Sobre arquitetos e sem-tetos

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sobre arquitetos e sem-tetos – técnica e arquitetura como prática política

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INTRODUÇÃO argumento Cheguei a afirmar, em outras oportunidades, que não experimentei, ao ingressar na universidade pública em 1978, a mão forte do Regime que então comandava a exceção em que (ainda) vivíamos. Tal afirmação já ensejou, mais de uma vez, reações bastante vigorosas, dado o fato de inúmeros colegas de hoje, naquele período, terem arriscado a vida colocando-se a ombros na luta contra o Regime – e não teria eu o direito de não reconhecer os esforços e os riscos que tal engajamento implicava. Mesmo assim – e com o risco de tornar-me reincidente –, gostaria de retomar o comentário, talvez até mesmo a título de explicação: não declarei que a exceção não existia, apenas ressaltei que o jogo de terror que aparatava em violência as ações do Regime, neste final de anos 1970, já não aparecia mais com a mesma intensidade que no período imediatamente anterior 1 – o que não significa que, já no início dos anos 1980, o programa estabelecido e mantido pelos militares e seus imediatos civis ao longo de mais de uma década repentinamente se esfacelara. Por outro lado, não ficava claro, também no calor da hora, que uma saída assim meio de lado não deixaria o lugar liberado para as alvíssaras de um novo tempo anistiado 2 . Os que viveram este período, pelo menos no intramuros das escolas de arquitetura (ainda não eram muitas), podemos lembrar um certo esmaecimento das cores ideológicas do período predecessor – que o movimento estudantil, na época, ainda insistia fazer persistir-lhes a intensidade: proclamavase, ainda, o conluio revolucionário entre as vanguardas intelectuais e a classe trabalhadora, compondo, numa improvável coalizão gramsciana em versão trotskista, os vertedouros de uma possível nova ordem social. Mas a estudantada mais engajada rompia alguns limites já claramente delineados pelo novo movimento operário que, naquele momento, retomava seus postos e já fazia bastante barulho: lembro-me de alguns colegas que, já em 1979, pretendendo emparelhar seus esforços nas portas das fábricas, voltavam exibindo hematomas conquistados justamente junto à classe operária com a qual pretendiam alguma aliança revolucionária – e que dali os expulsava, com o verbo em riste, mandando-os voltar para a “casa do papai”. Pensando a Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, a FAU do início dos 1980 – naqueles tempos metálicos do Regime ainda em processo –, também era comum desaperceber que nossos Para mim, o definitivo sinal de que a ditadura começava realmente a apresentar sinais de vazamentos foi dado quando tive que atravessar uma grande manifestação estudantil em 1977, nos jardins da Faculdade de Medicina da USP, na Av. Dr. Arnaldo, em São Paulo. O ostensivo aparato repressivo, estacionado e inoperante em frente e ao longo da avenida, produzia um enorme engarrafamento que nos obrigava, de dentro de um ônibus, o acompanhamento espantado de toda a movimentação. Ao longo de horas. 2 Desde a última frase do parágrafo até quase o final deste “argumento”, adaptei um texto que foi publicado na Revista do Instituto de Estudos Brasileiros – IEB, a título de resenha e comentário à publicação da coletânea de textos de Sérgio Ferro – o “Arquitetura e trabalho livre”, de 2006 – cujo título é “Comentários incomodados” (LOPES, 2007). 1


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