UNIVERSUS N° 06 (2018/2)

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UNIVERSUS REVISTA DO CURSO DE BACHARELADO EM JORNALISMO | Nยบ 6 | DEZEMBRO 2018

LEGADO


CARTA AO LEITOR

Caro leitor, Alguma vez você já se perguntou o que está deixando de legado para as próximas gerações? É esse o convite que os alunos de Produção de Revista dirigem a você, caro leitor, por meio desta edição. Nestas páginas estão reportagens que dialogam com essa pergunta norteadora – e que tratam do maior instrumento pelo qual podemos transmitir valores e conhecimentos para as futuras gerações: a educação.

ÍNDICE 3 | PORTA PARA A LIBERDADE 4 | PORTEIRAS ABERTAS 6 | A COR DA EDUCAÇÃO

O processo educativo vai muito além de ensinar e aprender. Transcende as paredes das escolas; ultrapassa os conteúdos estabelecidos e é mais abrangente do que qualquer sistema de avaliação pode mapear. Consiste, antes de mais nada, em formar bons seres humanos.

10 | RESISTÊNCIA INDÍGENA

As páginas da Revista Universus Legado elencam exemplos dessa perspectiva. Trazem a entrevista de uma jovem que trabalhou em um campo de refugiados na Hungria; reportagens sobre os valores do campo, a identidade indígena, a presença das mulheres no sistema de ensino formal e a dolorosa espera por pais adotivos. Também trazem textos que refletem sobre preconceitos de toda ordem; que destacam o esporte como ferramenta de transformação social e que problematizam o acesso ao Ensino Superior. Há, ainda, uma reflexão sobre a tecnologia na educação – e uma reportagem que mostra a realidade de crianças com altas habilidades no sistema público de ensino.

14 | O DESAFIO DA INCLUSÃO

Este conteúdo foi inteiramente desenvolvido pelos alunos de Produção de Revista; da escolha do tema à edição final. Ele é o resultado concreto dessa concepção de educação que tem como objetivo primordial formar bons seres humanos. Na produção deste conteúdo foram colocados em prática, além do conhecimento técnico, valores como solidariedade, empatia, trabalho em equipe, desenvolvimento da autoestima e fortalecimento da autonomia. Afinal, muito mais do que bons profissionais, o que mundo precisa, cada vez mais, é de boas pessoas.

12 | TABU NA EDUCAÇÃO 13 | LGBTIFOBIA NO QUADRO

16 | A RUA TAMBÉM QUER APRENDER 19 | FILHOS DA SOLIDÃO 22 | DIREITO OU PRIVILÉGIO? 26 | MAIS ESTUDO, MENOS OPORTUNIDADE 27 | O DESTINO QUE O ESPORTE TRANSFORMOU 30 | BOM PARA O BOLSO. E PARA O ENSINO?

EXPEDIENTE

Boa leitura!

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Profª. Me. Mariana Oselame revistauniversus.uniritter.edu.br

Projeto Gráfico | Shalynski Zechlinski Diagramação | Ulisses Miranda Foto de capa | Rafael Costa da Rosa Edição final e revisão | Bruno Raupp, Matheus Closs, Robson Hermes e Ulisses Miranda Edição | Sidd Rodrigues, Alberi Neto, Aline Bisol, Ariadne Kramer, Eduardo Brusch Muller, Rafael Acosta Martins e Rarissa Grissutti Coordenadoor de Jornalismo | Leandro Olegário Reitor | Germano Schwartz Presidente | Alessandra Chemello UNIVERSUS | LEGADO

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FOTO: ARQUIVO PESSOAL

PORTA PARA A LIBERDADE

Gabriela lecionou Inglês em um campo de refugiados na Hungria

Gabriela Soares | Larissa Mascolo

Foi em um campo de refugiados que Gabriela Martini compreendeu: o acesso à educação é muito mais do que um direito fundamental

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ormada no curso de Relações Internacionais pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e apaixonada pelo tema das migrações, Gabriela Martini teve, em 2013, a experiência de lecionar Inglês em um campo de refugiados em Bicske, na Hungria. No período do intercâmbio, de seis semanas, conviveu com alunos de diversas nacionalidades, como afegãos, sírios e iraquianos. “A educação tem um poder transformador”, diz Gabriela, que conversou com a reportagem da Revista Legado por Skype. Como surgiu o interesse em trabalhar com refugiados? Sempre quis trabalhar com migração e refúgio. Nos Estados Unidos eu conheci alguns trabalhos

sociais e voltei com muita vontade de atuar com direitos humanos, então cursei Relações Internacionais. Entrei para a AIESEC, uma ONG gerida por jovens com o objetivo de desenvolver a liderança através de intercâmbios. Como era o cotidiano por lá? O campo de refugiados ficava em Bicske, uma cidade bem interiorana, com mais de dez mil habitantes. Tinha segurança 24 horas por dia, totalmente contra os princípios de livre circulação de pessoas, que é como funciona a legislação da maioria dos países da Europa e da União Europeia, da qual a Hungria faz parte. As pessoas em situação de refúgio podiam sair do local, mas tinham um número de horas para voltar. Eram, em média, 300 pessoas. As mulheres solteiras tinham um compartimento destinado a elas, e as famílias tinham uma mini casa, que era mais privado. Como eram as aulas? Era uma salinha com folhas, lápis e caneta. Tinham alguns livros, mas

nada muito didático. Não existia nenhuma metodologia. Eu dava aulas para adultos, 99% homens. O que você levou de lição? Vejo que é imprescindível ter uma política pública para que essas pessoas encontrem um trabalho digno, para não serem exploradas e se sintam parte do país que as acolhem. Eles tinham interesse em aprender porque queriam ir embora. O ensino do idioma é primordial para o refugiado. O que você aprendeu com os alunos refugiados? Minha maior lição depois desse encontro é não julgar a cultura do outro sem antes conhecê-la. Eu aprendi muito mais do que eu podia ensinar! Você tem alguma mensagem sobre a importância da educação? A educação tem esse poder transformador. A partir do momento em que você impede o acesso a ela, você tem o poder de deixar uma população sem voz.

“A educação é arma mais poderosa que se pode usar para mudar o mundo”. | Nelson Mandela (1918 - 2013)


FOTO: DIVULGAÇÃO

PORTEIRAS ABERTAS

Fernanda Kuhl, o marido Fábio da Silva Azeredo e filha Manuela, de 1 ano e 9 meses

Gabriel Alves | Leticia Szczesny | Vinicius Moura

A educação e os valores que permeiam a atividade no campo abrem as porteiras para a construção de um legado duradouro no agronegócio gaúcho

“O

tio Christian, que conhecia muito bem minha situação, nunca me havia dado nada; nem um vintém; por isso não pude deixar de derramar algumas lágrimas, quando soube da sua póstuma generosidade; herdava dele, ai de mim, duzentas e cinquenta geiras [terrenos]

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de boas terras cultivadas com vinhas e pomares, uma orla, de floresta, e a sua grande casa de Lauterbach”. O trecho do conto “A Herança”, de Fiódor Dostoiévski, influente filósofo russo, conta a história de um homem que, ao morrer, deixou suas terras para o sobrinho. Embora os tempos sejam outros, herdar patrimônio ainda é comum, especialmente no campo. A cultura do solo é compartilhada de geração em geração. E, para manter os negócios da família, muitos jovens vão em busca de qualificação profissional. Assim, garantem a sequência do legado às próximas gerações.

ama, educa”. | Içami Tiba (1941-2015) UNIVERSUS | LEGADO “Quem | DEZEMBRO DE 2018

DE PAI PARA FILHO No interior de Espumoso (RS), Júlio César Míssio, 17 anos, já decidiu: pretende tocar os negócios da propriedade leiteira dos pais. Hoje, a família cuida da fazenda de 93 hectares com 40 vacas em lactação. “Meu pai herdou do meu avô. Então, foi uma tradição passada de pai para filho”, diz. O jovem, que cursa o segundo ano de Técnico em Agropecuária, divide o tempo entre os estudos e as atividades na fazenda. Por mais que o agronegócio seja um dos grandes responsáveis por movimentar a economia gaúcha,


em 30 anos a população rural do Estado registrou queda de 37%, de acordo com dados divulgados em 2017 pelo Instituto Brasileiro de Geografia Estatística (IBGE). Ou seja: os jovens estão optando por sair do campo e criar raízes nas grandes cidades. Para o técnico do Serviço Nacional de Aprendizagem Rural (Senar) José Antônio Simões Pires, qualquer tipo de competência é bem-vinda ao agronegócio. “Carecemos de inovação e de pessoas qualificadas”, diz. Outra fonte de inquietação é o aumento do percentual de produtores com mais de 60 anos. Segundo o Censo Agropecuário de 2017 do IBGE, esses produtores correspondem a 34% da população do campo em todo o País. No Rio Grande do Sul, de acordo com a pesquisa, esse percentual é de 39%. Em relação ao censo anterior, de 2006, houve um crescimento de 17%. Os números confirmam que não há perspectivas de que os jovens se mantenham no comando dos empreendimentos rurais.

EM BUSCA DE QUALIFICAÇÃO Contrariando os números, em agosto de 2018, Júlio César viajou 300 quilômetros para visitar a Exposição Internacional de Animais, Máquinas, Implementos e Produtos Agropecuários (Expointer), a maior feira de agronegócio do estado, que acontece no Parque de Exposições Assis Brasil, em Esteio. O olhar curioso e atento do jovem se destacava entre muitos agricultores experientes que acompanhavam uma das palestras realizadas. Para quem olhava de fora, parecia um pequeno entre gigantes, mas ali,

ampliando seu conhecimento sobre mastite bovina [inflamação da glândula mamária da vaca, que gera impactos econômicos na produção leiteira], Júlio se fazia grande. A formação profissional que os pais não puderam ter é, para ele, de extrema importância para o futuro - até porque suas duas irmãs optaram pela vida longe do campo. De acordo com a doutora em Desenvolvimento Rural pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) Alessandra Matte, a nova geração de produtores tem como desafio tomar decisões com mais autonomia. “O produtor deve entender que tipos de movimentos estão acontecendo nos centros urbanos, podendo identificar nichos de comercialização como também tendências de consumo”, explica.

FUTURO PROMISSOR Daqui a 20 anos, segundo o técnico rural José Antônio Simões Pires, a realidade do agronegócio será diferente – e melhor. “Estamos trabalhando para transformar a nossa produção rural. Para tal, o conhecimento, a tecnologia e, principalmente, o trabalho, deverão ser contínuos”, diz. “É o velho ditado: se o campo vai mal, a cidade seguirá o mesmo rumo”, completa. O conhecimento obtido em cursos de profissionalização, graduação ou especialização é essencial para o agronegócio, mas o dia a dia na lida também educa. Fernanda Kuhl, gerente do Programa de Melhoramento de Bovinos de Carne (Promebo), acredita que a maior riqueza da educação no campo são os valores dados às pequenas coisas. Junto ao marido, Fábio da UNIVERSUS | LEGADO

“É o velho ditado: se o campo vai mal, a cidade seguirá o mesmo rumo” Silva Azeredo, inspetor técnico da Associação Brasileira de Angus, a médica veterinária busca passar à filha Manuela Kuhl Azeredo, de 1 ano e 9 meses, alguns ensinamentos que dentro das porteiras ainda são valorizados. “Sempre a coloquei direto na grama para brincar e para mexer na terra”, conta a mãe. O casal, que mora em Pelotas, trabalhou durante os nove dias da Expointer 2018. Em meio à correria das atividades realizadas na feira, os pais tiraram um dia para levar a filha para passear no pavilhão dos grandes animais, local no qual Manuela mais gostou de ficar. Lá, fez a festa e se divertiu com a mãe brincando com as rosetas dos grandes campeões. Eles admitem que influenciam a filha através dos costumes que apresentam à criança. “Se ela gostar, provavelmente vai querer trabalhar com o agronegócio de alguma forma. E para nós é muito importante que ela continue nesse meio que consideramos saudável de trabalhar”, ressalta. Fernanda acredita que crianças que têm a oportunidade de ser educadas no meio rural aprendem a valorizar a vida no campo. “Quem sabe daqui uns anos ela tenha orgulho de ter visto a mãe trabalhando em prol de um setor e de um espaço que poderá ser dela no futuro”, indaga. Desta forma, as mãos que hoje mexem na terra para brincar poderão ser as responsáveis por construir um legado para agricultura gaúcha. |

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FOTO: KATIELE NUNES

A COR DA EDUCAÇÃO 6

Andressa Schütz | Laura Maria

Mesmo com mais da metade da população parda e negra, brancos ainda são maioria no Ensino Superior brasileiro. Por que isso acontece?

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nício de semestre. Um professor faz um comentário que é considerado racista e um de seus alunos, que é negro, critica a atitude. Um mês depois, em um dia de avaliação, o estudante que reclamou do ato recebe uma prova especial, mais difícil do que as de seus colegas e, no final do semestre, é reprovado. Mesmo diante da injustiça, o estudante se vê de mãos atadas e com medo de de-

nunciar e sofrer retaliações piores. Pode parecer improvável, porém situações como essa ainda acontecem dentro das universidades. Podemos relacionar problemas como esse à adaptação que vem ocorrendo desde 2012, quando foi criada a Lei 12.711, que aumentou significativamente o ingresso de alunos negros e pardos no Ensino Superior. Desde então, um espaço que antes era majoritariamente frequentado por brancos passou a ser mais diverso. No ano de 2002, por exemplo, apenas 2% dos estudantes de universidades eram negros, segundo o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA). Já em 2017, cinco anos após a sanção da Lei, esse percentual aumentou para 34%, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

UNIVERSUS | LEGADO DEZEMBRO DEe2018 “A educação é o direito de todos | e dever do Estado da família”. | (artigo 205 da Constituição Federal de 1988)


AFUNILAMENTO NO ACESSO À EDUCAÇÃO É difícil apontar um único motivo para o baixo número de negros nas universidades. Num primeiro momento, o que pode se pensar é a diferença no ensino básico entre escolas públicas e particulares, levando em consideração que a maior parte da população negra, por diversos motivos, não frequenta instituições de educação privadas. Segundo o IBGE, em 2006, um terço de alunos matriculados em escolas privadas se auto intitulavam negros ou pardos, enquanto nas escolas públicas esse percentual saltava para cerca de 56% dos estudantes. Além disso, outro ponto é que uma parcela da população de negros e pardos nem mesmo chega a concluir o Ensino Fundamental, muitas vezes pela necessidade de buscar auxílio financeiro para si próprio e para a família. Num panorama divulgado em 2015, também pelo IBGE, que apresentava o percentual de estudantes matriculados no 9º ano do Ensino Fundamental no Rio Grande do Sul, 15% dos alunos eram pardos, enquanto apenas 12% eram negros. Pensando sobre esses dados de forma mais superficial, ignorando

circunstâncias como aprovação e desistência, somente 27% dos alunos que ingressariam no Ensino Médio seriam negros e pardos. Pensando de novo e analisando alguns sensos divulgados por instituições de pesquisa, chegamos também a diferenças salariais. Em 2014, pessoas brancas tinham salário cerca de 44% maior que de pessoas negras. Em comparação com pardos a diferença salarial entre brancos é ainda maior, contabilizando 46% em média. Essa diferença está diretamente ligada à educação, pois, com menos condições de pagar por um ensino de qualidade, menor a chance de chegar à faculdade. Amanda Munhões, que se prepara para tentar uma vaga na UFRGS, reconhece a dificuldade que a falta de dinheiro cria na busca pelo Ensino Superior: “Estudei em escola pública, não tínhamos como pagar por uma escola particular. O ensino foi complicado, faltava professor e isso prejudica a gente né? Mesmo estudando fora do horário de aula é difícil absorver a matéria sem nenhuma base docente”, conta. Ainda sobre condições financeiras, Amanda menciona que, assim como não conseguiu bancar por uma escola particular, não tem condições de pagar por um cursinho pré-vestibular, outro ponto que atrapalha o ingresso na vida acadêmica. A permanência na faculdade é outro empecílho. Além da falta de recursos, como auxílio transporte e material, a pressão dentro da vida acadêmica é um dos grandes motivos de desistência. Alunos em geral sofrem com o ambiente hostil dentro das universidades, porém muitos deles, principalmente UNIVERSUS | LEGADO

por conta do tom de pele ou pela condição na qual entraram (como cotistas, por exemplo) acabam tendo que lidar com exigências ainda maiores. Dentro de Universidades Federais, são comuns histórias de alunos que sofreram cobranças para manterem o desempenho nas provas de avaliação das instituições, afinal para alguns nem todos os cotistas entraram por mérito. FOTO: KATIELE NUNES

Mesmo com o aumento, ao considerarmos que negros e pardos formam cerca de 54% da população brasileira, o percentual ainda é baixo. Se existem determinações na legislação que visam incluir diversas etnias, por que ainda existe tamanha diferença nos números de alunos brancos e negros no Ensino Superior?

“Ah, a gente ouve algumas histórias de professores que fazem alguns comentários sobre os cotistas diminuírem o desempenho positivo que a faculdade apresenta nos levantamentos e coisas assim. Alguns relatos, até de amigos meus, que dizem ter ouvido que as cotas não são justas porque cotistas não precisam estudar para entrar na faculdade. Claro que não dá para acreditar em tudo que se ouve mas também não dá para fingir que não é um discurso bem conhecido, ainda mais nas universidades. E isso é algo que desmotiva a gente, de certa forma”, conta Jean Pinto Nunes, aluno do curso de História da UFRGS. Para tentar auxiliar os alunos a lidarem com situações como essa, grupos de professores e estudantes negros organizam encontros, palestras e eventos em |

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FOTO: KATIELE NUNES

suas angústias, são essenciais para que o aluno continue na graduação.” Luciana Melo, professora de pós-graduação em Sociologia na UFGRS, expõe outro problema no ingresso dos cotistas: a demora de aprovação dos documentos, o que causa desistências. “As pessoas entregam as documentações muito cedo e às vezes têm processos que ficam se arrastando por meses, e as pessoas precisam de uma resposta. Existe uma falta de zelo com a política (de cotas).” Problemas com documentos são comuns a todos estudantes, principalmente no ato de matrícula. A falta de familiaridade com a estrutura administrativa das faculdades faz com que muitos não saibam, ao certo, qual a papelada necessária. Porém, além do peso comum aos alunos, especialmente os cotistas - tanto raciais como socioeconômicos - dependem ainda de análises de auto declarações e registros (históricos familiares, por exemplo) que comprovem sua etnia, no caso dos primeiros, ou de comprovantes de renda familiar e extratos bancários para os segundos. A busca para conseguir tal documentação nem sempre é fácil, sejam os estudantes cotistas ou não. Uma autenticação em cartório ali, algumas idas no banco lá e, ainda assim, a demora se faz presente. Situação que prejudica o aluno, já que as instituições de ensino acabam não compreendendo que a demora cabe aos trâmites, e não a quem tenta ingressar na universidade.

geral para falar sobre o racismo nas universidades e, sobretudo, dar apoio e proporcionar entendimento sobre as dificuldades enfrentadas no caminho, a fim de tentar diminuir as desistências. Foi o que aconteceu no evento “Roda de Conversa: Racismo na Universidade”, em outubro, no Instituto Porto-Alegrense (IPA), com a presença de duas professoras negras da UFRGS, Greice Adriana (mestranda em História) e Vanessa Porciuncula (graduada em Ciências Sociais e mestranda em Educação). Durante o encontro, foram levantados debates sobre preconceito dentro da faculdade, ações afirmativas, privilégios e lugar de fala. “É preciso que a gente entenda que algumas portas estão trancadas pra nós (negros) pelo lado de dentro”, declarou Vanessa. “Precisamos de aliados que estejam dispostos a abrir essa porta pra nós, a nos ouvir, a nos entender, respeitando, é claro, o lugar de fala de cada um”, completou. Sobre a dificuldade de permanência na faculdade, Greice opina: “O negro, muitas vezes, sai da periferia, de um ambiente onde está cercado por outros negros, e ingressa em um ambiente hostil, onde ele é minoria. Grupos de conversa como esse, onde ele pode debater, pode expor

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AS FASES DO RACISMO “Eu sempre fui a única aluna negra em sala de aula”, inicia |

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Luciana. “A inviabilização e o não-reconhecimento são muito presentes. Por exemplo, na minha época quando a professora tinha que vestir as alunas de princesa, ela não sabia como me vestir. As princesas que ela conhecia eram todas brancas e loiras, diferentes de mim”, completa. A fala da professora reforça algo que muitos de nós já sabem: que negros e pardos começam a sofrer discriminações desde cedo. No sistema de educação, a falta de representatividade é um dos fatores que, por vezes, dificultam muito a inclusão de alunos. No Ensino Fundamental, ela que frequentou escola particular e teve que lidar com o “invisível” que o tom de sua pele carrega. No Ensino Superior, apesar da diferença de estrutura, os problemas persistem de outras maneiras. Luciana pontua que na universidade existe racismo de forma velada, até mesmo por parte dos professores, que, muitas vezes, não sabem como lidar com alunos negros. Ainda dentro da UFRGS, Jean reforça a importância das cotas raciais em sua vida. Ele, que iniciou sua vida acadêmica em 2015, no curso de Engenharia Civil, porém desistiu após alguns semestres. “Eu trabalhava e fazia curso prévestibular, tinha três turnos. Se não fossem as cotas eu não teria nem a oportunidade de entrar para a Engenharia, ainda mais por ser um curso com bastante disputa pela vaga com notas bem elevadas“. Ações afirmativas como as cotas raciais são essenciais para combater a desigualdade e o racismo histórico no Brasil. É importante que os futuros governantes zelem por essas políticas e as estimulem.


FOTO: KATIELE NUNES

Discutindo o racismo, tentando mudar esse cenário histórico no qual as cotas são necessárias e conscientizando sobre igualdade, talvez um dia seja possível incluir à todos sem programas específicos.

VOCÊ SABIA? As cotas não são apenas raciais! A Lei das Cotas determina que 50% das vagas em universidades, institutos e concursos públicos sejam reservadas para, além de negros e pardos, indígenas, pessoas com deficiência, estudantes que tenham concluído o Ensino Médio em escolas da rede pública e também para alunos vindos de famílias com baixa renda. Ao se inscrever em um processo seletivo, o aluno ou candidato escolhe em qual modalidade se encaixa, e irá concorrer somente com pessoas com as mesmas características. Se for selecionado, deverá comprovar que faz parte daquele grupo.

RACISMOS INSTITUCIONAIS A definição, que surgiu em 1967, foi criada pelo grupo Panteras Negras juntamente com o ativista negro Stokely Carmichael e o rapper Charles Hamilton para nomear o racismo presente na organização da sociedade e das instituições. Para os criadores do conceito, o Racismo Institucional nada mais é do que a falha em fornecer um serviço ou tratamento

adequado ou profissional às pessoas por conta de sua cor, origem étnica ou cultura.

(heróis de etnias diferentes, por exemplo, são representativos).

REPRESENTATIVIDADE

AÇÕES AFIRMATIVAS

É a representação política dos interesses de um grupo ou classe social. A palavra pode ser aplicada também em um contexto social, como representatividade nas mídias

Medidas ou atos tomados pelo governo com o objetivo de diminuir desigualdades sociais e compensar as perdas causadas a grupos historicamente discriminados.

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FOTO: ISABELA MOURA

RESISTÊNCIA INDÍGENA Bruna Thiago| Isabela Moura| Nathielle Folharini| Nicoly Reis

Como a tribo dos Guarani-Mbya concilia a educação e tradição

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eguindo pela BR-290 em direção ao litoral norte gaúcho, chega-se ao município de Maquiné. Localizada próximo a Osório, a pequena cidade é conhecida por seus rios e pela concentração de povoados indígenas. Na aldeia Tekoa Ka’aguy Porã os nativos Guarani-Mbya construíram com apoiadores a escola autônoma Tekó Jeapó. O espaço mantém uma conexão entre a cultura indígena e o mundo contemporâneo, conciliando os conhecimen-

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tos teóricos do homem branco à cultura e ensinamentos da tribo. Inaugurada em 7 de julho de 2018, a escola é uma importante conquista do povo GuaraniMbya, servindo como marco da retomada das terras iniciada em janeiro do ano anterior. Mais de 20 famílias que viviam em situação precária ocuparam o local a fim de reivindicar as terras até então utilizadas pela Fundação Estadual de Pesquisas do Litoral Norte (FEPAGRO), extinta no fim de 2016 pelo governo do estado. Liderado pelo cacique André Benites, o povoado é constituído por muitos jovens e crianças. Apesar disso, ele relata que a escola é de uso de toda a comunidade, incluindo os adultos. O espaço

também recebe visitantes de outras regiões — indígenas ou não — com o objetivo de compartilhar conhecimentos e assimilar ensinamentos provenientes das mais diversas realidades. Realizam, inclusive, eventos chamados de “vivências”, nos quais acontece a integração com rodas de conversas, trocas de experiências e exposição de artes confeccionadas pelas mulheres da tribo.

O LEGADO GUARANI Tekó Jeapó, em tradução livre, significa “cultura em ação”, e diz respeito ao movimento de aprendizagem pelo qual passam as crianças, jovens e adultos da tribo indígena sem limitarem-se

UNIVERSUS | LEGADO | gaiolas DEZEMBRO DE 2018 “Há escolas que são e há escolas que são asas”. | Rubem Alves (1933-2014)


terras e enfatiza a importância da escola para “manter a cultura e os princípios dos índios”. Ele explica ainda que as figuras mais importantes na formação educacional são os familiares. “A criança aprende primeiro em casa, para depois aprender com outros (professores)”, completa. Esse processo é considerado fundamental para a estruturação da comunidade como um todo. Com um ensino diferente dos moldes usuais, os índios aprendem um pouco de tudo. No decorrer do aprendizado, que inicia na infância, são ensinados a plantar e colher na época correta, a construir casas e pescar. O projeto arquitetônico sustentável do prédio, construído com barro e garrafas de vidro, nada se assemelha ao que se espera de uma sala de aula: as carteiras enfileiradas dão lugar a um espaço amplo que prioriza a disposição em roda, alterando a tradicional hierarquia da linha que divide aluno e professor — garantindo assim um ambiente informal, porém não menos solene de aprendizagem. Iluminados pelas

grandes janelas em formato de losango, adultos e crianças dividem o espaço para trocar experiências de igual para igual. Ambos colaboram igualmente na construção do saber da comunidade indígena. Não há uma divisão de disciplinas e nem grade de horário definida. Os estudantes da Tekó Jeapó aprendem sobre botânica, agropecuária e biologia através da execução de atividades ao invés de utilizarem um livro dentro da sala de aula. Isso caracteriza uma configuração prática e interdisciplinar ao método de ensino, que visa agregar na construção da vida em comunidade e da cidadania Mbya-Guarani. A integração do ensino com a prática são uma das principais marcas do método da cultura em ação, onde o valor do saber vai muito além de notas e avaliações teóricas: o que está em jogo é a sobrevivência de um povo que sofre tentativas de ser apagada desde a época do descobrimento, mas que ainda sim está em constante resgate através da valorização e respeito às suas tradições milenares.

FOTO: NICOLY REIS

às estruturas físicas e pedagógicas de uma escola convencional. A educação Guarani relaciona-se diretamente às atividades cotidianas que definem o MbyaRekó ou “o modo de ser Mbya Guarani”. Através da vivência, a Tekó Jeapó é o ambiente para aprender os ofícios, técnicas e ensinamentos espirituais, assim como elaborar o conhecimento acerca da fauna e da flora que os cercam - sem negligenciar os conhecimentos de português e matemática. A noção de tempo dos indígenas é diferente, e por esta razão as aulas são estabelecidas de acordo com as demandas referentes à subsistência da cultura Guarani. Como coordenador pedagógico, o cacique André Benites ressalta que “o princípio da educação Guarani deve ser norteado pela espontaneidade”. Os indígenas têm uma compreensão de tempo diferente dos “juruás” [maneira como os Mbya Guarani denominam os não-indígenas]. O índio vive o agora, sem maiores prospecções do amanhã. Morador da aldeia, Karai Tyaguinho vive com a família desde o início da retomada das

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TABU NA EDUCAÇÃO Amanda Rossato | Lilian Mendes | Luana Meireles | Tainá Fontella |Tainá Flores

A polêmica, a importância e o retrato da educação sexual nas escolas

“C

omeçou a crescer barriga, mas não era de gravidez. Nós fomos atrás e descobrimos que se tratava de algo psicológico. Ela começou a namorar, a ter relações, e concluiu que estaria grávida”. Narrado pela psicóloga e pedagoga Judith Valim Reis, o fato aconteceu em 2015 na Escola Municipal de Ensino Fundamental Mário Quintana, em Gravataí. O episódio, cuja protagonista foi uma aluna do 6º ano, é um retrato do que existe em torno do tema educação sexual. A menina vinha de um contexto de negligência por parte da família e, em sala de aula, enfrentava dificuldades de aprendizagem. Passados alguns meses, começou a dizer para os colegas que estava grávida. O boato se espalhou e chegou até a supervisão: foi aí que a escola averiguou o caso e concluiu que se tratava de uma gestação psicológica.

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Com os altos índices de gravidez indesejada na adolescência, não seria fundamental abordar isso da mesma maneira como se ensina outras disciplinas? Mas o que é, afinal, educação sexual? Precisamos falar sobre isso.

VAMOS ENTENDER Falta de informação e negligência familiar são recorrentes dentro do ambiente escolar. Ensinar sobre sexo não é ensinar a ter relações sexuais. “A educação sexual traz informações além do conhecimento do corpo humano, traz a necessidade dos jovens estarem atentos às noções de autocuidado, privacidade, respeito a si mesmos e ao outro, intimidade, sexualidade e prevenção a doenças”, afirma a sexóloga Bárbara Ahlertque há 10 anos trabalha com educação sexual. De acordo com o Censo Escolar de 2018 do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), as principais causas da evasão escolar são gravidez, uso de drogas, necessidade de ajudar financeiramente a família e distorção entre a idade e a série.

Segundo estimativas da UNESCO, 25% das meninas entre 15 e 17 anos deixam a escola devido uma gravidez precoce. Mesmo assim, abordar o tema com crianças e adolescentes ainda divide opiniões.

E A FAMÍLIA? Bárbara, orienta que de 10 a 12 anos se deve começar a tratar de sexualidade. ‘’Tragam pais e filhos para conversarem sobre o tema e se surpreenderão com o conhecimento dos jovens sobre sexo e a ignorância dos pais sobre o que eles já conhecem’’, expõe. Fundamental para o amadurecimento de crianças e adolescentes, a educação sexual continua sendo tratada como tabu. Além disso, pais e professores, ainda hesitam na hora de sanar dúvidas dos jovens, deixando que aprendam por outros meios. Qual seria a saída ideal para quem está crescendo sem esse tipo de informação? Já dizia Pitágoras: “Educai as crianças, para que não seja necessário punir os adultos”. A educação, em todas as suas formas, é o nosso legado.

UNIVERSUS | LEGADO | DEZEMBRO DE 2018 “O resultado mais sublime da educação é a tolerância”. | Hellen Keller (1880-1968)


LGBTIFOBIA NO QUADRO Lucas Eliel Gonçalves | Débora Dallacort | Natália Supp

Como se redesenha o contexto social dos alunos LGBTIs nas escolas brasileiras

“H

oje todos me conhecem como o cara que anda no salto 20, usa unhas postiças e maquiagem”. Quem se depara com a explosão de cores de autoconfiança de Talles Motta, estudante de Moda, pode não imaginar que um dia a história do rapaz de 22 anos, negro e gay, já teve um tom bem distinto do de agora. Talles é um dos tantos alunos LGBTIs que já passaram por situações de preconceito nas escolas do Brasil, e que se deparam com instituições de ensino que fazem vista grossa ao preconceito. Em meio a números e letras, o espaço de aprendizagem ganha facilmente rabiscos de intolerância. O contexto é ilustrado pela linguista Michele Silveira. Certa vez ela relata que um aluno foi até a direção para reclamar que estava sofrendo preconceito.

Depois dele ter saído, a diretora questionou: “Como é que uma bicha dessa quer respeito se vestindo assim?”. O Brasil é o país que mais mata LGBTIs no mundo: 445, um a cada 19 horas, de acordo com o último levantamento do Grupo Gay da Bahia (GGB), número subnotificado, tendo em vista a inexistência de dados oficiais do governo. Já nas escolas, segundo a mais recente pesquisa da Associação Brasileira de Gays, Lésbicas, Bissexuais, Travestis e Transexuais (ABGLT), 73% dos estudantes LGBTIs do Brasil já foram agredidos, mesmo que verbalmente por sua orientação sexual e 68% por sua identidade de gênero.

A LGBTIFOBIA DEIXA MARCAS Embora hoje seja conhecido por sua confiança, A LGBTIfobia deixou marcas em Thalles Motta até hoje. Devido à discriminação, ele passou por seis escolas UNIVERSUS | LEGADO

até sua formação e chegou a ser dependente químico em certa fase. “Se eu tivesse tido o apoio que me faltou, talvez hoje eu seria outra pessoa, sem tantas questões para lidar”. Para a psicóloga Paula Fernandes, o preconceito faz com que o desenvolvimento dos LGBTIs passe a ser mais complicado. “Ao dar de cara com o preconceito e não receber o apoio necessário, os LGBTis podem desenvolver sintomas depressivos, como agressividade e isolamento”.

CORES QUE COMPÕEM O FUTURO Para a psicopedagoga Fernanda Figueiró, é comum a vista grossa nas escolas em relação aos LGBTIs. “Quando surgem situações de LGBTIfobia, as instituições agem rápido para ‘pôr panos quentes’. Para que esse paradigma possa mudar, é essencial que as escolas promovam uma reflexão ética, respeitosa e de acolhimento com o outro”. |

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Cristine Fogliati | Daiana Camillo | Larissa Zarpelon

Crianças dotadas de inteligência acima da média desafiam pais, professores e o governo para criação de práticas voltadas a elas

mais dificuldades na hora de desenvolver todo o potencial daquele jovem no início da sua trajetória.

AS PRIMEIRAS PALAVRAS FORAM FRASES

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Nos fundos da Escola Municipal de Ensino Médio Emílio Meyer está localizada a Sala da Integração e Recursos para Crianças com Indicadores de Altas Habilidades/ Superdotação (Sir-AH). Ali, há seis anos, o jovem Micael Keating, 9 anos, passa as tardes de sextafeira aprendendo com exercícios disfarçados de brincadeira, elaborados especialmente para ele pela professora Rosângela Russo. Segundo ela, as atividades servem para aguçar a imaginação do aluno. “É uma forma de estimular o interesse da criança, já que por sua condição de AH, Micael aprende extremamente rápido o que lhe é apresentado”, afirma. Mica Boy, apelido carinhoso dado pela mãe Kenile Flores Keating, chega cedo para aula. Quieto, segue em direção à professora Rosângela Russo. A tutora lhe dá um abraço apertado e encaminha o jovem para u m a classe, onde estão colocadas

egundo o manual “Saberes e Práticas da Inclusão”, desenvolvido em 2006 pelo Ministério da Educação (MEC), crianças com Altas Habilidades podem apresentar características como a facilidade de aprendizagem, originalidade, criatividade, curiosidade nata por manter-se bem informado, inquisitivo e cético, além do talento para determinadas áreas do conhecimento. Mas é preciso estar atento: as Altas Habilidades podem ser deixadas de lado por conta de outras condições, como o autismo, um transtorno que se caracteriza pela dificuldade de comunicação e comportamentos repetitivos frequentemente vinculada à condição do AH. Por consequência, crianças com AH podem ser tratadas de forma errônea. Baixo rendimento escolar, causado pela falta de interesse no conteúdo nas aulas, decepção e frustação por não se sentirem compreendidos, ampliação de comportamentos hiperativos e déficits de concentração, trazem

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FOTO: CRISTINE FOGLIATI

O DESAFIO DA INCLUSÃO

diversas atividades numeradas de um a quatro. Curioso e já atento às instruções, Mica escolhe a última estação, com três exercícios que estimulam sua capacidade espacial e ótica, por meio da ligação de cores aos seus respectivos nomes em inglês. Micael resolve tudo com rapidez. Em alguns momentos, a professora lhe faz apontamentos: a criança precisa escrever amarelo em inglês – yellow – e escreve com Y. A professora lhe pergunta: “Mas não é com W?”. Ambos então procuram a informação no Google, que mostra a resposta correta, escrita inicialmente pelo menino. Entre as conversas, Micael conta o quanto gosta da cor de seu cabelo, azul, e também fala de estrelas, planetas, ciências, e sobre projetos que gostaria de elaborar. Um deles havia sido feito naquele dia. Com a ajuda da professora, a sala foi dominada por constelações e desenhos. Com um ano e três meses, Micael já impressionava ao falar frases completas, quando nessa idade, a maioria das crianças balbucia apenas algumas palavras. “Ele sempre conversou muito bem. Hoje em dia (por conta do autismo), não se vê muito.


Micael falava como adulto, até melhor do que eu. Mas não foi uma coisa da família de ensinar”, conta Kenile.

DIAGNÓSTICO PRECOCE Ao começar a frequentar a creche, com um ano e quatro meses, a inteligência acima da média de Micael se destacou. Entre dois e três anos, o jovem foi encaminhado para avaliação neurológica, através de uma clínica particular. Lá, foi diagnosticado com autismo, e devido a sua agressividade, começou o tratamento na Sala da Integração e Recursos (SIR), dentro da rede municipal de ensino. O segundo encaminhamento para a psiquiatria, feito através do Sistema Único de Saúde (SUS), trouxe para a família a confirmação do autismo, além de Transtorno Opositor Desafiador, Déficit de Atenção e Hiperatividade. Kenile conta que precisou buscar ajuda com especialistas particulares. Segundo a mãe, o SUS não era capaz de suprir tudo que Micael precisava – e cada consulta demorar bem mais do que o tempo necessário para que o jovem pudesse iniciar os tratamentos adequados para controlar as desordens. Um dos médicos que atendeu o menino no Hospital de Clínicas, em Porto Alegre, Rudimar Riesgo, indicou que ele pudesse ter Altas Habilidades, aos 6 anos de idade. Quando Micael entrou para o 1º ano do Ensino Fundamental, teve algumas dificuldades. “A rede pública de ensino não cumpre tudo que é necessário para o desenvolvimento do AH. Tem que correr atrás e exigir. Muito dificilmente se

entra em uma escola com uma criança especial. Quando tem, é algo muito genérico, nunca é algo direcionado a eles”, explicou Kenile. Os problemas enfrentados por Micael eram a falta de monitor e a de uma SIR, garantida pela Lei nº 10.172/2001, definida pelo Ministério da Educação (MEC) e que aborda o cuidado de estudantes com deficiência, transtornos globais de desenvolvimento e Altas Habilidades/Superdotação. Há um déficit referente à oferta de matrículas apontadas pelo próprio MEC nas classes comuns do ensino regular. A mãe precisou realizar uma reunião com a Secretaria Municipal de Educação (SMED), em que apresentou o laudo de AH do filho. Ali, os caminhos da família se cruzaram com os da professora Rosângela. Kenile conta que pesava muito para o filho estar acima da turma. “Ele perdia o interesse, se irritava, achava sem graça e queria sair da sala. Agora, com a Rosângela, ele coloca em prática suas ideias - as que podem ser executadas”, explica

ATENDIMENTO A psicóloga Paula Teixeira Cruz explica que não é necessária uma formação específica para atender crianças com AH/Superdotação. O profissional que deseja se qualificar deve buscar cursos de especialização na área que podem ser encontrados em instituições de psicologia. Já a identificação de crianças com essa condição é feita na escola, por professores, pedagogos e psicopedagogos. Paula explica que na rede pública, ao emitir o encaminhamento, UNIVERSUS | LEGADO

a escola já orienta os pais ou responsáveis como proceder. Já no ensino privado, geralmente existe dentro da própria instituição este serviço. “O paciente chega para nós e trabalhamos a partir deste encaminhamento, abordando questões que emergem desta demanda quando necessário’’, esclareceu. A canalização da AH é trabalhada com a criança, sensibilizando toda a rede de apoio que ela possui, explicando sobre sua capacidade cognitiva diferenciada. É necessário um trabalho de sustentação e identificação desse sujeito para que compreenda e aprenda, de acordo com a fase do seu desenvolvimento, a lidar com essa diferenciação. Algumas técnicas utilizadas são os jogos terapêuticos, os instrumentos de avaliação projetiva, que trazem maior capacidade de expressão.

COMO RECONHECER UMA CRIANÇA COM AH A neurologista Juliana Dall’Onder, conta que as AH e a Superdotação, como condições de origem inata, ou seja, que se apresentam desde o nascimento, devem ser estimuladas conforme seu surgimento. “Em geral estas crianças são exploradoras e interessadas em novas habilidades. Devem ser estimuladas a aprimorar habilidades em diversas áreas e não necessariamente de forma específica, deixando a eles a liberdade de pesquisa e busca de novos conhecimentos”, diz. “A identificação pode ser feita através de testes específico de medição de coeficiente de inteligência como a Escala de Inteligência de Wechsler para crianças – WISC e para os adultos – WAIS”, completa. |

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A RUA TAMBÉM QUER APRENDER

Aline Eberhardt | Daniela Knevitz | Victória Alfama

Conheça a Escola Porto Alegre, uma das duas únicas do país que atende moradores de rua

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rades pintadas de azul e paredes coloridas ostentando grafites e desenhos artísticos. No interior, corredores exibem belos trabalhos de arte, feitos com cartolinas e recortes coloridos. Cartazes com os horários de recreio, regras para a utilização da sala de informática, e demais avisos, deixam a impressão de que esta é uma escola de educação fundamental comum, igual a qualquer outra escola pública por aí. No entanto, há uma diferença gritante em relação a outros ambientes de ensino: a forma como os alunos são tratados pela sociedade. A Escola Municipal de Ensino Fundamental de Porto Alegre,

também conhecida como EPA, é uma das duas únicas do Brasil que faz o trabalho enobrecedor de educar moradores de rua. Além dela, apenas a Escola Meninos e Meninas do Parque, em Brasília, no Distrito Federal, realiza esse tipo de projeto. Utilizando o método de ensino Educação de Jovens e Adultos (EJA), a escola localizada na Rua Washington Luís, no Centro Histórico da Capital, tem aproximadamente 100 alunos matriculados. A idade deles vai dos 15 aos 60 anos. Além dos moradores de rua, a escola recebe jovens encaminhados da Fundação de Atendimento Sócio-Educativo do Rio Grande do Sul (FASE), de abrigos e da comunidade próxima – a prioridade

| LEGADO | DEZEMBRO DE 2018 “Se a educaçãoUNIVERSUS sozinha não pode transformar sem a sociedade, tampouco sem ela a sociedade muda”. | Paulo Freire (1921-1997)


FOTO: DANIELA KNEVITZ

é trabalhar com pessoas em situação de vulnerabilidade social. Conforme dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 2017, o país tinha 11,5 milhões de pessoas que não sabiam ler e escrever. Enquanto isso, conforme o estudo mais recente realizado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), em 2015, existiam 101.854 mil brasileiros em situação de rua. Segundo levantamento da Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas (FIPE) e da Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social de São Paulo, somente na metrópole, 9,60% da população de rua é analfabeta. Mesmo assim, é importante ressaltar que apesar dos estudos e cálculos recentes,

medir essa população não é uma tarefa fácil, nem exata - uma vez que essas pessoas transitam pela cidade por não possuírem residência fixa.

O PROJETO Em 1994, um grupo de dez professores da prefeitura de Porto Alegre iniciou um trabalho com moradores de rua. Na época chamado de Jovem Cidadão, o projeto consistia em ir às ruas e praças levando educação aos meninos e meninas sem lar. “Por meses esse serviço foi na rua, mas se pensava na construção de uma escola”, conta Renato Farias dos Santos, diretor da escola há um ano e meio. Então, em agosto de 1995, a Prefeitura conseguiu, junto ao Estado, o terreno UNIVERSUS | LEGADO

onde até hoje funciona a EPA. Como todas as escolas ligadas ao EJA, a divisão de séries é feita por totalidades. “Totalidades 1, 2 e 3 equivalem até a quinta série (ou, sexto ano, de acordo com a nova nomenclatura do Ensino Fundamental) e Totalidades 4, 5 e 6 equivalem até o nono ano”, explica o diretor. O espaço da escola conta com três salas de aula, quadra coberta para esportes, biblioteca com grande acervo de livros, área de informática e espaço para as oficinas de reciclagem de papel. Ao fundo do pátio, em frente ao refeitório, há um local para os estudantes tomarem banho. Próximo desses grandes banheiros, uma lavanderia improvisada, onde eles podem lavar suas roupas - cada um leva seus produtos de limpeza. |

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queria”, relembra. Rodrigo, estudante da Totalidade 1, tem no Boca de Rua uma esperança, inspiração para estudar e sair da rua. “Meu plano, depois daqui, é abrir um negócio de cabelo. Eu faço rastafári, trança colada e cacho”, conta ele, sorridente. Colega de Rodrigo nas aulas de cerâmica, Gislaine, 45 anos, conta que encontrou a EPA quando estava no Centro de Porto Alegre, em busca de emprego. “O pessoal falou que é mais fácil encontrar alguma coisa quando tem um pouco mais de estudo, né?”, explica sem tirar os olhos da tigela de cerâmica em que está trabalhando. Gislaine é moradora de rua, mas vive nos albergues da Capital. Natural de Rio Grande, acabou indo para as ruas depois de uma briga com a mãe. “Meus filhos ficaram com ela, em Rio Grande, mas como eu sempre quis conhecer Porto Alegre, vim para cá”, conta. Quando terminar os estudos, pretende seguir na carreira artística: “Vou ser a mais nova artesã”.

Um pouco mais à frente, há uma quadra de esportes na qual as traves e travessões fazem às vezes de varais. Embora de concreto, o espaço é cercado por grama que há algum tempo não é cortada.

A RUA TEM MOTIVOS João Carlos tem 46 anos e é morador de rua. Perdeu os pais ainda quando criança. Parou de estudar no quinto ano, na época 4ª série, e acabou encontrando refúgio nas ruas de Porto Alegre. “Para sair da rua, (você) tem que ter uma formação. Se não tiver, (você) não vai conseguir sair”, conta ele, enquanto esfrega as mãos em sinal de nervosismo. Podemos perceber que os alunos não gostam muito de fotos e entrevistas, são tímidos e melindrosos. Estudante da Totalidade 3, que é equivalente ao quinto ano, João adora estudar e participar das aulas de cerâmica da EPA, que são a diversão de quase todos os alunos. Quando perguntado sobre seu sonho, ele prontamente responde: “A primeira opção é Direito, mas gosto de Fonoaudiologia também”. Com uma edição do Boca de Rua – jornal feito por moradores de rua de Porto Alegre – na mão, Rodrigo, 27 anos, cabelos cheios de dreadlocks, conta sua história de vida. “Estou na rua desde os meus sete anos. Eu fugi do meu pai, ele batia em mim e queria cortar meu cabelo. Só que eu não

O OUTRO LADO DA MOEDA

FOTO: DANIELA KNEVITZ

Conforme a psicóloga Moema Linkiwcz, o apoio psicológico em instituições que atendem pessoas em vulnerabilidade social é de extrema importância. “A psicologia nesse cenário pode dar acolhimento para essas pessoas e para suas angústias, dúvidas, incertezas e para própria história de vida que carregam consigo”, afirma. Quanto à importância de ter um local de estudo e acolhimento, Moema explica que para uma pessoa que não tem onde morar, esse pode ser o único ambiente estável e contínuo em sua vida. Apesar de não contar com um atendimento psicológico específico,

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a EPA possui um convênio com o Projeto de Saúde Mental da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), que tem encaminhado estudantes das áreas de Psicologia, Assistência Social, Terapia Ocupacional e também Educação Física. Todavia, é importante ressaltar que os universitários não atuam clinicamente, trabalham apenas em conjunto com o Serviço de Orientação Pedagógica (SOP) da escola. Segundo o Art. 5º da Constituição Federal, “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade”. Dessa forma, segundo a Constituição, o acesso à educação é um direito de todos os cidadãos, inclusive os que se encontram em situação de rua. Infelizmente, os recursos para esse trabalho são escassos. Conforme o diretor Renato, faltam professores. “Professores no quadro são 27, mas não são professores de 40 horas”. Todavia, uma promessa foi feita: no começo deste ano um ofício foi recebido na escola, enviado pela Secretaria Municipal de Educação (SMED). Nele, consta que novos concursos deverão ser abertos para que sejam preenchidas todas as vagas. Procurada pela reportagem, a SMED não soube informar prazos para os concursos acontecerem. A Escola Municipal de Porto Alegre, juntamente com a Escola Meninos e Meninas do Parque, em Brasília, realiza um trabalho inspirador – transforma vidas, como a de Eduardo, Gislaine e Rodrigo. Trabalho enobrecedor e que, de fato, deixa o verdadeiro legado às gerações que hão de vir.


FOTO: ANDREZA FERRAZ

FILHOS DA SOLIDÃO

Andreza Ferraz | Jean Costa

Na espera pela adoção, crianças e adolescentes passam mais tempo em abrigos do que prevê a lei

UNIVERSUS | os LEGADO DEZEMBRO DE 2018 “Educai as crianças, para que não seja necessário punir adultos”.|| Pitágoras (570–495 a.C.)

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de dois anos de idade. Assim como a maior parte dos interessados em adotar, o perfil de filhos desejados pelo casal Milan Soares e Elizete Fernandes, no Rio Grande do Sul, era de meninas de até três anos. Casados há oito anos, deram início ao processo de adoção em 2013, e dois anos depois foram habilitados no Cadastro Nacional de Adoção (CNA). Após participar de reuniões no Instituto Amigos de Lucas, ONG que trabalha na prevenção do abandono e luta pelo direito de crianças e adolescentes – foram convencidos a mudar a faixa etária desejada no CNA. “Grande não é velho. Eles também podem ser adotados, são crianças ainda”, se arrepia ao falar Elizete. A ideia de ter filhos era um sonho, porém ela optou não correr o risco da maternidade por conta da sua idade, 52 anos. Em 2017, nasceram [expressão que simboliza a aprovação no processo de adoção], em Minas Gerais, os três filhos do casal: Maria Eduarda (7), Gabriel (5) e Maria Vitória (3). O deslocamento de Porto Alegre (RS) para Cássia (MG), que durou dezenove horas, foi de extrema ansiedade. Até que, em uma pequena praça da cidade, ocorreu o tão esperado encontro. Segundo os pais adotivos, a escolha de “aceitar ser adotado” parte sempre do jovem. Precisa haver uma conexão sentimental que ninguém nunca conseguirá explicar em palavras. As crianças, que nunca tinham convivido mais de 24h juntas, já que no abrigo ficavam em áreas separadas por idade, celebraram – mesmo sem saber – a guarda temporária. O que os novos pais também não sabiam, é que na mesma casa residia o pequeno Gustavo, que na despedida do casal questionou se um dia seria adotado.

ustavo não se recorda do rosto dos pais biológicos. Com dois anos de idade já havia ido morar em abrigos da cidade de Cássia, em Minas Gerais. Por uma década ele carregou um vazio indisfarçável dentro de si. Agora, com 12 anos, Gustavo e os cinco irmãos, filhos de pais dependentes químicos, encontraram uma família. Os poucos detalhes da infância, inesquecíveis em sua memória, são negativos. “Visitas de pai e mãe, eu nunca tive isso. Tive só a diretora do orfanato. Eu sofri muito na minha vida quando era pequeno, porque não tive pai nem mãe, um auxílio”, relembra. Nascido em Gameleiras, norte de Minas Gerais, o jovem desde sempre foi obrigado a entender o significado de palavras indesejáveis: drogas, violência, bebidas, ausência e pobreza. Situações de sofrimento na infância transformaram o mineiro em um menino forte, corajoso, independente. Pela lei, ele e tantas outras crianças deveriam passar no máximo 18 meses no processo de acolhimento em abrigos. Mas, na prática, a realidade é outra. ‘’A diretora falava que era para eu não me preocupar, porque ela era uma segunda mãe para mim. Só que isso não resolvia. Nem para mim nem para as pessoas do abrigo’’. Gustavo viu todos os seus irmãos serem adotados. Foram embora, só ele ficou.

AMOR É UMA COISA QUE EU NUNCA TIVE A maioria das famílias optam por adotar crianças recém-nascidas, de cor branca, do sexo feminino e saudáveis, prolongando o tempo dos perfis predominantes nos abrigos: crianças negras, portadoras de necessidades especiais e maiores

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Neste momento, Elizete e Milan prometeram que encontrariam uma família para ele. Saíram de Minas Gerais com o coração apertado. Parecia faltar algo para que de fato a realização estivesse completa. Durante quatro meses analisaram as condições financeiras, psicológicas e estruturais da residência em Porto Alegre. Procuraram nos grupos de amigos uma possível família para Gustavo. Mal sabiam que ela já havia sido encontrada. Eles se escolheram. Para o casal, ter três filhos era possível, quatro não. Seria demais. Entretanto, solicitaram ao Juizado de Minas a guarda do quarto filho: Gustavo. Em forma de surpresa, em dezembro de 2017 os novos pais foram buscá-lo. “Se nós não temos pai nem mãe, por que existe esses dias [comemorativos]?”, lamenta o garoto. Desde então, as datas celebradas em ambiente familiar ganharam outros valores em sua vida. Ficou marcado positivamente o primeiro Natal com toda família reunida.

HISTÓRIAS QUE SE CRUZAM    Diferente de Gustavo, Serafim [nome fictício], com 17, ainda aguarda a adoção. De manhã faz curso de cabeleireiro, à tarde de computação e à noite estuda. Se dá bem com todos os educadores do Pão dos Pobres, instituição na qual reside. ‘’É como uma família, um familião. Tudo mundo respeita todo mundo e se apoia quando precisa. Damos conselhos quando necessário’’, explica, sorrindo. A Fundação Pão Dos Pobres, fundada em 1895, momentaneamente abriga cento e vinte crianças e adolescentes em Porto Alegre. São seis casas de acolhimento.


Quatro dentro do complexo localizado na Rua da República, no bairro Cidade Baixa. Em cada uma delas residem 20 crianças de todas as idades. O objetivo da Fundação, resumidamente, é assegurar boas condições de habitação, higiene, alimentação e segurança aos acolhidos e potencializar o desenvolvimento integral de todos numa perspectiva solidária, construída por meio de práticas socioeducativas. Todas as crianças e adolescentes precisam estar obrigatoriamente matriculadas em escolas.

TEMPO DE QUESTIONAMENTOS INTERMINÁVEIS Filho de mãe falecida e pai residente de outra cidade, Serafim precisará sair do abrigo quando completar 18 anos, porque a estrutura do acolhimento é fornecida até o dia em que o adolescente atinge a maioridade. A partir deste momento ele é considerado responsável por si, mesmo sem estrutura emocional e financeira para isso. Dois irmãos de Serafim residem em uma Casa Lar, e os outros três mais velhos já saíram dos abrigos. É com esses que existe a primeira possibilidade de moradia, entretanto a situação financeira deles não é animadora. Serafim não sente saudades do pai, apenas de um tio querido. Se não der certo com os irmãos, o adolescente deseja morar com o tio em São Lourenço do Sul, cidade localizada no interior do Rio Grande do Sul. Diante deste cenário de insegurança, desproteção e desamor, o jovem se perde no tempo. Já sem esperança, se contradiz ao afirmar que não

deseja ser adotado. ‘’Quem vai querer me adotar? Já tenho 17 anos na cara, sou um ’marmanjão’. São poucas pessoas que iriam querer, 1%’’. Esta mesma porcentagem, por mais improvável que seja, faz o seu coração bater acelerado com a chance do “milagre da adoção” acontecer. Contudo, ele prefere se blindar num mar de timidez e silêncio para evitar decepções.   Do salário mensal que recebe por trabalhar no Programa Jovem Aprendiz, Serafim consegue sacar apenas 30%. O resto é guardado e gerenciado pela coordenação da casa em uma poupança. Quando tiver de sair do abrigo, pelo menos terá uma boa quantia em dinheiro guardada para enfrentar as dificuldades que o mundo ainda tem para lhe oferecer.

que, me arrepio toda, me emociono, porque são nestes momentos que a gente percebe o quanto somos importantes para eles’’, conta. ‘’Eles não deixam de ser um pouquinho nossos, mesmo que a rotatividade seja grande. A gente tem eles no coração’’, encerra, segurando a emoção.       Elizete e Milan, realizados pela formação da nova família, não se julgam merecedores de aplausos e elogios pelo ato da adoção. Querendo deixar um bom legado em vida, os pais definem o que desejam aos quatro  filhos: ‘’Dar condições para que  eles sejam pessoas boas e ajudem a mudar o mundo’’. Procuram fazer com que as crianças entendam os seus papéis na inserção social para se posicionar diante de situações preconceituosas e maldosas. E nunca ocultar a realidade de ESCOLHA POR UM serem adotados por medo de gerar LEGADO IMPAGÁVEL    desigualdade ou inferioridade, pois isso, para eles, é motivo de orgulho.  Valéria sempre trabalhou em áreas A fé lhes move, fez com que burocráticas. Hoje vive a rotina Gustavo adquirisse uma paciência de educadora no Pão dos Pobres exaustiva na busca por um lar e faz com intensidade. É chamada de Serafim não perder a esperança de ‘’mãe’’ muitas vezes sem querer. trilhar o caminho do bem, mesmo Deseja fazer a diferença na vida sem saber exatamente para onde dos jovens abrigados e, por isso, irá ao completar 18 anos. Por trás ela os prepara para o futuro, sem de um sorriso tímido, Gustavo tem esconder a sua preocupação com em si, como diria Fernando Pessoa, este momento – tão comum e ao “todos os sonhos do mundo”. Quer mesmo tempo marcante – que ser advogado, visitar os dois irmãos logo Serafim viverá. “Eu penso que estão longe, ver a mãe biológica em continuar tendo um contato parar de usar drogas e ter filhos para ter o cuidado, estar perto adotivos como forma de retribuição caso ele precise de uma orientação, pelos desafios que viveu. Já mas nem sempre é possível’’.  Serafim, que não teve a mesma Com amor e respeito ao ser humano, sorte que Gustavo - pelo menos Valéria exerce o papel de irmã, mãe até o dia da entrevista -, sonha e amiga de incontáveis crianças em ser cabelereiro e viver, seja do e adolescentes que passam pelos jeito que for, novamente com a seus cuidados. ‘’Tenho em casa um sua família biológica. Ou alguma cantinho que guardo coisas que outra que queira ter um filho de durante este tempo eu ganhei. Cartas 17 anos, sem enxergar malefícios. UNIVERSUS | LEGADO

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ARTE: DIVULGAÇÃO

Bruno Raupp | Matheus Closs

A busca pela igualdade de acesso ao ensino superior público faz ressurgir, ciclicamente, debates que visam a cobrança de mensalidade aos alunos de alta renda

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té a vinda da família real para o Brasil, em 1808, a criação de universidades era proibida. Apesar das tentativas dos padres jesuítas de estabelecerem faculdades durante o período colonial, não havia interesse por parte da coroa portuguesa em transformar a sua fonte de riqueza, adquirida, principalmente, via trabalho braçal, escravista, agrário e rudimentar, em mão de obra qualificada

para outras atribuições. A falta de empenho em educar a população resultou, entre outras coisas, na expulsão dos catequizadores do país. Portugal impedia o estudo de Ciências, Letras e Artes. Desta forma, evitava a tentação aos movimentos revolucionários do século XVIII. No período, em que a grande maioria da população era analfabeta, os filhos dos grandes latifundiários - a elite da colônia - eram enviados para estudar no exterior. No período imperial, o ensino superior, ainda discretamente, começa a ser implementado no Brasil, com faculdades voltadas às necessidades da elite econômica. Apenas após a Proclamação da República, em 1889, e a adoção de ideais positivistas, que se passa a defender a igualdade de oportunidades na educação. Mais de um século depois,

entretanto, tal igualdade no acesso ao ensino superior ainda é tema de discussões e divergências. No cenário brasileiro, o ensino superior público é posto sob uma lupa de tempos em tempos. O artigo 206, inciso IV, da Constituição Federal (CF) de 1988, que versa sobre o direito à educação no país, atenta para a gratuidade do ensino público em estabelecimentos oficiais. Por outro lado, o artigo 208, inciso V, garante que o acesso aos níveis mais elevados do ensino deve ser obtido de acordo com a capacidade de cada um. Uma discussão que invariavelmente retorna aos holofotes do legislativo é a questão da cobrança de uma taxa a alunos das classes mais abastadas. Este tema específico já foi debatido pelo Supremo Tribunal Federal (STF), que esclareceu, através da Súmula Vinculante 12, que a cobrança de taxa de matrícula

UNIVERSUS | despesa. LEGADOSempre | DEZEMBRO DE 2018 22 “Educação nunca foi foi investimento com retorno garantido”. | Sir Arthur Lewis (1915-1991)


FOTO: DIVULGAÇÃO

nas universidades públicas viola o disposto no art. 206, IV, da Constituição Federal. O STF, todavia, não impede a discussão. “As universidades públicas fomentam a desigualdade. O acesso, principalmente nos cursos mais concorridos, mede investimento e não conhecimento”, diz o doutor em Direito Lúcio Antônio Machado Almeida, que em sua tese abordou a política de cotas raciais. Para ele, a gratuidade aos alunos de perfil socioeconômico elevado gera ainda mais concentração de renda. Tendo em vista a democratização do acesso às universidades públicas, o governo federal sancionou, em 2012, a Lei nº 12.711. Conhecida como Lei de Cotas, instituiu que todas as instituições públicas, até 2016, passassem a destinar 50% das vagas a estudantes do ensino público.

INEFICIENTE ANÁLISE DA EFICIÊNCIA? A mesma linha de pensamento do doutor em Direito, Lúcio Antônio, é corroborada pelo relatório “Um Ajuste Justo – Análise da Eficiência e Equidade do Gasto Público no Brasil”, realizado pelo Banco Mundial a pedido do Governo Federal e publicado em novembro de 2017. Segundo um dos argumentos apontados no texto, “os estudantes de famílias mais ricas têm condições financeiras para pagar professores particulares, ou frequentar os ensinos fundamental e médio em escolas privadas, que oferecem uma melhor preparação para tais exames de admissão. Estudantes de famílias mais pobres, por outro lado, têm muito menos chances

Lúcio Antônio é favorável à cobrança de alunos ricos

de ingressarem em universidades públicas”. O relatório também indica que o gasto médio por aluno dessas instituições supera de duas a três vezes o das universidades privadas. Esse é um dos pontos que mais gerou debate, pois alguns especialistas discordam da forma como o Banco Mundial realizou os cálculos - não estão detalhados no documento. De acordo com o ex-reitor da UFRGS, Carlos Alexandre Netto, caso a conta tenha sido feita a partir do gasto global das universidades,

ela comete uma falha, já que as instituições, além da graduação, gastam com departamentos de pesquisa, extensão e assistência. Além disso, somam-se às despesas as aposentadorias dos servidores. No caso das privadas, elas são pagas pelo INSS. O relatório mede os níveis de eficiência do ensino superior através do valor adicionado nas universidades. Esse número resulta da diferença do desempenho

“O acesso, principalmente nos cursos mais concorridos, mede investimento e não conhecimento” UNIVERSUS | LEGADO

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observado e o esperado dos alunos nas provas do Exame Nacional de Desempenho dos Estudantes (Enade). Segundo a análise, há “altos índices de ineficiência”, pois o maior investimento nas universidades públicas “não se reflete em um maior valor agregado para os graduados em comparação com os graduados de outras universidades”. Embora o doutor em Economia Róber Iturriet reconheça a dificuldade em mensurar a eficiência, ele aponta que o método utilizado pelo Banco Mundial talvez não seja o mais adequado, pois não considera os benefícios intangíveis e a produção científica realizada pelas universidades públicas. “O conhecimento transborda de alguma forma. A universidade pública constrói o conhecimento para a sociedade, e entrega isso gratuitamente”, analisa.

Dados (2014): Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes)

oriunda dos estudantes. “A arrecadação de mensalidades pode tornar as universidades pouco sustentáveis”. Outro ponto é que a medida poderia estimular uma futura privatização do ensino. Para os doutores em Economia, Clauber Scherer, e Direito, Rafael de Abreu, a ideia de uma universidade pública paga é uma forma de pensar a equidade e a eficiência do sistema educacional superior público. “Em termos de construção (da cobrança), não é uma discussão econômica, nem ideológica. É uma discussão de justiça”, defende Scherer. Para Abreu, a cobrança incentivaria a produção intelectual no país. Ele propõe que a partir da arrecadação se reconstrua o tripé ensino, pesquisa e extensão. “O cara que é de alta renda, entra pagando total. E se quiser trazer benefícios para a sociedade, gradativamente, de acordo com o engajamento com pesquisa e extensão, diminui (o valor)”, sugere. Entre os pontos convergentes nas opiniões dos especialistas, o mais latente é de que o aumento de receitas das universidades seria positivo. Mais recursos poderiam resultar em melhorias às estruturas físicas

IGUALDADE OU PRIVATIZAÇÃO Durante as eleições de 2018 a questão chegou nas propostas de campanha dos presidenciáveis Geraldo Alckmin (PSDB), João Amoedo (NOVO) e do candidato eleito, Jair Bolsonaro (PSL). Apesar de parecer consenso entre os três que a cobrança deveria ser voltada aos alunos com perfil socioeconômico elevado, nenhum apresentou de forma clara os parâmetros de cobrança, nem mesmo o que seria feito com a receita gerada, causando mais incertezas acerca da proposta. Carlos Alexandre argumenta que a cobrança poderia resultar em uma redução dos repasses orçamentários da União. Segundo ele, isso deixaria as universidades com maior dependência da arrecadação

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das instituições, além de possibilitar maior investimento em pesquisa e no financiamento de bolsas para alunos de baixa renda. Outro ponto em comum é o reconhecimento de que, apesar das políticas de cotas, há ainda um efeito concentrador no ensino superior público. O discurso em defesa de um ensino superior público gratuito para todos, na opinião de Lúcio Antônio é, muitas vezes, vazio, e apenas reforça o papel histórico das universidades no Brasil, que sempre foi voltado para a formação da elite.

SOLUÇÕES PARA A DESIGUALDADE Nos últimos anos, o perfil socioeconômico dos alunos das universidades públicas mudou, principalmente devido a política de cotas. É o que apontam os estudos da Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes). De acordo com a IV Pesquisa do Perfil Socioeconômico e Cultural dos Estudantes de Graduação das Instituições Federais de Ensino Superior Brasileiras (2014), última


“Eles querem é acabar com a universidade pública. Esse é o objetivo. E aí financiar bolsas nas universidades privadas” que a cobrança é um fator de exclusão. “Não tenho dúvida nenhuma em defender o ensino superior público como gratuito, porque se a educação superior também é um direito dos cidadãos, o estado tem o dever de apoiar”, comenta o exreitor. Além disso, afirma que durante sua gestão foi realizado um relatório que apontou que a receita gerada a partir de uma possível cobrança de alunos seria baixa para suas necessidades, e não “pagaria nem a folha” da UFRGS. A equipe de reportagem solicitou acesso ao relatório, mas ele não está mais disponível. Para o Banco Mundial, duas alternativas são possíveis para o alcance da eficiência. A primeira seria limitar os gastos por aluno aos níveis das universidades mais eficientes. Isso resultaria em economia de 0,26% do PIB FOTO: MATHEUS CLOSS

realizada, a porcentagem de alunos com renda bruta familiar de até 3 salários mínimos subiu de 40% para 51%, entre 2010 e 2014. No outro extremo da pesquisa, estudantes com rendimento familiar a partir de 9 salários mínimos, que somavam cerca de 23% em 2010, quatro anos depois eram 13%. A cobrança de taxas dos alunos mais abastados ainda é a solução mais apontada por especialistas para combater a desigualdade socioeconômica, principalmente por influência do relatório divulgado pelo Banco Mundial. Segundo Rafael de Abreu, a quantia arrecadada seria transformada em uma receita vinculada, na qual uma parte iria para melhorias das estruturas físicas das universidades, outra para a ampliação dos benefícios assistenciais dos alunos de baixa renda e, por último, parte desse dinheiro iria para um fundo do ensino básico. “Eu ataco os três problemas, assim, eu chego na universidade com igualdade de condições”, completa. Na contramão desse pensamento, Carlos Alexandre Netto acredita

Carlos Alexandre Netto vê a cobrança como fator de exclusão

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- atualmente gasta-se 1% no ensino superior. A segunda seria a implementação de tarifas escolares, como forma de captar mais recursos das universidades federais, o que poderia financiar mais bolsas como o FIES e Prouni. Embora Róber Iturriet ache interessante a ideia de ampliar o acesso ao ensino superior, ele acredita que a proposta do relatório tenha outra agenda. “No fundo, o que eles querem é acabar com a universidade pública. Esse é o objetivo. E aí financiar bolsas nas universidades privadas”, analisa. Apesar das propostas de instituir as mensalidades, a Constituição Federal, hoje, não permite a medida. “Teria que ser uma iniciativa do legislativo ou do STF, mas o STF só pode tomar essa iniciativa se provocado”, explica Lúcio Antônio. Durante o século XVII, quando os jesuítas ainda mantinham suas instituições de ensino no Brasil, o acesso às universidades passava a se constituir como um instrumento de distinção social. Na época, enquanto a elite enviava seus filhos à Europa, a população mestiça lutava para ter acesso ao mesmo ensino. Hoje em dia, as opiniões sobre este assunto não poderiam ser mais divergentes. Resta, devido ao atual paradigma político e social, acompanhar as próximas decisões. Mas uma coisa é certa, o debate sobre a equidade no ensino superior público, mesmo quatro séculos depois, tende a não se extinguir. |

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Ana Paula Lima | Brunna Oliveira | Kizzy Morais | Nathalia Kerkhoven

Dados comprovam que as mulheres estudam e se qualificam mais do que os homens. Entretando, ainda recebem menos chances no mercado de trabalho

divulgado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), e feito em parceria com a Organização das Nações Unidas (ONU Mulheres). O documento aponta que as mulheres apresentam níveis de escolaridade maiores do que os homens, porém, ocupam cargos piores no mercado profissional. Laura Bresolin da Luz, 22 anos, faz parte dos 57,2% das mulheres em cursos de graduação, segundo dados do Censo da Educação Superior de 2016, realizado pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep). Estudante de Engenharia Elétrica e técnica em eletrônica, a jovem escolheu a área por influência

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s mulheres brasileiras ainda são tratadas com desigualdade em diversas áreas e questões, principalmente, no mercado de trabalho. Essa afirmação é apresentada no estudo “Retrato das Desigualdades de Gênero e Raça”,

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familiar, pretensão salarial e características do curso em si. Além disso, a demanda por pessoas qualificadas atraiu Laura à área. Apesar de nunca ter sentido desvantagens em relação aos homens na busca de emprego na Engenharia Elétrica, Laura afirma que o ambiente era extremamente masculino. “Acredito que, pela masculinidade frágil dos homens, foi difícil conquistar meu lugar e mostrar que minha capacidade era a mesma”, analisa. “Eu tive que ter calma, tive que me mostrar mais proativa, para ter visibilidade”, completa. Não basta ter uma qualificação melhor que o homem, a mulher tem que lutar muito para ter o espaço que deseja.

FOTO: RAFAEL COSTA

MAIS ESTUDO, MENOS OPORTUNIDADE


FOTO: WILLIAN LEPPA

O DESTINO QUE O ESPORTE TRANSFORMOU Gabriela Schulz | Juan Romero | Pedro Munhoz | Willian Leppa

Projetos esportivos ligados à educação mudam a vida de crianças carentes de duas capitais

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a cidade do Rio de Janeiro e em Porto Alegre ficam dois projetos com lemas, dinâmicas e modalidades esportivas diferentes, mas que possuem praticamente o mesmo objetivo: oferecer um lugar acolhedor onde meninos e meninas, que vivem em situação de vulnerabilidade, possam ter uma formação com oportunidades e experiências

que não seriam possíveis sem a intervenção dessas instituições.

ENTRE A QUADRA E A SALA DE AULA Localizado no extremo sul da capital gaúcha, o projeto Wimbelemdon surgiu em outubro de 2000 através da iniciativa de Marcelo Ruschel, fotógrafo que esteve presente nos maiores torneios de tênis do circuito mundial. O nome do projeto é uma junção de Belém Novo, bairro onde está situado, e da situação em que a quadra de tênis do terreno se encontrava há 18 anos: cheia de mato. O que lembra o torneio de

Wimbledon, na Inglaterra, que é o único grand slam disputado em uma quadra de grama. “Sou um morador apaixonado pelo bairro e tenho ligação com o tênis como fotógrafo. Sempre percebi os bons valores que ele carrega, pois, embora seja um esporte individual, ele tem muito forte a questão de equipe”, conta Ruschel. Em 31 de outubro de 2000, foi assinado o contrato de aluguel do terreno, data que é considerada a fundação da instituição, que tem a tarefa de proporcionar um espaço para aulas de tênis. Até colocar o projeto em prática, Ruschel cometeu muitos erros. “Descobri muitas

UNIVERSUS | LEGADO | DEZEMBRO DE 2018 “O que importa é a jornada e não o destino”. | Carl Lewis (1961)

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FOTO: ARQUIVO PESSOAL

estado. “Aqui acaba se tornando um espaço de proteção”, completa. Como o foco principal do projeto está na formação de cidadãos e não simplesmente em formar grandes atletas, são ensinados alguns atributos como empatia, gratidão, respeito, perseverança e altruísmo. E a cada semestre os jovens fazem trabalhos relacionados a esses atributos como, por exemplo, a empatia dentro de quadra.

ACE QUE MUDA O FUTURO

Jaleska ganhou uma bolsa de estudos em Londres após bom desempenho em uma competição

Juntamente com todas essas tarefas é oferecido atendimento psicológico. A entidade conta com um psicólogo entre os funcionários e mais uma equipe com quatro estagiários da área. Eles gostam de destacar que o maior departamento da entidade não é o tênis, mas sim a psicologia. E faz sentido. Felipe Pedroso, psicólogo responsável da instituição, conta que a cada nova admissão são realizadas visitas domiciliares e acompanhamento com as escolas onde os pequenos estão matriculadas, para analisar cada caso específico das famílias e dos alunos. Entre eles, também estão crianças que moram em abrigos e estão sob a guarda do

coisas errando”, relembra. Inicialmente eram fornecidas atividades apenas duas vezes por semana, e enquanto ele viajava em função da profissão, Luciane da Silva, sua esposa e cofundadora, cuidava do cotidiano do projeto. Hoje em dia as crianças têm atividades diárias no contraturno escolar, como conta Cristiano Santarem, chefe de comunicação da ONG. “Os educandos têm aulas de reforço de matemática e português, oficina de gastronomia, de cinema, contação de histórias, laboratório de aprendizagem, aulas de yoga para trabalhar a mente, além do tênis e outras atividades esportivas”.

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Um dos cases de sucesso é Jaleska Mendes, 23 anos. Ela entrou aos nove anos, inspirada pelo irmão, que já fazia parte do projeto, e participou de todas as atividades proporcionadas até chegar à maioridade, quando saiu matriculada na faculdade de Educação Física, através de uma parceria com a Sogipa. Aos 18 anos, seu último ano de participação, Jaleska jogou a Copa Gerdau e, como seu desempenho foi muito satisfatório, olheiros que estavam na competição ofereceram uma bolsa de estudos numa faculdade em Los Angeles, nos Estados Unidos. Mas o destino não quis que ela fosse para lá. Teve seu visto negado e, em vez do Tio Sam, ela foi para a Terra da Rainha, onde ficou por dois meses, em Londres. Questionada sobre seu futuro, ela fala: “Acabando a faculdade, acho que vou me dedicar ao projeto”. A entidade, que se mantém através de eventos de arrecadação e por meio de doações de pessoas físicas e de empresas, oferece um trabalho que começa na base da formação das crianças, tentando prepará-las


para o mundo. Como Cristiano Santarem bem ressaltou: “Nunca saiu daqui um Guga Kuerten, mas já saíram ótimos cidadãos que talvez nem saibam jogar tênis tão bem”.

VITÓRIA NO TIE-BREAK Em 2014, o dono do terreno onde se localiza o projeto Wimbelemdon deu um ultimato para Marcelo Ruschel: “Ou tu compra o terreno ou colocarei à venda”. Como o valor era muito alto, aproximadamente R$ 350 mil, a solução foi fazer um crowdfunding e leiloar alguns itens doados. Rafael Nadal, um dos maiores tenistas do mundo, doou algumas raquetes autografadas para a ocasião. Gesto que demonstra a credibilidade que a entidade possui. O montante foi arrecadado e hoje o terreno pertence ao projeto.

CIDADÃOS DENTRO E FORA DO TATAME Entre o bairro nobre de São Conrado e aos pés de uma das maiores favelas do Rio de Janeiro está o polo da Rocinha, do Instituto Reação, organização que tomou forma através das mãos do ex-judoca Flávio Canto, com a colaboração de outros quinze sócios e que é considerada uma oficina de potenciais campeões. A entidade, que serve de refúgio para jovens carentes e estimula o desenvolvimento humano dos indivíduos que lá estão por meio do esporte e da educação, foi fundada porque Canto dava aulas de judô no projeto “Educação Criança Futuro” nos

arredores da Rocinha, na década de 2000. Entre os sócios está Geraldo Bernardes, ex-técnico da seleção brasileira de judô. Mas não foi só a conquista da medalha que inspirou Flávio Canto a começar no judô. Ele também teve uma espécie de instinto de sobrevivência, pois nessa mesma época sofria bullying na escola. O esporte foi o meio encontrado para aprender a se defender de seus algozes. “Resolvi entrar no judô para aprender a me defender, mas depois acabou que nunca mais briguei, fiquei amigo de todo mundo e fui atrás das medalhas”, menciona. Hoje em dia, depois de ganhar suas próprias medalhas [prata no Pan-Americano de Mar Del Plata, em 1995; bronze no de Winnipeg, em 1999; e ouro no de Santo Domingo, em 2003; além de um bronze olímpico na edição de Atenas, em 2004], ele integra o quadro de diretores do Instituto Reação. Focado na formação de atletas, mas sem esquecer de pontos fundamentais na construção de indivíduos, a instituição oferece, além das aulas de judô, a preparação dos alunos para competências cognitivas. “Vivemos num momento de muita transformação, onde profissões que existem hoje, não existirão mais. Então achamos que devemos preparar os alunos para isso”, elabora.

Entre os muitos atletas acolhidos pela instituição estão campeões dos mais variados torneios de judô, incluindo os Jogos Olímpicos. Um dos exemplos de maior sucesso é Rafaela Silva, campeã olímpica no Rio de Janeiro, em 2016. Canto relembra o início de Rafaela no esporte dizendo que desde pequena ela já tinha uma determinação que chamava atenção. “Quando ela surgiu, o Geraldo [Bernardes] já falava que ela iria para a seleção”, complementa. E não deu outra. A judoca foi campeã mundial júnior aos 16 anos, enfrentando atletas quatro anos mais velhas. Com 19 já era vice-campeã mundial adulto e hoje integra o seleto grupo de pessoas que possuem a tríplice coroa, que engloba o mundial júnior, mundial adulto e olimpíada. No Brasil é a única que conquistou esse feito. A medalha de Rafaela Silva com certeza serviu de chamariz e vitrine do Instituto para que novas crianças se inspirem em seu exemplo. A instituição luta para reverter o estigma de que o futuro das pessoas é definido pelas suas origens. “Procuramos formar faixas pretas dentro e fora do tatame através de uma metodologia que contempla três fases de uma caminhada: construir, conquistar e compartilhar. E para cada fase temos alguns valores”, finaliza Canto.

“Tentamos reverter aquelas estatísticas que dizem que o futuro da gente é definido pela nossa origem. Usamos muito a frase ‘passado não é destino’.” Flávio Canto

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BOM PARA O BOLSO. E PARA O ENSINO? Osmar Martins

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modalidade de ensino à distância, conhecido como EAD, não é novidade, nem começou na era digital. Em 1729, em Boston, nos Estados Unidos da América, registrava-se o primeiro curso de ensino à distância que se tem conhecimento, quando um professor dava aulas por correspondência. No Brasil, segundo pesquisa do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), iniciou por volta de 1890, no Rio de Janeiro. Com a popularização da internet, dos computadores e dos celulares, e com a regulamentação do EAD no país, a modalidade recebeu investimentos, cresceu e se consolidou. Além da facilidade de acesso, a flexibilidade de horários e o preço mais baixo em comparação ao ensino tradicional, são algumas das principais vantagens para os estudantes. A alta capacidade de lucro, o baixo custo e a distribuição escalável são os trunfos do EAD para os empresários das instituições de ensino - que as administram muito mais baseados em diretrizes empresariais do que acadêmicas. Segundo o último censo de Educação Superior divulgado em 2016 pelo IPEA, o EAD é a modalidade de ensino que mais cresce no país. Em 2005, havia cerca de 100 mil alunos matriculados. Dez anos depois, o número de estudantes ultrapassou 1 milhão um crescimento de mais de 1.000%. Mas nem todas expectativas que rondam o mercado EAD são

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positivas. Apesar do lucro por parte das instituições de ensino, aumento no número de pessoas capacitadas nas mais diversas regiões e da satisfação dos alunos, também existem questões a repensar, pois, nem todo curso pode ser oferecido nessa modalidade. Um engenheiro não pode ter somente aulas em vídeo, nem um enfermeiro se formar apenas com teoria. A ausência de debates e a padronização do ensino comprometem a qualidade das reflexões e do ensino que a faculdade proporciona. Afinal, vale a pena gastar um terço do valor de um curso presencial e fazer uma graduação EAD, com qualidade questionável e arriscar quanto à aceitação do mercado de trabalho? A capacitação de um profissional vai muito além do curso, da instituição, modalidade ou localidade. Os critérios mais relevantes talvez sejam a dedicação, o interesse e a curiosidade, por exemplo. Com esses e outros atributos, a trajetória de sucesso ou fracasso profissional passa distante da modalidade do curso. O crescimento da modalidade aparentemente é inevitável. Mesmo que não se possa parar essa possível migração das salas de aula, tão importantes para a utilização da dialética - técnica praticada por Platão e outros mestres do ensino -, devemos, ao menos, considerar as mudanças drásticas nas quais o ensino vem sofrendo. Queremos modernizar a educação, mas será que com fóruns de discussão, videoaulas e slides faremos isso?

CONFIRA MAIS REPORTAGENS NA VERSÃO DIGITAL:

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UM OLHAR EDUCACIONAL NAS CASAS DE ADOÇÃO - Por Ana Hoffmann, Giovana Moraes, Letícia Anele, Niége Moreira EDUCAÇÃO À DISTÂNCIA: VANTAGEM OU DESVANTAGEM PARA OS ALUNOS? - Por Juliano Batista, Leonardo Ferreira e Renato Kubaszewski ENTRE VOLTAS E REVIRAVOLTAS - Por Ariel Freitas, Lorenzo Albella, Luka Pumes e Rafael Costa NEM TUDO É MATO Por Alice Fortes, Jéssica Laguna e Liege dos Santos

UNIVERSUS | LEGADO | DEZEMBRO DE 2018 “Nunca desencoraje qualquer um que avança, não importa o lento que vai”. | Platão (428-347 a.C.)


FOTO: CRISTIAN DIECKOV

TURMA MANHÃ

Aline Eberhardt Rodrigues, Amanda Domingues Rossato, Andressa Oliveira Schutz, Andreza Silveira Ferraz, Arthur Rodrigues da Silva, Bruna Luísa Thiago Teles, Daniela Knevitz Duarte, Diego Rodrigues, Eduardo Willrich Castilhos, Gabriel Alves Dos Santos, Gabriela Schulz Martins, Isabela Moura de Jesus, Jean Barbosa Costa, Jéssica Zeferino Homem, João Pedro Laurentino Tavares, Juan Gabriel Batista Romero, Katiele Nunes Pina, Laura da Silva Maria, Leonardo Muller, Letícia Szczesny da Silva, Lilian Mendes Pires, Luana Meireles Carvalho, Nathielle de Oliveira Folharini, Nicoly De Souza Reis, Niége Adamski Moreira, Pedro Vinhaes Munhoz, Robson Hermes Colombo, Tainá Antunes Fontella, Tainá Flores da Silva, Ulisses Miranda da Rosa, Victória Regina Alfama, Vinícius Chagas Moura e Willian Franco Alves Leppa. FOTO: TIAGO COUTINHO

TURMA NOITE

Alberi Neto, Alice da Silva Fortes, Aline Luísa Bisol, Ana Cristina Hoffmann Azeredo, Ana Paula Gomes Lima, Ariadne Kramer Soares, Ariel Freitas de Freitas, Brunna Lima de Oliveira, Bruno Raupp, Camila Barão de Souza, Cristine Fogliati Nunes, Daiana Camillo, Débora Dallacort Fernandes, Eduardo Brusch Muller, Gabriela Ferreira Soares, Giovana Antunes Moraes, Jéssica Laguna Ferreira, Jonas Teixeira Ramgrab, Juliano Lisboa Baptista, Kizzy Morais, Larissa Zarpelon, Larissa Mascolo, Leonardo Ferreira, Letícia Anele Kruse, Liege Augustin, Lorenzo Trierveler Albella, Lucas Eliel Gonçalves, Luka Pumes, Matheus Closs, Natália Maciel Supp, Nathalia Kerkhoven, Osmar Martins, Rafael Acosta Martins, Rafael Costa da Rosa, Rarissa Urruth Grissutti, Renato Kubaszewski, Thiago Nascimento da Luz e Vitória Karoline Batista.

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