Lupa.12 edição
Por amor Mulheres vencem preconceito e visitam companheiros e parentes presos
novembro.2018
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A
mor não tem idade, tampouco sexo definido. Até parecem óbvias as afirmações, mas somente em 2015 um casal de lésbicas idosas foi representado na televisão. Saiu do clichê “idosa, doente, abandonada”. Embora a homossexualidade feminina e jovem seja predominante, desde então o assunto é discutido. Porém, na parede da memória de mulheres com idade igual ou superior a 60 anos, não contar sobre esse sentimento pode ser o que dói mais. Conforme estudos de 2017 da Organização Mundial da Saúde (OMS), a estimativa é de que até 2050 o número de pessoas idosas chegue a dois bilhões no mundo. Dar ênfase ao envelhecimento saudável, além de fortalecer o diálogo da relação entre idosas, diminui a necessidade das abordagens sobre doenças. “Não gosto que falem em doença”, disse com a voz firme a ex-coordenadora de Manutenção Predial e Logística da Fundação Iberê Camargo, Ângela Ghizi, 62 anos. Em uma tarde de primavera, ela estava no Café Cantante, na Capital. Antes de o vinho branco chegar à mesa, viver soou obrigatório. Histórias e risos antecederam a bebida. Elegante, vestia blusa bordô aveludada, manta roxa caída no busto, calças xadrez e rosto maquiado. Os cabelos brancos e raspados do lado esquerdo se destacavam. “Amo gente arrumada, com a autoestima elevada. Tenho um diamante tatuado, porque sou uma pedra preciosa”, revelou sorrindo com os lábios pincelados pela cor roxa. Bissexual desde os 19 anos, Ângela já casou com dois homens e duas mulheres. “Mulher é companheira. Elas se entendem. Homem é independente e isso me dá liberdade”, contou ela, que não teve filhos, cuida dos sobrinhos, e relatou bem resolvida o fato de que “ter filhos não significa que eles vão te cuidar”. “Adoro beijar na boca. Beijo até minhas amigas”, expressou com os olhos iluminados. Sobre afeto, disse não se importar com os outros. “Amor se demonstra. Ele ajeita as melancias na carroça. A paixão deixa a carroça desgovernada”, declamou como quem recita um
Sem filhos Idosas abrem mão de modelo tradicional familiar em nome da liberdade
4 Além de namorar, músicas e plantas também fazem parte da rotina saudável de Liliane
Na luta Poucos campeonatos e baixos salários são realidade do futebol feminino
6 materno”, assegurou séria, como quem nem sempre agiu assim. “Se um adolescente me chama de “tia” ou de “vó”, olho para ele com amor de mãe”, diz Liliane. Dona de autoestima elevada, não se deixa abalar pelo tempo. Enamorada há 11 anos por uma mulher de Frederico Westphalen, no RS, quando contou da namorada ficou inquieta. Pediu entusiasmada para mostrar fotos do amor dela. No quarto, instrumentos musicais faziam fila. “A atividade que mais ocupa as áreas do cérebro é tocar música. Eu adoro”, anunciou seguida da cantarolada na composição Como nossos pais, de Belchior: “Você me pergunta pela minha paixão. Digo que estou encantada como uma nova invenção”. E, certamente, ela está encantada como uma nova invenção. Ou, melhor, como uma reinvenção dela mesma.
Amor é fundamental
Amar é um instrumento g Envelhecimento saudável não diz
respeito somente a abordagens sobre doenças. Lésbicas idosas resistem Texto Bruna Schlisting Machado
poema. Em seguida, recordou a interpretação de Bethânia da música As canções que você fez pra mim. “Lembro de mim quando sofria pelas pessoas”, confessou.
Nascemos assim
Com cinco anos de idade, a ex-funcionária da Caixa Econômica Federal, Liliane Corrêa, 62 anos, venerava uma vizinha. Inocente, sem entender o que acontecia, a
Foto Paola Tôrres
única compreensão era o fôlego que perdia ao vê-la. “Tive muitos namorados, mas nunca fui apaixonada por um homem”, assumiu. Aos 21 anos teve a primeira experiência homossexual. “Ser lésbica, bissexual está no gene. Nascemos assim”, afirmou. Recém-saída do banho, cabelos úmidos, roupas simples e chinelos nos pés, Liliane deu acesso à casa humilde e de cômodos pequenos, em Gra-
vataí. Na sala, entre frutas e outros objetos, livros desordenados em cima da mesa preenchiam o ambiente. Logo abriu cervejas e o coração. Descreveu fotos em quadros antigos. As imagens destacavam a única mulher no futebol. “Eu sempre fui meio guri”, lembrou Liliane. “O silêncio é uma prece”, refletiu ao rememorar o passar dos dias. “Ultimamente enxergo as pessoas com olhar
“As pessoas ficam esperando que eu seja o vovozinho”, disse Jaqueline de Carvalho, psicóloga e professora do curso de Psicologia da Unisinos, em Porto Alegre, ao relatar uma das principais queixas dos pacientes dela. O Estatuto do Idoso protege pessoas com idade igual ou superior a 60 anos. Segundo Jaqueline, esse rótulo está mais voltado para fatores biológicos do que físicos. Sem contar questões culturais que dão ensejo à idade estabelecida. No que tange à sexualidade, o assunto “é mais falado pelos homens do que pelas mulheres. Muito provavelmente pela construção de uma sociedade machista”, descreveu. “Mulheres ainda têm tabu para falar da sexualidade, quanto mais da homossexualidade”, corroborou. De acordo com ela, faz diferença pessoas que se preocupam com a saúde e têm estilo de vida. “Quando estamos bem não nos importamos com o pensamento dos outros. Quem se dá conta que gosta do mesmo sexo, do diferente, ou de ambos, tem autoconhecimento”, disse. Conforme a profissional, outra queixa dos idosos é o abandono. “Receber afeto faz com que as pessoas deem afeto. O amor é fundamental”, finalizou Jaqueline.