UPorto Alumni #08

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EM FOCO

A IMAGEM DO “PIOLHO” MUITO DEVE AOS ESTUDANTES, AOS PROFESSORES E À VIDA ACADÉMICA.

A imagem do “Piolho” muito deve aos estudantes, aos professores e à vida académica. Foi, pelo menos até à década de 60, um dos pólos do triângulo por onde circulavam muitos estudantes e que se firmava também na Faculdade de Medicina (quando esta funcionava nas actuais instalações das Biomédicas) ou na Faculdade de Ciências, e no Orfeão (no rés-do-chão do edifício “dos Leões”), na época um importante motor da vida cultural da cidade. Eram frequentes os ensaios do Orfeão no primeiro andar, por cima do café, com o orfeonista Fernando Reis Lima a servir de anfitrião. Por isso, apesar do médico-cirurgião se ter sentado hoje, chávena de café à frente, um pouco deslocado das que foram, enquanto estudante, as suas mesas de afinidade, revela o discreto ar de quem ainda se sente em casa. Mas não consegue esconder o entusiasmo quando começa a entrelaçar as memórias a propósito do centenário do “Piolho”, café oficialmente inaugurado em 26 de Junho de 1909 – embora tenha aberto, clandestinamente, no dia 24, durante a festa de S. João. Era já um prenúncio de rebeldia...

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Fuga pelo telhado Fernando Reis Lima usa o termo “democraticidade” para se referir ao diálogo entre os estudantes e os seus mestres catedráticos de Ciências, que tinha lugar no “Piolho” mas era impensável no contexto universitário. Ou seja, nas salas de aula. Mendonça Monteiro (Química), Pires de Carvalho (Física), Santos Júnior (Zoologia), Laroze Rocha e Prista Monteiro formavam, em meados do século XX, o grupo dos mestres. Falar de democracia era ainda falar de um lugar longínquo e proibido. Fora do “Piolho”, o ambiente político era tenso, época de “caça às bruxas vermelhas” e outras “menos vermelhas”, que era a maneira do Estado Novo se preparar para as eleições de 1958. Lá dentro, “teorizava-se, discutia-se, transgredia-se, em tom baixinho e num soslaio experiente”, descreveu o psicanalista

AS INVESTIDAS POLICIAIS NO “PIOLHO” ERAM FREQUENTES, SOBRETUDO NO OCASO DO REGIME DITATORIAL, JÁ DURANTE A CHAMADA “PRIMAVERA MARCELISTA” Jaime Milheiro, contemporâneo de Reis Lima, na UPorto n.o 20. Quando às vezes, acrescenta Fernando Reis Lima, irrompia um oposicionista aterrorizado e perseguido pelas autoridades, abria-se uma discreta porta ao fundo do café que, por uma escada, dava acesso à residência dos proprietários. O caminho da fuga levava depois ao telhado e, a partir daí, à passagem para a casa da vizinha Maria Alice, que era modista e acolhia o fugitivo através da janela das águas-furtadas. Também um antigo empregado da casa, Fernando Coelho dos Santos, recorda uma ocasião em que ajudou um jovem a escapar à polícia. Os esbirros tinham-se acercado do café com a virulência habitual e subiram desenfreadamente ao primeiro andar, onde funcionava o salão de chá. Então, “um dos rapazitos escondeu-se num canto onde estava o elevador de serviço e, quando os guardas vieram perguntar se estava lá alguém, eu respondi que não. E assim o rapaz fugiu”, conta Fernando Coelho dos Santos, com indisfarçável orgulho. As investidas policiais no “Piolho” eram frequentes, sobretudo no ocaso do regime ditatorial, já durante a chamada “Primavera Marcelista”. Fernando Coelho dos Santos, que começou a trabalhar no café precisamente em 1971, lembra-se bem do dia em que a GNR tentou entrar a cavalo no “Piolho”, mas apenas logrou colocar as patas do animal lá dentro – o baixo pé direito do estabelecimento não permitia grandes “touradas”. Na lembrança guarda ainda as diligências que a polícia tomou para encerrar o “Piolho”, por ordem do Governo Civil. “Começou a ser assídua a permanência da polícia. E dessa vez mandaram evacuar o café. Aquele ‘baixinho’ que foi Procurador da República [presume-se que seja José Souto Moura, natural do Porto embora licenciado em Coimbra] dirigiu-se à polícia para dizer qualquer coisa e levou logo com o cassetete. Nem teve tempo de dizer nada”, relata Fernando Coelho dos Santos. Entre os “subversivos” (como eram crismados pelo regime) que por essa altura frequentavam o “Piolho”, Fernando Coelho dos Santos aponta ainda o antigo reitor da U.Porto, Ruy Luís Gomes, o poeta Manuel António Pina, o historiador e político José Pacheco Pereira, os deputados Alberto Martins e Strech Monteiro e o linguista Óscar Lopes. Estes e outros opositores à ditadura contavam com a cumplicidade dos empregados do café e também do seu proprietário. “O Reis Lima não se incomodava [com as rusgas policiais]. Até pagava o prejuízo. Era um bocado contra o regime”, garante Fernando Coelho dos Santos, que trabalhou no “Piolho” durante 46 anos. Um dos sete filhos de Reis Lima, Fernando, tem, porém, uma opinião um pouco diferente. Para ele, o pai não era um opositor ao regime mas sim um homem de “bom coração”. Reis Lima – que herdara o café que o pai, Francisco José de Lima, comprara em 1909 com a mãe e um sócio falecido um ano depois – chegou, inclusivamente, a atribuir a exploração do quiosque a dois dos funcionários mais antigos, sem qualquer contrapartida financeira. O então proprietário frequentou o

curso de Medicina mas não logrou concluí-lo, acabando por assumir a gestão do “Piolho”. Ao que parece, o estabelecimento já funcionava como tasca e barbearia desde 1880. Quanto aos empregados, embora cautelosos, não caíam na tentação da bufaria – tão vulgar nos infaustos tempos da ditadura. “Não nos metíamos em política, mas também não contávamos nada a ninguém. Tínhamos mais medo dos polícias à paisana. Mas os ‘pides’ eram, geralmente, um bocado estúpidos. Nós identificávamo-los pelo chapéu e pela gabardina. E os clientes que eram contra o regime já estavam precavidos para isso. As conversas eram em surdina”, explica Fernando Coelho dos Santos.


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