR UM DITADOR SEM LIMITES.

CARLOS CRUZ-COKE CARVALLO

vador, declarou em entrevista à Agence France-Presse (AFP) que desde o começo da “guerra às gangues”, em março de 2022, as autoridades prenderam 79.800 membros de organizações criminosas, dos quais 7.600 foram libertados. A política de segurança implementada por Nayib Bukele em El Salvador reduziu a criminalidade a índices nunca vistos no país, o que fez a popularidade do presidente crescer entre a população. Contudo, as denúncias de violação a direitos básicos no ato da prisão, durante o encarceramento e no decorrer dos processos legais causam preocupação e colocam em xeque a real efetividade das medidas.

O "EFEITO BUKELE"

O “sucesso” de Nayib Bukele ao reduzir a violência em El Salvador se espalha pela América Latina. Em 2023, Honduras anunciou o projeto de construção de uma prisão offshore a 200 quilômetros do continente, na Ilha Cisne, exclusiva para membros de organizações criminosas. A declaração aconteceu pouco tempo depois do assassinato de 46 detentas dentro de um presídio, com a ação sendo atribuída às gangues.

Em janeiro de 2024, o governo Daniel Noboa, no Equador, também compartilhou planos para a construção de duas prisões de segurança máxima e supermáxima. De acordo com Roque, é muito difícil reproduzir em outros lugares o que Bukele fez, porque o presidente se valeu da implosão de um sistema político e do fato de o país não ter uma localização estratégica

na geopolítica das grandes potências, nem ser um local importante nas rotas do crime organizado. Mas, ele acrescenta: “Bukele é um exemplo particularmente sinistro para o futuro das democracias latino-americanas.”

Na Argentina, a ministra da Segurança, Patricia Bullrich, afirmou que a onda de violência na cidade de Rosário é uma reação das organizações criminosas às novas medidas aplicadas pelo governo argentino dentro das prisões desde o final de 2023. Em dezembro, Bullrich anunciou o chamado Plano Bandeira, que alocou forças de segurança federal em Rosário, localizada na província de Santa Fé e governada por Maximiliano Pullaro. Ela disse ter interesse em adaptar o modelo salvadorenho e em conhecer Bukele pessoalmente. O governador Pullaro também informou que mais de mil presos haviam sido realocados de delegacias para penitenciárias e que detentos de maior periculosidade foram transferidos para pavilhões mais seguros. Em maio de 2023, a Comissão de Segurança Pública e Combate ao Crime Organizado da Câmara dos Deputados do Brasil assistiu à apresentação do ministro da Justiça e Segurança Pública salvadorenho, Gustavo Villatoro, sobre a política de segurança de El Salvador.

No Peru, o governo de Dina Boluarte vem sendo cobrado por parte da população, prefeitos, líderes do legislativo e do judiciário para implementar medidas semelhantes às de Bukele para controlar a criminalidade no país.

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* anos do governo Nayib Bukele

Mais que um time, todo um povo

Em 2024, o Club Deportivo Palestino, do Chile, disputa pela sétima vez a Copa Libertadores, ao mesmo tempo que representa a luta do povo palestino que vive mais um triste capítulo de sua história

Maracanã Palco de duas finais de Copas do Mundo e de centenas de jogos históricos. Na noite de 10 de abril de 2024, o templo do futebol recebeu o maior público de sua história: Mais de 5 milhões de palestinos e palestinas estavam presentes nas arquibancadas do setor visitante do estádio, representados por algumas poucas centenas de torcedores do Club Deportivo Palestino, do Chile. Fundado em 1920, o Club Deportivo Palestino está disputando, pela sétima vez, a principal competição do continente sul-americano. Mas, para além do mérito esportivo de alcançar o torneio pela quarta vez nos últimos dez anos, o mais importante para os envolvidos com o time é ter a oportunidade de levar a bandeira da Palestina continente afora. “Ver a bandeira palestina tremular no Maracanã, em Buenos Aires, em La Paz, na Bolívia, em Bogotá, na Colômbia é uma demonstração que o povo palestino existe”, comentou Vicente Misle, torcedor e presidente do diretório juvenil do Palestino. Vicente tem 27 anos e é torcedor do clube desde que nasceu. Sua família é de origem palestina e seu pai é torcedor fanático e ex-dirigente do Palestino. Sua história se assemelha a muitas outras ouvidas pela reportagem da Babel nas arquibancadas do Maracanã. Cada uma possui sua particularidade, mas a grande maioria da torcida é formada por chilenos descendentes de palestinos.

ORIGEM

Essa torcida só existe hoje porque, há mais de 100 anos, um grupo de imigrantes palestinos decidiu fundar um clube que mantivesse viva, do outro lado do mundo, sua cultura e tradições.

“A primeira imigração foi no final do

Jogador do Palestino, Benjamin Rojas em partida contra o Flamengo no Maracanã.

século XIX, começo do XX, escapando dos Otomanos. Eles chegavam de barco, saindo principalmente dos portos de Nápoles ou Marselha. Desembarcavam em Buenos Aires e vinham de mula até o Chile”, contou Gazan Qahhat Khamis, diretor da Comunidade Palestina do Chile, entidade que reúne 24 instituições palestinas ao redor do país.

O clima parecido com o do país árabe também foi um fator que fez com que muitos escolhessem o país sul-americano como nova casa. Foram esses migrantes que criaram, em 1920, o Palestino, que funcionava muito mais como um clube social à época. Com uma comunidade de imigrantes estabelecida, o fluxo migratório se consolidou e o país recebia, cada vez mais, palestinos que buscavam um lugar onde poderiam manter os mesmos costumes.

Hoje, o Chile possui a maior comunidade palestina do planeta fora do mundo árabe, com cerca de 500 mil pessoas. Segundo Gazan, o país alcançou esse número expressivo porque virou refúgio para os que foram expulsos de suas terras na Nakba Palestina (Desastre, em árabe). Esse é o nome dado à destruição de cerca de 400 vilas e ao êxodo de aproximadamente 800 mil palestinos em 1948 durante a Primeira Guerra árabe-israelense, que eclodiu logo após o surgimento do Estado de Israel.

O triste capítulo, no entanto, virou incentivo para que o Palestino deixasse de ser um clube social e se profissionalizasse no futebol. “Como resultado da Nakba, os palestinos no Chile, em uma situação muito melhor, resolveram virar profissionais para que pudessem falar da Palestina por todo o país”, explicou José Nabzo, chefe de imprensa do clube.

RAÍZES

Você já pode ter ouvido antes a história de clubes formados por comunidades de estrangeiros. No Brasil, temos exemplos como o Palmeiras e o Cruzeiro, fundados por imigrantes italianos, e a Portuguesa e o Vasco da Gama, formados por portugueses. Mas o Palestino viria a construir algo único: uma relação tão forte com seu país de origem que deixa indissociável o que é futebol e o que é identificação com suas próprias origens.

“A relação entre Palestino e Palestina é muito estreita, porque acontece algo muito pesado com os palestinos que estão do outro lado do mundo. Aqui, no Chile, nós não esquecemos: muitos de nós já estiveram nos lugares onde hoje estão matando pessoas. Existe uma grande diferença com o Unión Espanhola e o Audax Italiano, por

HOJE, O CHILE POSSUI A MAIOR COMUNIDADE PALESTINA

DO PLANETA

FORA DO MUNDO ÁRABE, COM CERCA DE 500 MIL PESSOAS.

exemplo”, argumentou Nabzo, citando dois times chilenos fundados por colônias de imigrantes. Essa ligação pode ser facilmente vista no campo ou nas arquibancadas . O uniforme, além das tradicionais quatro cores da bandeira da Palestina – branco, verde, vermelho e preto – traz frequentemente o desenho encontrado no Keffiyeh, uma espécie de lenço axadrezado que virou símbolo da luta palestina. Além disso, a camisa carrega na manga o mapa da Palestina antes da criação de Israel e na barriga o patrocínio do Bank of Palestine, principal banco do país.

A maior parte dos funcionários, assim como José Nabzo, são descendentes e “sentem muito o clube”. “Alguns obviamente mais do que outros, mas todos os atletas e funcionários entendem o que significa e representa o clube, e são defensores da luta palestina”, afirmou o assessor.

Além do Maracanã, a reportagem da Babel esteve presente no estádio do Palestino, no bairro de La Cisterna, em Santiago, e lá foi presenteada com uma pequena bandeira do país para torcer para o time.

“É nossa identidade, os elementos que você vê em nossa camisa, são a nossa cultura, nossas raízes e a forma que o mundo nos conhece”, disse Patrício Majluf, descendente de palestinos e torcedor do clube.

“Palestino é como uma segunda seleção nacional e por isso a bandeira da Palestina é um símbolo para nós. É uma forma de apoiar e demonstrar que pensamos sempre em nossos irmãos”, opinou Andres Manzur, outro torcedor que encontramos no Maracanã.

Apesar de ter apenas 19 anos, o jovem sente que ser fanático pelo Palestino é uma forma de estar em constante conexão com suas raízes, trazidas ao Chile por seus bisavós, que fugiram dos primeiros conflitos com Israel.

Já na família de Tarek Dababneh, ex-assessor do Palestino, foram seus avós os primeiros a migrar para a América do Sul, em 1939, escapando da Segunda Guerra Mundial. Seu pai foi fisiologista do time e um dos tios, jogador e dirigente. “Sou feliz de ser chileno e ter as raízes árabes à flor da pele”, celebrou.

“Quando as partidas acontecem, são 3h ou 4h da manhã na Palestina e as pessoas acordam para assisti-las, porque sentem que é um time que os representa, que não se cala por eles e que, de alguma forma, será um jogo da Palestina”, contou Tarek. No Maracanã, ao lado de Patricio Majluf, a Babel conversou com dois amigos do torcedor que vieram do Chile apenas para acompanhar o jogo: Fuad Chahín Valenzuela, advogado e deputado federal chileno entre 2010 e 2018, e Issa Ghawali, palestino que chegou ao país na década de 1990. Ghawali veio para a América do Sul depois de ser preso quatro vezes durante a Primeira Intifada, levante popular de palestinos

Reprodução/@palestino/Instagram
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contra a ocupação israelense que aconteceu entre 1987 e 93. Aborrecido com os conflitos, decidiu tentar uma vida melhor fora de sua terra.

No caso de Fuad, seus avós chegaram no ano de 1920 ao Chile, o mesmo da fundação do clube. “Palestino é um embaixador da Palestina na América do Sul”, defendeu. “Há um compromisso político incontornável. O povo palestino está sofrendo uma tentativa de limpeza étnica em Gaza e os triunfos do Palestino dão ao nosso povo um pouco de alegria, especialmente, em um momento de tanta tristeza e escuridão”, afirmou, ao falar sobre os jogos que são transmitidos no país árabe.

Vicente Misle, o presidente do diretório juvenil, citou o lema da equipe – Mais que um time, todo um povo – para defender essa ligação entre clube e a nação que luta para existir. “O sionismo tenta incutir a ideia de que o povo palestino e palestinidade não existem, não são uma identidade. Mas, o melhor exemplo de que isso é mentira é que o Palestino foi criado 28 anos antes do Estado de Israel”, argumentou. “Para nós palestinos, existir é resistir e o Palestino é uma demonstração de que existimos”, concluiu.

“São 76 anos de ocupação e nós nos sentimos profundamente palestinos, palestinos exilados, na diáspora, assim como nos sentimos extremamente chi-

lenos e gratos ao Chile”, exclamou Fuad. Emocionado, Fuad rebateu uma frase supostamente dita pela ex-primeira-ministra de Israel Golda Meir: “Os velhos morrerão e os jovens esquecerão”. Algumas fontes, como o jornal The Guardian, atribuem a aspa a David Ben-Gurion, outro ex-primeiro-ministro. De toda forma, a frase ficou conhecida entre os palestinos e, hoje, serve como um mote (às avessas) de sua luta.

“Eu acho que esse é o grande fracasso do projeto sionista, porque efetivamente os velhos morreram, mas os jovens não esqueceram. Não esquecemos nossa terra, não esquecemos nossa identidade e vamos seguir lutando de distintas maneiras”, declarou o advogado. Para explicar os conflitos entre Israel e Palestina, é necessário entender o contexto antes mesmo da criação do Estado de Israel. Após a 1ª Guerra Mundial, com a dissolução do Império Turco Otomano, diversos territórios árabes que pertenciam a ele foram ocupados por França e Inglaterra. A Palestina ficou sob domínio inglês. Anos depois, com o fim da 2ª Guerra Mundial, a recém-criada Organização das Nações Unidas (ONU) decidiu fundar um Estado judeu na região da Palestina, pensando inclusive no que havia sofrido a comunidade judaica com o Nazifascismo na Europa. Essa ideia, no entanto, já existia há algumas décadas, com uma corrente política denominada Sionismo, que ganhou força entre os judeus no início do século XX.

parte da União Europeia, não reconhecem a existência de um Estado Palestino.

Já Israel se tornou Estado-membro da ONU em 1949, um ano depois de sua fundação, e é reconhecido como país por mais de 160 países, apesar de ainda sofrer resistência das nações árabes.

SIMPATIA

Além das histórias e relatos de descendentes de palestinos, a Babel encontrou também torcedores que não tinham relação direta com o povo. Entre eles, estavam brasileiros “secando” o rival Flamengo e outros que destacaram sua identificação com a causa do clube chileno.

Fabrizio Termini, torcedor do Colo-Colo, morava em La Cisterna, nos arredores do estádio do Palestino, e ia aos jogos quando estava entediado. Entretanto, ele “adotou” o clube como segundo time porque queria ter mais uma forma de apoiar a luta dos palestinos.

“Eu compartilho das ideias de um estado da Palestina livre e é um clube muito comprometido com a causa”, explicou Termini, que vestia um Keffiyeh em volta do pescoço. “Eu acredito que agora a visão das pessoas, de outros clubes inclusive, é de ter mais simpatia pelo Palestino, não só no Chile, mas em todo o mundo, porque eles estão apoiando a causa”, acrescentou.

Para Fuad Chahín, o clube é um orgulho para todo o Chile e por isso ganhou a simpatia de muitos. “É um clube muito querido, muitas pessoas não são torcedoras, mas têm um carinho especial pelo time e pelo que ele representa. A comunidade palestina também ganhou o respeito, apreço e carinho da terra que nos acolheu, que hoje apoia nossa causa, que é uma causa sobre a liber dade, sobre a dignidade, os direitos humanos”, relatou Chahín.

POSIÇÃO

PATRÍCIO MALJUF, torcedor do clube

Apesar de a ONU ter feito esforços para partilhar o território palestino em dois – uma parte para Israel e a outra para a Palestina – a ideia não foi bem aceita pelos palestinos, nem pelo mundo árabe no geral. No dia seguinte à criação de Israel, uma guerra eclodiu entre os dois povos, o primeiro de vários conflitos ao longo dos 76 anos de existência de Israel. Apesar de ter partilhado o território palestino, a ONU ainda não aceitou o Estado da Palestina como um país membro da entidade. Países com influência na Organização, como os Estados Unidos e a maior

como no dia 21 de abril, quando entrou com uma faixa pedindo o fim do genocídio em Gaza para a partida contra o Club Universidad de Chile.

Todos os torcedores ouvidos pela reportagem lamentaram e demonstraram muita mágoa ao falarem sobre o que acontece hoje na Palestina. “Como todos sabem, Israel tem muito poder e influência no mundo e é muito difícil pará-los. Como bons palestinos, sempre nadamos contra a corrente, é algo que nos caracteriza, nossa essência lutadora a frente da adversidade”, disse Andres Manzur.

“A matança e o genocídio que Israel está fazendo com a Palestina é uma intolerância e ninguém está fazendo nada. É muito complicado porque as pessoas estão morrendo, pessoas inocentes, civis, estão morrendo por causa de um genocídio de um país que hoje acha que é o dono do mundo”, opinou Tarek Dababneh. Tarek conta que a comunidade chilena, especialmente os torcedores, organizam rifas e bingos para arrecadar fundos para a Palestina e cantam frequentemente nos estádios em apoio ao país.

Os conflitos em Gaza escalaram a partir do dia 7 de outubro de 2023, quando o Hamas fez um ataque em território israelense que deixou mais de 1,4 mil mortos. Desde então, as estimativas são de que mais 35 mil palestinos tenham sido mortos na região, sendo 9 mil mulheres e mais de 13 mil crianças, e mais 77 mil foram deixados feridos. A população convive com escassez de água e comida, principalmente no norte do enclave, onde 70% da população enfrenta condições de fome.

MUITAS PESSOAS NÃO SÃO TORCEDORAS, MAS TÊM UM CARINHO ESPECIAL PELO TIME E PELO QUE ELE REPRESENTA.
FUAD

CHAHÍN VALENZUELA, advogado e deputado federal chileno entre 2010 e 2018

Com a escalada dos conflitos entre Israel e Palestina desde outubro de 2023, o clube intensificou seu posicionamento em defesa do povo palestino. “O clube está comovido pelo atual cenário de genocidio que se passa hoje na Palestina. Nós fazemos doações econômicas a instituições que ajudam concretamente, mas toda ajuda que podemos dar daqui do Chile, ainda é pouca e não vai consolar a dor do que se está vivendo em Gaza”, afirmou José Nabzo, chefe de imprensa do time. Segundo o jornalista, o Palestino, ao longo desse período, tenta, dentro das limitações que tem por ser uma entidade esportiva, dar visibilidade à luta compartilhando marchas em apoio a Palestina e realizando protestos dentro de campo,

Os dados foram retirados da agência de notícias da Organização das Nações Unidas. A entidade ainda aponta que ⅔ dos hospitais de Gaza não estão mais funcionando, que ajudas humanitárias para o norte tem sido barradas por Israel, cerca de 75% da população, 1,4 milhão de pessoas, foi forçada a se deslocar para fugir do conflito e mais de 1 milhão de pessoas não possuem casa. Para reconstruir o local, a ONU estima que pode ser necessário até 80 anos e R$ 200 bilhões.

Fuad Chahín e Patricio ressaltaram que os problemas do povo palestino não começaram no último mês de outubro.

Ambos já visitaram a Palestina e relataram como era a vida ali.

"Na Cisjordânia, para ir de uma cidade a outra, precisa passar por um checkpoint controlado por Israel. Eles controlam a água e os recursos naturais. Existem estradas para carros palestinos e estradas para israelenses. Então, não existe Cisjordânia, é uma zona ocupada, um

apartheid”, contou Fabricio. “Familiares foram separados por um muro de concreto de oito metros”, completou Fuad. A Cisjordânia abriga 3 milhões de pessoas, sendo 450 mil israelenses que vivem em assentamentos considerados ilegais pela comunidade internacional. O território, que foi destinado à Palestina na partilha de 1948, vive sob constante ocupação militar israelense, já que não possui Estado oficialmente constituído. Fuad Chahín destacou que, apesar desse cenário, sentiu, em suas várias visitas à Palestina, que o espírito daquele povo jamais desaparecerá. “Muitas vezes as cidades e os vilarejos foram apagados, as pessoas foram levadas embora, mas ainda assim alguma semente permaneceu e deu frutos e não pode ser apagada. E acho que isso prova que esse projeto de colonização, de limpeza étnica, não terá sucesso, porque a capacidade de resistência, de resiliência e de recuperação do povo palestino é inigualável”, comentou. Para Gazan Qahhat, da Comunidade Palestina do Chile, é essencial que os outros países latino-americanos se unam, assim como faz a torcida do Palestino, e denunciem o que acontece na Palestina, usando o direito internacional e a imposição de sanções a Israel.

“Espero que depois dessa tragédia, se forme um ponto de inflexão e que definitivamente possamos ter uma Palestina que viva em paz e livre”, confia Fuad.

É NOSSA IDENTIDADE, OS ELEMENTOS QUE VOCÊ VÊ EM NOSSA CAMISA, SÃO A NOSSA CULTURA, NOSSAS RAÍZES E A FORMA QUE O MUNDO NOS CONHECE.
estádio
Palestino.
Mural no
do
Babel 44 REVISTA BABEL JULHO 2024 45 futebol futebol
João Pedro Barreto/Revista

CHILE

A fé é tão importante para os chilenos que há um órgão estatal para promover a liberdade religiosa, a ONAR

Areligião é um aspecto tão marcante no chile que foi instituído um órgão governamental cujos objetivos são a promoção efetiva da igualdade e liberdade religiosa no país, além de propiciar diálogos inter-religiosos. A Oficina Nacional de Assuntos Religiosos (ONAR), criada em 2007, propõe, de uma perspectiva de Estado, que o povo possa ter a liberdade religiosa garantida pela Constituição.

As singularidades dos chilenos fazem com que seu mapa religioso, historicamente composto por mesclas, seja vasto até hoje. No entanto, em séculos anteriores, esse esforço para instituir a liberdade religiosa quase não existia. A fwé cristã, por exemplo, é introduzida de uma forma impositiva pela Igreja Católica no Chile com doutrinações, campanhas violentas e a instauração de igrejas e conventos.

É nesse contexto que o sincretismo do país surge, a partir da inventividade cultural dos originários para não perderem sua cultura. As mudanças seguem com o protestantismo, que inicialmente também não era aprovado pela Igreja e que, por sua vez, gera a fé evangélica, que engloba aspectos populares na religião.

ONAR

Em 1980, quando a nova constituição chilena foi promulgada, houve a separação entre Igreja e Estado, tornando viável a existência jurídica de outras crenças. Antes, não havia uma instância de interlocução entre governo e os distintos credos e igrejas.

O pastor evangélico e funcionário da ONAR, Gustavo Torres, afirma que a instituição é "um escritório que pertence ao Governo, nascido para cuidar da liberdade religiosa no Chile. A Igreja Católica tem uma forte influência aqui, mas a Igreja Evangélica [e outras crenças] tem pouca", aponta. Eles também analisam questões legislativas para que não afetem a liberdade religiosa. Torres conta que "o Escritório tem, por exemplo, diálogos permanentes com a Igreja Evangélica para garantir os direitos quando, por exemplo, um pastor não pode fazer uma oração em um hospital ou quando não o deixam pregar".

No começo do século XIX, quando aparecem grupos protestantes da Europa [eles] não eram permitidos e foram perseguidos pela Igreja Católica.

MESCLAS RELIGIOSAS

O sociólogo e historiador Bernardo Guerrero conta que os colonizadores, quando chegaram ao Chile e tiveram seus primeiros contatos com os povos originários, tinham dúvidas sobre os indígenas terem ou não alma. Sanada as questões, os europeus concluíram que deveriam evangelizá-los, pois havia a possibilidade dos nativos serem salvos.

Os indígenas, por sua vez, questionaram se os colonizadores teriam um corpo devido às vestimentas e às montarias e se eram mortais. Eles entenderam que sim e depararam-se com a imposição de um novo conjunto de crenças em seus territórios. "Há uma grande disputa em torno do sagrado, para o mundo autóctone da América Latina. O sagrado é diferente de Jesus, que é um símbolo, talvez, dos conquistadores", explica Bernardo. “Mas, aqui [o sagrado] se mistura com o culto à fertilidade, à mãe terra, à água e aí é onde se começa a produzir uma fusão ou uma ruptura, pois existia a extirpação da idolatria, uma campanha muito violenta que destruía todos os símbolos sagrados da cultura”

Assim, a paisagem religiosa chilena muda. "Quando chega a Conquista ocorre um processo mútuo de adaptação cultural, ou seja, os grupos não hispânicos pegam o que veem com o conquistador, mas o vão adaptando, camuflando a seus antigos deuses com essa roupagem cristã". A criatividade sociocultural faz com que

esses povos mantenham sua ancestralidade e convivam com o catolicismo, que não era visto nem praticado da mesma forma que era na Europa.

Essas mesclas de costumes religiosos continuam presentes na sociedade chilena. Um exemplo é a La Fiesta de la Tirana, uma grande festa que acontece anualmente, por vários dias em meados de julho, no norte do Chile. Bernardo conta que nela se misturam os cultos nativos com o catolicismo e cria-se um fenômeno muito característico da América Latina: o marianismo, que é o culto à Virgem Maria. Para os que seguem essa devoção à Virgem, a inclusão de danças e cantos populares nas festas religiosas e dentro das celebrações nos templos, torna-se uma tradição, o que não costuma acontecer em outros ritos da Igreja Católica.

A NOVA VERSÃO DO PROTESTANTISMO

A Reforma Protestante, que se opunha a algumas práticas da Igreja Católica, também chegou ao Chile. "No começo do século XIX, quando aparecem grupos protestantes da Europa, [eles] não eram permitidos e foram perseguidos pela Igreja Católica.

A perseguição chegou a tal ponto que os protestantes criaram os próprios cemitérios, e carregar uma Bíblia era visto como contrabando", explica Bernardo.

Anos depois, um movimento popular, uma nova versão do protestantismo, começou a incomodar os grupos vindos da Europa, que sentiram que deveriam domesticá-los, pois não seguiam a tradição européia. Bernardo conta que "em 1910, aproximadamente, surge o protestantismo popular evangélico pentencostal, uma nova versão no protestantismo. Eles são bibliocêntricos, são protestantes, mas dançam dentro do templo em um estado de êxtase, pois é a cultura popular."

Em momentos da "alabanza" (adoração), em igrejas ou em retiros, é comum que canções animadas sejam tocadas, muitas pessoas cantam, as palmas seguem no ritmo, alguns começam a saltar e há um sentimento que começa a ser extravasado por meio de danças. Saltos, giros, risadas são comuns na composição do momento, muitos se levantam e simplesmente dançam juntos, caminham dançando no recinto, como se compartilhassem uma mesma fonte de alegria.

EVANGÉLICOS E MÚSICA

NA ATUALIDADE

O cristianismo no Chile tem um início marcado por imposições,

“A fé se mescla com a identidade da pessoa, pois é preciso ser mais do que seguidor de Cristo, é ser um imitador Dele.

DARLING HENRIQUEZ, estudante

mas também rebeldias, como a criatividade sociocultural, pois o povo não ficou inerte nesse cenário. Assim, os cristãos evangélicos no Chile tem traços em suas tradições que foram heranças de mesclas entre a religião e a cultura popular. Javiera Burgos, estudante de tradução e interpretação na Universidade de Concepción, toca violão no Ministério Evangelístico Águias de Jesus, e vê na música uma forma de elevação ao divino, de adoração. A estudante conta que o ato de tocar uma canção tem um profundo significado. "Quando não toco me sinto vazia, seca, como se me faltasse algo e é porque cantar a Deus, não é somente dar-lhe glória e honra, pois me encho de sua presença, sua paz, seu amor”, relata Javiera. Camila Catalán, enfermeira e evangélica, conta que "o cristianismo é conhecer e seguir a Cristo como nosso Salvador e Senhor", sendo esse um dos princípios da fé. A maioria das músicas ou louvores, cantados nas igrejas evangélicas do Chile, baseiam-se em trechos da bíblia protestante, haja vista que a parte musical tem grande peso em momentos de adoração. Armando Sanchez, estudante na Universidade San Tomás conta que vivia uma descrença em relação à existência de Deus, mas sua percepção muda em um momento de adoração em uma igreja. "Minha oração era que eu queria sentir Deus em meu coração, um dia fui a um culto e estavam cantando um hino. Cantavam 'Cristo, Cristo nome sem igual' e nesse momento senti como se alguém batesse à porta do meu coração e me chamasse”. Sanchez relatava que "ter respostas de orações, esclarecimentos de valores bíblicos, ouvir a voz do Espírito Santo são exemplos de experiências vividas constantemente e que caracterizam minha fé".

Darling Henriquez, também da Universidade San Tomás, diz que a fé se mescla com a identidade da pessoa pois “é preciso ser mais do que seguidor de Cristo, ser um imitador Dele”. Para os seguidores da Igreja Evangélica, decisões de vida, definições de condutas morais e até traços do comportamento surgem a partir dessa identidade com o sagrado, que é muito forte no Chile, tanto para os cristãos, como para outras denominações religiosas. Com a existência de um órgão de Estado dedicado a promover a liberdade religiosa, o Chile mostra maturidade quando o assunto é reconhecer a relevância da religião, para além do catolicismo. Os significados das tradições mudam com a sociedade, projeta-se uma visão de mundo sob tudo que é feito e, quando se trata da fé, há uma complexidade que guia a conceituação da relação entre passado e presente.

Repórter CAROLINE KELLEN Edição JÚLIA CASTANHA
país cuja identidade é marcada pela religião Cortesia/Damaris Nieto Cortesia/Damaris Nieto Ayala “
um
BERNARDO GUERRERO, sociólogo e historiador
46 REVISTA BABEL JULHO 2024 47 cultura popular cultura popular

HISTÓRIAS POVO MESA

rela bem marcante, tem um sabor forte por conta do Ají Amarillo, pimenta muito utilizada no Peru.

CHEVERE

DE UM À

Babel conheceu restaurantes de culinária latino-americana em São Paulo e traz dicas do que você precisa experimentar.

Repórter e fotos MARIA CAROLINA MILARÉ

Edição LÍVIA MAGALHÃES

Pimenta , milho , abacate , mandioca Esses são alguns dos elementos que aparecem em diversos pratos da culinária latino-americana. Porém, apesar dessas interseccionalidades, cada um dos 39 países que compõem essa região do continente possui uma gastronomia singular, com sabores e origens únicos.

Por isso, eu, que adoro experimentar coisas diferentes, sabores novos e conhecer as histórias por trás dos alimentos, decidi fazer um pequeno passeio por alguns países da América Latina, sem sair de São Paulo. Por meio apenas da gastronomia. E posso adiantar que, em cada garfada ou mordida, é possível se sentir mais perto de cada lugar e se conectar com aqueles que dividem a origem da nossa língua.

Para iniciar essa experiência gastronômica, começo falando do Chévere Cozinha e Bar. Fazendo jus ao nome, o lugar é realmente muy chevere, ou agradável e gostoso, como diz a tradução. O lugar, que foi aberto há menos de dois anos por Érik Fernandes, filho de imigrantes bolivianos, poderia passar despercebido em uma rua qualquer da Barra Funda, mas é pela comida que ele conquista.

O cardápio é baseado na cultura boliviana, nas raízes do proprietário, mas também há especialidades de outros países. Experimentei alguns sabores de saltenhas, as empanadas bolivianas, que é o carro chefe da casa e um dos motivos de tudo ter começado. A mãe de Erik era dona do restaurante boliviano mais antigo de São Paulo, o Rincon La Llajta, que hoje também é comandado pelo filho e virou um lugar especializado nas típicas empanadas. Também experimentei os tequeños , rolinhos de massa frita com queijo, acompanhados de guacamole; tacos de costilla e chicharrón — costelinha de porco e torresmo, respectivamente —; um refresco de fresa, com xarope de morango, limão e hortelã e a chica morada, uma bebida típica do Peru, feita com uma variedade de milho roxo e especiarias. A comida me lembrou um pouco os sabores mexicanos, talvez pela característica apimentada, mas ainda com suas particulari-

Cada pedacinho de pimenta, milho, mandioca, possui um toque singular de onde veio.

dades. As empanadas, de longe as melhores que já comi em São Paulo, e os tacos, além de uma apresentação linda, trouxeram sabores tão complexos e ao mesmo tempo muito equilibrados. As bebidas, leves e refrescantes, trouxeram outra variedade de sabores até então desconhecidos por mim. Valeu a pena cada mordida e foi uma ótima forma de começar esse tour!

Continuando a jornada, um pouco mais ao oeste do continente, me aventurarei pelo Peru. Conheci o Rinconcito Peruano, criado pelo chef Edgard Villar, uma casa um pouco conhecida em São Paulo, com diversas unidades pela cidade. Experimentei um dos pratos mais pedidos da casa: o ceviche peruano com leche de tigre e milho crocante. Para acompanhar, algumas batatas e o molho de huancaína, tradicional do país.

Muitos acreditam que o ceviche é um prato de origem oriental, uma vez que é comumente servido em restaurantes de comida japonesa no Brasil. Porém, a iguaria nasceu no Peru, através dos pescadores que faziam uma marinada com os peixes para se alimentarem ali mesmo dentro dos barcos, durante as horas de trabalho. E, apesar da aparência ser realmente semelhante aos ceviches servidos em restaurantes japoneses, o gosto é diferente - o “leite de tigre”, caldo feito à base de peixe branco, coentro e limão, traz um gosto singular ao alimento. E, novamente, está presente o toque da pimenta. O milho crocante possui o dobro, ou talvez até o triplo, do tamanho do milho encontrado no Brasil e tem um sabor um pouco mais seco, mas que combina quando misturado ao caldo do ceviche. Por fim, o molho huancaína, denso e de cor ama-

E para terminar essa viagem de uma forma super leve, conheci o Café Colombiano, localizado dentro da Oficina Cultural Oswald de Andrade, no bairro do Bom Retiro. Marcado pelo ambiente acolhedor, o estabelecimento existe há mais de 12 anos e também foi aberto por imigrantes colombianos no Brasil.

Para comer, pedi uma arepa, um dos pratos mais conhecidos entre os latino-americanos. É uma espécie de panquequinha, feita à base de milho moído ou farinha de milho. A recheada com queijo me lembrou um pãozinho feito com tapioca granulada. Também experimentei o buñuelo, um bolinho doce frito, muito parecido com o bolinho de chuva brasileiro.

Para acompanhar, bebi uma Aguapanela, feita por uma infusão de rapadura, limão e especiarias que, apesar do nome estranho, é extremamente deliciosa e refrescante. Além dos salgados, o local também oferece almoço e, claro, diversos tipos de café, transportando seus clientes diretamente à Colômbia com uma decoração repleta de elementos que lembram o país.

A única parte ruim é que essa unidade do Café fechou. A Secretaria Municipal de

São Paulo encerrou o projeto de oficinas culturais pela cidade e o prédio em que ficava localizado o restaurante também foi desligado — uma perda à cena cultural de São Paulo e aos amantes do restaurante. Contudo, há um ano, foi aberta uma nova unidade, na Alameda Eduardo Prado e, que essa sim, ficará de portas abertas para novos visitantes.

Dessa curta jornada, dá para ter uma pequena noção de como a culinária latino americana é rica. Cada pedacinho de pimenta, milho, mandioca, possui um toque singular de onde veio. Os sabores que experimentei dizem um pouco sobre a cultura de cada lugar que estava ali representado, nos mostra como somos tão parecidos e ao mesmo tempo tão diferentes -, “seja por causa da imigração ou colonização que passamos”, como me disse o chef Érik.

É que a comida tem esse poder: de não apenas satisfazer e nutrir, mas de transmitir saberes, memórias e as história de todo um povo à mesa.

48 REVISTA BABEL JULHO 2024 49 guia guia
M Y U
Tequeños: Rolinhos de massa frita recheados com queijo e guacamole para acompanhar. Arepa com queijo na chapa: Disco de milho branco, muito tradicional na Colômbia e Venezuela. Taco de Costilla: Costela desfiada com salsa defumada, picles de cebola roxa, coentro e guacamole.

EM BUSCA DAS PEÇAS SAQUEADAS

Retirada clandestina de fósseis valiosos do Brasil expõe colonialismo científico praticado há séculos por países do Norte global.

Repórter GABRIEL GAMA

Edição e Arte JULIA CUSTÓDIO Fotos REPRODUÇÃO/ACERVO MPPCN

Dentro de um contêiner atracado em um porto no norte da França, havia algo que pertencia ao povo brasileiro.

Duas toneladas e meia de fósseis extraídos ilegalmente do sertão cearense e embalados em jornais do Diário do Nordeste estavam prestes a serem vendidos a colecionadores particulares e, quem sabe, alcançariam acervos de museus europeus sem levantar qualquer suspeita.

As autoridades francesas descobriram a carga contrabandeada em 2013. Os 998 fósseis de plantas, peixes, insetos, tartarugas e dinossauros nunca deveriam ter saído do Brasil. Mas eles só retornaram ao país em dezembro de 2023, depois de um processo judicial internacional que se arrastou por uma década.

A restituição desse patrimônio único, avaliado em mais de um milhão de euros, só foi possível porque o governo do Ceará desembolsou a quantia de 330 mil reais para contratar o seguro do transporte dos fósseis de volta ao território nacional.

“É como se fosse pagar um resgate por algo que foi roubado de nós”, diz Juan Cisneros, paleontólogo da UFPI

“É como se fosse pagar um resgate por algo que foi roubado de nós”, afirma Juan Cisneros, professor de paleontologia da Universidade Federal do Piauí (UFPI). Nascido em El Salvador, ele vive a maior parte da vida no Brasil e se dedica a pesquisar e denunciar o tráfico de fósseis e o colonialismo científico. Esse conceito se aplica quando a ciência de um país é feita majoritariamente fora dele, como se a própria nação não tivesse condições de desenvolver pesquisas e produzir conhecimento. Na América Latina, teve início no período da colonização, já que os colonizadores costumavam levar animais, objetos e minerais que tivessem valor monetário, histórico ou científico para as sedes dos impérios europeus.

Nem mesmo a paleontologia, área da biologia que estuda a vida do passado remoto da Terra, consegue escapar disso. “As ciências naturais têm sua consolidação justamente na época da exploração colonial, e por isso mesmo já nascem colonialistas”, avalia Cisneros.

Se reconstituir a vida que existiu no planeta há milhões de anos é um desafio da paleontologia, essa tarefa se torna quase impossível quando os vestígios estão a um oceano de distância de onde foram encontrados. Tente montar um quebra-cabeça com peças espalhadas pelos continentes e o resultado final será um quadro repleto de lacunas.

UM QUEBRA-CABEÇA

ESPALHADO

PELO MUNDO Os fósseis brasileiros recuperados da França em 2023 estão hoje no Museu de Paleontologia Plácido Cidade Nuvens, em Santana do Cariri, no sul do Ceará. A cidade está inserida na Bacia do Araripe, geoparque mundial da Unesco e conhecida como um dos cinco sítios paleontológicos do mundo mais ricos em evidências do período Cretáceo (entre 145 e 65 milhões de anos atrás). Este é, justamente, o local de onde partiram os fósseis descobertos no contêiner.

JULHO 2024 51 patrimônio patrimônio

88%

DOS FÓSSEIS DA BACIA DO ARARIPE

DESCRITOS EM PUBLICAÇÕES

CIENTÍFICAS

ESTÃO EM MUSEUS

ESTRANGEIROS.

O grande diferencial da região está no grau de preservação dos vestígios encontrados. “Quando a gente fala em fóssil, você pensa só em osso, mas aqui [na Bacia do Araripe] não é só esqueleto. A gente tem a asa da libélula, o coração do peixe, a crista do pterossauro, são detalhes que não tem em outros lugares”, explica Allysson Pinheiro, diretor do Museu de Paleontologia que recebeu os fósseis repatriados.

A Bacia do Araripe é tão rica em fósseis que, durante a década de 1970, os achados eram vendidos em feiras livres, como se fossem frutas ou legumes. Nas casas, eram objetos decorativos e usados até mesmo como peso de porta. Essa abundância despertou o interesse de cientistas estrangeiros, que passaram a frequentar Santana do Cariri e pagavam quantias ínfimas pelas preciosidades encontradas pelos trabalhadores locais. No ápice da exploração, caminhões carregados de fósseis deixavam a cidade e partiam de navio para a Europa e os Estados Unidos, sem deixar registros.

“Naquela época, ninguém da região entendia que aqueles fósseis eram tão raros e valiam tanto dinheiro”, diz Pinheiro.

Desde 1942, a legislação brasileira estabelece que os fósseis são propriedade da União, e, portanto, não podem ser comercializados nem transportados para fora do país sem uma autorização específica.

Tão antiga quanto a corrida pelos fósseis no Ceará é a desobediência da lei. Uma pesquisa, publicada em 2022 na

Caixas com fósseis repatriados, em Santana do Cariri.

“A GENTE NÃO ARREDA O PÉ DA DISCUSSÃO SOBRE REPATRIAÇÃO DE FÓSSEIS, É MUITO

IMPORTANTE PARA O TERRITÓRIO.

tionáveis que levaram o fóssil a pisar em solo europeu.

Fruto de anos de negociação, a repatriação se tornou um marco no debate sobre restituição de patrimônio histórico-cultural e movimentou as redes sociais na época, com a hashtag #UbirajaraBelongsToBR (Ubirajara pertence ao Brasil). Hoje, o dinossauro, antes exilado, faz parte do acervo do Museu de Paleontologia Plácido Cidade Nuvens.

O retorno dos fósseis para o local exato de onde foram retirados não é mera coincidência. Juan Cisneros explica que o fóssil é uma riqueza, um item de valor cultural que chama a atenção do público, contribui com a cultura e educação local, gera renda e atrai turismo.

CONTANDO HERANÇAS

revista Royal Society Open Science, estimou que 88% dos fósseis da Bacia do Araripe descritos em publicações científicas estão em museus estrangeiros, uma clara evidência do colonialismo científico. Mais da metade desses artigos não tiveram a participação de pesquisadores brasileiros.

FÓSSEIS EXILADOS TAMBÉM SENTEM SAUDADE DE CASA

O processo judicial pela posse dos fósseis interceptados na França se baseou na lei de 1942. O mesmo ocorreu na mobilização pela recuperação do dinossauro Ubirajara jubatus, datado de 100 milhões de anos atrás e também extraído ilegalmente do Ceará. Considerado o dinossauro mais antigo da Bacia do Araripe, em julho de 2023 o exemplar foi devolvido ao Brasil pelo governo da Alemanha, que reconheceu as circunstâncias ques -

palentologia

“Quando esses fósseis não estão no Brasil, estamos perdendo todos esses benefícios. Temos que lutar pela preservação e para que eles estejam, de preferência, no lugar mais próximo de onde foram encontrados”, analisa.

Prova dessa importância é a visitação expressiva do Museu de Paleontologia de Santana do Cariri: a instituição recebe entre 20 e 30 mil visitantes por ano, número superior à população do município cearense (cerca de 16 mil habitantes, segundo o Censo 2022).

“O museu é um grande suporte econômico para a cidade. Nossa região tem enormes desafios socioeconômicos, IDHs baixos, precisa de motores para o desenvolvimento. É por isso que a gente não arreda o pé da discussão sobre repatriação de fósseis, é muito importante para o território”, afirma Allysson Pinheiro, diretor do museu.

Um dos argumentos usados pelos europeus e norte-americanos para justificar a apropriação dos fósseis da América Latina é a alegação de que eles são objetos anteriores à presença humana no planeta. Como se, por não terem coexistido com pessoas, os países não tivessem o direito de reivindicar a posse dos fósseis. Essa linha de pensamento é defendida por cientistas como John Nudds e John Martin. Nudds, da Universidade de Manchester, publicou um artigo em 2001, na revista Geological Curator, em que desafiou seus colegas a ignorarem o código de ética da Associação de Museus do Reino Unido e afirmou que “os fósseis não guardam qualquer relação com o país no qual foram preservados”. No mesmo periódico, Martin assinou um artigo em 2018, e defendeu a tese de que “fronteiras geopolíticas não existiam quando os organismos fossilizados eram vivos, logo, os fósseis não possuem identidade nacional”. Juan Cisneros se opõe radicalmente a essas ideias: “O fato de algo ser mais antigo que nós não significa que não seja nosso dever cuidar dele, é algo que a gente herdou. Um país que herda um patrimônio tem a missão de zelar por ele”. Felizmente, o debate está evoluindo. “Nem sempre foi assim, mas hoje conseguimos discutir abertamente com instituições, países e a comunidade científica internacional e mostrar que esses fósseis são daqui, são um direito do povo do Brasil e podem mudar a realidade da população. Eles nunca deveriam ter saído do país, mas os que saíram merecem retornar”, complementa Alysson Pinheiro.

52 REVISTA BABEL JULHO 2024 53 patrimônio patrimônio
“Se

não há água, nao há

descanso”

Como o não acesso à agua muda vidas de comunidades rurais e indígenas pela America Latina, uma luta predominantemente feminina.

Repórter ISABELLA MARIN

Editor RODRIGO TAMMARO

Arte ISABELLA MARIN E RODRIGO TAMMARO

Apesar da abundância de grandes reservatórios hídricos da América Latina, políticas públicas são necessárias para que a água chegue à boca de todos. O problema inunda todas as esferas: da luta de mulheres rurais e indígenas por sistema de abastecimento até centros com água sem tratamento.

LUZ HARO GUANGA, EQUADOR

“Quando menina, parte das minhas tarefas na infância era carregar água em barris, nos braços, por quase um quilômetro em uma encosta inclinada para cima. Tinha que levá-la do rio onde descíamos para lavar roupa, tomar banho e carregá-la até a casa, para nos abastecer e alimentar”, conta Luz Haro Guanga, de 75 anos, equatoriana nascida na parroquia rural Matus, comunidade de Aulabug, na província de Chimborazo. A comunidade fica a 25 quilômetros de distância da capital da província, Riobamba. Hoje, Luz vive na zona rural de Fátima, província de Pastaza, no coração da Amazônia equatoriana.

A conversa com Luz aconteceu em um sábado e só foi agendada um dia antes. O Equador passa por uma crise de energia elétrica, que tem como princípio uma grave seca em consequência do El Niño e impacta a produção das usinas hidrelétricas do país. O país sofre racionamento e, por isso, a população descobre apenas dias antes quais

“NA INFÂNCIA, NUNCA SOUBE

O QUE ERA UMA ESCOVA DE DENTE, UM SABONETE. TOMÁVAMOS BANHO COM SEMENTES. QUANDO CONVERSEI COM PESSOAS PELA AMÉRICA LATINA, ME DISSERAM:

‘CONTINUAMOS A USAR ISSO.’ LUZ HARO GUANGA

serão os horários em que haverá energia.

A história de Luz se assemelha com as de tantas outras que vieram antes e depois dela. Em áreas rurais da América Latina, a falta de acesso à água é uma realidade que carece de atenção. Luz é secretária executiva da Red Latinoamericana y del Caribe de Mujeres Rurales (Red LAC) e luta pelos direitos das comunidades rurais. Um deles é pela água, reconhecido em 2010 pela Organização das Nações Unidas (ONU) como um direito humano, assim como o direito ao saneamento. Para Luz e sua família, preocupar-se com a água sempre foi uma questão. Durante a infância, seus pais fizeram um buraco na terra para retirar água de uma forma mais fácil. Porém, ao chegar o calor do verão, este buraco secava e assim retornava a rotina de caminhar até um rio próximo para carregar água em barris, dessa vez com o sol escaldante no céu.

A atual secretária-executiva da Red LAC tem formação apenas nos anos iniciais da escola primária. Sua função principal ao crescer era trabalhar nas tarefas de casa, carregar lenha, barris de água morro acima e atender as necessidades de seus outros oito irmãos. A luta pela água era, portanto, feminina, por um bem que seria utilizado em atividades com fins domésticos. Elas que levavam as roupas para serem lavadas na beira do rio e carregavam os barris que abasteceriam a casa e ajudariam a preparar as refeições.

Mapa dos principais segmentos de rios e linhas centrais de lagos que percorrem a América Latina.

Fonte: Natural Earth/2021

Depois de alguns anos, chega água encanada na comunidade de Aulabug, a partir da mão de obra dos homens e seus filhos que também cresciam ali. Era, para eles, considerado um grande milagre: o acesso à água perto de suas casas.

ANGELINA BARRIENTOS, PARAGUAI O milagre da água é o que outros povos situados em diferentes partes da América Latina pedem para si próprios. Comunidades buscando formas de acessar esse recurso natural arduamente encontrado em sua região não são situações comuns apenas no Equador. Em comunidades indígenas, o não acesso à água é recorrente.

A região conhecida como Occidental Chaco Paraguayo, em Boquerón, concentra a maior parte de povos indígenas do Paraguai. “Ainda existem comunidades que consomem água salinizada e não potável e sabemos que a água tem a ver com a saúde. A água potável é um direito humano e uma necessidade grande na nossa América Latina que não foi atendida até agora. É um problema que ocorre todos os anos e nunca acaba”, conta Angelina Barrientos, integrante da Organización de Mujeres Indígenas Guaraní (OMIG).

A solução é a construção de poços artesianos ou cisternas, porém esses sistemas não são tão simples de serem implementados. Algumas regiões não são aptas para perfuração de poços, pela ausência de água fresca subterrânea. Enquanto isso, algumas regiões do país não contam com alta taxa de precipitação, o que dificulta o uso de um sistema de cisterna, ou seja, filtrar a água a partir da coleta da chuva.

Com a ajuda de instituições não-governamentais, foi possível construir alternativas para obter água em comunidades Guarani que vivem em Chaco: uma cisterna familiar na comunidade de Macharety e um poço na comunidade de Santa Teresita, onde há água fresca subterrânea. Ainda que o acesso à água potável pela captação da chuva seja mais fácil na região, ele ocorre com dificuldades visto que a chuva em Charco não ocorre com frequência. Essas comunidades conseguiram formas alternativas para ter acesso à água, o que não acontece em outras partes. Em épocas de seca, moradias ficam sem água por horas prolongadas, enquanto outras casas têm água encanada, mas sem tratamento, o que provoca enfermidades diversas para a saúde de quem a utiliza.

A ÁGUA PELO OLHAR POLÍTICO Para Esteban Castro, o tema do acesso à água é uma história de múltiplos fracassos. O Doutor em Ciência Política pela

54 REVISTA BABEL JULHO 2024 55 meio ambiente
meio ambiente

QUANTIDADE TOTAL DE CISTERNAS E OUTRAS

TECNOLOGIAS DE ACESSO

À ÁGUA NO BRASIL

São 958.615 tecnologias presentes para uso familiar, agrícola ou escolar em 1.446 municípios brasileiros. Mais de 80% das cisternas construídas são para acesso à água para consumo humano (789.635 cisternas). O restante é direcionado para produção de alimentos. A região do semiárido brasileiro concentra a maior parte dos dispositivos. Fonte: Painel Geoweb MDS/2017.

Mulheres da comunidade de Santa Teresita no local da perfuração do poço artesiano

MAPA COM AS MACRO REGIÕES HIDROGRÁFICAS DO BRASIL

Atlântico Nordeste Ocidental

Amazônica

Tocantins-Araguaia

Paraguai

Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO), o Brasil ocupa o primeiro lugar de fonte renovável de água doce. O Sistema Aquífero Grande Amazônia (SAGA) é o maior do mundo, com mais de 162 mil quilômetros cúbicos de água. O Aquífero Guarani é considerado o segundo maior, com cerca de 39 mil quilômetros cúbicos. Este último é compartilhado pelo Brasil com o Paraguai, Argentina e Uruguai. E Colômbia, Peru e Venezuela também aparecem no ranking mundial dos dez países com maior reserva hídrica.

Uruguai

Paraná

Atlântico Nordeste

Parnaíba

São Francisco

Atlântico Leste

Atlântico Sudeste

Atlântico Sul

No Rio Grande do Sul, está a Lagoa dos Patos, maior laguna da América do Sul e uma das maiores do mundo. 85% do fluxo da laguna é de água doce através do Rio Guaíba, proveniente do sistema Jacuí-Taquari. Fonte: Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA)/Maio de 2024.

Universidade de Oxford com enfoque em Ecologia Política, aponta a década entre os anos 80 e 90, que ficou conhecida como a Década Internacional da Água Potável e do Saneamento. No dia 10 de novembro de 1980, a ONU instituiu esta campanha para que o abastecimento melhorasse em todo o mundo até 1990, além de defender o uso responsável do recurso, sem desperdícios. “A meta era levar 40 litros de água para cada ser humano do planeta. Chegamos em 1990 e verificou-se que uma porcentagem muito elevada da população mundial não tinha água. Esse foi o primeiro fracasso.”

Segundo Castro, que também é professor de Sociologia na Newcastle University e afiliado ao Centro de Estudos da América Latina e o Caribe (CLACS), esta não é uma questão de tecnologia, mas de melhores políticas públicas e da democratização do acesso às populações. “A tecnologia de água potável e de qualidade é um serviço básico que existe desde o século XIX. Não é um problema de investimento em tecnologia, mas um problema político, porque quando os investimentos são feitos, não são para ajudar as pessoas que precisam.”

Na América Latina, o problema não perpassa a falta de água doce, pelo contrário. É uma região com variedade de climas, inclusive localidades áridas e semiáridas, ainda assim, representa um dos principais reservatórios de água doce do planeta. Segundo a Organização das

SERÁ QUE TER UMA

CASA À TER UM

ABRIGO ONDE SE PODE DESCANSAR BEM? ÁGUA É O PRINCIPAL, NÃO SE PODE VIVER SEM. SE NÃO HÁ ÁGUA, NÃO HÁ DESCANSO.

ANGELINA BARRIENTOS “

Apesar da abundância, ainda há escassez. Buenos Aires já foi referência em cobertura de água, por volta da década de 1930. Hoje, não é mais a mesma. “Ela é uma das mais ricas cidades da América Latina, a Argentina tem o Rio da Prata, mas quem está nas favelas da cidade não tem água, é isso que estamos vendo”, comenta o professor. A situação é comum a determinados povos e indivíduos. “O problema está aí e, obviamente, o problema mais sério geralmente está nas comunidades afro-americanas, indígenas ou muito pobres. Esse é um padrão geral em toda a nossa esfera, seja ela urbana ou não.” O termo racismo ambiental é empregado para desigualdades sociais e ambientais que povos minorizados e vulneráveis sofrem diariamente. O não acesso à água é um problema ambiental, e na América Latina é possível ver essa realidade. O emprego do termo deve ser cauteloso, entretanto. “É utilizado amplamente, mas não é sempre que reflete com precisão o problema”, diz o doutor em sociologia. Por isso, Castro fala de desigualdades e injustiças interseccionais, de raça, etnia, gênero e classe. A faixa etária também pode ser um agravante, com crianças e idosos sendo as parcelas de indivíduos mais expostos aos impactos. Segundo o professor, o Haiti e a República Dominicana estão entre os países com as piores realidades, tratando-se de água, na América Latina. A maioria das pessoas que vivem nesses lugares dependem de água engarrafada: “Não são os que mais consomem, como o Brasil ou México, mas é onde a população mais depende de água engarrafada. Você tem dois casos bem diferentes, um é muito pobre, o outro é mais rico e ainda assim o problema é muito grave nos dois.”, analisa o professor. Ao tratar da luta ambiental pelo acesso, uma necessidade é evidente: atenção e cuidado para as realidades vivenciadas pelos povos latino-americanos. Como menciona Castro, o apoio deve ser político. É dever dos Estados levar água à sua população e mudar histórias como a de Luz, no Equador, e a trajetória de lutas indígenas, como acontece com Angelina, no Paraguai.

56 REVISTA BABEL JULHO 2024 57 meio ambiente Cortesia/Angelina Barrientos
Legenda (total de cisternas) 1-414 415-993 994-1.748 1.749-3.110 3.111-10.719
Reprodução/Google Maps meio ambiente

Quarto pilar da ECONOMIA

O trabalho do cuidado ainda é uma realidade feminina, embora ele sustente toda a sociedade

A

s panelas estão vazias Há roupas espalhadas pelo chão, bebês desamparados e crianças vagando sozinhas, mas não só: ninguém cuida dos doentes, nem dos idosos. Se tudo isso parece um pouco surreal, o cenário fica ainda pior — basta as mulheres deixarem de fazer o que lhes é imposto todos os dias para o desastre acontecer.

Segundo relatório do Comitê de Oxford para o Alívio da Fome (Oxfam), 90% do trabalho de cuidado no Brasil é feito informalmente por famílias e, desses, quase 85% é responsabilidade de mulheres. Essa realidade é compartilhada, com mais ou menos desafios, por outros tantos países e caracteriza a atual situação da economia do cuidado — o conjunto de atividades e serviços que visem o bem-estar físico, psicológico e educacional de terceiros.

De fato, a Organização Internacional do Trabalho descobriu que as mulheres realizam 76% do cuidado não remunerado no mundo, dedicando 3,2 vezes mais tempo a essas tarefas do que os homens. Na América Latina, não é diferente. Elas trabalham até 29,5 horas a mais que os homens por semana.

A velha história do lavar-passar-cozinhar ser responsabilidade feminina ainda prevalece. E, enquanto o trabalho do cuidado promove uma sociedade produtiva, essas mulheres não recebem nenhuma compensação financeira por esses afazeres. “O sistema capitalista é sustentado pelo tempo das mulheres como um recurso implícito para a reprodução da força de trabalho, do capital e da sociedade”, não deixa negar a Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (CEPAL).

Essa remuneração, caso existisse, corresponderia entre 10% a 39% do PIB de qualquer país — é o que aponta a ONU Mulheres. O problema é que, na falta da remu-

O SISTEMA CAPITALISTA É SUSTENTADO PELO TEMPO DAS MULHERES. “

COMISSÃO ECONÔMICA PARA A AMÉRICA LATINA E O CARIBE

neração, as mulheres perdem a independência para os seus pares, ou, caso ocupem mais de uma função, tornam-se mais vulneráveis a doenças físicas e psicológicas.

Nada disso é por acaso. As mentes masculinas mais “brilhantes” desenvolveram teorias para explicar a inferioridade das mulheres e, assim, justificar sua submissão e falta de oportunidades.

Entram na conta a colonização e o cristianismo, fundamentais para o fortalecimento desse imaginário, a partir de figuras como a “mulher guerreira”, sempre explorada, ou a faz-tudo pela manutenção de seu casamento. Não suficiente, os problemas causados pela própria dinâmica perpetuam essa lógica. Caso da diferença salarial entre os gêneros, que acaba por sustentar o argumento de que se eles recebem mais, é justo que façam menos dentro de casa.

É nesse ponto que olhar para os países que avançam na pauta é importante. Entre eles, o maior destaque da América Latina é o Uruguai. Ainda em 2015, o país adotou o Sistema Nacional Integrado de Cuidados (SNIC) para gerar uma nova matriz da proteção social uruguaia. O resultado é um programa com serviços de cuidados a crianças, idosos e doentes, além de direitos trabalhistas aos cuidadores.

“O Estado de bem-estar social é formado por três eixos fundamentais: saú-

de, educação e previdência. Para o SNIC, as políticas do cuidado são o quarto pilar”, resume Delia Dutra, doutora em Ciências Sociais pela UdelaR. Esse olhar prioritário garantiu maior qualidade de vida, geração de emprego e participação feminina no mercado.

No entanto, o SNIC não considerou o envelhecimento populacional, resolveu a economia do cuidado por completo ou divulgou dados para comprovar seus resultados. Atualmente, enfrenta seu maior desafio: a diminuição do investimento em cuidado, depois da chegada ao poder do conservador Luis Lacalle Pou. “Existe uma visão individualista e o não reconhecimento do cuidado como direito”, explica Pedro Russi, doutor em ciências sociais na UdelaR.

Os problemas são muitos, especialmente com o desmonte do SNIC, mas o olhar atento ao que foi feito por lá ensina a lição de encarar o cuidado como parte fundamental da nossa sociedade. Isso também quer dizer debater equidade de gênero, oferecer todos os direitos aos trabalhadores, criar escolas e centros de idosos e expandir o sistema de saúde, com atenção para não repetir os mesmos erros. Como diz a especialista: “É preciso reconhecer o cuidado como um trabalho. O sistema de políticas que o contemple deveria ser inevitável, não uma possibilidade.”

58 REVISTA BABEL artigo
Texto LORRAINE MOREIRA Editor THIAGO CAMPOLINA
DOSSIÊ Reprodução/Roda Estúdio Fotográfico Reprodução/Thiago da Costa Oliveira/Museu do Índio/FUNAI

SABEDORIA ANCESTRAL

Baseada em conhecimentos e práticas tradicionais, a bioeconomia pela perspectiva indígena parte da conexão entre o território, seus ecossistemas e habitantes visíveis e invisíveis

Oconceito de bioeconomia é recente no Brasil, mas já é o foco de pesquisas e debates. Fluido e ainda em definição, este termo se destaca no contexto das mudanças climáticas, segurança alimentar e desenvolvimento econômico sustentável, mas ganha sentido também na vivência de povos originários. Apesar de ser um conceito que pode ser pouco conhecido por alguns indígenas, a bioeconomia é considerada uma forma de economia feita por eles há muito tempo.

Francisco Apurinã, indígena, mestre em Desenvolvimento Sustentável e doutor em Antropologia Social pela Universidade de Brasília (UnB), explica que a bioeconomia indígena se refere a “tudo aquilo que é cultivado, produzido e comercializado a partir dos conhecimentos ancestrais dos povos originários” — perspectiva também abordada por Francisco junto da pesquisadora Braulina Baniwa no estudo Bioeconomia indígena: saberes ancestrais e tecnologias sociais, de 2024, produzido em colaboração com as organizações Uma Concertação pela Amazônia e WRI Brasil. Segundo os autores, a economia indígena se baseia em modos de produção sustentáveis, que, além dos conhecimentos ancestrais, também empregam conhecimentos não indígenas. As práticas, costumes e técnicas de trabalho observadas na forma de lidar com a natureza e com o

Ceramista da aldeia Ucuqui-Cachoeira, São Gabriel da Cachoeira, Amazonas, faz roletes de massa cerâmica para subir o pote

mundo do meio (ywa thyxi), ocupado pelos humanos e não humanos; e o mundo subterrâneo (ywa ypatape thixi), ocupado pelos seres encantados.

O mundo do meio se divide entre os ecossistemas aéreo, aquático e terrestre — cada um com agências espirituais e guardiões protetores. Os pajés, como agências espirituais, são responsáveis por fazer a conexão entre os mundos com diferentes ecossistemas e seus guardiões, para que exista equilíbrio, manutenção e sustentabilidade entre eles.

que ela oferece podem diferir ou convergir entre os mais de 260 povos indígenas que vivem no Brasil, número de acordo com levantamento do Instituto Socioambiental (ISA) de 2023.

Conforme o antropólogo, a visão indígena da bioeconomia está conectada à relação interdependente e de respeito dos povos originários com o território, ecossistemas e seus habitantes — visíveis e invisíveis. Nessa relação, há a desconstrução da visão de posse do território e do que advém dele.

“Ao olhar as castanheiras, as samaúmas e diversas outras árvores, a gente não enxerga as notas de 100 ou de 50 reais, mas sim uma relação de parentesco, de interdependência, porque aquela árvore, aqueles animais ou aquele recurso aquático têm uma função, uma responsabilidade naquele ecossistema”, relata Francisco.

O MUNDO PELA

COSMOLOGIA INDÍGENA

Pela perspectiva indígena, a bioeconomia não pode ser compreendida apenas pelo produto ou serviço gerado, mas também pelo processo, que reflete o modo como esses povos entendem o mundo. Para explicá-lo melhor, Francisco usa como exemplo a cosmologia apurinã, que parte da existência de três mundos que precisam estar em conexão: o mundo de cima (ikyra thyxi), ocupado pelos seres celestes; o

Mulher Baniwa, de São Gabriel da Cachoeira, segura pimentas que colheu

Mulher Huni Kuin, da Terra Indígena Kaxinawá do Rio Jordão, Acre, monta painel com kene

A bioeconomia indígena se estrutura em uma relação com o imaterial, com a cosmologia, com a epistemologia e ontologia das plantas. “Para nós, todos esses ecossistemas têm um chefe guardião. Para você tirar alguma coisa, sobretudo para comercializar, você precisa estabelecer uma relação de negociação”, conta o pesquisador.

Antes de caçar, pescar e coletar recursos da natureza, o povo apurinã precisar pedir licença aos protetores e negociar com os guardiões em uma relação de respeito. Nesse contexto, a perda da biodiversidade e as mudanças climáticas são exemplos de alguns dos sintomas das ações humanas em larga escala que, prejudiciais ao meio ambiente e ao equilíbrio entre os ecossistemas, não seguem os princípios indígenas.

“Quando esses recursos naturais são destruídos, como estão sendo agora, esses guardiões que protegem eu e você, toda a humanidade e os outros seres existentes na natureza, eles vão embora, e com eles levam a caça, as frutas, a água, o peixe, tudo que nós precisamos para viver bem e para continuar vivos”, alerta Francisco.

ANTES DE CAÇAR, PESCAR E COLETAR RECURSOS DA NATUREZA, O POVO APURINÃ PRECISA PEDIR LICENÇA E NEGOCIAR COM OS GUARDIÕES EM UMA RELAÇÃO DE RESPEITO.

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1 Reprodução/Thiago da Costa Oliveira/Museu do Índio/FUNAI 2. Cortesia/Beto Ricardo/ISA 3. Reprodução/Débora Castor/Museu do Índio/FUNAI

BENEFICIAMENTO DE PRODUTOS

O estudo Nova Economia da Amazônia, com indígenas do Acre, Amapá, Amazonas, Mato Grosso, Pará, Rondônia, Roraima, Maranhão e Tocantins, mostrou produtos das principais atividades econômicas de povos indígenas, como o abacaxi, açaí, café, cacau, castanha, cupuaçu, murici e pimentas diversas.

Alguns desses produtos são usados para a subsistência e trocas internas, mas também são comercializados e transformados em negócios. Francisco cita como exemplos o café produzido pelo povo indígena Paiter-Suruí de Rondônia, as pimentas produzidas pelas mulheres Baniwa do Amazonas e as roupas e acessórios estampados com os grafismos do povo Yawanawa do Acre. Em 2022, o cafeicultor indígena Valdir Aruá, da aldeia São Luiz, Terra Indígena Rio Branco, Rondônia, foi o vencedor da 4ª edição do Projeto Tribos, idealizado pela 3 Corações. Valdir, que está envolvido com a produção cafeeira desde 2004, considera gratificante saber que o seu esforço e trabalho estão sendo reconhecidos a partir de sua participação na iniciativa. Ele define sua produção como “um café de qualidade produzido por indígenas Aruá” e conta que ele e sua família têm como objetivos “produzir um café de qualidade e ter um espaço no mercado”. No Sul do Brasil, a produção que se destaca é a da erva-mate. No território indígena Kaingang de Mangueirinha, município do Paraná, Jonatas Poxin, em entrevista à Babel com mediação da Kaingang Daniela Correia, conta que alguns moradores usam as folhas da erva-mate para fazer chá ou remédio e a maioria também as comercializa.

Jonatas conta que a colheita da erva-mate é feita através do processo natural da planta, tendo cuidado e respeito no plantio e produção. “Nossa erva-mate é nativa, o que é feito aqui respeita o processo da própria natureza, pois aguardamos os períodos certos do ano para ser retirada.”

Joel Anastacio, também em entrevista feita com mediação de Daniela, fala da importância cultural, social, ambiental e econômica

Valdir

Plantação de café de Valdir Aruá

da erva-mate para os Kaingang. A erva é considerada uma planta importante por suas características medicinais e energéticas, e na cultura Kaingang está conectada à cosmologia indígena, em que há a proteção da erva por seus guardiões.

“A erva-mate que é conhecida como chimarrão hoje em dia, antigamente era um momento [de produção] quando nossos ancestrais se reuniam para conversar com a comunidade”, explica Joel. No contexto ambiental, ele aponta a erva-mate como uma planta nativa cujo crescimento tem influência no micro e macroclima da região.

A BIOECONOMIA ESTÁ ASSOCIADA NÃO SÓ A PRODUZIR A PARTIR DE INSUMOS RENOVÁVEIS, MAS TAMBÉM A USAR RECURSOS

No cenário econômico, a erva-mate é fonte de renda para os Kaingang e também para os Guarani — etnia muito envolvida com o processo de patrimonialização da erva. Segundo Joel, essa é uma planta cujas potencialidades farmacêuticas e energéticas a tornam muito procurada por seus produtos e subprodutos.

PROTAGONISMO INDÍGENA

Georgia Jordão, geógrafa pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), explica que a bioeconomia surge no contexto da tentativa de reduzir as emissões de combustíveis fósseis, principalmente no cenário da comunidade europeia de produzir sem emitir gases de efeito estufa e de otimizar o consumo em termos de energia e de água. De acordo com a especialista, a bioeconomia surge como uma perspectiva muito aderente no Brasil, baseada em produtos e atividades com impacto positivo para o meio ambiente e para as pessoas. “Quando a gente fala [que são boas] para o meio ambiente, é que essas atividades são produzidas sem geração de gases de efeito estufa. Para as pessoas é porque essas atividades podem gerar emprego e renda, promovendo a inclusão social de grupos que são marginalizados da economia formal.” Lívia Menezes Pagotto, secretária executiva da iniciativa Uma Concertação pela Amazônia, explica que a bioeconomia é diversa e tem grande potencialidade no Brasil. Ela conta que o termo se estende desde o contexto dos biocombustíveis e a

NÃO EXISTE HOJE UMA

UNIDADE ADMINISTRATIVA

ADEQUADA PARA OS POVOS

QUE VIVEM, PRINCIPALMENTE, NA AMAZÔNIA, E QUE ATENDA

A PRODUÇÃO COLETIVA CARACTERÍSTICA DAS

COMUNIDADES TRADICIONAIS.

ANDRÉ FERNANDO BANIWA, liderança indígena

trajetória brasileira no desenvolvimento de um combustível renovável até as cadeias produtivas de produtos de comunidades tradicionais, dentro e fora da Amazônia. Nesse cenário, tanto Jordão quanto Pagotto reforçam a ideia que há muito o que aprender com o conhecimento indígena da bioeconomia. “Os povos indígenas nos ensinam muito sobre técnicas tradicionais

GEORGIA JORDÃO, geógrafa

Com o auxílio de grossas folhas de árvores, ceramista da aldeia de São Joaquim, Terra Indígena Alto Rio Negro, Amazonas, enverniza peça

de cultivo, sobre as formas de produção, sobre o entendimento de fenômenos climáticos e regulações climáticas que vêm sendo alteradas”, pontua Pagotto. “A bioeconomia precisa considerar os princípios culturais dos indígenas, de quilombolas, dos povos tradicionais como um todo”, diz André Fernando Baniwa, líder indígena e vice-presidente da Organização Indígena da Bacia do Içana (OIBI). Segundo ele, para tornar essas comunidades visíveis e protagonistas, a construção de conceitos, como o de bioeconomia, precisa incluir suas perspectivas. Assim, além de estruturar o termo de maneira geral, os povos podem adequá-lo conforme suas especificidades. Para impulsionar o protagonismo de povos originários na bioeconomia, é ainda necessário desenvolver mercados, principalmente internos, para o beneficiamento dos produtos nativos, além de desenvolver políticas públicas que possibilitem a estruturação das cadeias produtivas. “Não existe hoje uma unidade administrativa adequada para os povos que vivem, principalmente, na Amazônia, e que atenda a produção coletiva característica das comunidades tradicionais”, relata André.

Colaboração: Jacques Marcovitch, professor da USP e coordenador do projeto Bioeconomia - Estudo das cadeias de valor na Amazônia; Natália Bristot Migon, bióloga e doutoranda do Curso de Desenvolvimento Rural (PGDR/UFRGS); Victor Xunù, vice-cacique da aldeia Guarani Ka’a Mirindy.

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DE
FORMA MAIS EFICIENTE.
Cortesia/Valdir Aruá
Cortesia/Valdir Aruá
Reprodução/Thiago da Costa Oliveira/Museu do Índio/FUNAI

IDENTIDADE EM DIFERENTES

RITMOS

Mesclar línguas e culturas indígenas com ritmos como rap, pop e eletrônico tem sido uma maneira dos povos indígenas ganharem espaço no mercado musical.

m 2014 , em meio a um processo de reintegração de posse da aldeia de Jaraguá, menor terra indígena do Brasil, o rap emergiu para a comunidade como uma maneira de denunciar e chamar atenção para os riscos do fim do aldeamento localizado na zona norte de São Paulo.

A iniciativa de fundar o grupo Oz Guarani foi de Jefersom, 24 anos, de nome indígena Xondaro. “Por ser conhecida como a menor aldeia, as lideranças não tinham espaço para falar sobre a luta dos povos originários. Então, percebemos que por meio da música e da arte, poderíamos mostrar a nossa realidade e cultura”, conta Jefersom. Com a ajuda da Comissão Guarani Yrupa, o grupo conseguiu gravar um

videoclipe da música Contra a PEC 215, canção em português com trechos em guarani, que denuncia a questão do território e que tem estrofes que conversam diretamente com o povo indígena sobre rezas e fortalecimento espiritual. Com o produto audiovisual, a letra chegou à mídia e a órgãos públicos.

“O rap para a gente é a revolução através das palavras. Então, a nossa música vai falar sobre a demarcação de terra, as dificuldades, a falta de saneamento básico, a falta de atendimento de saúde e a fome”, aponta Jefersom. “Ao mesmo tempo, trazemos a força e a resistência ao cantar em guarani com o nosso povo”, complementa.

Com a divulgação na mídia do primeiro videoclipe do grupo, o Oz Guarani foi ganhando fama. As músicas já são ouvidas em outros países, como Paraguai, Chile e Bolívia. Mais importante que isso, para Jefersom, são os parceiros que a aldeia ganhou. Ao lado da luta indígena, eles apoiam a demarcação de terras no Jaraguá e oferecem oficinas para crianças e jovens da região.

Jefersom conta que o grupo chegou a atrair, inclusive, produtores. Porém, as propostas não condizem com os objetivos do grupo. “Não aceitamos porque se cantarmos alguma realidade muito forte sobre o nosso povo, eles pediriam para mudar a letra. Os problemas, a mídia não quer mostrar.”

Repórter BIANCA CAMATTA Edição e Arte JULIA CUSTÓDIO
Xakriaba
E
Cortesia/Edgar Kanaykõ
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“Do ponto de vista comunicativo é mais eficiente misturar gêneros que já estão funcionando. Não porque a gente quer fazer dinheiro, mas para nós, indígenas, termos uma relevância na música brasileira. Porque nós estamos fazendo história, mas ninguém escreve sobre isso”, pontua.

Apesar de isso contribuir com o crescimento desses artistas, há muitos preconceitos quando indígenas se apropriam de ritmos que não são tradicionais dos povos originários. “É só o indígena sair da aldeia, que isso já se torna motivo para a sociedade tirar a sua identidade.”

riedade cultural e musical na América do Sul”, provoca.

Saindo de terras brasileiras, subindo pelo Amazonas e Acre, temos um exemplo dessa variedade. Lenin Tamayo, 24, ainda criança, ajudava a compor canções, gravar videoclipes e pensar no figurino de apresentações da mãe Yolanda Pinares, cantora de música popular andina, nascida em Cusco, no Peru.

Para além de impactar a própria terra indígena, Oz Guarani teve a oportunidade de cantar para mais de 20 mil pessoas de diferentes povos durante um evento do Congresso Nacional, em Brasília. Para o cantor, esse foi o momento mais marcante do grupo.

FUSÃO DE CULTURAS

Já para o DJ e músico Nelson D., 38 anos, cantar em frente a lideranças indígenas em um evento que ocorreu no nordeste, em São Luís (MA), foi o momento mais marcante da carreira. “Quando os pajés foram até mim e falaram que se sentiram representados, foi muito forte”, lembra. Nelson nasceu em Manaus, mas foi adotado por pais italianos, por isso passou boa parte da vida na Europa, sabendo que era indígena. Lá fora, se apaixonou pela música eletrônica e começou a fazer batidas autorais.

MOTIVO PARA A SOCIEDADE

TIRAR A SUA IDENTIDADE.

NELSON D, cantor

De volta ao Brasil, já adulto, ele focou no processo de retomada e reconexão com a cultura indígena e continuou desenvolvendo a carreira musical. Nelson chegou a fazer mixagens e composições que remetiam à cultura dos povos originários, mas entendeu que era uma arte vulnerável e que deveria ser produzida e reproduzida com cuidado. Foi aqui que ele teve certeza que o estilo de música que mais curtia produzir era a eletrônica. É SÓ O INDÍGENA

Hoje, Nelson traz a cultura dos povos em seus trabalhos por meio de parcerias com músicos indígenas que viveram na aldeia e conhecem de perto a cultura. Os beats eletrônicos feitos para o primeiro álbum solo de Juão Nyn, 34 anos, gravado em tupi, são um desses exemplos. Juão é um artista do grupo indígena potiguara, nascido no Rio Grande do Norte, que começou a se conectar com a música por meio de canções infantis. Ele já participou de duas bandas, que se inspiraram em ritmos como rock, blues e pop. Nos grupos, mesmo sendo o único indígena, trouxe trechos em tupi e temáticas relacionadas aos povos originários, como a preocupação ambiental. Neste ano, ele inicia a carreira solo e, com isso, pretende fazer o “mundo não indígena entender o que é uma pessoa indígena.”

Além de cantar, Juão já trabalhou com outros tipos de arte e com educação. Hoje, ele trabalha também como curador do Coletivo Estopô Balaio, em São Paulo, no qual ajuda a promover apresentações culturais. “Eu produzo um show de artista indígena por mês na casa Balaio. Se no brasil tem 300 etnias, imagine a va-

“Viajando pelo país nas turnês de minha mãe, conheci muito de nossa diversidade cultural e aprendi o que significa ser quéchua. O ser quéchua não é só falar em quéchua, não é só pensar, é ser”, conta Lenin que faz parte dos povos indígenas quéchuas, que se distribuem pela região da Cordilheira dos Andes.

Com a música presente em sua vida desde quando estava no ventre da mãe, Lenin não poderia seguir outra carreira, a não ser a musical. Mas apostou em um ritmo um tanto quanto diferente do de Yolanda — o K-pop, ou melhor, Q’pop.

“TALVEZ NEM ELA NEM EU TENHAMOS PERCEBIDO, MAS O QUE EU

BUSCAVA ERA FORTALECER A MÚSICA ANDINA E TORNÁ-LA MUITO MAIS PODEROSA.

“O K-pop significou uma tábua de salvação, que esteve presente nos momentos mais complicados para mim”, lembra. Quando estudou em um colégio da capital, ele sofreu bullying devido aos seus costumes tradicionais e a um sotaque no espanhol que não era considerado adequado na cidade.

No fundo da sala, com o grupo de garotas, Lenin conheceu o estilo musical. Logo ficou fascinado com o fato de que pessoas do outro lado do mundo cantassem o seu próprio idioma, o coreano, e fossem escutadas internacionalmente.

“Comecei a envolver o trabalho da minha mãe com um pouco de influência do K-pop. Talvez nem ela nem eu tenhamos percebido, mas o que eu buscava era fortalecer a música andina e torná-la muito mais poderosa.”

Em 2020, ele lançou o primeiro single. Com música inspirada no gênero coreano e letra que mesclava espanhol e quéchua. Na parte cantada em sua língua, Lenin ainda se inspira em cantos típicos de festividades incas.

Em outubro de 2024, Lenin vai se apresentar na Coreia do Sul. Para ele, é como se um ciclo estivesse se fechando. Mas não foi tão simples chegar ao outro lado do mundo. Quando fez a fusão das culturas se deparou com muitas portas fechadas e preconceitos fora e dentro do seu próprio povo. “Mas também encontrei um valioso grupo de pessoas que ao ouvir a minha história e o que quero passar como mensagem, tornaram-se seguidores fiéis, o que para mim representa a minha família, a família que sempre quis ter.”

SAIR DA ALDEIA, QUE ISSO JÁ SE TORNA
Cortesia/Lorena Hollander Cortesia/Rodrigo Rodrigues
LENIN TAMAYO, cantor
Estúdio Fotográfico
Divulgação/Rodas
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Representação ilustrativa de alguns dos idiomas da família tukano; as posições na árvore não correspondem, necessariamente, à proximidade linguística.

ancestralidade ancestralidade

“Há 10 mil anos, a gente já tinha famílias distintas [no território nacional]”, explica a professora, ao comentar sobre a possibilidade de uma origem comum às línguas indígenas — hoje, em geral, rejeitada pelos linguistas.

TROCAS E DOMINAÇÃO CULTURAL

O atlas da Unesco usa de uma classificação que vai do “a salvo” até o “extinta”, com diferentes gradações de permeio. Mas, de forma geral, quando se fala de línguas indígenas brasileiras, “todas estão com perigo de enfraquecimento, porque o português está ficando cada vez mais a língua dominante, mesmo nos lugares onde a língua nativa é preservada”, explica Filomena. Parte do português brasileiro deve suas particularidades às línguas que já estavam aqui há muito mais tempo. É uma hipótese, mas pode ilustrar bem o fato: falar “aqui tem muito livro para eu carregar” no lugar de “muitos livros”, ou “eu sou vendedor de cavalo” em vez de “cavalos” — enfim, usar singulares quando a ideia é de plural — é um traço que o português brasileiro compartilha com várias outras línguas indígenas no território nacional, explica Filomena, mas que não aparece no português europeu.

O PORTUGUÊS TEM UM PODER DE INFLUÊNCIA

MUITO FORTE, QUE

ACABA ENTRANDO NA LÍNGUA.

NALDO TUKANO estudante de linguística

No entanto, o mais preocupante para as línguas indígenas ainda vivas é justamente o processo inverso: o avanço do português sobre elas. Algumas vezes, o idioma indo-europeu acaba substituindo-as completamente. “Conforme as línguas indígenas adotam mais palavras e estruturas do português, sua cultura e idioma são enfraquecidos”, diz a professora.

PESQUISA E FUTURO

Naldo Tukano, estudante de linguística na Unicamp e aluno de Filomena, tem a mesma preocupação. “O português tem um poder de influência muito forte, que acaba entrando na língua.”

Ele é falante nativo do tukano, língua cujas diferentes variedades formam sua própria família. Natural do Amazonas e

de São Carlos (UFSCar), lá descobriu mais sobre o que de fato fazia essa ciência — o estudo e a descrição da linguagem humana. Na universidade, descobriu que poucas pessoas estudavam línguas indígenas. Suas ideias de usar a tecnologia e incluir as línguas indígenas em plataformas digitais, como o Google, também não foram bem recebidas à época. Por isso, foi para a Unicamp, também por meio de um vestibular indígena, em 2019.

Hoje, trabalha com levantamento de corpus linguístico. Ele recolhe e descreve fenômenos gramaticais alimentando um repositório digital. “A pesquisa em si tem um objetivo real de, um dia, quem sabe — é quase uma utopia — inserir vários dados, trabalhar com áudio em alguma língua indígena — o tukano, por exemplo”. Para que, no futuro, talvez, o computador entenda a língua e consiga fazer traduções. “Quem sabe um dia a gente consiga fazer igual o inglês, o português, e estar em vários aplicativos, várias plataformas e até em teclados do computador”, idealiza Naldo.

ENSINO E RETOMADA

As influências linguísticas sobre as línguas indígenas, naturalmente, não se restringem ao português e aos outros idiomas falados no território brasileiro. Melancia é xãjau para os guarani-mbyá, mas para os guarani-ñandeva, é sandía, palavra de origem espanhola.

NO BRASIL, HÁ 43

FAMÍLIAS

LINGUÍSTICAS E DOIS GRANDES TRONCOS, ALÉM DE SEIS LÍNGUAS ISOLADAS.

O exemplo é de Jurandir Augusto Martins, morador da Terra Indígena do Jaraguá, local onde foi professor de ciências, artes e guarani, no noroeste da capital paulista.

O guarani é uma das línguas nacionais do Paraguai. Jurandir, cujo nome indígena é Tupã Jekupe Mirī, explica que, pela proximidade das aldeias ñandeva com esse país, alguns aspectos de sua fala são influenciados pelo castelhano — daí a sandía. Já os mbyá, mais distantes do Paraguai, têm maior influência do português.

“O guarani é muito forte, mas os elementos e as palavras em português adentram o idioma na forma de falar. E fica cada vez mais intenso. Cada ano que passa, eu vejo que muitas palavras já não são faladas devido a essa interferência”, explica o professor.

Apesar da docência, sua primeira língua é o português — ele aprendeu guarani na adolescência. Sua família não está no Jaraguá há muitas gerações, mas ele vê a presença indígena na área como uma forma de retomar a terra e os costumes. “Depois de muito tempo [da invasão portuguesa], nos anos 50, meus avós vieram para cá. Aí, agora, recuperamos muitas coisas que foram perdidas. Inclusive o idioma.” Ele e outros professores, com a ajuda de uma bolsa do MEC da ação “Saberes Indígenas na Escola”, começaram a produzir alguns materiais de ensino, como cartilhas em guarani. As aulas de guarani servem como forma de letrar os alunos nesse idioma e ele conta que a maior parte das crianças na Jaraguá são bilíngues em português e guarani, já que muitas famílias usam a língua indígena em casa. Mas, para Jurandir, os materiais que existem hoje ainda não são suficientes. “O ensino é muito complexo, então a gente precisa produzir mais materiais. A gente fez o primeiro material e já estava começando a produzir o segundo, de uma forma abrangente, como vídeos, livros de contos e essas coisas. E aí o programa parou.” No Jaraguá, Jurandir mora em uma comunidade guarani já estabelecida. Hoje, já deixou a sala de aula — trabalha com educação ambiental, falando de temas como plantio e reflorestamento para estudantes de fora que vão visitar sua tekoá (aldeia guarani).

filho de professores, Naldo hoje mora em Campinas, no interior de São Paulo. “Você acaba pegando um pouco do sotaque entre o português e o tukano. Assim como acontece bastante entre o inglês e o português”, explica ele, que hoje, em sua formação como linguista, se dedica a estudar o tukano. Naldo terminou o ensino médio em 2015. Segundo sua própria avaliação, não entendia tanto o que era linguística quando prestou o vestibular para a área — entrou na universidade para aprender a escrever melhor. “Eu tive muita influência do meu primo, que faz Letras. Ele trabalha bastante com essa parte de redação, e o meu sonho sempre foi tentar escrever o português nessa metalinguagem que o povo fala tanto na academia”. Em 2016, prestou e passou no vestibular indígena da Universidade Federal

Já Naldo e Kawakani veem suas passagens por Campinas e São Paulo como algo mais efêmero em suas vidas.

“É difícil a convivência, porque a cultura é diferente também”, explica Naldo. “Mas você vai tentando se adaptar à situação, porque sei que minha vida não vai ser sempre aqui. Tenho a intenção de terminar meus estudos, voltar para a minha região, criar uma organização ou trabalhar em organizações voltadas para línguas indígenas.”

Kawakami tem preocupações parecidas. Fala do difícil acesso à saúde em sua aldeia, e se preocupa com o cuidado bucal das crianças mehinako. Quer se formar em odontologia e voltar para lá. Mas esse não é o único motivo para querer um retorno. Há algo na vida citadina paulistana que a incomoda.

“Eu acho melhor [retornar], porque eu percebi que aqui em São Paulo é muita correria. É muito difícil a vida de vocês não indígenas, porque a vida do indígena é a melhor do mundo”. E quer espalhar a mensagem: “eu vou falar [isso] lá [quando eu voltar]”.

Cortesia/Naldo Tukano
Kawakami Mehinako. Reprodução/Acervo Museu das Culturas Indígenas Kawakami
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Mehinako. Reprodução/Acervo Museu das Culturas Indígenas

Sioduhi Lima

para além da estética

Natural do Alto do Rio Negro, no Amazonas, o estilista indígena Sioduhi Lima valoriza a ancestralidade e tece seus próprios valores e significados no mundo da moda

Repórteres AMANDA MARANGONI e JOSÉ VIEIRA

Edição ISABELLA MARIN

Foi a primeira vez que Sioduhi, indígena do povo Piratapuya, lançou uma coleção protagonizada pela modelagem feminina. Para o projeto, ele precisou adotar uma postura crítica em relação ao próprio histórico de lançamentos. O estilista conta à Babel que, em trabalhos passados, se inspirava em um aspecto agênero. Hoje, por outro lado, percebe que a modelagem masculina sempre se sobrepôs.

“É moda agênero, mas a pessoa tem que fazer uma camisa e uma calça. É moda agênero, mas a pessoa tem que fazer uma regata. Parece que o feminino é visto sempre como algo ameaçador do gênero”, reflete Sioduhi. “A coleção Amõ Numiã vem no sentido de celebrar todos os tipos de mulheres, independentemente se são cis ou trans. A mulheridade plena.”

Sioduhi nasceu na comunidade Mariuá, no médio rio Uaupés, também no Alto do Rio Negro. Os primeiros contatos do estilista com a arte remontam à infância. Seu pai, João Bosco, trabalhava com a produção de artefatos de uso cotidiano — cestas, tipiti, peneiras, remos e as próprias canoas.

Porém, foi por meio de sua tia, Regina Soares, que o jovem passou a se aproximar da moda. Ao observá-la trabalhar com costura, o interesse pelo ramo cresceu e logo notou que a profissão estaria em seu futuro, mesmo que não soubesse como entraria para a indústria.

Antes de estrear no circuito da moda, Sioduhi se graduou em Administração, em Manaus. Para iniciar os estudos, o estilista aprendeu a falar português com fluência aos 17 anos. Até então, sua língua de uso era apenas o tukano, predominante entre os povos indígenas do Alto Rio Negro. Quando se mudou para São Paulo, em 2019, o estilista passou por sessões com uma fonoaudióloga para desenvolver melhor a comunicação na língua portuguesa.

“Tecnicamente falando, minha língua é mais anasalada e horizontal, já o português é muito mais pra frente, então é algo muito mais diferente. Fora que há outras formas de ver o mundo por meio da língua, assim como a forma de vivenciar a vida por meio da minha língua. O humor é diferente, a comunicação corporal é diferente”, explica.

No mesmo ano, o jovem se matriculou no curso Modelagem do Vestuário na Etec Tiquatira, Escola Técnica Estadual localizada na zona leste de São Paulo. Após dois semestres, porém, o curso foi interrompido pela Covid-19. O isolamento social gerou a necessidade de se tornar polivalente, a partir de um aprendizado autodidata. Na mesma época, surgiu a coragem de se tornar um empreendedor: em 2020, a marca Sioduhi Studios deu seus primeiros passos.

Inicialmente, o estilista desenvolvia em pequena escala. As confecções não aceitavam fabricar suas peças, devido à preferência por grandes pedidos. Assim, Sioduhi comprou uma máquina de costura e, com a ajuda de vídeos na internet, aprendeu a manuseá-la. Além da produção, o artista imergiu na gestão das redes sociais, fotografia e design gráfico da marca.

Sioduhi Lima se inspirou nas Amõ Numiãs, as primeiras mulheres do Alto do Rio Negro, no Amazonas, para o lançamento de sua última coleção, em 2023. O projeto, intitulado Amõ Numiã: Ontem, Hoje e Amanhã , permitiu que o estilista de 28 anos mantivesse sua ancestralidade viva a partir da reverência às habilidades criativas e às tecnologias em cada uma das peças, seja o tucum, a trama ou a pigmentação natural.

Parece que o feminino é visto sempre como algo amecador do gênero.
SIODUHI LIMA
Cortesia/Sioduhi Lima
O estilista índígena Sioduhi Lima em seu ateliê
JULHO 2024 73 perfil 72 REVISTA BABEL perfil
Cortesia/Sioduhi Lima
Sou uma pessoa muito curiosa, naturalmente. Isso acabou ajudando muito na minha vontade de querer trabalhar com moda, na minha vontade de querer empreender e criar algo como o que eu acabei criando.

“Eu sou uma pessoa muito curiosa, naturalmente. Isso acabou me ajudando muito na minha vontade de querer trabalhar com moda, na minha vontade de querer empreender e criar algo como o que eu acabei criando”, declara. O jovem enfrentou alguns obstáculos no caminho para alcançar um ponto de visibilidade para seu ateliê. A princípio, o estilista pediu demissão e utilizou R$ 3 mil — provenientes de sua rescisão — para fundar a marca. Contudo, ao estabelecer contato com um fabricante preocupado com a rápida produção e o baixo custo de venda, todo o valor investido na primeira fase foi praticamente jogado fora. A pressa e a ausência de preocupação com detalhes e acabamentos não concordavam com o propósito de Sioduhi na moda autoral.

Longe de casa, diante de longos trajetos em um transporte público quase sempre lotado, Sioduhi se alinhou com a correria típica da capital paulista e lutou para sobreviver. Em uma cidade que pode soar fria àqueles que a visitam, o jovem se reencontrou e construiu uma importante rede de apoio.

Inspirada em uma cerimônia milenar que ocorre no Alto Rio Negro, na qual acontecem trocas de saberes e conhecimentos, a primeira coleção do estúdio foi nomeada Dabucurí. Lançada em novembro de 2020, as peças apresentavam cores que remetiam à peixes, frutos, alimentos e fibras do rio Negro.

“Tive que usar as ferramentas que eu tinha nas minhas mãos, como as fichas técnicas, de costura, de corte. Os pais do meu amigo tinham uma confecção e me ajudaram a entender um pouco nesse sentido”, relata. “Fui buscando ajuda para que eu pudesse entender melhor como funciona esse mundo da confecção. A partir disso comecei a melhorar.”

Sioduhi acredita que, cada vez mais, suas raízes indígenas se aproximam de sua criação. Com a fundação de sua marca em São Paulo, o estilista partia de uma retórica um pouco distante. Então, em 2022, volta para o Amazonas e se estabelece em Altamira — o que descreve como uma missão interna.

No mesmo ano, o estilista pôde aprimorar o projeto Maniocolor, um corante têxtil à base de casca de mandioca da Amazônia. O estudo do tingimento natural nasceu em 2021, com a coleção Pamiri 23. À época, Sioduhi utilizou aroeira para a pigmentação de uma jaqueta. Porém, descobriu que a planta estava em processo de extinção como consequência de sua exploração para uso em chás e tinturas.

Posteriormente, em uma viagem para Cusco, no Peru, o jovem notou a possibilidade de utilizar a mandioca como matéria prima. De volta ao Brasil, o projeto passou no edital do programa Inova Amazônia, do SEBRAE Nacional, e ganhou novos investimentos para sua ampliação. A técnica permitiu que Sioduhi ganhasse o prêmio ECOAR e fosse reconhecido como personalidade Fashion Future, pelo Instituto C&A.

O retorno para o Norte em 2022 também conversa com a tentativa de exponenciar nomes da região. Suas vivências se entrelaçam com seu processo criativo e, a cada coleção, ele traz o artesanato como um fator mais refinado à passarela, sem perder a linguagem minimalista. Mais do que a cultura indígena, é tempo de descentralizar a produção Rio-São Paulo e abraçar os talentos amazônidas, que envolvem pessoas ribeirinhas, extrativistas e quilombolas. O estilista aproveita para trazer denúncias sobre a emergência climática e social que a região enfrenta.

Modelo utilizando uma composição de moda indígena produzida por Sioduhi Lima na coleção “Amõ Numiã: Ontem, Hoje e Amanhã” (2023). O nome remete às primeiras mulheres, filhas do U m u koho Mahs u (Criador do Universo) e, de acordo com os mitos passados oralmente pelos povos indígenas do Alto Rio Negro, são as mulheres que dominaram miriã p u (flautas de jurupari) e fundaram um matriarcado. Assim, lideraram o manejo do território e do universo por um período na história.

Em fotos para a coleção Amõ Numiã, por exemplo, a modelo usa um capacete que simboliza a sabedoria, junto a um cropped em forma de pulmão; outra modelo usa uma máscara de oxigênio. Numa espécie de ilustração do absurdo, a sobreposição das fotos se equilibra entre o esmero e a destruição. De um lado, um tributo aos conhecimentos ancestrais que contribuem para a sobrevivência da Amazônia. Do outro, uma referência aos dias que Manaus passou sem oxigênio durante a pandemia.

“A cidade inteira ficou cheia de fumaça, fuligem, e todos os rios secaram praticamente”, relembra. “A Amazônia é muito assediada. As pessoas que vivem aqui e mantêm a floresta de pé estão passando por dificuldades diariamente. E ninguém se responsabiliza por essas coisas. As instituições precisam se atentar para que esse descaso não avance, em um momento em que estamos falando tanto de emergências climáticas.”

Atualmente, o estilista reside em Manaus, depois de um período em Rio Branco, no Acre. Ele também é um dos alunos do curso de MBA em Negócios e Estética da Moda da Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo.

Apesar de não ter uma coleção prevista para 2024, Sioduhi tem ganhado espaço no circuito internacional. Em abril, ele participou e desfilou no evento Sentir a Amazônia, em Lisboa — caracterizado como um dos momentos mais marcantes de sua carreira.

Se, em 2018, “orava” para se tornar trainee da Renner, agora, Sioduhi carrega a missão de não apenas trazer visibilidade para os povos amazônidas, mas criar caminhos sustentáveis para que a vida de seus colaboradores possa ser impactada positivamente.

“Hoje em dia eu vejo, com a minha marca, pessoas que trabalham comigo em uma equipe, como isso acaba impactando a vida dos parentes indígenas. Me faz pensar que eu estou numa missão muito maior do que apenas trabalhar por trabalhar”, conta.

Assim como sua homenagem às Amõ Numiãs e a sabedoria que deixaram para a descendência, Sioduhi reflete sobre suas conquistas no mundo da moda e os impactos em sua comunidade: “sinto e digo para mim que estou criando algo imaterial, que eu posso partir e que outras pessoas venham e continuem esse trabalho que a gente está fazendo hoje.”

“ SIODUHI LIMA Cortesia/Sioduhi Lima Modelo utilizando uma máscara de oxigênio com um cropped de pulmão, da coleção de 2023
Coleção de 2023 foi criada com manipulação têxtil, tingimento natural e artesanal com tecnologia ManioColor, além de técnicas de tranças e tear com fibra de tucum e tecido de algodão emborrachado de seringa da Datribu. Cortesia/Sioduhi Lima
Desfile da coleção “Amõ Numiã: Ontem, Hoje e Amanhã” (2023) com peças produzidas a partir de tecnologias manuais milenares das mulheres do Alto Rio Negro e habilidades criativas das mulheres de Manaus/AM e Ilha de Cotijuba/PA
Lima Cortesia/Sioduhi Lima JULHO 2024 75 perfil 74 REVISTA BABEL
Cortesia/Sioduhi

Pontos que unem

O bordado na América Latina é uma expressão artística diversa, que pode se constituir como um registro da memória coletiva de grupos sociais e uma ferramenta de resistência histórica a violências na região

Nas veias centenárias da América Latina, a arte têxtil e, em especial, o bordado costuram as histórias e memórias de parte das comunidades da região. Para além de uma prática artesanal, o bordado também é um ponto da trama de resistência contra opressões, por exemplo, das ditaduras espalhadas pelos países do continente na década de 70. Prática artística que existe há séculos, o bordado tem raízes tanto na Europa quanto na América Latina. Na tradição europeia, valores como família, religião e lar são colocados nos temas do bordado, ainda muito associado à visão de uma mulher dócil e submissa, em uma lógica social patriarcal.

Essa tradição chega ao Brasil, e aos demais países que foram colonizados, com a introdução de um tipo de prática do bordado, aponta Cleci Eulália Favaro, doutora em História pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS). A pesquisadora indica os bordados produzidos pelas primeiras gerações de imigrantes italianas do estado gaúcho como exemplo disso. As temáticas retratadas eram cotidianas e bordadas em panos de parede com pontos e linhas de baixo custo. “Os objetos que as mulheres bordavam com ponto cruz e linha azul, que eram econômicos, colaboravam com o reforço de um imaginário e representações da sociedade e das mulheres naquele tempo”, explica. Porém, antes mesmo da chegada dessas tradições coloniais, a arte têxtil e o bordado já existiam na América Latina. Os povos originários latino-americanos, sobretudo as mulheres indígenas, faziam bordados como forma de ressaltar a autonomia e o cuidado. E isso não a partir de uma posição de inferioridade, mas sim como aquelas que ocupam o papel de registrar a identidade e as narrativas de uma comunidade por meio do tecido. O bordado, nesse contexto, era um suporte da transmissão dos símbolos e das histórias de seu povo apesar das tentativas de silenciamento dessa prática, como também forma de resistência aos domínios coloniais.

FIBRAS QUE ATRAVESSAM EU E NÓS

“A arte têxtil, seja por um fio, por uma linha ou por uma palha, consiste no movimento de pegar um material e, a partir dele, fazer nascer um caminho, um bordado com símbolos e elementos de narrativas diversas”, diz Rosana Reátegui, contadora de histórias e artista peruana que mora no Brasil há 25 anos.

Na página à esquerda, peças do acervo do Memorial da América Latina. À direita, a artista Rosana Reátegui com um dos tapetes que usa para contar suas histórias

O grupo Tapetes Contadores em 2024

A artista veio ao Brasil pela primeira vez devido a um intercâmbio de graduação em Artes Cênicas na Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio). Na Universidade, em 1998, Reátegui teve contato com Tarak Hammam, artista franco-argelino, que narrava e produzia histórias por meio de tapetes costurados. No mesmo ano, inspirada pelo trabalho dele, a artista fundou um grupo junto a colegas da Unirio chamado Tapetes Contadores. O grupo continua ativo e se propõe a ir a teatros, museus, escolas e bibliotecas pelo Brasil e contar histórias com tapetes e outros elementos têxteis costurados e bordados, que, a depender da proposta da peça têxtil específica, pode ser inclusive manipulada pelo público.

“Com o coletivo, me vi aprendendo a linguagem do bordado e a narrar histórias de forma artística”, diz Reátegui. No Peru,

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Repórter CAROLINA BORIN Edição e arte LUÍSA HIRATA Carolina Borin/Revista Babel
Cortesia/Renato Mangolin Cortesia/Andressa Anholete

o têxtil foi e continua sendo presente em elementos muito diversos da identidade histórica e cultural do país, como as vestimentas tradicionais. A artista passou a conhecer e pesquisar a produção peruana entre 2004 e 2005. “Comecei a me perguntar sobre as histórias que trazia sobre a minha terra, identidade e cultura. Eu não narrava as histórias peruanas, sentia muita falta de ter esse repertório. Agora, elas me definem como artista migrante que se interessa pela temática latino-americana.” Para resgatar essas narrativas, em 2005, Reátegui desenvolveu aqui no Brasil o Manos que Cuentan, uma série de livros infantis bordados com algumas histórias peruanas da tradição oral. As crianças podem recontar e ressignificar as histórias por meio de personagens ou objetos removíveis e interativos que, tal como as páginas dos livros, também são bordados.

Reátegui com os primeiros livros da série “Manos que Cuentan”

Nos últimos anos, a artista está envolvida na história do Rio Amazonas. “Um lugar que é um rio, mãe, que nasce no Peru e deságua no Brasil. É diverso nas crenças e simbologias, canta em línguas originárias e também em português e espanhol, com histórias e lendas de figuras femininas como as Amazonas.” Dessa forma, para Reátegui, tornar-se contadora de história por meio do bordado vem sendo um processo de entender a si mesma em cada um dos momentos que já vivenciou na sua trajetória de artista, enquanto parte de uma comunidade e como indivíduo.

Para Larissa Gasparin, psicóloga e pesquisadora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), os fios do bordado podem permitir uma conexão com elementos da identidade de quem o faz, por conta do modo singular como a costura é feita. “Quando uma pessoa borda, ela coloca

Como numa dança, a trama do bordado é construída aos poucos, cada ponto é feito por um movimento original de quem borda, com uma velocidade e intensidade específicas, que costura o tecido de um modo único.

o corpo em cena”, afirma a psicóloga. Como numa dança, a trama do bordado é construída aos poucos, cada ponto é feito por um movimento original de quem borda, com uma velocidade e intensidade específicas, que costura o tecido de um modo único.

“O bordado resgata algumas memórias seja pelo que se borda, seja pelo próprio ato de bordar, acessando até mesmo um inconsciente do sujeito e suas memórias não tão próximas”, pontua Gasparin. Ao envolver toda essa entrega criativa, ele exige tempo para ser feito. Então, “quem vê [o bordado] também precisa de um tempo para se debruçar diante dele. O desenho, a trama te obriga a parar para olhar, para respeitá-lo”, comenta Reátegui.

BORDADO COMO TRABALHO

A cidade de Passira, no agreste de Pernambuco, é muito conhecida pelo bordado manual aplicado em artigos de cama e mesa. Apesar do bordado estar presente desde a origem do município, assim como em outras comunidades artesanais do Brasil, há um processo de desvalorização não só do bordado, como de toda prática artesanal.

“Quando era mais nova, eu e minhas irmãs acompanhávamos nossa mãe na venda dos tecidos e bordados. Depois que crescemos, passamos a vender sozinhas e perceber que os atravessadores não pagavam bem, era uma exploração, pagavam muito pouco.” O relato é de Maria Lúcia Firmino, bordadeira de Passira, conhecida como Dona Lúcia. A comercialização dos bordados era marcada por dificuldades, os valores pagos não eram justos e as condições de trabalho também não eram boas. Diante desse contexto, em 2008, as artesãs da região perceberam a necessidade de se organizar em um coletivo com o objetivo de encontrar soluções para o

Acima, Dona Lúcia, bordadeira de Passira. Na página à direita, ela e outra artesã participam do projeto de capacitação de Ana Julia Melo

bordado como atividade econômica. Fundaram a Associação das Mulheres Artesãs de Passira (AMAP) e Dona Lúcia foi uma das fundadoras e a primeira presidente.

Dois anos depois, as artesãs participaram do projeto governamental Pernambuco com Design, que aproximou as bordadeiras de profissionais do design e promoveu capacitações na área. As bordadeiras tiveram, inclusive, a oportunidade de produzir peças e bordados que participaram de desfiles na São Paulo Fashion Week. Nessa colaboração também desenvolveram um novo tipo de ponto chamado “doidinho”, mais livre e sem direção fixa, feito para ocupar grandes espaços de tecido.

Porém, em 2011, o projeto governamental foi finalizado e as capacitações para as bordadeiras não tiveram continuidade. Foi nesse contexto que Ana Julia Melo Almeida, designer pela Universidade de São Paulo (USP), conheceu as bordadeiras. Almeida já havia pesquisado uma comunidade de bordadeiras de seu estado natal, o Ceará, e decidiu acompanhar o trabalho das bordadeiras de Passira e transformar o estudo em seu mestrado, em 2012.

O mestrado teve desdobramentos práticos, dentre eles, a idealização do projeto Bordados de Passira. A proposta foi desenvolver um projeto de financiamento coletivo, que viabilizasse capacitações de modelagem, design e venda dos produtos, sem nenhum custo para as bordadeiras.

“As bordadeiras são uma mão de obra muito qualificada, mas tratada como precarizada”, pontua a designer. Em 2022, as mulheres no setor cultural, que inclui o artesanato, recebiam cerca de 23% a menos que os homens, segundo dados da pesquisa Sistema de Informações e Indicadores Culturais do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

Dona Lúcia relembra a importância das capacitações, que ainda têm desdobramentos no trabalho atual das bordadeiras da região. “Cada artesã foi para a área que gostava e tinha mais habilidade. Eu achava que não era capaz de mudar as coisas, mas isso mudou, aprendemos muito e repassamos os saberes para as novas gerações.”

As bordadeiras de Passira continuam ativas e produzindo novas peças. As artesãs fazem as vendas via redes sociais, além de

Detalhe das peças produzidas em Passira. Abaixo, resultados da capacitação

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Cortesia/Rosana Reátegui
Cortesia/Hélder Santana Cortesia/Hélder Santana Cortesia/Hélder Santana Cortesia/Eduardo Paschoal/Projeto Bordados de Passira Cortesia/Eduardo Paschoal/Projeto Bordados de Passira Bordadeiras na Associação das Mulheres Artesãs de Passira

clientes fixos da região produzindo roupas, sobretudo, para o público infantil, além das tradicionais peças de roupas e cama.

Hoje em dia, a AMAP conta com 40 associadas. Qualquer mulher da região, desde que pratique o bordado, pode se associar. A organização também promove cursos na zona rural de Passira para capacitar quem ainda não sabe bordar. “Há um caráter político e uma força em se organizar em um grupo de mulheres. Um coletivo que garante a sobrevivência dessas mulheres e a comunidade delas, além de fortalecer o trabalho do bordado em relação aos intermediários”, afirma Almeida.

As relações de gênero marcam a dimensão do trabalho e ganham novas nuances quando se pensa na prática artesanal do país. De acordo com o IBGE, em torno de 64% dos artesãos brasileiros eram mulheres. Essa realidade, porém, não deve sugerir que o bordado é uma atividade exclusiva das mulheres, como alerta Ana Julia. “Não podemos entender o bordado como um território essencialmente de mulheres, mas observar de quais maneiras ele foi utilizado por elas como espaço de trabalho, experimentação criativa e resistência.”

BORDAR É RESISTIR

Além de ser uma ferramenta de resistência contra as discriminações por gênero, o bordado também é usado para enfrentar violências políticas. Nessa camada, destaca-se o pioneirismo das arpilleras, técnica ancestral de bordado que surgiu em comunidades tradicionais no litoral do Chile. Os grupos de mulheres que bordavam, as arpilleristas, utilizavam tecidos chamados arpillera (juta, no português), que deram nome à técnica.

“Uma vez uma mulher que encontrei me disse uma coisa muito sábia: ‘Eu não sei ler e escrever. Mas preciso contar logo o que eu sinto. Eu sou uma bíblia’. Isso é o que é ser arpillera”, relembra Susana Alegria, arpillera chilena que reside atualmente no Rio de Janeiro. Ela começou a

Violeta Parra deixou de bordar flores e borboletinhas para bordar resistência, bordar como o povo sofria com o autoritarismo. Ela foi uma das primeiras mulheres latinoamericanas a usar o bordado para contar disparidades.

bordar quando criança, quando ainda era comum as escolas chilenas terem aulas de bordado e, nas famílias, as mães ensinarem os filhos a bordar.

Violeta Parra foi uma das pioneiras na história das arpilleristas. Durante a década de 60, Violeta enxergou no bordado a potencialidade de um instrumento de denúncia. “Violeta Parra deixou de bordar flores e borboletinhas para bordar resistência, bordar como o povo sofria com o autoritarismo. Ela foi uma das primeiras mulheres latino-americanas a usar o bordado para contar disparidades”, ressalta Susana.

Dessa forma, durante a ditadura militar chilena, as arpilleristas bordavam a violência e os silenciamentos, movidas pelo legado de Violeta Parra. A maioria desses grupos era de mulheres, muitas vezes parentes de pessoas desaparecidas e torturadas pelo regime, ou ainda que buscavam denunciar essa realidade. “O

À esquerda, Susana Alegria (canto esquerdo) com bordado feito com amigas arpilleristas. À direita, peça “Às mães que sofrem por seus filhos” de Susana em apoio à população palestina

sigiloso. O objetivo era escancarar parcela dos horrores dos porões da ditadura e fomentar denúncias.

A história das arpilleristas, no entanto, não se encerra na década de 80. Elas continuam seja pelas artes de Susana Alegria e Rosana Reátegui, seja pelo trabalho de coletivos contemporâneos, como o Linhas de Sampa. Parte do coletivo nacional Novelo de Linhas, o grupo de São Paulo conta com 40 integrantes ativos, sendo a maioria mulheres. Desde 2018, o grupo borda panfletos em retângulos de tecido, justamente para colaborar com essa ressignificação do bordado enquanto instrumento de luta, produzido coletivamente.

Com frases e imagens relacionadas à luta por direitos, igualdade e democracia, os panfletos são feitos e expostos em varais em eventos realizados em lugares públicos, como rodas de conversa e oficinas. Quem se interessar pode pegar um dos panfletos de graça. Rita de Cássia Lima, uma das integrantes, ressalta o papel que o grupo assume: “o Linhas borda, grita e denuncia”.

que é mais violento do que não ter uma marca, um corpo, um registro?”, questiona a psicóloga Larissa Gasparin. Como resposta a esse laço social perdido, “as arpilleristas registram as memórias daqueles violentados e, bordando, fazem uma marca no tecido e no tempo do que estava, até então, ausente”, afirma Gasparin. Nos anos seguintes, ainda durante a ditadura, com o desuso da juta e do custo alto de outros tecidos, as arpilleristas dessa nova fase, conhecidas como Arpilleras da Resistência, passaram a utilizar retalhos e tecidos de roupas. Parte dessas artes, inclusive, alcançaram outros países nesse período por meio da exportação de produtos ou roupas que continham esses materiais, em bolsos internos, colocados de modo

Cortesia/Linhas de Sampa

O coletivo esteve em diferentes momentos da história recente do país e dos movimentos sociais, como em eventos dos

A arpillera é algo que está vivo e ultrapassa fronteiras, sendo trabalhada em diferentes lugares pelo seu valor testemunhal, que transforma os tecidos em dispositivos de memória.

ANA BARRIENTOS, antropóloga chilena

Integrantes do Linhas de Sampa

40 anos do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), manifestações por justiça à Marielle Franco e atos em memória dos 60 anos da ditadura militar brasileira. “A arpillera é algo que está vivo e ultrapassa fronteiras, sendo trabalhada em diferentes lugares pelo seu valor testemunhal, que transforma os tecidos em dispositivos de memória”, diz Ana Barrientos, antropóloga chilena da Universidade Federal Fluminense (UFF).

Outro exemplo dessa difusão, o ponto de partida para Barrientos pesquisar o tema foi o conjunto de bordados Arpilleras, bordando a resistência, feito pelo Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) a partir de 2014, e que deu origem a um documentário em 2017. As artes denunciavam a realidade nas cinco regiões do país de mulheres atingidas por barragens, que transformavam a dor em pontos no tecido.

Uma expressão artística e forma de sustento para alguns grupos, o bordado nasce em grande parte pelas mãos de mulheres em suas diferentes subjetividades. Por meio da técnica da arpillera ou das demais técnicas do bordar, esse fazer possibilita marcar em um tempo e em um espaço, a memória, inclusive, daquelas e daqueles historicamente silenciados.

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Cortesia/Susana Alegria Cortesia/Susana Alegria
ALEGRIA, arpillera chilena Painel do Linhas de Sampa com os nomes dos 434 mortos ou desaparecidos reconhecidos pela Comissão da Verdade
Cortesia/Linhas de Sampa

Los quileros

Sobre uma portuguesa, as gêmeas Aceguá, homens de fronteira e um ofício chamado jornalismo

Repórter SARAH LÍDICE

Edição MARIA MILARÉ

Arte CAROL BORIN

Ojornalismo tem dessas. De ler Matilde Campilho, portuguesa de Lisboa e, com sua prosa, aprender que existem certos homens uruguaios que por alguns séculos têm sido chamados de quileiros. O nome sugere: eles levam quilos de produtos mais baratos do Brasil para vender no Uruguai, seguem na Rota 8, que liga as cidades uruguaias de Melo à Aceguá, eixo norte do país no estado de Cerro Largo, num vai e vem diário entre esses dois países. Antes a cavalos, depois de bicicletas, agora em motos ou em ônibus — e continuam a história assim. Coisas de fronteira.

O jornalismo tem dessas de responder perguntas do tipo “por que diabos esses homens atravessam essa rota e que rota é essa e que história é essa?”.

Então descobre-se que existe uma música do Sr. Osiris Rodriguez, um uruguaio do sul já morto, que cantou sobre estes homens e o “camino de los Quileiros”.

Disso, surge um outro senhor, de nome José María Techera. Desde pequeno, via seu pai comprando aguardente com os quileiros que voltavam do Brasil, fazendo pedidos como se fosse um negócio de distribuidora. “Me vê para a semana que vem 15 litros de aguardente?”, era algo assim no El Satélite, bar que ficava no bairro de Sousa da cidadezinha uruguaia de oito mil habitantes, Aceguá. Dividida por apenas uma rua de sua gêmea, homônima, e vizinha brasileira.

Descobre-se também que são apenas as pessoas da região sul do Uruguai a chamarem os quileiros de contrabandistas. Porque, para eles, de Cerro Largo, habitantes de regiões do norte próximas à fronteira brasileira, estes são apenas homens. Homens que trabalham. O Sr. Techera diz conhecer um, dois, três, dezenas de quileiros, é vizinho de alguns.

Como Beto, este sim. Ele representa os quileiros que tiveram sua história contada em filme sobre a visita do Papa João Paulo II em Melo. 1988. Pois Beto tinha a coragem de quem trabalha como quileiro por uma vida inteira porque precisa. Atravessando a Serra de Aceguá com pilhas, ervas, uísques,

joelho machucado e ainda pedalando. Às vezes, era pego por um tal milico Alvarez que nunca tirava o dia de folga e estava sempre na fronteira. Mas continuava, porque tinha filha e esposa, e com o que fazia a cada dia garantiam ao menos 200g de mortadela, três bolachas e um litro de leite.

A travessia foi eternizada no chamado Camino de los Quileiros, de paisagem seca e fria, montanhas tímidas, recheada de acordos tácitos com a alfândega… Muitos, com motocicletas de 40 libras calibradas a 90 para aguentar o peso, passam com os faróis apagados para não serem vistos pela polícia de fronteira.

Há os pesquisadores que borbulham de surpresa dessa história inédita. Do trabalho dos quileiros, escrevem artigos sobre como o Mercosul não funciona numa escala micro. Porque as políticas macro, com seus tantos quantos acordos de comércio que permitem a travessia da fronteira apenas com o documento de identidade, não isentam estes homens de continuarem o seu Camino. A demanda pelo serviço não para com o mercosul: os quase oito mil uruguaios em Melo com botijões de gás brasileiros em suas casas precisam de gás brasileiro para alimentar a estrutura. Então eles vêm em suas motos, equilibrando-se com 16 botijões de gás, ou gasolina, ou batatas, ou tudo isso junto, nos 60km que separam as cidades de Aceguá no Brasil e Melo no Uruguai. Quem passa hoje nesse caminho, no quilômetro 402 da Ruta 8 na direção de Aceguá, vê um conjunto escultural feito de sucata. Ali está um homem e sua carga, ajeitados numa moto.

Dessa história, descobre-se que muito do que Gabo e Galeano falam, das mortes infindáveis do povo latino-americano. Tem a ver com isso essa luta diária de dar antes a vida para depois ser possível a vida. De histórias assim, tão antigas quanto a criação das fronteiras elas mesmas, chegarem a certos ouvidos portugueses. Depois a certas mãos que escrevem.

Tem dessas e outras o ofício do jornalista, que faz existir textos assim, em revistas assim e coisa e tal.

Reprodução/Wikimedia Commons / Reprodução/Douglas Fernandes/Flickr 82 REVISTA BABEL crônica

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