Unipautas nº 08 (2016/1)

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PORTO ALEGRE/RS SEMESTRE 2016/1 ANO IV • NÚMERO 8

Giordana Cunha

Doação de sangue

Portaria do Ministério da Saúde considera inapto para doação os homens que tiveram relações sexuais com outros homens nos últimos 12 meses Pág. 16

JORNAL DA FACULDADE DE COMUNICAÇÃO SOCIAL DA UNIRITTER Guilherme Klafke

OS BARES ONDE QUASE TUDO PODE ACONTECER Reportagem do Unipautas fez um giro pelo Ocidente, Restaurante Alfredo, pub Bar&Bilhar e Von Teese.

Págs. 4 a 6 Sidd Rodrigues Liliane Pappen

INCLUSÃO SOCIAL Escolas regulares devem, por lei, receber alunos portadores de deficiência. Central

FÉ E TOLERÂNCIA

MOSAICO DA DIVERSIDADE

Qual a realidade da mulher no islamismo? Por que Cristo encanta cada vez mais os jovens? O acolhimento da população LGBT na Igreja Católica.

Págs. 10 e 11 Em mais um exercício de produção textual e criação publicitária, os alunos de comunicação realizaram uma edição temática do jornal Unipautas com um assunto presente no dia a dia da imprensa e da sociedade organizada. Desfrute da leitura.


2  •  UNIPAUTAS • 2016/1

APRESENTAÇÃO

Expediente O Jornal UniPautas é um projeto da Faculdade de Comunicação Social (FACS) do Centro Universitário Ritter dos Reis – UniRitter/Laureate International Universities. Este é um espaço de divulgação do material produzido nos cursos de Jornalismo e Publicidade e Propaganda, com apoio do curso de Relações Públicas. Seu projeto gráfico foi desenvolvido pelos designers e professores Sandro Fetter e Jaire Passos. UniRitter / Laureate International Universities Campus Zona Sul: Rua Orfanotrófio, 555 Alto Teresópolis • Porto Alegre/RS • CEP 90840-440 Fones: (51) 3230.3333 | (51) 3027.7300 Campus Fapa: Av. Manoel Elias, 2001 Alto Petrópolis • Porto Alegre/RS • CEP 91240-261 Fones: (51) 3230.3333 Campus Canoas: Rua Santos Dumont, 888 Niterói • Canoas/RS • CEP 92120-110 Fones: (51) 3464.2000 | (51) 3032.6000 Campus Exclusivo: Av. Wenceslau Escobar, 1040 Cristal • Porto Alegre/RS • CEP 91900-000 Fone: (51) 3027-7326

O jornalismo e a arca de Nóe

E

xiste um frase creditada à Samuel Johnson, crítico literário inglês do século XVIII, que continua viva: tudo o que é escrito sem esforço é lido sem prazer. A mensagem ecoa em sala de aula pelas mais diferentes disciplinas e reverbera nas redações, nas quais qualidade ainda representa um diferencial competitivo. Quando se fala em esforço na escrita jornalística, se fala de um universo propenso ao imponderável: uma fonte que cancela de última hora a entrevista, um arquivo de áudio corrompido, o faro da notícia desviado do foco, uma informação pouco apurada, a pressa e a pressão: política,

econômica e do tempo. E, claro, a vida pessoal do repórter com acontecimentos não pautados. Superar os obstáculos das variantes que compõem a equação de uma (boa) reportagem – minimizar riscos e potencializar oportunidades – faz parte de quem escolheu contar histórias da realidade para tencionar a sociedade. O tema diversidade desta edição do Unipautas revela um velho mundo novo. Explico o jogo proposital de palavras. Velho porque está posto desde que os primeiros átomos se uniram antes da grande explosão. Novo porque escapa aos olhos que insistem em ver as mesmas paisagens e

Amores livres, mas não superficiais

Por Fabíola Barcelos

Bar Alfredo alimenta a diversidade

Brinquedo de menino ou de menina?

Câncer infantil: um olhar diferente

UniPautas Supervisão Editorial: Leandro Olegário Roberto Belmonte Projeto Gráfico: Jaire Passos Rogério Grilho Sandro Fetter Diagramação: Alunos do Projeto Experimental Jornal Supervisão de diagramação: Rogério Grilho Professores envolvidos: Marcelo Spalding, Mariana Oselame, Rafael Hoff e Robson Pandolfi (Redação Jornalística) Rogério Grilho (Projeto Jornal), e Ana Carolina Dutra (Criação Publicitária). Fale conosco: jornalismograd@uniritter.edu.br unipautas.uniritter.edu.br issuu.com/unipautas facebook.com/unipautas twitter.com/unipautas

Por Rafael Acosta Martins

Passaporte carimbado Por Leticia Szczesny

Pró-Reitora Acadêmica: Bárbara Costa

Coordenação do curso de Relações Públicas: Tânia Almeida

Jovens buscam o caminho da fé

Por Aline Luísa Bisol

Por Helena Ribeiro e Marcella Couto

Coordenação do curso de Publicidade e Propaganda: Sônia Zardenunes

temperado com cores e histórias de quem, muitas vezes, não encontra voz no cenário midiático tradicional ou eco no poder público. Lugares, estilos e afetos. Preconceito, intolerância e exclusão. Fé, esperança e solidariedade. Que o jornalismo possa ser neste mundo pós-moderno uma Arca de Noé, reunindo a diversidade, ruindo preconcepções e promovendo encontros. Afinal, o caminho é de uma vez por todas nós, terráqueos, aceitarmos que estamos todos no mesmo barco. Felizmente, não há como escapar. Um brinde à diversidade! Leandro Olegário Coordenador do Jornalismo Oportunidades de entrar para a vida universitária

Por Daiana Camillo, Flavio Mattos e Jéssica Laguna

Reitora: Laura Coradini Frantz

Coordenação do curso de Jornalismo: Leandro Olegário

time lines. Se a geografia e a biologia mostram que a diversidade é condição, por vezes a sociedade faz um esforço danado para propor o contrário. E lá vem o jornalismo, com o papel que lhe cabe, trazer luz, colocar uma lupa, desacomodar o público. Quando escolhemos a temática da diversidade, queríamos um mergulho na vida real. Aquela vida que tem cheiro, gosto e forma que conhecemos e, também, às que desconhecemos ou passam à margem da nossa rotina. Como lugar de repórter é na rua – o resultado desta edição do Unipautas não poderia ser outro: um mosaico. Um cardápio

Lugar de mulher é no estúdio… de tatuagem! Por Cristine Fogliati e Viviane Santos

Poliamor: a nova maneira de amar Por Amanda Rossato e Tainá Fontella

Maconha: vários lados da moeda Por Débora Ramos

Por Daniela Knevitz e Larissa Zarpelon

Deixa a madeixa balançar: a identidade cultural dos cabelos

Milhas e milhas distantes: a história de quem trocou seu país natal e adotou o Brasil Por Jean Costa

Por Adriana J. C. Silveira

Projebola: pensando no futuro das crianças carentes Por Vinicius Moura

Quanto pesa o preconceito? Por Giulia Mello

Em prol das causas nobres Por Marina Gothe

Novos horizontes surgem e tratamentos alternativos se tornam uma opção Por Ana Hoffmann

Relatos vividos e desconstruídos da cultura negra Por Marina Gothe e Débora Ramos

Gerados pelo amor Por Aline Eberhardt

Hepatite: o mais importante é descobrir Por Leilane W. Beck

O espetáculo sempre foi o público Por Sidd Rodrigues

O que afetará as pessoas com uma internet limitada? Por Walter de Souza

Histórias de quem virou estatística Por Alberi Neto e Ariadne Kramer

Será que vale esperar horas para ser atendido? Por Leonardo Ferreira e Leonardo Nunes

“Somos impedidos de salvar vidas” Por Giordana Cesari Cunha


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DIVERSIDADE

Deixa a madeixa balançar: a identidade cultural e os cabelos Estudantes universitárias falam sobre reafirmação cultural por meio dos cabelos. Com todo o preconceito, a escolha está em alisar ou não Adriana J. C. Silveira

S

e eu quero pixaim, deixa / Se eu quero enrolar, deixa / Se eu quero colorir, deixa / Se eu quero assanhar, deixa / Deixa, deixa a madeixa balançar. O pedido de liberdade e respeito ao modo de usar o cabelo na música “Respeitem os meus cabelos, brancos’’, de Chico César, traduz o sentimento dos que escolhem assumir seu cabelo natural. A decisão não é tão fácil quanto

parece, pois as pessoas que têm cabelo de origem africana relatam que enfrentam preconceito desde a infância. Por isso, admitir o cabelo natural não é apenas uma opção estética, mas também processo de aceitação e resistência aos padrões de beleza ditados pela sociedade. Para a estudante Monique Machado, de 22 anos, ter o cabelo afro “é reconhecer e valorizar a identidade negra e também cultivar e preservar as memórias de seus antepassados trazidos forçados da África”. A também estudante Amanda Xavier, 23 anos, conta que por boa parte de sua vida fez alisamento por influência de sua mãe, que já sofreu preconceito e não queria que a filha tivesse que enfrentá-lo. Hoje voltou a ter seu

cabelo natural e acredita que ele carrega representatividade e resistência aos padrões euro centrados da sociedade. Outro caso de aceitação é o de Marina Sá, estudante de 21 anos, que alisou o cabelo por mais de dois anos e parou: “existe um preconceito na sociedade, mas também em mim por não aceitar meu cabelo, o alisamento o destruiu, por isso tive que reconstruir todo ele para recuperá-lo”. Os apelidos de mal gosto revelam um preconceito disfarçado de piada. Mariana Dornelles, estudante de 19 anos, afirma que quando criança teve seu cabelo comparado com Bombril na escola. Segundo a cabelereira Thami Cardoso, de 20 anos, são as crianças que mais relatam que sofrem preconceito. E apesar de haver

grande demanda de alisamentos no salão que trabalha, ela não aconselha e nem faz alisamento em cabelo afro. Embora manter o cabelo natural seja uma reafirmação de identidade, há pessoas que optam pelo alisamento. Pamela Abreu, 21 anos, afirma que prefere alisar “porque não aguentava mais acordar e ter que molhar o cabelo para ter que pentear e o meu cabelo tinha muito volume não conseguia andar com ele solto”. Hoje Mariana Dornelles aceita seu cabelo natural, mas o prefere com tranças. E sobre aceitação ela entende que “ todo mundo é aberto para fazer o que quiser desde que a haja aceitação de si próprio, não são as outras pessoas que tem que dizer se há aceitação porque a aceitação vem de dentro”.

Adriana J. C. Silveira

Cabelo como resistência aos padrões euro centrados da sociedade

Quanto pesa o preconceito? Giulia Mello

Ser fashion não é mais ter o corpo perfeito. A nova moda é a aceitação, como mostram as gordinhas assumidas que defendem o direito de ser como são

las são lindas, diferentes e sem tamanhos. Fofinha, cheinha, plus size ou gordinha, o importante para as mulheres é ser linda e se sentir feliz. Ser fashion, hoje em dia, não é mais sinônimo de ter o corpo perfeito. A nova moda é a aceitação.

me magoar. Quem pichou aquilo queria me agredir e ferir, mas se escondeu atrás do muro e de um spray”, explica Jéssica. Surpreendida pela repercussão, ela conta que sempre postou conteúdos ligados a gordofobia. “Foi interessante esse movimento que se formou”, diz a jornalista. Ela se considera militante contra a gordofobia e diz que isso serviu mais ainda para ampliar sua voz. “Percebi que eu gostava de mim gorda e passei a me aceitar como sou”, conta. Depois do ocorrido, Jéssica pretende transformar o muro em arte com a ajuda de amigos grafiteiros.

O preconceito como inspiração

Qualquer tamanho é fashion

No caso da mineira Jéssica Balbino, não ter o “corpo ideal” serviu como inspiração. A jornalista e produtora cultural foi alvo de preconceito. Em uma manhã de março, enquanto se arrumava para ir trabalhar, viu o muro em frente à sua casa pichado. “Jéssica Gorda”, estava escrito. Ela compartilhou a foto com uma pequena frase: “Só faltou o linda, pois gorda sou mesmo”. O post de Jéssica rendeu 100 mil compartilhamentos em dois dias. “Em nenhum momento fiquei chateada pelos dizeres”, afirmou a jornalista em entrevista ao Unipautas. “Eu fiquei triste pela agressão, por terem tentado

A inspiração também está na forma de se vestir. Blogueira e fã de moda, a paulista Camila Cura criou o blog Fofashion, voltado

Giulia Mello

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Loja Oi Gracia, em Porto Alegre, produz roupas sob medida

Percebi que eu gostava de mim gorda e passei a me aceitar como sou.” Jéssica Balbino

para o mundo plus size. “Quis mostrar para a sociedade que gordinha pode sim ser fashion”, diz Camila. ”Eu via meninas usando roupas muito largas, com vergonha de seu corpo. Quis mudar essa realidade”, explica a blogueira. Camila não é a única. Algumas lojas estão mudando o padrão de medidas. Existem estabelecimentos somente para tamanhos plus size, com roupas nas tendências da moda. A loja Oi Gracia, de Porto Alegre, é um exemplo. Criada pela designer de moda Fernanda Casa Nova e a publicitária Priscila Zanetti, além de ter os tamanhos convencionais, a loja também vende roupas sob medida. “Percebemos que uma grade P/M/G seria muito limitadora”, afirma Priscila. “Com o sob medida conseguimos produzir para qualquer tipo de tamanho, e a ideia sempre foi essa, vestir a todas, sem preconceitos”, informa Fernanda. Mas a insegurança, muitas vezes, fala mais alto. Priscila e Fernanda comentam que não entendem a não aceitação de algumas clientes. ”Recebemos muitas clientes lindas e insatisfeitas com seu corpo”, diz Fernanda. Já Priscila torce para que a aceitação cresça. “O caminho é nos apropriarmos do corpo que nos pertence, aceitando e tentando ter dele o melhor que ele pode nos dar”, defende.


4 • UNIPAUTAS • 2016/1

DIVERSIDADE

O espetáculo sempre foi o público Rosane Rodrigues

Berço de diversas tribos urbanas há mais de três décadas, o lendário Bar Ocidente ainda é exemplo de diversidade na cena cultural porto-alegrense. Sidd Rodrigues

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ntro no táxi e peço para ir até a mítica esquina da Avenida Osvaldo Aranha com a João Telles, no bairro Bom Fim. “Noite no Ocidente então?”, pergunta o taxista. Leandro Gonçalves, 40 anos, conhecia bem o famoso bar porto-alegrense. Nos anos 80, passou boa parte das noites de sua juventude entre as calçadas do Parque Farroupilha e o pequeno estabelecimento, convivendo com músicos, atores e gente de todo tipo. “Foram os melhores dias da minha vida, cara. Eu tenho até um sobrinho chamado Wander, por causa do vocalista dos Replicantes”, lembra saudoso o motorista, enquanto acelera pela Avenida Protásio Alves, em direção à Redenção. O pequeno pub segue sendo um bastião da boemia entre o Centro e a Cidade Baixa. Lar de diversas tribos, culturas e ritmos, o Bar Ocidente carrega em suas paredes a história da juventude “Deu pra ti anos 70”. Ao entrar no casarão centenário, naquela noite fria de outono, via-se uma centena de pessoas amontoadas entre cadeiras no salão à luz de velas, enquanto uma famosa jornalista lia contos de Charles Bukowski. Cantores, artistas e intelectuais reuniam-se na penumbra, à luz de velas e cheiros peculiares ao recheio, no sarau beatnik que reunia sobretudos britânicos e jaquetas de couro. Para entender a importância do Ocidente na cultura underground porto-alegrense é preciso entender o cenário em que os jovens viviam na década de 1980. A ditadura militar, que desde 1964 comandava o Brasil, começava a dar sinais de redemocratização. O país se abria para novas ideias e influências vindas principalmente dos EUA e Reino Unido. A juventude da cidade começava a se desamarrar dos anos de chumbo, e a produção artística dos inconformados florescia na área central da cidade, entre os bares do bairro Bom Fim. A fagulha inicial da explosão cultural no Bom Fim foi acesa na década anterior, algumas quadras acima, na mesma Avenida

Osvaldo Aranha. Os bares do entorno da UFRGS reuniam acadêmicos e jovens boêmios, logo atingiu o rastilho de pólvora, espalhando a chama nos anos posteriores para as ruas ao redor do Parque Farroupilha, nas quais se formaram atores, escritores, cineastas e músicos com o sotaque característico do “Bonfa”. Templo do Underground Capitaneado há mais de 35 anos pelo seu também mítico líder, Fiapo Barth, o bar Ocidente nasceu do anseio pela produção cultural no finalzinho da ditadura militar. Inicialmente planejado para abrigar o teatro marginal e artistas plásticos que surgiam na cidade, logo o pub foi reivindicado pelas bandas que nasciam na época. Por aquele nicho no salão, tido como palco, já passaram nomes como Replicantes, TNT e Cascavelletes, hoje dinossauros do rock gaúcho. “Nós não conhecíamos os músicos. O pessoal vinha e pedia para tocar. O palco foi feito para o primeiro show”, relembra Fiapo. Página Policial A festa estranha com gente esquisita foi crescendo, e a fama do Ocidente se espalhou pela cidade, causando espanto nos mais conservadores. “O espetáculo permanente sempre foi o público. Ele sempre foi único, mas completamente diversificado, explica Barth. Se por um lado os artistas e boêmios da cidade logo

conheceram o bar, por outro a fama do estabelecimento não demorou a chegar até o 9º Batalhão da Brigada Militar, responsável pelo policiamento do bairro naqueles verdes anos. Duas ou três vezes por semana, os policiais faziam uma visita ao bar. Em duas ocasiões, toda “a fauna ensandecida do Ocidente”, como cantou Nei Lisboa, foi levada para o plantão policial, com direito a ônibus da BM fazendo o translado.

Ele sempre foi único, mas completamente diversificado” Fiapo Barth, sobre o público do Ocidente

Uma vez, um dos sócios foi preso, numa estadia de cerca de uma semana no Presídio Central de Porto Alegre. “Apesar de ser assustador, era até um pouco divertido, era da época isso”, relembra Fiapo. “A fama do público não era de contestador político, mas de marginal mesmo”, diz o atual administrador, lembrando os anos em que o Ocidente tinha lugar garantido na página

policial dos periódicos da cidade. A contracultura se manifestou naquela esquina não de maneira pensada, mas de maneira tão natural quanto o ato dos primeiros clientes afastarem as cadeiras e começarem a dançar. Os cabelos levantados, roupas exageradas e o cheiro de cigarros suspeitos formam o retrato de uma época. Ali, ser diferente era quase regra. A permissividade era total, e o conflito de ideias estimulado até o limite. “Nós incentivávamos que as manifestações que acontecessem aqui fossem bem agressivas”, riu Barth, enquanto contava episódios marcantes do Bar permeados de mitologia e personagens exóticos. Um deles é o cabelereiro Valter Scalp, um dos maiores agitadores culturais que a cidade já viu. Inovador, Scalp esteve na vanguarda da moda em todo o movimento cultural da época, fazendo a cabeça dos artistas que rolavam pela Osvaldo Aranha, além de produzir festas homéricas, que até hoje desafiam a imaginação dos que ouvem seus feitos. Citado como “Rei da vida noturna de Porto Alegre”, o cabelereiro-artista criou o visual desde a new wave até o punk, do alto do seu salão na Rua Ramiro Barcellos.

Outra figura conhecida dos frequentadores do bar é o músico e DJ Edu K, vocalista da banda DeFalla, o cara que andava de maiô e unhas pintadas pelas calçadas daquelas ruas. Citado inclusive em livros, como o “Gauleses Irredutíveis”, de Cristiano Bastos, o hoje produtor musical é parte da memória coletiva de qualquer um que tenha frequentado o lugar. A história continua Hoje, depois de mais de três décadas de história, o Bar Ocidente segue sendo uma das mais importantes casas noturnas de Porto Alegre, agregando novas histórias e novos públicos. Porém, nem tudo segue da mesma maneira. A diversidade de públicos ainda marca a casa, mas diferente de antes, agora eles não se misturam. O público LGBT não frequenta mais as mesmas noites que o público hétero. Os ligados em música, não voltam nas noites dedicadas à literatura. Ainda em alta, o pub vê seu público dividido entre as atrações, sem se encontrarem. Mas essa é outra história, de um Ocidente eternamente em reforma.


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Restaurante Alfredo revela o lado alternativo do bairro Floresta Localizado entre a Cristóvão Colombo e a Ramiro Barcelos, o local atende 24 horas e é uma esquina democrática paralela em Porto Alegre Texto: Aline Luísa Bisol / Diagramação: Jennyfer Siqueira

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a porta do Bar Café Restaurante Alfredo diz: “Puxe”. “Empurre”. “Fiado só amanhã”. Essas são as únicas regras ali estabelecidas. A liberdade é alimentada pela diversidade de públicos que convergem entre a Cristóvão Colombo e a Ramiro Barcelos, compondo uma esquina democrática paralela em Porto Alegre. Durante o dia, senhoras idosas, trabalhadores do comércio local, famílias, estudantes, turistas, transeuntes e vendedores viajantes contrapõem o público noturno formado por taxistas, artistas, insones, boêmios, casais de amantes. A transparência do balcão envidraçado é a mesma com que convivem prostitutas, travestis, andarilhos e os remanescentes embriagados das baladas com os inúmeros policiais que rondam taças de café e pastéis pela madrugada. História da carrocinha

Desde 1953, o sexagenário Bar Alfredo funciona 24 horas por dia, durante seis dias por semana – os domingos são guardados ao repouso da incansável equipe. De segunda a sábado, acolhe a fome de companhia e pertencimento de muitos frequentadores solitários. O emblemático Patrício Rodrigues Alfredo, 79 anos, comanda o restaurante que leva seu sobrenome e foi criado por ele após anos trabalhando como padeiro de carroça: Seu Patrício fazia pães e entregava de casa em casa, em sua carroça, no bairro Floresta, onde hoje mantém o estabelecimento de paredes cinza e luz amarelada. No ambiente que ensaia alguns traços bucólicos, predominam as nuances extravagantes de personagens cheios de histórias. As roupas de algumas frequentadoras, oriundas do trabalho noturno da Avenida Farrapos, também compõem a paleta multicolor do Alfredo. Os preços módicos, o atendimento personalizado e o espaço simples são o universo ideal para

Aline Luísa Bisol quem quer – ou precisa – fugir dos olhares curiosos e expressar sua necessidade mais primitiva: comer. O acolhimento não está no cardápio, mas é cortesia da casa. Sentir-se à vontade faz parte da experiência antropológica que é sentar-se para observar – e ser observado. “Eu sempre te via aqui. Agora finalmente estamos conversando”, afirma Fernanda para a repórter que tinha a certeza de estar invisível na produção da pauta. “Apenas Fernanda”, como ela mesma se identifica, já é prata da casa. Às vezes fala sozinha enquanto desfruta do que mais gosta: café com leite. A moça, que carrega a passagem do tempo no rosto, afirma ter 30 anos e diz que há quatro trabalha no Alfredo. Não exatamente no atendimen- Aos 79 anos, Seu Patrício passa as madrugadas no restaurante para garantir a qualidade to. Tampouco é uma funcionária do local. Ela se define de um jeito prazer. Fico feliz de agradar as trocar e retocar. Gosto de estar bem particular: “Sou uma multi- ‘minhas crianças’”, revela, com sempre alinhada.” Fernanda só plicadora. Eu trago meus ‘amigos’, um sorriso largo e semblante usa branco. Esta é a maneira que eles consomem bastante, a casa feliz. A conversa é interrompida encontrou para mostrar que é cafica feliz e eu sigo a minha vida”. por uma funcionária que pede prichosa. A jaqueta de jeans alva Ela divide a atenção entre o tele- ao patrão uma Clorofina para que veste prova o costume. Entre fone celular, sempre conectado seguir limpando a cozinha. Seu as roupas, apenas a calça é azul, aos fones de ouvido, e a porta do Patrício faz questão de atendê- como o olhar marcado pelo deliestabelecimento onde rastreia no- -la prontamente, sabendo que o neador celeste que complemenvos e velhos “amigos”. Ouvindo andamento das atividades está ta o look elegante que gosta de de Beatles a Leonardo, ela passa sob controle. Mesmo assim, há manter. Mas ultimamente abriu o tempo de mesa em mesa, mes- quem considere o lugar pouco mão de uma de suas paixões: o clando a trilha sonora de sua vida. higiênico e mal cuidado. A esses, sapato azul meia pata: “Parei de Patrício revida não com palavras, usar salto para que as pessoas 400 amigos por dia mas com sua rotina: mesmo aos não me percebam muito. Não domingos – dia de sua folga- o gosto que me percebam. Ficar Amizade é o que mais circula longevo senhor, além de passar de salto faz as pessoas ficarem pelo balcão, entre a la minutas, pela chácara que mantém no in- imaginando o que eu posso ser cafés, cervejas, e as tradicionais terior de Porto Alegre, costuma ou não...o que eu sou de salto, almôndegas servidas com pão ir até o Alfredo para organizar posso ser também sem ele”, diz. para mergulhar no molho de o estoque, manter tudo limpo tomate feito na hora. São aten- e certificar-se da segurança. É didas diariamente cerca de 400 na madrugada de domingo para pessoas. A comida caseira e a fi- segunda-feira que ele dorme no gura paterna do Seu Patrício são sofá do depósito para que, quanum prato cheio de dignidade e do chegar a hora de abrir, ponalento, muitas vezes perdidos pe- tualmente às 6 da manhã, as coilas ruas. “Eu já cheguei a contar sas estejam em ordem. Durante as horas para ele chegar. Parece a semana, costuma chegar por que quando ele chega muda o volta da 1h30min e sair apenas ambiente. Até os ‘amigos’ come- por volta das 15h do outro dia. çam a chegar pois sabem que ele Quem corrobora com a dedicavai estar aqui”, afirma Fernanda. ção e carinho do Seu Patrício é a O caminhar lento, os cabelos amiga Fernanda: “24 horas já diz brancos bem penteados, o sus- no próprio nome: não tem prepensório debaixo do avental e guiça de acolher as pessoas que os óculos grandes e de armação chegam a toda hora.” A mais fiel acrílica são inequívocos: um le- frequentadora também dedica gítimo vovô que faz as vontades boa parte do seu tempo para o de todos. Cardápio existe e é Alfredo: “Eu gosto da adrenafarto, mas Seu Patrício não re- lina da noite. Às vezes fico das siste e sempre acaba cedendo aos 19h às 6h aqui. Eu até poderia ir pedidos de misturas inusitadas. embora, mas vou te dizer: fico “Quando alguém pede para fazer porque gosto da minha liberdaalgo diferente, eu mesmo vou lá de. Trago minhas coisas de casa na cozinha e faço. Com o maior e deixo no balcão para poder me

Anjos da noite A discrição nunca é quebrada no Alfredo. Se as imagens de figuras curiosas pulam aos olhos, os comentários e julgamentos se diluem entre o vai e vem de garçons pelo corredor que distribui os pedidos. Seu Patrício orgulha-se dessa diversidade, que é o tempero principal do restaurante. “Eu não precisaria mais trabalhar. Mas de que outra forma veria diariamente todos os meus velhos amigos?”, diz. Além de vê-los acomodados pelas mesas com frequência, Seu Patrício mata a saudade de muitos outros amigos através de um quadro de fotos pendurado perto da janela. “Olha lá o Brizola. Tu acredita que eu entregava pão na casa dele e ficamos amigos? Quando ele chegava de Brasília vinha direto para cá e conversávamos por horas”, lembra. “Meu anjo”: é assim que Patrício chama todos os clientes que tornam-se amigos. Um carinho que revela a vontade de tê-los sempre por perto. A textura das mesas com pedras de granito lembra mesmo nuvens onde há sempre alguém zeloso pelo Alfredo. Talvez por isso, em seus mais de 60 anos de história, com Seu Patrício no balcão, o caixa nunca tenha sido assaltado. Naquela porta que nos orienta a puxar ou empurrar, não há vigilante. Mas em uma realidade tão diversa, não há espaço para investidas que roubem o digno apelido de “verdadeira esquina democrática de Porto Alegre”.


6  •  UNIPAUTAS • 2016/1

DIVERSIDADE Eduardo Castilhos

O

O bar do bairro

termo bar é um diminutivo de “barra”, objeto usado para manter os beberrões afastados das copas dos bares. Estima-se que na Babilônia, em 1772 a.C, já existissem tabernas e que o Código de Hamurabi previa pena de morte ao dono que misturasse água a cerveja. Era olho por olho, cerveja por cerveja. Antes disso, já existiam tabernas que, por sua vez, significa ‘’abrigo’’. E era exatamente como um abrigo que os viajantes usavam estes locais, na região da Suméria, por volta de 4000 a.C e 3500 a.C. Estas tabernas já produziam sua própria cerveja e a ideia, assim como hoje, era bem simples: reunir pessoas para comer e beber álcool. Com o passar do tempo, as tabernas foram oferecendo outros tipos de serviços: música, jogo de dados, brigas de galo e até prostituição. Na pequena TV localizada na copa do bar, entre um cigarro e outro, Bira assiste Rússia x Eslováquia, pela Euro 2016 Pubs (diminutivo de public house, em português, “casa pública’’) e tabernas foram se deVon Teese é o nome de uma que o bar adotou como caracte- em que os clientes mais se sensenvolvendo de formas diferen- conhecida artista burlesca norte- rística. Característica esta que tem em casa. tes na Grã-Bretanha e na França. -americana que inspirou as ami- criou um vínculo muito especial Distante aproximadamenQuando os americanos conhece- gas Diovana Gheller, 39 anos, e com os moradores do bairro Bom te 3km de Carolina e Diovana, ram as tabernas francesas, im- Carolina Disegna, 33, a nomear Fim. Apesar dos espetáculos de visto frequentemente com um portaram a ideia para o seu país um sonho localizado no bairro pole-tease (uma espécie de strep Marlboro Light dentre os dedos e tornaram o local mais pareci- Bom Fim. Paredes de tijolo a tease misturado com pole dance) médio e indicador da mão direido com os bares que conhecemos vista alaranjadas entram em con- que acontecem no bar, em que às ta, Ubiratan tem cabelos e barba hoje em dia. Na época, durante o traste com grandes faixas verme- vezes até alguns clientes se ar- aparados praticamente do messéculo XVIII, estes bares pararam lhas que percorrem boa parte da riscam, o rabino da sinagoga do mo tamanho, barriga saliente de produzir sua própria cerveja extensão do bar localizado na bairro acena dando “oi” para as esticando a camisa polo e trata e começaram a oferecer um car- Rua Bento Figueiredo. donas do estabelecimento quan- com certa indiferença os freguedápio mais extenso de opções. Inaugurado em julho de 2015, do passa caminhando por ali. ses. Eles frequentam em seu bar Semelhante ao que acontece em o estabelecimento mistura arAs donas do lugar admitem há muito tempo. Simpatia não é Porto Alegre, onde bares se tor- tes burlescas e circenses que que o bar não conseguiu de vol- mais necessária. naram franquiados e “perderam” logo são percebidas ao adentrar ta todo o dinheiro investido no Um quadro em que Jhonny a identificação com o público do o local. Uma vez por semana, estabelecimento. Consideram Cash aparece com o dedo médio próprio bairro. artistas convidados se apresen- normal a demora devido às cir- em riste, logo na entrada do local, Em um contraponto com tam enquanto são servidos aos cunstâncias atuais do país. Fator contrasta com a boa recepção dos o crescimento dos bares com clientes chás, cafés e drinks. positivo que incentivou o movi- costumeiros frequentadores do o mesmo nome espalhados Nos fundos, durantes as tardes, mento foi o crescimento das ba- estabelecimento. pela Capital, a reportagem da nas quartas-feiras, uma cigana ladas-seguras. “Pessoal do bairro Centenas de quadros penduUniRitter visitou dois bares em joga as cartas e lê as mãos dos prefere ficar por aqui do que pe- rados na parede, a maioria reque os donos, de alguma forma, fregueses. Toda a decoração do gar o carro e ir para outro lugar”, metendo a bandas de rock’n roll fidelizam sua clientela e manti- ambiente remete ao século pas- revelou Carolina. do século passado, caracterizam veram uma das premissas mais sado, como se no momento que Diovana e Carolina foram com perfeição o gosto musical antigas que existe quando se tra- em que o cliente adentrasse o aperfeiçoando seu comporta- de Ubiratan Carneiro, o Bira, 53 ta deste tipo de estabelecimen- bar, fosse teletransportado para mento com o público nas expe- anos, dono do pub Bar&Bilhar. to: a de que praticamente todo os anos 20, 30 e 40 em algum lu- riências que tiveram na Europa Para Henrique Mezzomo, esmundo no barzinho do bairro se gar da França. No Von Teese, ape- enquanto trabalhavam em res- tudante de física da UFRGS, o conhecia. nas um item se destoa aleatoria- taurantes. Apesar de o lugar es- bar oferece “mesas de sinuca exmente da decoração do bar: um tar há pouco tempo no mercado, celentes, cerveja gelada, clima de Dois bares, uma mística ventilador. “Estou louca para que Carolina disse que não poderia anos 90, garçom mal-humorado comece o frio. Este lugar não tem estar mais feliz com o seu bar e ainda nomeia o ambiente como Carolina usa óculos com has- muito a ver com o verão”, disse e com a receptividade que fez ‘a Libertadores dos Bares’”. tes negras da cor de seus sus- Carolina em uma noite abafada com que o bairro abraçasse o O ambiente possui quatro mepensórios que circundavam seu do mês de abril. estabelecimento. sas profissionais de bilhar onde tronco da barriga até o final das Praticamente o mesmo que os clientes passam horas se deLá existe uma parceria com a costas. Sempre atenta e com Companhia Atmosfera e aconte- aconteceu no bairro São Geraldo, bruçando ao seu redor durante olhos quase do tamanho do pi- cem espetáculos de circo envol- na pacata Buarque de Macedo o happy hour, horário de maior res que servia para seus clientes, vendo contorcionismo, mágica, quando há 15 anos um galpão movimento no local. Um telão exibia um sorriso largo quando trapézio dentre outras caracte- deixou de ser uma empresa grá- de aproximadamente quatro mencionava seu bar. rísticas vistas em picadeiros, mas fica para se tornar um dos pubs metros mostra clipes de bandas

Sidd Rodrigues

Dois bares que conseguem fazer com que seus clientes se sintam em casa na noite de Porto Alegre

como Led Zeppelin, Ramones, ACDC, Red Hot Chili Peppers e Nirvana. Um mezanino com mais quatro mesas fica em cima da copa. Centenas de bebidas estampam a estante espelhada do local, mas o que mais vende mesmo é a cerveja. O pub abre às 17 horas todos os dias e só fecha assim que o último cliente sai, normalmente trançando os pés, segundo o gerente do pub Arnoldo, 38 anos e que trabalha há 10 anos no local. Arnoldo é um homem misterioso. Sem nunca ser desatencioso, trata com certa indiferença os habituais clientes. Não quis revelar seu sobrenome, mas disse que o maior problema do lugar é quando poucos clientes aparecem. O gato do pub é visto correndo pelo chão. Logo os trocadilhos entre o animal e a tacada de sorte na sinuca (chamado de gato) afloram no lugar. “Deep down in Louisiana, close to New Orleans...”. Nas caixas de som, Chuck Berry cantava Jhonny B. Goode quando Bira foi questionado por um dos clientes por que não investia em publicidade para deixar o bar mais conhecido e, consequentemente, com mais clientes. O dono do Bar&Bilhar, que sorri tão pouco quanto fala, se voltou com a mão estendida para a reportagem da UniRitter e categorizou: “mas para quê? Aqui tem só conhecido, caso contrário, bagunçariam o nosso barzinho, não é?”.


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Um outro mundo dentro da escola Para crianças com deficiência, viver em sociedade pode ser um desafio. E nem todas as escolas estão preparadas para auxiliá-las nesse processo Tamires Alves

E

studar, aprender, socializar e brincar são direitos de toda criança. Muitas vezes, a convivência das crianças de escolas regulares com colegas que possuem algum tipo de deficiência pode ser complicada. Mas as leis brasileiras parecem estar dando sinais de que esse convívio se tornará cada vez mais frequente. Desde janeiro deste ano, virou crime a recusa de vagas a alunos com deficiência dentro das escolas. Em algumas escolas particulares, era cobrada uma taxa extra para matricular alunos especiais. Essa prática também passou a ser considerada ilegal. A punição para quem descumprir a lei vai de multa a reclusão de dois a cinco anos. Na realidade, a inclusão de pessoas com deficiência nas escolas regulares não é propriamente nova. Ela está prevista desde 1989, na lei da Política Nacional para a Integração da Pessoa Portadora de Deficiência. A medida foi reforçada em 1996, com a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. O projeto de 96 determinava que a escola deveria ter um apoio qualificado para atender os alunos com deficiência. Também exigia professores capacitados para fazer a integração destas crianças com os alunos comuns.

A inclusão na realidade Ainda faltam disciplinas sobre o assunto nos cursos de licenciatura dos professores, mas algumas cidades do Brasil possuem cursos de capacitação para docentes. O currículo escolar deve prever atividades flexíveis para alunos especiais que contemplem as necessidades diversas que estes alunos possam possuir. Segundo a cartilha Programa Educação Inclusiva: Direito à Diversidade, do Ministério da Educação, a escola deve ser “o espaço no qual se deve favorecer, a todos os cidadãos, o acesso ao conhecimento e o desenvolvimento de competências”. Na Escola Municipal Monte Cristo, no bairro Vila Nova, em Porto Alegre, a inclusão de alunos especiais é incentivada. “Tentamos realizar atividades mais diversificadas possíveis, mas isso independe de o aluno ser especial ou não”, conta Vanici Aimi, professora da turma integral do segundo ano do primeiro ciclo. “As atividades são feitas conforme a maturidade e a gama de estímulos que o aluno veio recebendo até então.” As crianças com deficiência precisam sentir que seus esforços estão sendo valorizados. Por isso, a forma mais correta de avaliá-la é ir de acordo com os avanços da criança. Escolas especiais Mesmo sendo obrigatória a inclusão nas escolas, algumas crianças possuem certas deficiências que são consideradas mais severas e que os

Escola Municipal Monte Cristo incentiva a inclusão

impossibilitam, permanentemente ou de forma momentânea, frequentar uma escola regular de ensino. Por isso, foram criadas as Escolas Especiais. Em Porto Alegre, existem quatro escolas especiais municipais, além das APAEs. As escolas especiais da capital possuem estrutura para acompanhar os alunos especiais e uma escola bilíngue – em libras - para o atendimento de crianças com deficiência auditiva. A professora e psicopedagoga Simone Strauss, que trabalha há mais de dez anos com alunos de inclusão, afirma que todos os alunos têm a ganhar. “Uma vantagem muito grande da inclusão é que essa é a mesma sociedade que a pessoa com deficiência vai encontrar se for num shopping ou para o mercado de trabalho”, diz a professora. Para ela, é muito importante trabalhar com a criança desde a infância. “Se ela conviver só com crianças com deficiência não vai conhecer essa diversidade. Em turmas onde há alunos especiais, as crianças regulares costumam ser mais solidárias.” Preconceitos enfrentados

Cristiano Lange

Sala de Aula: lugar onde todos os alunos aprendem a respeitar e conviver com as diferenças

“A escola acaba sendo exclusiva para o aluno dito normal” Professoras falam sobre déficit durante a preparação para lidar com alunos especiais Cristiano Lange e Drysanna Espíndola

S

egundo a Lei Brasileira de Inclusão, instituída em Ainda que já seja uma prátiagosto de 2008, todas as ca comum em muitas escolas, o escolas devem aceitar matrícuprocesso de integração de alunos las de alunos com deficiência, com deficiência ainda encontra assim como proporcioná-los um resistências. Josi Fraga, fonoau- ambiente adequado e com prodióloga e mãe de um menino com fessores preparados para atenSíndrome de Down, conta que der as necessidades específicas já sofreu preconceito ao tentar de cada um, ajudando assim no matricular seu filho em escolas seu crescimento e interação com regulares. “As escolas falam que os demais. Mas será que essa lei aceitam e nos encaminham para é cumprida com eficácia? a orientadora. Porém, lá ficamos Aline Silva, professora na sabendo que a mensalidade será Escola Osório Duque Estrada, mais alta”, lamenta. com 17 anos de Magistério, afirTamires Alves ma: “É um projeto bonito, mas a escola acaba sendo exclusiva para o aluno dito normal. Falta solidariedade, respeito e mais apoio dos órgãos governamentais. Assim que resolvido todos esses quesitos, poderemos construir uma sociedade inclusiva”. Aline também comenta que há poucos cursos voltados para o atendimento do aluno de inclusão e que esses são pagos pelos próprios professores. “Precisamos também da compreensão dos pais, que muitas vezes acabam mascarando os problemas dos seus filhos e não os permitem ter uma ajuda eficaz. Uma sala de aula com, no máximo, 12 alunos seria

outra ação positiva”, completa a professora. Já para a pedagoga Karen Castanho, instrutora há 4 anos na Fundação O Pão dos Pobres, que aceitou o desafio de liderar uma turma pela primeira vez aos 23 anos, o erro vem desde a formação, com carência de aulas práticas e professores que trabalhem na área para qual estão preparando os alunos: “A faculdade de Pedagogia tem cadeiras específicas para inclusão, mas a parte prática não é suficiente porque ela não te prepara para a realidade do mercado”. Karen também cita que os professores universitários são, em maioria, pesquisadores. Sendo assim, para ela, não há como os estudantes se prepararem para o que possa acontecer mais tarde: “O ensino é deficitário e menosprezado dentro de uma faculdade. O entendimento que um professor é eu sei e vocês estão aqui para absorver o que eu sei, mas eu não sou professor”. Durante uma coletiva de imprensa, realizada no início deste ano, o ex-ministro da Educação, Aloizio Mercadante, disse que os desafios da inclusão continuam e que o MEC está modificando os currículos, acreditando que a Base Nacional Comum fará a diferença nas escolas de todo o País: “Temos 19 metas do PNE (Plano Nacional de Educação) que são bastante ambiciosas. Mas todas as 19 dependem da meta 20, que é o financiamento. Estamos em um ano fiscal muito difícil”, afirmou Mercadante.


8  •  UNIPAUTAS • 2016/1

INCLUSÃO SOCIAL

Histórias inspiradoras de quem não tem nada de “down” A Síndrome de Down deixou de ser vista como doença e passou a ser encarada como o que é: um acidente genético. Maria Flor e Caio são a prova de que o dignóstico não define seus limites e muito menos as suas conquistas

Liliane Pappen

Eu não planejo o futuro da Flor, se ela vai se formar, namorar, casar. Eu comemoro cada vitória dela, hoje” Michelle Svoboda

Eduardo Brusch Muller, Liliane Pappen e Rarissa Grissutti

H

á pouco mais de uma década, crianças nascidas com Síndrome de Down eram chamadas de “excepcionais”. Apesar do equívoco na aplicação da palavra, de acordo com a semântica, seu uso não poderia ser mais apropriado. Considerase excepcional, conforme os dicionários de português, o que é fora do comum, que está muito acima do padrão ou da qualidade; excelente, brilhante. Essa definição se enquadra perfeitamente em quem nasce com uma capacidade de amar que vai além da concepção conhecida pelos ditos “normais”, e que enfrentam desafios muitos maiores do que os impostos pela síndrome. Por vezes, vencer o preconceito de quem os olha como incapazes é o maior obstáculo. Não faz muito que a Síndrome de Down deixou de ser vista como uma doença que afastava a criança do convívio social. Em pouco tempo, a mudança de atitude diante da deficiência expandiu em pelo menos 30 anos

No novo apartamento da família, Maria Flor mantém a atenção em todos os detalhes

a expectativa de vida, que antes era de 30 a 35 anos, e os horizontes de quem tem a síndrome. A estimulação precoce dos bebês com Down possibilitou, embora com atraso, que estes indivíduos pudessem manter uma vida plenamente ativa, frequentando escolas regulares, trabalhando e, inclusive, formando-se na universidade. “Torcemos muito para que fosse down” “A Maria Flor não ‘é’ down, ela ‘tem’ down. Quando tu estás gripada, a mamãe diz que tu és gripe ou que tu tens gripe?”. Foi com esse comparativo bem simples que Michelle Svoboda, 31 anos, explicou para

a sobrinha de 5 que teria um bebê especial. Profissional da área da saúde, Michelle sempre sonhou em ser mãe. Aos 13 anos escreveu um texto, que guarda até hoje, em que narra esse desejo. Por isso, quando se casou com Christhensen, em 2013, a farmacêutica passou a planejar a tão sonhada maternidade. Em março de 2014, ela e o marido decidiram que era chegado o momento. Em junho, Michelle estava grávida. Na primeira ecografia do pré-natal, com aproximadamente 12 semanas de gestação, veio o primeiro baque. Algo estava errado com o bebê. “O médico nos disse que os sintomas estavam relacionados com três síndromes. Duas delas eram incompatíveis com a vida”,

contou Michelle. “Neste momen- de Maria Flor se considera aforto, torcemos muito para que fos- tunada por ter descoberto a deficiência da filha ainda durante a se down”, lembra. Enquanto investigava os sin- gestação. Segundo ela, a maioria tomas em uma maratona de das mães só descobre no momenconsultas com especialistas em to do nascimento, e isso faz com genética, pediatria, obstetrícia que elas não estejam preparadas. e ginecologia, o casal foi acon- “Eu sabia que depois do parto a selhado a interromper a ges- Flor iria para a UTI neonatal, que, tação. No entanto, Michelle e além de um problema constataChristhensen não perderam a fé. do nos rins, ela teria cardiopatia Depois do exame de amniocente- e que talvez precisasse de uma se – análise do líquido amniótico cirurgia cardíaca ainda recém– veio a notícia mais aguardada: -nascida. Mas eu estava pronta”, Maria Flor, a filha que esperavam, afirma, cheia de convicção. nasceria. E chegaria ao mundo Maria Flor foi uma das crianainda mais especial. O bebê, tão ças participantes do especial proplanejado e aguardado, teria sín- duzido pelo Fantástico, da TV drome de Down. “Nós vibramos Globo, em que o médico Dráuzio muito. Eu e o Chris abrimos o Varela explicava a trissomia, suas resultado do exame, juntos, por causas e tratamentos. E, por isso, telefone. Ele estava no trabalho, teve seu parto e os primeiros dias e eu em casa. Quando vimos que de vida documentados pela equiera Síndrome de Down, nós cho- pe. “Os profissionais que estavam ramos. Foi nossa primeira vitó- me atendendo no hospital brinria”, relembra a mãe. cavam que a Flor era a ‘filha’ do Com o diagnóstico em mãos, Dráuzio Varella”, conta Michelle, o casal passou a buscar informa- entre risos. Depois dos primeiros ções. Termos como estimulação exames pós-parto constatou-se precoce, cardiopatia e doenças que as cirurgias que Maria Flor associadas à síndrome passaram precisava poderiam ser adiadas. a ser estudados. Mais uma vez, Em dezembro de 2015, antes de Michelle começou a se preparar completar um ano de vida, a mee a planejar o que viria. A mãe nina teve um dos rins removidos Liliane Pappen

A Estimulação Precoce é fundamental para o desenvolvimento de crianças com Síndrome de Down


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Liliane Pappen

Escolas regulares devem, por lei, aceitar alunos com deficiência e incluí-los socialmente

e, em menos de 15 dias, foi submetida a cirurgia de correção cardíaca que necessitava. Com uma recuperação acima da esperada, iniciou 2016 entre os mimos e carinhos dos familiares, no conforto de sua casa. “Pra nós, foi mais uma vitória”, desabafa a mãe. Michelle não facilita. Educa Maria Flor sem “coitadismos”. “Minha filha não é doente, a síndrome não a define. Imponho limites porque é para o bem dela”, diz. Brincando, afirma que Maria Flor tem “pedigree”, já que é um dos raros casos de trissomia com origem hereditária. Exames comprovaram que Michelle tem, na cadeia de DNA, a mesma falha genética da filha, porém não desenvolveu os sintomas. “A Flor herdou tudo de bom de cada lado, inclusive os dedinhos colados, iguais aos do papai”, conta, rindo, mostrando as mãozinhas da filha que tem os dedos anular e médio ligados. Chris, o pai da menina, também tem os dedos unidos até as juntas. A pequena deve passar por mais duas cirurgias para corrigir o problema. Com um ano e um mês, Maria Flor é uma criança ativa e muito esperta. Vestida com um conjunto vermelho, tenta tirar os sapatinhos para brincar com os pés descalços e ensaia as primeiras tentativas de engatinhar. Simpática e sorridente, joga beijos, bate palmas e salta de colo em colo buscando seus brinquedos favoritos. Atenta, presta atenção em tudo e não perde nenhum movimento. Michelle atribui a interatividade da pequena à estimulação precoce. “Quando saímos do hospital, nós

já sabíamos para onde ir e o que fazer. Ela faz fisioterapia desde que estava na UTI, isso fez toda a diferença no desenvolvimento dela”, conta. Como qualquer mãe, Michelle gostaria de estar com a filha 24 horas por dia. Ela acredita que cada momento longe de Flor é uma hora a menos de estimulação, então, enquanto trabalha, a pequena fica com a avó materna, incumbida da tarefa de cuidar da neta. O pai de Michelle também decidiu se aposentar para dedicar o máximo de tempo ao xodó da família. Quando questionada sobre a forma como encara a síndrome, Michelle se recusa a aceitar o papel de vítima e afirma que o grande segredo é viver um dia de cada vez. “Eu não planejo o futuro da Flor, se ela vai se formar, namorar, casar. Eu comemoro cada vitória dela, hoje”, confessa. Entre os planos do casal, está a concepção de mais um filho. Dessa vez, Michelle e Christhensen pretendem utilizar a seleção genética. A preocupação é deixar um companheiro para Maria Flor, independentemente do grau de autonomia que ela alcance. “Ter uma filha com Síndrome de Down reforçou nossa percepção quanto à importância da família. Trazer a Maria Flor ao mundo multiplicou nossos elos de amor”, define. Além da fisioterapia, Flor recebe, desde que nasceu, acompanhamento de fonoaudióloga e outras especialidades. Para o casal, sem sombra de dúvidas, o tratamento mais importante é a inclusão com respeito e muito amor.

A Síndrome de Down não é uma doença, é só um acidente genético e não pode ser limite para nada.” Ivana Alcântara Cosme

Uma lição de inclusão Amor e inclusão é o que se encontra na Ilha da Pintada. O bairro de Porto Alegre é o retrato da desigualdade. Grandes mansões de veraneio, à beira do lago Guaíba, dividem espaço com as casas humildes dos pescadores e moradores do local que, frequentemente, sofrem com as enchentes. É ali, no coração da comunidade, que está localizada a Escola Municipal de Educação Infantil Ilha da Pintada, umas das instituições modelo quando o assunto é inclusão. Construída em formato de castelinho, ela poderia ser confundida com qualquer outra instituição aos olhos desatentos de um observador qualquer. No entanto, seus corredores, coloridos por variados trabalhinhos dos alunos, denunciam a presença de pequenos inquietos. Na entrada, um barco, símbolo da comunidade, carrega livros que aguardam a hora da contação de histórias. Um trenzinho barulhento, feito de muitos pares de mãozinhas e olhinhos curiosos, passa rumo ao refeitório, enquanto a diretora Marta Barbosa Castro explica a proposta pedagógica da instituição. “Acreditamos na inclusão de maneira efetiva para que todos sejam beneficiados. Não basta incluir e a criança se tornar apenas um número ou constar na Secretaria de Educação como matriculada. É preciso ir além”, afirma. E completa: “No começo, precisamos nos preparar e preparar nossos professores para a mudança que estava por vir, mas a inclusão acabou acontecendo de maneira tranquila, natural. É por isso que hoje, nossas práticas servem de exemplo para outras escolas do município”, ressalta. Caio é um exemplo dessa inclusão. Sua mãe, Ivana de Alcântara Cosme, lutou contra todos os prognósticos e, desde que soube que Caio seria especial, buscou alternativas para o seu desenvolvimento. “Meu filho é incrível! A Síndrome de Down não é uma doença, é só um acidente genético e não pode ser limite para nada”, diz Ivana. Caio tem 5 anos e faz tudo que uma criança sem síndrome faz nessa idade. “Ele quer participar de tudo. Adora a escola porque lá estão seus amiguinhos e, como qualquer criança, está sempre disposto a brincar”, afirma a mãe. Há dois anos, Caio frequenta a escola pública e, conforme Ivana, seu desenvolvimento motor e cognitivo ocorre a olhos vistos. A professora Luciana Salengui Scolari é a responsável pela

turma em que Caio estuda. Ela “Temos uma diversidade de conta que a inclusão do meni- crianças que nos chegam com no foi imediata. “Nunca disse- bagagens diferentes. Algumas mos às crianças que o Caio tem vivem em situação de extrema Down, elas nem saberiam o que pobreza, outras são hiperativas é isso. No entanto, elas perce- e outras, ainda, têm algum grau beram que o tempo dele é dife- de dificuldade na aprendizarente, então, os próprios cole- gem”, diz a vice-diretora Soraya gas se mobilizam para ajudá-lo. Demoli Prates, afirmando que A turma aceita certas atitudes a escola também acolhe alunos do Caio que não aceita dos de- autistas. “Cada criança só pode mais e chegam a protegê-lo em ser comparada a ela mesma, e algumas circunstâncias. Às ve- vencer os próprios limites é o zes, preciso impor limites por- que faz efetivo o aprendizado”, que o Caio é uma criança como completa Soraya. Ela reforça que, no caso do Caio, os professores qualquer outra”, explica. Apesar de ser uma escola mu- mantêm um olhar atento por nicipal, as atividades se esten- causa da necessidade de cuidadem à comunidade, o que faz dos médicos que ele demanda. O com que a inclusão seja com- menino também é acompanhapleta. Cada aluno é visto como do por uma monitora treinada, único e suas potencialidades conforme determina a legislação, são avaliadas individualmente. mas fora isso, nas atividades da classe, é tratado como qualquer Arquivo Pessoal aluno e avaliado dentro de suas aptidões. Entusiasmada com os progressos do Caio ela ressalta alguns dos avanços mais notáveis e explica os benefícios da inclusão como um todo. “Quando temos na comunidade escolar a inclusão de crianças com deficiência todos se beneficiam. A criança especial sente-se aceita, incluída no processo, e as demais aprendem a conviver com as diferenças. Isso certamente oportunizará uma geração mais tolerante”, define Soraya. Querido por colegas e professores, Caio aproveita os mimos e interage espontaneamente com todos. Como qualquer criança, ele espalha sorrisos por onde passa e, reproduzindo a postura dos adultos, aperta com firmeza a mão de quem vai cumprimentá-lo. Com uma personalidade cheia de alegria, deixa claro no seu jeito que “ter” Caio frequenta a EMEI Ilha da a Síndrome de Down está longe Pintada há dois anos de “ser” down.


10  •  UNIPAUTAS • 2016/1

DIVERSIDADE

Além do véu: a vida da mulher muçulmana em Porto Alegre É comum a imagem da religião islâmica ser confundida com o Regime Talibã, o qual tem fortes restrições com a mulher. O Unipautas foi atrás dessas muçulmanas para retratar a realidade feminina dentro da crença Aline Eberhardt

O

prédio antigo de dez andares, localizado no centro de Porto Alegre, não levanta olhares curiosos e também não chama atenção dos que ali caminham apressados em direção ao trabalho ou afazeres rotineiros. Parece apenas mais um dos edifícios que compõem a arquitetura porto-alegrense. Mas é com essa discrição que o local acomoda, no décimo andar, um ambiente de muita devoção: o culto sagrado islâmico. Poucas pessoas sabem que o Brasil tem grande população muçulmana, e por vezes o islamismo é associado a locais distantes, quando, na verdade, está próximo. O número de muçulmanos residentes no país, segundo o último censo do IBGE (2010), é de 35 mil pessoas. Mais de 80% deste número é distribuído em três estados: São Paulo, Paraná e Rio Grande do Sul. A religião Islã, como qualquer outra, tem suas regras. Ao participar do culto, os sapatos devem ser retirados e as mulheres devem cobrir sua cabeça com véu.

A divisória baixa na cor marrom, com pequenos retângulos em sua superfície, separa a sala maior e indica que ali é o local onde os cultos das mulheres são prestados. A divisão é para os homens manterem concentração durante a programação, assim como para as mulheres sentirem-se mais à vontade. Uma sala pequena, algumas almofadas e muitos livros. É ali que Júlia Viana (22), estudante de Jornalismo da Unisinos, passa a tarde quando está na capital. Residente em Sapiranga, Júlia é revertida ao islamismo há três anos. O termo “converter” não é utilizado pelos religiosos, explica. “Nós acreditamos Momento de oração no Centro Islâmico de Porto Alegre que já nascemos muçulmanos, acreditando em um único Deus, não demorou para começar sua fundamentalista cujo objetivo mas nos afastamos disso, e em Shahada. “A interrogação que é, através do islamismo, definir certo momento nos revertemos eu tinha era em relação ao Deus ideais políticos e econômicos. O a esta prática.” A estudante tem vivo, Allah. Ele preencheu o meu Talibã, sim, tem restrições forfascínio ao falar de sua religião. espaço”, conta. A Shahada é o tes para com a mulher, inclusive De família católica não-pratican- primeiro testemunho de fé da a proibição de ser atendida por te, começou a estudar o Islã por religião islâmica. Significa “não médicos do sexo oposto. Este curiosidade das práticas, e hoje, há Deus exceto Allah” (La ilaha primitivo movimento não condiz de véu preto com detalhes bran- illa Allah). Para que o testemu- com princípios do Alcorão, onde cos, afirma que o conhecimen- nho de fé seja válido, é necessário a mulher é tratada com respeito e to foi a chave para se descobrir. estudo, feito através do Alcorão, dignidade. O vínculo da religião Buscando esse conhecimento, vi- livro sagrado. com temas sociais e econômicos sitou sozinha pela primeira vez a nunca foi comprovado, apenas reunião, e também foi neste dia Vestes típicas supostamente associado pelos que conheceu Ana. veículos midiáticos. Quando perAna Maria Gonçalves (45) é As vestimentas das mulheres guntada sobre esse pré-conceito, revertida há quatro anos. Conta muçulmanas são chamariscos Nabila afirma que as mulheres que participou durante 22 anos para olhares curiosos na rua. Véu, não são “obrigadas a nada”. da Igreja Universal do Reino de lenço, “niqab” e “abayas” as diNabila Khzizada (38) é naDeus, mas sempre teve “uma in- ferenciam das demais mulheres tural do Afeganistão e mora no terrogação”. Sua primeira visi- da sociedade ocidental. O véu é Brasil há mais de cinco anos. De ta ao Centro Islâmico fora sem utilizado para proteger os olha- família muçulmana, Nabila afirsucesso, pois não havia culto. res diferentes dos homens e pre- ma que usa o véu desde os seis Porém, dias depois, retornou servar o lado sublime da mulher. anos de idade. “Já ouvi muitos e, maravilhada logo de início, “Para as muçulmanas, o véu faz xingamentos e comentários com que elas sejam conhecidas preconceituosos quando estou pelo espírito, e não pela aparên- caminhando na rua. Logo que cia”, parafraseando Marta Aref, cheguei ao Brasil era pior. Agora, brasileira e muçulmana. Aqui no vizinhos e conhecidos já estão Brasil, as mulheres são aconse- acostumados com meu estilo lhadas a usar apenas o véu, pois de vida. Como também morei o niqab (véu que cobre o rosto na Índia, procuro não falar muie revela apenas os olhos) daria to do Afeganistão, para evitar a ideia de opressão, associando quaisquer ofensas.” Inabaladas uma imagem negativa à religião. pelas muitas piadas grosseiras, as mulheres muçulmanas acrePré-conceito ditam no sinal de reverência e na devoção que sentem. Praticam a Opressão. Certamente, quem oração cinco vezes por dia, como compactua com essa ideia não é recomendado a todos os fieis, conhece o islamismo. A questão estudam, trabalham, e jejuam no do trabalho é muito apontada mês de Ramadã. como um dos motivos para essa Falar sobre o papel da mulher opinião. Entretanto, o Islã ape- é uma tarefa difícil, mais ainda nas prega que o homem deve quando estão inseridas em conser o provedor da casa, mas não texto religioso. As pessoas que que a mulher esteja impedida de associam a mulher trajada de trabalhar. A imagem da religião burca à intolerância e desrespeié comumente confundida com to, desconhecem a religião, seus o Regime Talibã, movimento hábitos e costumes.

Aline Eberhardt

A RELIGIÃO O Islã é uma religião monoteísta, fundada pelo profeta Maomé, a quem Alá revelou os princípios básicos através do Alcorão. O livro sagrado prega a criação do universo, a relação do homem para com Deus e apresenta leis religiosas para os fiéis. A região onde se desenvolveu a religião é onde atualmente se encontra a Arábia Saudita. Conforme a crença, o anjo Gabriel revelou-se ao profeta no ano de 570 depois de Cristo. Segundo dados do IBGE, o islamismo é a religião que mais cresce no mundo, estando atualmente presente em mais de 80 países. Dentre os vários princípios do Islã, cinco regras são fundamentais para a conversão:

1

Crer em Alá, o único Deus, e em Maomé, seu profeta

2

Realizar cinco orações diárias comunitárias (sãlat)

3 4

Ser generoso para com os pobres e dar esmolas Obedecer ao jejum religioso durante o ramadã (mês anual de jejum)

5

Ir em peregrinação à Meca pelo menos uma vez durante a vida (hajj)


2016/1 • UNIPAUTAS  •  11

Jovens buscam o caminho da fé Rafael Acosta Martins

Eles encontram dentro da igreja um lugar de acolhida para mudar de vida e em busca de viverem novas experiências na religião

Rafael Acosta Martins

Rafael Acosta Martins

S

eja em cultos ou em retiros, a juventude quer respostas. Histórias como a de Kalleb Kalleb coordena um grupo com mais de 20 jovens evangélicos Rodrigo busca encontrar seu caminho de fé e Rodrigo são exemplos de acolhida e reflexões espirituais Anos depois, ele fez novos exa- tem vindo na igreja, porque ela sido descoberta meses antes. Filho de pai pastor e praticamente criado dentro de uma igre- mes e teve uma surpresa: desco- em si não muda ninguém”, rela- Quando o avô foi diagnosticado, ja batista, Kalleb França, 31 anos, briu que estava completamente ta Kalleb, ressaltando que o nú- ligou para Rodrigo e contou que decidiu, ainda pequeno, não fre- curado. Não havia mais vestígio mero de jovens nos cultos tem tinha sonhos em que estava em cima de uma árvore e uma voz quentar mais os cultos com seus da doença em seu corpo. Hoje, aumentado. pedia para ele descer. pais para levar uma vida diferen- Kalleb é um dos líderes dentro Em uma palestra do retiro, A juventude do Papa te. “Nunca fui obrigado a ir. Eu ia da Igreja Batista da Brasa Zona Rodrigo usava uma camisa que porque achava que isso era o cer- Norte (BZN). Cuida de cerca de O aumento na participação estampava uma árvore. Ao cheto”, diz Kalleb, que já não se sen- 20 jovens e está se preparando tia à vontade naquele ambiente. para buscar um objetivo: ser pas- dos jovens também é visto em gar, descobriu que o tema do enPorém, com 19 anos, ele des- tor. “Prego na igreja sempre que outras religiões. E existem mui- contro era Zaqueu, um personatas formas de ingressar na fé, as- gem bíblico que tinha o costume cobriu um problema no coração possível”, afirma. Segundo ele, a Igreja BZN sim como os motivos para per- de subir em árvores. “Fiquei em e a sua vida teve uma reviravolta. Em um retiro de jovens em trabalha tirando jovens das manecer. Rodrigo Carvalho, 25 choque quando descobri que o Bento Gonçalves, uma mulher, ruas e desenvolvendo projetos anos, foi convidado por uma ami- tema era esse, e com a questão que ele então não conhecia, fez especiais, como aulas de músi- ga para um retiro e continua na em que Jesus pede para que ele tudo mudar. “Ela orou por mim ca e atividades esportivas. Ele Igreja Católica até hoje por conta desça da árvore”, conta Rodrigo, muito emocionado. e ouvi um homem falando que se crê na transformação desses jo- das amizades que construiu. Assim como Rodrigo, muitos Semanas antes de ir para o reeu me entregasse a ele eu seria vens e utiliza sua história como curado. A partir daí, decidi voltar motivação para quem o procura. tiro, Rodrigo perdeu o avô, com jovens estão em busca de descoa frequentar a igreja e me entre- “Acredito que esta mudança pode quem era muito apegado, vítima brir sua fé, e esse é o principal guei de vez a Deus”, conta Kalleb. acontecer na vida de todos que de um câncer. A doença tinha objetivo do Papa Francisco, que

assumiu o Vaticano em março de 2013. Sua aparição na Jornada Mundial da Juventude (JMJ), realizada no Rio de Janeiro em 2013, levou cerca de 3,7 milhões de fiéis ao evento, sendo o recorde da jornada. A maioria do público era de jovens, ou, nas palavras dele, a “juventude do Papa”. Baseado nisso é que trabalha a Paróquia Divino Espírito Santo, localizada na Zona Norte de Porto Alegre. A coordenadora do grupo de jovens, mais conhecido como PJC (Preparação de Jovens em Cristo), Daisy Santos, 37 anos, acredita que o trabalho consiste em preparar jovens tanto espiritualmente quanto socialmente: “Vivemos com base no que o Papa propõe, evangelizando jovens para que promovam a Igreja”. Segundo ela, nos últimos anos, o número de integrantes aumentou de cinco para 30 no PJC. Daisy conta que trabalhar com eles não é tarefa fácil, mas se dedica a preparar o futuro como cidadãos e católicos. “Acredito no potencial que cada jovem tem, de escolher o caminho de Cristo e ali escrever sua vida na fé”, afirma Daisy. Por caminhos diferentes, Rodrigo e Kalleb se descobriram na fé e tiveram uma acolhida capaz de mudar suas vidas.

Acolhimento e aceitação na Igreja Católica Papa Francisco defende a diversidade religiosa e recomenda aos seguidores da igreja católica que respeitem as diferenças. Padres jovens e grupos LGBT fazem parte desse esforço de modernização da igreja Gabriela Braga Azzolini

A

chegada do argentino Jorge Mario Bergoglio ao Vaticano trouxe consigo uma onda liberalizante à tradicionalíssima Igreja Católica. Desde que foi escolhido Papa, em 2013, o pontífice tem adotado uma postura de aceitação e acolhimento das diferenças. Em um discurso numa reunião plenária do Conselho Pontifício logo após seu ingresso no Vaticano, o Papa criticou o pensamento dos fiéis que rejeitam a diversidade religiosa. Em um voo do Brasil de volta à Itália, questionou: “Quem sou eu para julgar os gays?”.

Do outro lado do Atlântico, às 7h57 de domingo, os fiéis da paróquia de Belém Novo aguardam a missa iniciar. “Bom dia, pessoal”, diz o padre Thiago Francesco. Num primeiro momento, o jovem causa surpresa quando chega ao púlpito para começar a tradiconal missa. Em seguida, segura o microfone e passa a mão sobre o cabelo preto arrepiado. Embora a Bíblia considere a vaidade um dos sete pecados capitais, o jovem padre não considera os cuidados com a aparência um problema. “Tenho o estilo de um jovem porto-alegrense de trinta anos. Isso nunca foi problema na minha formação”, explica Francesco. “Podemos estudar para ser padre, formar-se e continuar aproveitando a beleza da juventude. No limite certo não há nenhum pecado.” O padre Fábio de Melo é outro exemplo de religioso jovem e que, hoje, conta milhares de seguidores no snapchat, aplicativo que permite usuários fazerem vídeos curtos. Um padre jovem e conectado acaba incentivando a comunidade cristã, como comenta

Francesco: “Isso ajuda nos trabalhos com os jovens. É fácil de fazer amizade com o pessoal porque eles acabam se identificando.” Além da batina O processo de modernização da Igreja não se resume aos hábitos dos padres. A diversidade, no quesito orientação sexual é um assunto bastante discutido. Oficialmente, o Vaticano não

aceita relacionamentos entre pessoas do mesmo sexo. Mas, de acordo com o padre, desde a chegada do Papa Francisco, a acolhida a pessoas de todos os gêneros e orientações sexuais é uma prática recomendada. Já existe até um movimento para incentivar o acolhimento da população LGBT (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis) dentro da Igreja Católica. A primeira iniciativa no Brasil veio em 2006, no Rosângela Sabóia

Thiago Francesco tem apenas meia década de batina. Aos 31 anos, ele atua na Capital

Rio de Janeiro. Não demorou muito para que surgissem outros grupos em várias cidades, como Belo Horizonte. “Nosso objetivo é facilitar o amadurecimento humano e espiritual. Somente assim podemos dialogar com a sociedade e a igreja de forma lúcida, criativa e sem ressentimentos”, afirma o líder do grupo Diversidade Católica de Belo Horizonte, que prefere não se identificar. Em outros lugares do mundo há também iniciativas semelhantes, como os grupos Dignity, nos Estados Unidos, e Rumos Novos, em Portugal. Os grupos espalhados pelo Brasil mantêm comunicação via internet. Assim, organiza reuniões, eventos e trabalhos pastorais. “No grupo de Belo Horizonte, mantemos reuniões mensais. Nelas, realizamos momentos de oração, reflexão e buscamos atuar de alguma forma junto à comunidade”, complementa o líder do grupo de Belo Horizonte. “A última iniciativa foi um trabalho de escuta e acolhida de LGBTs em situação de rua na cidade.”


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DIVERSIDADE

Poliamor: a nova maneira de amar O movimento de poliamorismo surgiu nos Estados Unidos há pelo menos 20 anos e hoje possui diversos seguidores em muitos países. No Brasil, já são mais de 5 mil adeptos de grupos de relações livres com mais de mil integrantes Amanda Rossato e Tainá Fontella

P

oliamor é o nome dado ao tipo de relação em que cada pessoa tem a liberdade de manter mais do que um relacionamento ao mesmo tempo. Não segue a monogamia como modelo de felicidade, o que não implica, porém, a promiscuidade. A relação poliafetiva pressupõe uma total honestidade no seio da relação. Não se trata de enganar nem magoar ninguém. Tem como princípio que todas as pessoas envolvidas estão a par da situação e se sentem confortáveis com ela. Em Porto Alegre, já existem adeptos de grupos de relações livre. Eles fazem parte de uma turma que multiplica adeptos. Defendem que a monogamia

fracassou e que o ciúme é con- relacionamento de duas ou mais trolável até sumir de vez. São se- pessoas, não há distinção, não parados em denominações com existe um rótulo, uma bula a princípios próprios: relações seguir”. Franciele garante que a livres, relacionamento aberto única dificuldade que enfrenta e poliamor, cada um com estra- é a aceitação por parte dos amitégias singulares para fugir do gos, que apesar de ter alguns convencional. que conhecem a questão, não Eles não só pregam que nin- são adeptos. Outros, possuem guém é de ninguém e que são “a veia hétero saltando no pesde todo mundo, como também coço” e sendo assim, ela prefeacreditam que é possível amar re se resguardar a ter que gerar muitas pessoas ao mesmo tem- atritos. Em relação ao ciúme, a po e traçar planos com todas elas. jornalista diz que foi difícil se Alguns relacionamentos são mais desprender desse círculo vicioso densos, outros mais superficiais, e que prometeu nunca mais volmas cobranças e chiliques pas- tar. “O ciúme é uma doença que sam longe dos integrantes da se instala aos poucos e nos adoeRede de Relações Livres. ce, nos torna inutilizáveis para A jornalista Franciele Gas­ o amor. Por isso, quando me vi parini, de 25 anos, relata já ser livre nunca mais voltei. Não senadepta do Poliamor antes mes- tir ciúme é a melhor parte em mo de saber o que a palavra e o minhas relações”. modo de viver realmente signifiJá a escritora e consultora de cavam. Para ela, o poliamorismo sensualidade, Janaina Abarszcz, nada mais é do que o jeito como nunca vivenciou um poliamor e ela enxerga suas relações e como diz que o amor livre ainda é um as aceita, sejam elas mentais, grande tabu. Apesar de ter amifísicas ou espirituais. Garante gos que são adeptos, muitos deque seus relacionamentos em les escondem a relação por medo sua maioria são monogâmicos de rejeição por parte da família. e que essa ideia de que o polia- Poucos assumem a condição do mor é uma “orgia generalizada” poliamorismo com normalidade. deveria realmente ser deixada Janaina acredita que relacionade lado. “Em meus relaciona- mentos abertos são a fantasia mentos monogâmicos, sinto- de um número grande de pes-me da mesma maneira que em soas, principalmente os mais

Amanda Rossato

O “trisal” cofigura uma das instâncias do poliamorismo

reprimidos; e que o gosto da novidade faz bem para todos. Para ela, a vontade de fugir da rotina e vivenciar novas emoções é um dos motivos que os levam a sair da monogamia. “Sem dúvida um dos grandes problemas da monogamia é a rotina, é a falta de paixão. É neste ponto que entra meu trabalho, levar sedução para a vida a dois, reativar a paixão”. Sobre a visão de poliamor dos demais, ela garante –“A nossa sociedade ainda tem que se reciclar muito e abolir preconceitos para entender e conviver com isto”. Em 2012 foi lavrada a escritura pública de união poliafetiva num

Cartório de Notas da cidade de Tupã, interior de São Paulo, entre um homem e duas mulheres que viviam em união estável, e que desejavam resguardar seus direitos e dar mais segurança à entidade familiar. Consta que o trio já vivia junto há três anos e resolveu oficializar a união. A jurisprudência no Rio Grande do Sul sempre tem resolvido o término dessas relações familiares com a denominada triação, reconhecendo que relação paralela ao casamento, ainda que o cônjuge não esteja separado de fato, configura união estável, sujeita, portanto, à tutela do Direito de Família.

A felicidade do casal antes dos números Casais com grande diferença de idade enfrentam inúmeras barreiras no relacionamento, mas passam por cima de tudo em nome da felicidade e do amor

Arquivo pessoal / Divulgação

Tainara Fazenda

U

m estudo realizado na Universidade Nacional da Austrália revelou que quanto maior a diferença de idade entre casais, maior é o índice de divórcio. Para casais que possuem 4 anos de diferença o índice é de 9,5%. Já para aqueles que possuem até 9 anos de diferença, o índice aumenta para 16,8%. Segundo o estudo, a explicação pode estar no fato de os casais, em geral, unirem-se pelas suas semelhanças. Ou seja: casais que possuem uma diferença significativa de idade costumam ter mais divergências. E isso torna mais difícil sustentar um relacionamento duradouro. Outra pesquisa, feita pelo site de relacionamentos Par Perfeito,

Adriana e Roberto com a filha

aponta que 39% dos homens revelaram que o preconceito é o maior problema em um relacionamento onde a mulher é muito mais jovem. Para 41% das mulheres, quando o homem é o mais novo, a maior dificuldade no relacionamento é a imaturidade. Ao todo, 2 mil pessoas participaram da pesquisa. Na opinião dos participantes, a direfença ideal de idade entre um casal deve ser de, no máximo, cinco anos. Se, por um lado, existem

inú­me­ros problemas que um casal com grande diferença de idade pode enfrentar, há casos que contradizem a regra. Roberto Carvalho é casado com Adriana, 11 anos mais jovem. Há oito anos juntos, ambos já haviam sido casados antes de iniciarem o relacionamento. Eles revelam não ter sofrido preconceito dos familiares nem dos amigos. Para eles, o maior problema que enfrentam foram os vestígios do passado. “O grande

problema está nas relações anteriores, pela bagagem que cada um traz de suas relações malsucedidas”, comenta Adriana. O casal também mostra indiferença à opinião alheia. Ambos garantem não se importarem com o preconceito por parte de terceiros. E afirmam que o que deve ser levado em conta é a felicidade do casal, e não a opinião dos outros. “Se são felizes e se dão bem, tudo ok”, diz Adriana. A preocupação de Adriana tem fundamentos, segundo a pesquisa do site Par Perfeito, um quinto dos casais que possuem filhos antes do atual relacionamento se separam. Casos como o de Adriana e Roberto não são incomuns. Na realidade, estão crescendo. Em 2012, uma pesquisa feita pelo IBGE mostrou que o número de casamentos em que mulheres são mais velhas cresceu 24%. Ainda assim, o número de casais onde o homem é o mais velho continua sendo o mais comum, e, só nos últimos anos, cresceu 76%. Existem muitos obstáculos neste tipo de relação, mas nada

que o casal não possa superar, garantem os especialistas. Assim, cabe aos dois saberem levar a relação. “Sabemos que muitas pessoas, mesmo com idade avançada, quando se permitem, vivem experiências incríveis há muito tempo sonhadas, mas não efetivadas até então”, explica a psicóloga Milene Petracco. O preconceito pode trazer malefícios para o convívio destes casais; “O preconceito, ao incitar estigmas sociais, pode ser gerador de insegurança entre as pessoas. Especialmente nos casos onde a opinião do outro é maior do que o próprio bem-estar, pode acontecer inclusive, o rompimento da relação”, explica a psicóloga. Segundo ela, muitas vezes pode acontecer também de surgir outras consequências, como o afastamento da vida familiar. Segundo Milene, até mesmo o apoio nas redes sociais pode ajudar a vencer o preconceito, caso ele não venha da família. Ainda assim, ressalta, a base para um relacionamento duradouro é o diálogo e o respeito.


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Brasil e o gosto amargo da intolerância de gênero Não raramente, grupos da sociedade, como políticos e religiosos fazem campanhas contra homossexuais. Como esses discursos podem afetar a vida de pessoas comuns? Fomos em busca de respostas Ariadne kramear

M

esmo sem uma lei que criminalize a homossexualidade, o Brasil é um dos campeões em mortes ocasionadas pela homofobia. Segundo o relatório da ONG internacional Transgender Europe, entre janeiro de 2008 e abril de 2014, nosso país teve 486 mortes de transexuais de forma violenta. Com a legalização da união entre pessoas do mesmo sexo o esperado era que esse número diminuísse, porém, de acordo com uma pesquisa feita em 2014 pelo Grupo Gay da Bahia (GGB), a cada 28 horas, um homossexual é morto no país. “Comparei esses índices e vi que a chance de um LGBT ser assassinado aqui é 80 vezes maior”, explica o antropólogo Luiz Mott. No ano de 2014, o país com mais de 200 milhões de habitantes, o número foi 313 homicídios. Segundo Luiz, 44% dos casos de morte por homofobia identificados em todo o mundo ocorrem em território brasileiro. Não raramente, grupos da sociedade, como políticos e religiosos fazem campanhas contra homossexuais, como é o caso do candidato do PRTB à presidência da República do ano passado, Levy Fidelix. Ao ser questionado sobre as políticas públicas dele sobre união homoafetiva e as relacionadas à comunidade LGBT, Levy relacionou a condição sexual à pedofilia. “Como é que pode um pai de família, um avô ficar aqui escorado porque tem medo de perder voto? Prefiro não ter esses votos, mas ser um pai, um avô que tem vergonha na cara, que instrua seu filho, que instrua seu neto. Vamos acabar com essa historinha”, polemizou. Em outro discurso, Levy também disse que a maioria tem que enfrentar a minoria LGBT. O medo “Eu ainda não tinha me descoberto. Tinha lá pelos 14 anos, estava saindo abraçada com

uma amiga minha na rua, nada jovem que gostava tanto de medemais. Ao passarmos por uma ninos quanto de meninas e por Avenida, aqui perto de casa mes- isso, podia pagar um preço alto. mo, ouvi: Ahhh, mas vai dizer “Meu medo é de que minha mãe que são namoradinhas agora? não me aceite, o que é engraçaVem aqui que eu vou te mos- do, já que ela aceita meus amitrar. Fiquei sem reação. Quando gos gays de boa. A questão é que comecei a notar meu interesse vejo tanta coisa negativa na tepor mulheres, sabia que não levisão, nos jornais, nas rádios seria fácil justamente por essa sobre pessoas LGBT que me pasexperiência.” A garota que re- sa insegurança. Tem muito ódio latou essa experiência estudou contra a gente. Tenho parentes em boas escolas, teve uma boa religiosos que zombam no aleducação e pais presentes. Usa moço de domingo sobre a morte óculos, sorri com frequência de ‘viados’ e isso mexe comigo. e tem cabelos curtos. Com 20 Quer dizer que eu para eles meanos, está finalizando o curso reço morrer também? ”, declara de Publicidade e Propaganda. A a estudante. sua diferença, entre os demais, não é sua condição sexual, mas Homofobia sim o medo nas ruas. Ao crescer e olhar os noticiários, via que Luisa (nome fictício), é emnão seria fácil viver em um país pregada doméstica e tem duas onde ser gay não é crime, mas filhas. Com cinquenta anos as pessoas criminalizam. Sua completos em março deste ano, mãe, a aposentada de 58 anos é uma senhora doce, que recebe Cecília também teme por sua as pessoas em sua casa com uma filha. “Após eu mesma vencer xícara de café. “Na minha época meu preconceito, senti medo não tinha tanto gay assim não. pela Isa. É minha principal preo- Eu não tenho nada contra, mas cupação, a segurança dela. É um filha minha é bem criada e não tópico recorrente na nossa casa”. é assim”. Me nego. “A doméstiIsadora não está sozinha, ou- ca não se considera homofóbitras pessoas iguais a ela sentem ca, mas prefere manter distância o mesmo temor de sair de casa daqueles que ela não considera e não voltar mais, por demons- boas pessoas. Sua fisionomia trar afeto aqueles que amam. muda ao falar nesse assunto, Laura tem 21 anos, cursa vete- suas sobrancelhas cerram e seu rinária e ao dar entrevista para tom de voz aumenta. “Deus fez esta matéria, está pela primeira Adão e Eva, não acredito em ouvez assumindo sua identidade. tra coisa não. Isso é pra chamar Segundo a mesma, não é dife- atenção e na minha casa não rente de outras garotas por aí. tem isso”. Gosta de sair, se divertir, espeO significado certo de homora um futuro. Descobriu muito fobia no dicionário é aversão

Antonio Cruz/ABr

Manifestação pelo direito a livre orietação sexual em Brasília/DF

a homossexuais. A expressão compreende qualquer ato ou manifestação de ódio ou rejeição a pessoas da comunidade LGBT. Para regulamentar o comando constitucional, a Lei 7.716/89 criminaliza o preconceito de raça ou de cor. O Estatuto da Criança e do Adolescente e o Estatuto do Idoso atentam contra o preconceito em razão da idade. O Estatuto da Igualdade Racial visa a evitar a discriminação em face da cor. Porém, a vedação constitucional de preconceito em razão de sexo (que alcança a discriminação por orientação sexual ou identidade sexual) prossegue sem uma legislação que criminaliza os

atos de homofobia. Mesmo o Supremo Tribunal Federal reconhecendo uniões homoafetivas, a justiça não tem como punir ações de natureza discriminatórias, pois ninguém pode ser condenado sem lei que tipifique a ação como delituosa. O PLC 122 visa a criminalizar a discriminação motivada unicamente na orientação sexual ou na identidade de gênero. Se aprovado, irá alterar a Lei do Racismo para incluir tais discriminações no conceito legal de racismo – que abrange, atualmente, a discriminação por cor de pele, etnia, origem nacional ou religião. Após oito anos da proposta, o projeto está arquivado.


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DIVERSIDADE

Carnaval da diversidade sem machismo, racismo e homofobia Bloco carnavalesco luta a favor da democracia e da liberdade de expressão

Rafael Bernardes

Clícia Duarte

P

rimeiro de março de 2014, sábado, 18h. A estudante Renata Severo sai de casa rumo ao famoso carnaval de rua da Cidade Baixa. Antes, ela encontra sua namorada, Bianca. Chegando ao local, as duas logo se deparam com amigos. Juntos, eles seguem um bloco que passa. Entre risos e brincadeiras, Renata logo percebe uma pessoa vindo em sua direção gritando: “Sapatão, machorra, sai daqui sapatão!”. Não bastassem os xingamentos, Renata é agredida com um soco no rosto. O agressor corre. Tudo acontece rápido demais para que se tome uma providência. O que era para ser uma noite de diversão com os amigos se transformou em humilhação e preconceito.

Caminhada do Bloco na Cidade Baixa

Renata foi só uma entre as inúmeras vítimas da homofobia. Os casos, contudo, nem sempre acabam com uma simples agressão. Parte deles resulta em morte. “As pessoas acham que os gays dramatizam demais as agressões sofridas, sejam verbalmente ou física”, comenta Bianca, namorada de Renata. “Geralmente

acreditam que numa festa como essa isso não acontece, mas é aí que se enganam. Nós somos alvos em qualquer lugar”. Pensando em diminuir o conservadorismo que viam crescendo no País, um grupo de amigos decidiu criar o Bloco da Diversidade. Preservando a essência das festividades, a iniciativa incorporou

uma proposta maior: a promoção da igualdade e o respeito por quem é visto como “diferente” dentro da sociedade. O bloco é formado por mulheres, negros, transexuais, estrangeiros e moradores dos mais diversos locais da cidade. Ainda que alinhado à esquerda, não tem identificação partidária. O Bloco da Diversidade já faz apresentações nas ruas desde outubro de 2014, porém, teve sua estreia oficial no Carnaval de rua em 2015. A diversidade está presente tanto nas letras, quanto nos membros que o compõe e organizam. O grupo também defende a pluralidade étnica, cultural, racial, de gênero e de orientação sexual, contra o machismo, racismo e homofobia. Tem em seu repertório marchinhas tradicionais e outras criadas pelos organizadores, com temas contra o preconceito, bem como samba e axé. O que não sobra é espaço para melodias discriminatórias. Atualmente, Renata tem uma opção para se divertir

com segurança. “Frequento o Bloco da Diversidade em todos os carnavais de rua. Além de me sentir segura, estou entre amigos”, declara. Rafael Bernardes, um dos líderes do bloco, afirma que o grupo já sofre represálias por conta do movimento. “Já fomos ameaçados até de linchamento por conservadores”, explica. “Somente por dar continuidade no projeto, que se depender de mim, vai continuar por muito tempo. O público LGBT precisa disso, precisa ser incluído socialmente”. Rafael atua na área administrativa do grupo. Também ajuda na divulgação dos locais e das datas em que o bloco vai tocar. “O Bloco da Diversidade é uma construção coletiva. Não é aparelho partidário, não é governista e não tem sua agenda vinculada a partidos ou movimentos específicos”, diz o líder. “O Bloco não é burocrático ou engessado, é festivo. Quem quiser se agregar será muito bem-vindo”.

Pelo direito de exigir respeito Com o mercado de trabalho restrito, travestis e transexuais exigem políticas de inserção e respeito Adriano Rodrigues de Arruda

H

á sempre uma grande dificuldade de aceitação de instituições e organizações empregatícias quando se trata de colaboradores em condição homossexual, especificamente travestis e transexuais, haja vista o impacto visual devido a opção de vestir-se de acordo com sua identificação sexual. Na visão do professor de Psicologia da FADERGS, Dr. Eduardo Lomando, a maior dificuldade que um/uma transexual e as travestis enfrentam no ingresso ao mercado de trabalho dá-se a desconfiança, nojo e medo por parte das pessoas principalmente com as travestis que socialmente são representadas como prostitutas e violentas, realidade gerada exatamente por esse tipo de rechaço. Com relação ao fato de

90% (Associação Nacional de Travestis e Transexuais) da classe optar pela prostituição ele responde se é apenas por medo de aceitação: “Não, está ligada ao sustento. Qualquer pessoa que não tivesse apoio da família e não conseguisse emprego teria duas opções no Brasil: roubar ou se prostituir. Elas escolhem pelo menos nocivo.” Márcio Battanoli Casado, secretário adjunto da SALOS – Secretaria Adjunta da Livre Orientação Sexual de Porto Alegre, explica que o mercado de trabalho para transexuais e travestis sempre foi um tabu, pois fomos “deseducados” a esperar ver transexuais e travestis na rua, na prostituição, por estarem fadados a marginalização e a viver como profissionais da noite e das ruas. Apesar de haver muitas denúncias recebidas na secretaria, também há muitos casos que não são denunciados, Casado afirma: “fazemos hoje o acolhimento de vítimas de preconceito em nossa secretaria e temos percebido o grande aumento no discurso de ódio e na intolerância para com os LGBT, ao mesmo

tempo que estamos avançando muito em políticas públicas para garantir direito de vida a LGBTs”. E esses ideias fundamentalistas acabam por prestar um desserviço à sociedade, aumentando as agressões diretas ã população LGBTTT (lésbicas, gays, bisexuais, transexuais, travestis e transgêneros). Artista da noite e ativista engajada na política e luta pela causa, a artista transformista Glória Crystal conta sobre sua experiência no mercado de trabalho formal: “Já sofri preconceito sim, pela minha identidade de gênero, mas isso foi em outra época, hoje em dia quando sou contratada, já sabem sobre minha identidade e que ela não inviabiliza minha capacidade de produção”. Ex-secretária da SALOS, orgulha-se por ter sido a primeira travesti a assumir cargo em uma pasta pioneira no Brasil; “É raro tu ver uma travesti em um cargo de chefia, mas de uma coisa eu tenho certeza, se você perguntar a todos que trabalharam comigo, a resposta vai ser a mesma: Ela é muito legal e competente.” (risos) – Glória foi sempre uma

Luciano Lanes / PMPA

Glória Crystal e Márcio Battanoli Casado

ativista contumaz e presente, valendo-se do palco e da influência com o público LGBTTT para reivindicar em prol da classe, daí para a política foi um passo certo. “ A vida artística me fez ganhar o suficiente para ter meu cantinho, ir me mantendo até hoje, mas não é fácil não.” Afirma ainda falando sobre a necessidade do trabalho formal a uma “classe tão humilhada, vilipendiada e rechaçada...”, “por exemplo, até o momento, desde

o começo do ano até hoje 53 travestis foram assassinadas em todo Brasil, todas as desconstruções que vem acontecendo motivados pelo fundamentalismo religioso e discurso de ódio me apavora.” Glória Crystal diz fazer sua parte apesar de saber que vivemos numa sociedade preconceituosa e resistente em relação ao diferente, “minha luta não é para que nos aceitem, mas que nos respeitem”, afirma.


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Em busca de uma segunda chance Desde 2008, o Brasil aumentou em 33% a taxa de detentos no sistema penitenciário nacional. O país segue uma tendência inversa ao que acontece nos Estados Unidos, na China e na Rússia, que reduziram no mínimo 8% de seus presos desde 2013 Jaqueline Moura

R

esolvemos retratar quais tem sido as soluções para mudar essa realidade no Brasil. O porquê esse número só tende a crescer com o tempo. Se o governo tem algum plano de inclusão social para presos e ex-presidiários,

para entendermos um pouco melhor vamos conhecer a história de Renato Silva. Para muitos, 28 de abril é só mais um dia comum na cidade de Porto Alegre, onde os 10° gelam até mesmo as partes mais cobertas do seu corpo, e na hora de levantar você sente aquele desânimo de saber que irá trabalhar, que é só mais uma das vezes onde você terá que cumprir com sua rotina. Para muitas pessoas, é só mais um dia. Para Renato, seu dia já começa cedo, quando levanta às 5 horas. Aos 33 anos de idade condenado a 26 anos de cadeia, ele está ganhando uma segunda chance. Aos 16 anos de idade, começou a andar com más influências após a morte de seu pai. Renato passou 10 anos e 8 meses preso

no regime fechado. Pai de 3 filhos, hoje se lamenta por momentos que ele nunca pode presenciar, como os primeiros passos de seus filhos e o primeiro dia na escolinha. Morador do bairro Rubem Berta ainda em sua adolescência, Renato cresceu em meio a violência e a criminalidade. A pobreza era só mais uma de suas dificuldades, nunca participou de projetos educacionais ou sociais. Perdeu seu pai ainda jovem, não tinha mais uma figura paterna para lhe orientar. Depois de muitos anos Renato está sendo inserido na sociedade novamente, hoje participando do monitoramento por tornozeleiras, ele consegue dormir em casa, trabalhar durante os dias da semana e ajudar nas tarefas

É de menino ou de menina? Pais e educadores falam sobre a diferença dos brinquedos para meninos e para meninas, por que isso existe e os impactos que podem causar na vida das crianças futuramente

Helena Ribeiro

Em nenhuma hipótese é aceito o deslocamento do detento até o centro de Porto Alegre. Proibida a saída do perímetro de até 300 metros depois da casa onde vive. Proibida qualquer rota que seja contrária que não seja a do seu serviço em dias que não correspondem a dias de passeio. Em dias de passeio, o detento deve estar em casa até as 22 horas.

de casa. Não há nenhum mistério de como elas funcionam, suas baterias são recarregáveis, e podem ficar sem sinal assim como um chip de celular. Partindo do governo, o modo de inserção a sociedade novamente é quando o detento sai para o regime semiaberto ou pelo monitoramento de tornozeleiras, fazendo com que o

G

Ellen Ribeiro e Fhabiana Credideu

Loja de brinquedos de um shopping de Porto Alegre

espectro de possibilidades atri- crianças recebem informações e bui maior riqueza na imaginação as transformam de acordo com da criança e contribui para a sua a sua visão de mundo e também através de suas experiências formação“. Contudo, essa realidade está culturais. Segundo a professora, mudando. Recentemente, uma “nós, adultos, dizemos que as empresa de brinquedos gaúcha crianças confundem a realidade lançou uma bancada de cozinha com a fantasia, mas nós somos nas cores vermelho e azul, com a muito frequentemente capazes proposta de que os meninos tam- de confundir a realidade com a bém brinquem com esses itens. fantasia”. Para Tânia Fortuna, professora Conforme a psicóloga Juliana adjunta de psicologia educacio- Raucsh, não são as brincadeiras nal da UFRGS, a lógica de que que determinam como a criança os meninos normalmente não será na vida adulta apesar delas são associados a esses tipos de fazerem parte de sua formação tarefas domésticas e culinárias de personalidade, “existem oue de que esse mundo era cor de tros fatores, genéticos e ambienrosa, tornam esse fato revolucio- tais, que tem forte influência na nário: “São dois acontecimentos definição de quem a criança será de grande importância que tal- no futuro”. A frase talvez reprevez reflitam bem essa mudança sente bem a resposta das gêmeas contemporânea em relação ao Camila e Martina, de 12 anos, fique se destina para meninos e lhas de Elisa: “a gente inventa a meninas”. brincadeira, não é a brincadeira Para a professora Tânia, as que inventa a gente”.

mesmo trabalhe, a cada três dias trabalhados pelo preso, é reduzido de sua pena 1 dia. Segundo o advogado consultado Paulo Eduardo Duarte de Oliveira Júnior, especialista em Criminal, o governo apenas estimula para que outras empresas aceitem com mais facilidade a ideia de contratação de presos, mas o próprio governo não trabalha totalmente para que os mesmos sejam inseridos novamente, o advogado ainda afirma que só é trabalhada a questão de presos, mas e aqueles que já cumpriram sua pena e não devem mais? “Eles ainda continuam sem poder participar de concursos públicos, e isso é uma injustiça, porque se ele já pagou o que devia, porque não ter uma chance agora”, afirmou ele.

Modificação corporal e o mercado de trabalho Modificações corporais sempre foram um empecilho no mercado de trabalho. Antigamente, era muito difícil uma pessoa com piercings e tatuagens visíveis conseguir um emprego em uma loja, por exemplo

Helena Ribeiro e Marcella Couto

eneticamente, não há nada que impeça uma criança de brincar com algum brinquedo. Porém, dependendo de sua cultura, alguns deles podem acabar sendo direcionadas para determinado sexo. Por exemplo, os brinquedos relacionados a deveres de casa são rapidamente ligados às brincadeiras femininas e meninos normalmente ganham de presente brinquedos que tem a ver com aventuras. De acordo com Fernando Almeida, professor da rede municipal de Porto Alegre e Mestre em Gestão Educacional, essa diferença se dá já na nossa sociedade: “vamos reproduzindo uma ideia histórica do que é ser homem ou mulher em nossas interações sociais diárias, segregando meninos e meninas a determinados brinquedos que reforçam esse estereótipo”. A escritora do blog Mãe de Terceira Viagem, Elisa Beylouni, diz que há uma influência cultural que acaba rotulando os brinquedos e isso também influencia as famílias e delimita os parâmetros do comércio. Ela também comenta que ter liberdade de escolha é sempre bom: “a rotulação é sempre limitadora. Ampliar o

As restrições:

C

om o passar dos anos, as modificações corporais têm sido um pouco mais aceitas. Mesmo assim em algumas áreas, como saúde e direito, os preconceitos continuam: “Tatuagem não faz tanta diferença, mas piercing sim, e se for de rosto complica bastante em cozinha industrial e restaurantes”, diz Marina Viana, 28, estudante de Nutrição e formada em Direito. Outra área da saúde onde essas modificações corporais Ellen Ribeiro

Roger Garcia, 31 anos, fisioterapeuta

também atrapalham é a que contém atendimento ao público. O fisioterapeuta Roger Garcia, 31, relata que discriminação sempre vai existir: “se tu está à mercê de um chefe totalmente contra, o teu trabalho pode ser o melhor, mas ele vai te trocar pelo cara que é meia boca, mas está ali. A tendência é ele te trocar”. Em outros casos, o candidato já sofre preconceito logo na entrevista de emprego, não tendo chances de mostrar o seu trabalho. O artista Thiago Angel, 34, conta que “teve um momento de minha vida em que saí de um emprego e tinha a ilusão de que me recolocaria no mercado facilmente. Todo processo seletivo que eu participava acabava ficando sem a vaga. A resposta era a de que eu não tinha o perfil da empresa, que a vaga já havia sido preenchida ou que em alguns dias eles me dariam um retorno, que nunca acontecia”. Em meio a tantos rótulos e preconceitos, há quem consiga ter uma profissão mais séria e ainda continuar com outros hobbies. Thiago Kunz Tabajara, 32, advogado e cantor, relata que não segue os padrões que a sociedade impõe e acha que isto não interfere e sim que pode até deixar a própria presença mais marcante: “O preconceito rola, mas eu acho que você tem que começar a desvincular, é um processo de evolução. Mas se você souber se posicionar, se tu tiver uma personalidade forte e conteúdo, tu consegue vencer isso, tu consegue ultrapassar isso”.


16  •  UNIPAUTAS • 2016/1

DIVERSIDADE

“Somos impedidos de salvar vidas” Giordana Cunha

Portaria do Ministério da Saúde considera inapto para doação de sangue homens que tiveram relações sexuais com outros homens Giordana Cesari Cunha

A As doações de sangue costumam cair no período de frio

pós fazer o cadastramento de seus dados na recepção para realizar a doação de sangue, o estudante de odontologia Ricardo (nome fictício), de 20 anos, entrou para a sala de entrevista. A enfermeira que o recepcionou seguiu o trâmite com normalidade e fez as perguntas obrigatórias. Dentre 42 questionamentos, o que mais o intrigou foi o de número 17, no qual foi questionado sobre o gênero dos parceiros com quem ele se relacionava. “Quando declarei ser homossexual, a enfermeira começou a fazer perguntas aleatórias que eu sabia que não faziam parte daquele relatório. Logo depois, me mandou para a sala de espera e me informou que eu estaria inapto para a doação. Nós (homossexuais) somos impedidos de salvar vidas e fazer o bem”, declarou o estudante. Os bancos de sangue de muitos países, incluindo o Brasil, não aceitam doações de homens homossexuais. Esta determinação foi criada no auge da epidemia da Aids nos anos 80, e mesmo com a tecnologia avançada e métodos contraceptivos mais eficazes, não foi alterada. A portaria de nº 1.353 – Art 1º, do Ministério da Saúde diz que a orientação sexual não deve ser

usada como critério para seleção de doadores de sangue. Porém, a portaria de nº 2.712 - Art. 64, considera inapto por doze meses homens que tiveram relações sexuais com outros homens e/ou a parceira sexual destes. Em relação a essas portarias, o coordenador do Centro de Apoio Operacional (CAO) dos Direitos Humanos do Ministério Público, Mauro Souza, não acredita que elas se contradigam pois, segundo ele, não é a orientação sexual que determina quem pode doar. “Existem alguns componentes biológicos no comportamento sexual de homens homossexuais que põem em risco de contaminação o sangue para transfusão. Uma relação heterossexual tem determinados componentes que a tornam menos arriscada que a relação homossexual masculina”, afirma Souza. A Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Tra­ vestis e Transexuais (ABGLT) já fez reuniões com o Ministério da Saúde para uma possível alteração. Para Mauro, a portaria não deve ser alterada a menos que haja um consenso científico de que esse risco não mais existe, e afirma que ela está de acordo “até que provem o contrário”. Preconceito ou prevenção? A coordenadora técnica da ONG Somos, Claudia Penalvo, acredita que isso seja, sim, uma forma de preconceito. “Hoje existem tecnologias para detectar se a pessoa tem um vírus ou uma doença, testes rápidos que podem ser feitos. É muito fácil, porque as pessoas respondem um questionário onde podem mentir.

Deveria ter um aconselhamento após o questionário, onde uma psicóloga tem uma conversa mais confortável com o possível doador”, afirma. Já Mauro Souza não acredita que isso seja uma questão discriminatória pela orientação sexual porque as mulheres homossexuais não são impedidas pelos mesmos 12 meses. “Nos casos que há uma probabilidade do sangue não ser aprovado no teste que é feito posteriormente, não tem porque insistir se depois ele não passar no teste. Nós tratamos com a saúde das pessoas, especialmente com a segurança dos receptores, e tratamos também com uma questão de custo público, então toda e qualquer medida no sentido de racionalizar os custos, é muito bem vinda”, afirma. A enfermeira Karine Pitana, de 34 anos, que trabalha há sete anos em um Banco de Sangue, afirma que o motivo maior desta proibição é a sífilis. “O sexo anal é mais propício à contaminação desta doença. A sífilis é assintomática e a janela imunológica dela é muito grande, pode variar de sete a oito meses. Como homens homossexuais praticam mais este tipo de relação, o risco é maior”, complementa. Com inúmeras campanhas para o abastecimento dos bancos de sangue, essa barreira ainda impede que muitas pessoas não doem. O próprio estudante Ricardo lembra que muitos de seus amigos não vão doar sangue porque sabem que não é permitido e não querem passar por esse constrangimento: “nós sofremos preconceito diariamente e essa portaria colabora para que isso continue”. Giordana Cunha

Muita gente preenche todos os requisitos mas, mesmo assim, não conseguem realizar a doação


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