Umas quantas fulgurações estetizantes sobre o movimento do medo tavares e blaufuks

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UMAS QUANTAS FULGURAÇÕES ESTETIZANTES PARA O MOVIMENTO DO MEDO (TAVARES E BLAUFUKS)

Maria da Graça SANTOS1

RESUMO A partir da escrita de Gonçalo M. Tavares e de trabalhos do fotógrafo Daniel Blaufuks, será elaborada uma reflexão sobre i) a produção artística, enquanto impulso memorialista; ii) os limites da representação no recorte testemunhal; iii) o medo que arranca o homem da imobilidade e o mantém em movimento até ao limite das suas capacidades; iv) um ideal de arte como resposta à falência humanista das organizações assentes na racionalidade. A reação dos dois autores a estas problemáticas aproxima-os pela porosidade das linguagens artísticas e pelo desafio da co-criação lançado aos leitoresespetadores. Os livros Aprender a Rezar na Era da Técnica (2007) e Uma Menina está Perdida no seu Século à Procura do Pai (2014)) de Gonçalo M. Tavares e a exposição de Daniel Blaufuks Toda a Memória do Mundo, Parte Um (Museu Nacional de Arte Contemporânea, 2014-2015), entrecruzam as questões de emergência humana que se colocam da Shoah até ao flagelo das migrações atuais. PALAVRAS- CHAVE: fotografia; literatura; pós-memória; movimento; medo. A FEW AESTHETICIZING FLASHES FOR THE FEAR’S MOVEMENT (TAVARES AND BLAUFUKS) ABSTRACT From Gonçalo M. Tavares writing and Daniel Blaufuks photographer work’s it will elaborate a reflection on i) the artistic production, while impulse memoirist; ii) the limits of representation in the witness cut; iii) the fear that tears man away from immobility and keeps moving within the limits of their capabilities; iv) an ideal of art as a response to the failure of humanist organizations based on rationality. The reaction of the two authors to these problems brings them closer by the porosity of artistic languages and the co-creation

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UÉ, Évora, Centro de Estudos em Línguas, Departamento de Linguística e Literaturas, Évora, Portugal, santgraca@gmail.com.

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challenge to readers-viewers. Gonรงalo M. Tavares books Learning to Pray in the Age of Technique (2007) and A girl is lost in his century to the Father's Search (2014)) and Daniel Blaufuks exposure All the Memory of the World, Part One (National Museum of Contemporary Art, 2014-2015), crisscross the human emergency issues facing the Shoah to the scourge of current migrations. KEY WORDS: photography; literature; memory; movement; fear.

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UMAS QUANTAS FULGURAÇÕES ESTETIZANTES PARA O MOVIMENTO DO MEDO (TAVARES E BLAUFUKS)

(...) uma imagem surge amiúde no momento em que a palavra parece falhar, uma palavra surge frequentemente quando é a imaginação que parece falhar. (Huberman, 2012: 43)

Parte da produção escrita de Gonçalo M. Tavares2 expressa um sólido vínculo com o mal sob a forma alegórica em que a desrazão, ou a razão do homem contemporâneo levada ao limite, se abriga. Também ao lembrar a sua condição de escritor pós-Auschwitz, o autor facilita o entendimento de uma certa condição da crueldade transversal à sua profícua produção. As desconcertantes imagens lapidares, em representação do que de mais animalesco persiste no homem, coexistem num exercício de contenção verbal, com a fuga à adjetivação, ou ao advérbio, como se o autor realizasse no pudor - de tudo dizer - uma deontologia e, mesmo, uma marca, exigindo da linguagem o mesmo que Novalis queria da palavra: “atingir diversas ideias de um só golpe” (2002:64). Será por isto que os fragmentos, os aforismos, as tabelas literárias, as legendas e as fotografias, formas omnipresentes na linguagem do autor, complementam esse intento, entendido por um lado, como libertador do excesso de que o consumismo é responsável por outro, provocador da intensidade trágica do humano. Daniel Blaufuks,3 fotógrafo, neto de judeus exilados em Portugal durante a Segunda Guerra Mundial, faz dessa contingência biográfica a espácio-temporalização da sua arte. É pelas fotografias, mas sobretudo pela organização nuclear que lhes dá, que Blaufuks nos fala da história -pessoal e universal-, recorrendo, também ele, à escrita. Estamos perante histórias que Blaufuks exporta do seu álbum familiar para um arquivo público, rememorando a guerra e o exílio forçado. Os livros, tanto quanto as exposições e as instalações da sua autoria, têm coadjuvado a atividade fotográfica e fílmica na

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Escritor português, nascido em 1970. A sua primeira obra, O Livro da Dança, foi publicada em 2001, tendo até à data publicado trinta e seis títulos, entre romances, contos, teatro, ensaio e poesia. Reconhecido como um dos maiores escritores da atualidade, tem sido distinguido com os mais importantes Prémios literários em Portugal e em países como o Brasil, Itália, Sérvia e França. Estão em curso cerca de 370 traduções em trinta e seis línguas, com edição em 51 países. 3 Nasceu em Lisboa, em 1963, numa família de refugiados judeus alemães. A sua formação dividiu-se entre a AR.CO, o Royal College of Arts e a Watermill Foundation, Nova Iorque. Expôs no CAM (Fundação Calouste Gulbenkian), no Palazzo delle Papesse (Itália), na LisboaPhoto (CCB), na Elga Wimmer Gallery (Nova Iorque), no PhotoEspaña (Madrid), no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro e no Museu Nacional de Arte Contemporânea, em Lisboa. Em 2007 foi galardoado com o prémio BES Photo.

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construção de uma narrativa histórica em que o espetador-leitor pode balizar o presente em que habita. Diz Blaufuks que: Através do prisma do Holocausto e da maneira tão particular como este acontecimento moldou a vida da minha família, o meu trabalho oferece ao espectador a possibilidade de inserir esta informação num contexto novo, num contexto mais atual. Procuro oferecer formas de rever o mundo, de reinterpretá-lo. (BARBOSA: 2015)

Os dois artistas, Tavares e Blaufuks, interessam-se pela captação de pedaços do instantâneo humano, aproximando-se a escrita de Tavares da execução imagística, e a fotografia de Blaufuks traça uma narração indicial que, et pour cause, não dispensa o texto escrito. E se ambos contrapõem à preponderância do discurso superficial - umas vezes automatizado por leituras massificadas, outras, pela padronização persistente dos media – a avidez de um efeito de estranhamento desestabilizador desse imediatismo célere, perpetuado pelo estilo consumista, fá-lo-ão na plena consciência de que a memória apenas traz vestígios, as marcas percecionadas do tempo e do espaço, do que já foi, é certo, mas, essencialmente, do que pode vir a ser. Se cerceados à leitura pública, ainda que preservado o seu caráter privado, os fragmentos ficariam encerrados na sombra da esfera individual, ou familiar no caso de Blaufuks, logo coartados da possibilidade de reprodução de infinitas associações. A leitura, por gerar imaginação, acrescenta novos fragmentos que os dois artistas, conscientes da importância dessa “autoria” em puzzle, estimulam pelas respetivas poiéticas, justamente, numa evidente responsabilidade de mediação da legibilidade de representações, ou de experiências, de violência e do trauma. Será por esta via que aquela irrepresentabilidade legível nas ausências, nas lacunas pressentidas, mais do que manchas no papel, ou na tela, passam a elaborações do leitorespectador que Blaufuks e Tavares, conforme já referido, provocam de modo reiterado. Evitar que o homem experiencie, de novo, os tempos “sombrios” será um imperativo para ambos. O primeiro documentário de Daniel Blaufuks, Sob Céus Estranhos. Uma história de Exílio (Under Strange Skies) de 20024, apropria-se do título de um livro de 1962 de Ilse Losa, também ela judia exilada em Portugal. Este trabalho, exibido no Indie em 4

Daniel Blaufuks, ganhou, em 2007, o Prémio “Best Photography Book of The Year” com Sob Céus Estranhos (Under strange skies) no Festival Internacional de Artes Visuais, PhotoEspaña. O filme é de 2002, um documentário de 57 minutos, narrado pelo ator alemão Bruno Ganz, o livro foi editado mais tarde, em 2007 pelas Edições Tinta da China.

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Lisboa, foi inaugurador de um projeto que se tem vindo a consolidar e pode ser entendido, segundo palavras de Daniel Blaufuks, como “uma reflexão que vai aquém da experiência dos refugiados da Europa Central”. Na verdade, nesse trabalho, encontramos plasmado um questionamento bem alargado sobre a verdade da história, da ética e, também, da arte contemporânea. Porém, no final do documentário, ou no livro Álbum (2008), a pretexto de uma fotografia do avô de Blaufuks com os dois netos, o autor – um dos netos - num recorte de enquadramento meta-discursivo, reconstrói, na partilha desse momento privado (tal como noutros), uma definição pessoal e afetiva de passado, conseguida também por via do apontamento literário; Blaufuks reativa um imaginário bem mais alargado, universal mesmo, em que a memória coletiva se alimenta de um fortíssimo poder referencial: Agora estou deste lado do ecrã, revendo todas as fotografias e velhas bobines de 8 mm e vejo todos os que, um a um, foram partindo, levando um pouco de mim para sempre. Estranhamente, também eu, de certa forma, me tornei num exilado. Onde fica a minha casa? Não tenho bem a certeza. Possivelmente debaixo daquelas árvores de que o meu avô tanto gostava.

O que a imagem não diz, di-lo a vocação literária do autor, confidenciando a melancolia de um estado de pertença fraturado. Conforme o sujeito foi sendo deixado para trás (é ele que está “deste lado do ecrã”), há como que a consciência de não ficar inteiro, pois gradualmente sente-se levado - não abandonado! Contudo, o que permanece é uma substância superior ao que “um a um” dele levaram “para sempre”, e eis que a condição de exilado, herança redentora, se transmuta na responsabilidade de perpetuar a memória das memórias do avô. Também os lugares, outrora amados pelo avô (restos indeléveis), podem abrigar as memórias, ou deixar-se habitar por elas. Sugestionados por Heidegger que na conferência “Construir, habitar, pensar” (1997: 125), asseverava que o traço essencial do ser seria “habitar” e que, por isso, os mortais são, e no entendimento de que ao habitar pertence um construir que recebe a sua essência, será, nessa perspetiva, “um enorme ganho se habitar e construir se tornarem dignos de se questionar e, assim, permanecerem dignos de se pensar.” (1997: 140).

É assim que entendida como

conhecimento, a arte em geral, a escrita em particular, encontra na poesia uma casa para o homem “habitar”, i.e., para existir no pensar, circunstância impossível no utilitário universo das imagens e das palavras racionais. Quer a linguagem de Blaufuks, quer a de Página | 5


Tavares, materializam um ideal ontológico de conhecimento. Para Tavares “a linguagem utiliza a ciência para alcançar a ilusão da Verdade” da mesma forma que “a linguagem utiliza a arte para alcançar a ilusão de uma certa Beleza” (2006:43). Importa destacar a aproximação ao conceito wittgensteiniano da linguagem enquanto elo privilegiado na responsabilidade de mover, de (re) posicionar5 o corpo humano no espaço-mundo. Se a condição artística de Blaufuks, como já ficou dito, se socorre da sua autobiografia, mesclando documentos de arquivo, filmes, fotografias - mas também texto -, a responsabilidade ética de “mover”, o seu leitmotiv, quer pessoal, quer artístico, constróise no ato de resgatar do esquecimento. Desta forma, a sombra das árvores (cf. excerto acima transcrito) a que Blaufuks se apega está aquém da procura, ou da representação, de uma verdade coletiva que se quer preservar; surge, sim, a imagem nostálgica de um exilado de terceira geração, comprometido no seu trabalho poético. De tão subjetivo, este registo poderia subentender uma certa manipulação estética, mas também ética, comum em trabalhos de cariz autobiográfico, contudo o espectador-leitor, dispondo de uma profusão de informação identitária e objetiva, compreende, por um lado, a genuinidade do que está latente, isto é, a preservação da memória das ruinas do passado de uma família, e, por outro, tal como num texto lacunar, terá de reelaborar o que, pela ausência ensurdecedora, se sabe ter tido lugar no tempo narrado. Além disso, a voz off do narrador de Sob Céus Estranhos, o próprio Daniel Blaufuks, traz ao documentário alguma linearidade que o fragmentário das fotografias, das imagens e de outras vozes não conseguiriam per se unificar. Nessa tarefa de reconstruir o passado, Blaufuks desnuda o tortuoso processo de procurar sentidos; é exibida a sua mão a segurar as fotografias, ao mesmo tempo que, num tom melancólico, verbaliza a pluralidade de sentimentos e até as omissões de quem não tem memórias próprias; a certa altura Blaufuks confessa que a sua memória dos factos é “Uma memória de uma memória de uma memória: Lembro-me de a minha mãe me contar de como a sua mãe lhe contou uma recordação dos tempos de guerra.” (2002). A esta memória recuperada de uma segunda, ou terceira geração, Margarida Calafate Ribeiro, quando caracteriza a geração dos filhos da Guerra Colonial Portuguesa, classifica-a como uma “pós-memória”, uma memória que surge mais do silêncio que das palavras, mais dos fragmentos do que das narrativas completas, mais de interrogações do que de respostas, a pós-memória configura-se, como uma memória específica (...) 5 A consciência da “posição”, a própria mudança de posição do corpo, para Tavares faz parte do movimento que a leitura deve provocar.

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resumindo uma memória que inaugura uma relação ética com a experiência traumática dos pais e com a sua dor de que se sentem herdeiros e que requer um reconhecimento, primeiro no seio familiar e depois no espaço público. (2010: 1)

Nesta medida, o trabalho de Blaufuks, Toda a Memória do Mundo, ilustra a perspetiva de “resumo” pela frutuosa articulação da memória individual com o reconhecimento coletivo. Diríamos mesmo que essa síntese tem a sua legibilidade em vários aspetos: na singeleza dos materiais escolhidos, na respetiva disposição, ou, até, na segmentação espacial que, pela dimensão reduzida da maioria das áreas em que os materiais se encontram expostos, faz do espaço público MNAC, um lugar íntimo, familiar, propício ao (re)conhecimento. A estratégia blaufukiana da fragmentação, para lá das fotografias, está igualmente presente noutros trabalhos como o livro Terezin

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sobre o qual o autor diz ser, à semelhança do seu livro tutelar , W ou le souvenir d’enfance de Perec, “um aviso sobre o presente”, com a justificação de que, afinal, “as imagens mentem.”. Ainda assim, através da narração do sofrimento e da morte resultantes do Holocausto, já não numa mera perspetiva pessoal, mas em diálogo com Sebald e Perec, a fotografia, que Blaufuks aproxima da literatura (2008: 22), não deixa de encenar - numa atitude de emergência artística, como resposta à “mentira” comportada nas imagens memórias num mundo de ideologia precária, chamando a si a responsabilidade ética de suscitar um humanismo crítico. Para um visitante acidental da exposição, o óbvio seria o tema da Shoah. Ainda assim, o hiato temporal entre o genocídio e o presente teria condições para deixar comprometida a lógica discursiva, numa exposição feita de fotografias, livros, objetos e uma peça fílmica, de quatro horas. A ser um testemunho e uma revisitação consciente do público, o efeito seria de estranheza e, uma vez mais, de vazio; porém, justamente o que não estava lá era um apelo à imaginação, o lugar que precisa de ser habitado. Na verdade, Blaufuks afirma que a fotografia não é nem nunca será toda a memória do mundo, justificando-se a ironia maior do subtítulo da exposição: “parte um”. Contudo, quem quisesse passar além da fragmentação memorialista, teria compreendido a violência que a própria impossibilidade de representar o todo (“Toda a Memória”) impôs ao artista. Para um e para outros o irrepresentável é onde o humano falha.

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Daniel Blaufuks deslocou-se ao campo de concentração de Terezín por ter desconfiado de uma fotografia. "As imagens mentem", diz ele. Por isso, Terezín, livro sob a influência de W. G. Sebald, é um aviso sobre o presente.

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W ou le souvenir d’enfance de Georges Perec (1993) e Austerlitz de W. G. Sebald (2004), referências de Blaufuks, constituíram-se textos e imagens tutelares da montagem de Toda a memória do mundo. Os autores falam das recordações: Perec através de um jogo de palavras; Sebald, em Austerlitz, recorre a um jogo de imagens; Blaufuks, introduz a exposição, através de um jogo de concepção oulipiana com algumas palavras alusivas aos campos de concentração, técnica narrativa que Gonçalo M. Tavares recuperará, anos mais tarde, no romance Uma menina está perdida no seu século à procura do pai. Ainda na continuação dessa proposta lúdica com

letras, pedaços de palavras e imagens

recortadas, é muito clara a aproximação do material exposto àquele que a personagem Jacques Austerlitz, sempre na tentativa de encontrar sentido na sua própria história, ele mesmo, reuniu: histórias, fotos, desenhos, mapas, notícias e lugares. Ora, o resultado desta montagem de Blaufuks, pulverizada por referentes culturais e pessoais, pela vontade de representação e pela elaboração de uma poética que oscila entre a verdade e fragmentos da memória, vem, de alguma maneira, responder à controvérsia entre Didi-Huberman e o grupo de Claude Lanzmann. Blaufuks deixa claro que a fotografia, na sua função de testemunho, não deixa de espelhar a imperfeição enquanto meio para representar o horror. Claude Lanzmann considerou que o horror da Shoa era visualmente inexpressável, a sua reprodução no papel, ou no ecrã, tornar-se-ia o suporte de um prazer perverso. George Didi-Huberman, por outro lado, reivindica uma leitura fenomenológica a partir do exemplo das conhecidas fotografias tiradas por três elementos do SonderKommando de Auschwitz, interpretando o facto como um ato desesperado de resistência ao esquecimento. Para Didi-Huberman não há, então, memória sem imagens ainda que elas não tragam um conhecimento total. Portanto, na origem da controvérsia de Huberman e Lazmann esteve a oposição entre imagens fotográficas e testemunhos narrados, i. e., entre imagem e palavra; e Blaufuks, como se desse um parecer último, através da organização e categorização dos materiais nesta exposição, mostra que para recordar também é preciso imaginar, que a imagem presente e/ou a imagem ausente subsidiam esse mesmo propósito. Na verdade, Didi-Huberman faz uma reflexão a partir das quatro fotografias do SonderKommando de Auschwitz para concluir que Há duas formas de «dar desatenção», se assim se pode dizer, a tais imagens: a primeira consiste em hipertrofiá-las, em querer ver tudo nelas. Em suma, em transformá-las em ícones do horror. (…) A outra Página | 8


forma consiste em reduzir, em insensibilizar a imagem. A não ver nela mais do que um documento do horror. (2012: 53- 55)

O “ver”, ou o dever ético, que possibilita “dar atenção”, depende, num primeiro patamar, naturalmente, da postura intelectual e emocional, mas também de contextos políticos, de momentos de maior ou menor crise; todavia, como já foi dito, a organização e apresentação dos fragmentos (oficiais ou pessoais) dessas ruínas de que Blaufuks dispôs, foram determinantes para a possibilidade de construção, de uma consciência coletiva. Nesta medida, Blaufuks nem menoriza a importância das imagens, não as transformando em ícones, nem as apresenta como um documento que as tornaria impessoais, por via da sua universalização. Já sobre a escrita de Gonçalo M. Tavares, que o autor pretende que seja um exercício para treinar os músculos, pode ser estabelecido um vínculo metodológico com Blaufuks, pois, nessa medida, aliás, nesse treino, a estruturação imagética, as ligações serão também executadas pelo leitor que, para lá da resposta afetiva imediata, tateia e explora fronteiras logicistas e cerebrais, sempre aquém de uma literatura de sentidos imediatos. Mas é na quase obsessão de Tavares pelo movimento e pelas suas consequências, que a violência das próprias imagens instaura a perceção ontológica da condição precária do homem contemporâneo. Sabendo que o problema do movimento já surgira como um dos principais desafios do pensamento aristotélico, se consideradas as noções de ato e potência na origem da filosofia do movimento, sendo o movimento a relação do que está em potência, isto é, tudo o que se move será movido por alguma coisa, é neste contexto que o recurso às tabelas literárias em alguns dos livros se revela paradigma dessa vontade extrema de provocar o movimento da mente, mas também do corpo. A pretexto da frase de Maria Gabriela Llansol7 «O esquecimento ativo é uma das condições do movimento», Tavares escreve que “(…) O movimento é um ato animalesco e intelectual. Uma disposição muscular do raciocínio. Como se, de facto, o raciocínio tivesse células;” (Tavares, 2009: 13). A ideia de movimento e a própria palavra “acto”, cujo lado físico é reverberado pela condição animalesca (do ato) e pelas células, regulam a relação corpo-espaço-tempo, na convicção de que o movimento é a causa da transformação, i.e., as células revelam-se força geradora do pensamento. Assim, “disposição muscular do raciocínio”, no sentido de repetição do movimento como reação,

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Breves Notas sobre as ligações parte do Caderno cuja citação será retomada pelo autor na segunda parte – “Diálogo (2)”.

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faz com que a que leitura reflita, ou desafie, a “expectativa de encontrar”. Num dos cadernos da série Enciclopédia, Tavares cita uma frase de Llansol («movidos pela expectativa de encontrar») a partir da qual provoca a leitura invulgar de uma tabela literária. Esta suspensão meta discursiva vai para além da estética da receção, pois no conjunto da obra de Tavares, o movimento, nas suas formas de rapidez e lentidão, surge associado ao medo. No romance Aprender a Rezar na Era da Técnica, o narrador centra o discurso do medo na emblemática frase «o medo é o mistério que a velocidade esconde» (Tavares, 2007: 224). A reação das personagens descobre o medo animal e instintivo que as faz agir sem qualquer racionalidade. Por este motivo, O que espantava mais Buchmann era o modo como o medo e a velocidade, a determinada altura se misturavam, deixando de ser possível apontar alternadamente para um e para outro. Estava-se já perante uma nova substância – como o hidrogénio na molécula de água – substância (medo/ velocidade) mais explosiva que dinamite. (...) Seremos tanto mais fortes, (...) quanto mais conseguirmos infiltrar na população essa mistura: movimento rápido e temor. Não os deixar parar para que não deixem de ter medo. Não deixar de os amedrontar para que não parem. (2007: 228)

Para a personagem, o medo desdobra-se em dois, o primeiro cuja provocação

consiste em arrancar da imobilidade, e um segundo medo, mais poderoso, aquele que perpetuaria o movimento humano; o primeiro medo o que impulsiona “dez mil habitantes de uma determinada etnia” a fugiram das suas terras perante o perigo iminente, o segundo medo, mais forte, mantê-los-ia em contínuo movimento sem desejo, sequer, de descansar (2007: 228-229). Ainda no mesmo romance, numa outra associação, tão lógica quanto metafórica, a mesma personagem evoca a imagem da lebre que, por instinto, foge em direção oposta ao caçador num primeiro momento (correspondente ao primeiro medo) e, de seguida, de forma desorientada (o segundo medo), anda em movimentos circulares, para ir sucumbir “estupidamente” junto do caçador (2007:231). O medo do homem, diz Ernest Jünger (1995: 56)), será sempre o medo da morte, o medo do aniquilamento. A morte aqui não restrita à orgânica, mas aquela que transforma o ser em morto-vivo, no sentido em que fica indiferente à violência da sujeição e é nessa contingência que encontramos as personagens dos romances de Gonçalo M. Tavares. Contudo, é a morte, com níveis diferentes de importância no plano da ação, que

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galvaniza, a reflexão sobre a vida. Deste modo, os romances da tetralogia O Reino8, Os velhos também querem viver (2014) e Uma menina está perdida no seu século à procura do pai (2014), veiculam o projeto vital no cerne do pensamento humano desde tempos imemoriais: a imortalidade. Refletir sobre a morte resulta numa consciência vívida da mortalidade. A sua representação, nas mais variadas formas, descobre-a como uma experiência de vida por impossibilidade de conhecer o seu negativo, a morte. Somos desde que nascemos espectadores atentos do nosso projeto; afinal é desse modo que vivemos a nossa morte: como espectadores dela e não como participantes. Epicuro vai ainda mais longe quando diz a Meneceu: “A morte, (…), não é nada, nem para os vivos nem para os mortos, já que para aqueles ela não existe, ao passo que estes não estão mais aqui.” (Epicuro, 2002: 29). Pensar a morte, um exercício metafórico, destituído de racionalidade, não é mais do que a forma artística e epistemológica de pensar a vida, essa sim está totalmente diante de nós. Com todo o discernimento, Séneca vaticina que grande parte da morte pertence ao passado, na medida em que toda a nossa vida passada já é do domínio da própria morte (2014, p. 1). Ora, quando na literatura tavariana existe uma focalização no medo (da morte) que tolhe e desorienta (mas que mantém o movimento), a negritude da condição humana, a contingência do ser num tempo de racionalidade, inscritas numa análise menos profunda, transformar-se-iam numa visão redutoramente apocalíptica do mundo. Porém, a insistência, diríamos programática, de Gonçalo M. Tavares, numa escrita (e numa leitura) que põe em jogo o corpo, que perturba e desinstala, essa reiteração mais do que meramente heurística, instiga a atitude empática, ou seja, aponta caminhos de existência. No romance de Tavares, Uma menina está perdida no seu século à procura do pai (2014), a diáspora da personagem central, Hanna, uma jovem de catorze anos portadora de trissomia 21, centra-se na procura do pai. O movimento fulcral, a viagem, da personagem Austerlitz (de Sebald), do narrador autobiográfico Perec (W) e de Hanna, não por acaso, é feito de comboio. Para Praga, Jacques Austerlitz, ou para Berlim, Hanna. Perec procura a mãe, e Hanna, talvez pelo efeito do complexo edipiano, procura o pai. A mãe de Perec morreu, não sabemos se o pai de Hanna também, mas sabemos que ele se revela pela ausência de uma figura tutelar, primordial; posição que Marius ameniza ao ajudar Hanna na sua demanda. Em relação a outros romances de Sebald, Susan Sontag,

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Um Homem: Klaus Klump (2003), A máquina de Joseph Walser (2004), Jerusalém (2004) e Aprender a Rezar na Era da Técnica (2007).

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no ensaio “Uma mente de luto”, (2011) ressalva que os narradores desses livros viajam “em certas missões de investigação, desencadeadas por uma lembrança ou por notícias de um mundo irremediavelmente perdido”. Não raro, diz ainda Sontag, “é o regresso a um local com o intuito de tratar de um negócio inacabado, reconstituir uma memória, repetir ou completar uma experiência”. Para além deste evento, a viagem, omnipresença nestas obras, e que as personagens de Sebald, de Perec e de Tavares realizam na procura de uma identidade, ou apenas da sua história, merece aqui destaque a viagem que o próprio Blaufuks realizou a Terezin,

aproximando-o de referentes antes virtuais. Existe a

possibilidade de o afastamento das páginas dos seus livros de referência (das ilustrações de salas, dos arquivos, de espaços, associados à história) para fotografar lugares que apenas vira fotografados, lhe tivesse restituído fragmentos que lhe facilitem, artisticamente, um habitar “digno de se pensar”. Quanto a Hanna, cujo discurso é efetivamente o de uma doente mental, também a sua viagem precisa de ajuda. Será na consciência de Marius, também ele narradorviajante, que se concretiza o discurso do testemunho, ou da memória de Hanna, que apenas existe numa caixa deixada pelo pai, um catálogo de fichas com instruções. Quando associamos as informações que Hanna, atrofiada pela doença, sem a consciência de uma identidade, transporta, às recordações de infância de Perec (W), a situação é comum: as memórias encontram-se sob a forma de fragmentos. Revela-se, ainda, significativo acrescentar que também Jacques Austerlitz começa a sua narrativa autobiográfica da seguinte forma: “Eu nunca soube quem sou na verdade”. António Sousa Ribeiro (2013) associa o entusiasmo estético da literatura pela destruição aos pressupostos do romantismo, em particular a Schlegel, (1767-1845). Ressalva o investigador que “a violência, enquanto forma de mediação entre o sujeito e o mundo, se inscreve no próprio cerne da teoria e da prática poéticas do escritor da modernidade”. Já no campo da fotografia, Susan Sontag (2015) associa o gosto estético pela destruição à época da própria invenção da máquina fotográfica, em 1839. A coincidência temporal merece que nos detenhamos nas narrativas literárias e visuais de Blaufuks e Tavares, respetivamente. Ribeiro reforça a ideia de que o fascínio estético pelo gesto da destruição tem uma extensa “linha de genealogia” (2013: 20), referindo o exemplo de A colónia Penal de Kafka, mas é à experiência do Holocausto que atribui o questionamento dos “limites da representação.” (2013: p. 24). Diz Ribeiro que

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o sublime do campo de extermínio é de uma ordem que, longe de suscitar a afirmação da superioridade moral de uma ideia de humanidade, compromete, pelo contrário, em definitivo essa mesma ideia e exige o desenvolvimento de uma ética da representação capazes de fazer justiça ao sofrimento concreto de seres humanos concretos. (2013:25)

A questão, anteriormente referida, que se tem colocado na era pós-Holocausto, foi a de a representação da violência se inscrever, ou não, dentro de princípios considerados éticos, ou, pelo menos, reveladores de respeito pelo representado e não geradores de mais desumanidade, ainda que num plano meta discursivo. Ribeiro concluirá que “quanto mais extrema a violência, mais problemático se torna trazê-la ao plano do discurso, ou seja, é no sentido de que não podendo a verdadeira testemunha - “aquela que sondou os campos até ao fundo” - falar, a experiência dos campos de concentração é literalmente “intraduzível” (2013: 25-26). Jorge Semprún, em entrevista sobre o seu livro, L’écriture ou la vie, assim o justifica : « En lisant "l’écriture ou la vie ", j'ai perçu intensément le silence des déportés à leur retour, leur impossibilité à dire "cette mort vécue"». A morte vivida, aquela que silencia obrigatoriamente os seus sobreviventes, não deixa que o discurso do testemunho tenha uma função diretamente referencial, é assim que para Ribeiro apenas o discurso literário concretiza a representação da experiência visível “(…) a possibilidade do testemunho reside na dimensão literária, isto é, só a transposição para um outro patamar de significação permite fazer justiça à densidade da violenta verdade dos campos de concentração e de extermínio.” (idem, ibidem). Podemos, mesmo, afirmar que grande parte da reflexão contemporânea ocidental é filha da Shoah. Não apenas na literatura, mas, de uma maneira geral, as reflexões sobre a Shoah são atravessadas, também, pela interrogação sobre a (im)possibilidade da palavra. Theodor Adorno, na emblemática indignação sobre este constrangimento, chega, mesmo, a pôr em causa a arte, a escrita da poesia depois de Auschwitz: como dizer o inominável? Porém, lembramos que, justamente Adorno, em relação à poesia de Celan, terá reformulado, o seu pensamento. Maria João Cantinho (2005), em artigo publicado na Revista Espéculo (Universidade Complutense de Madrid), esclarece que Peter Szondi, amigo de Paul Celan, revelou que Adorno acreditava que Celan conseguira destruir a fatalidade do seu enunciado, tencionando, até ao final da sua vida, retroceder no seu veredicto. Viu-se, assim, obrigado a reformulá-lo, dizendo que “os autênticos artistas do presente são aqueles em cujas obras se repercute o extremo horror.” Segundo Cantinho,

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Contornando a questão e abrindo a possibilidade de uma estética da póscatástrofe, Adorno parece não ter negado, mas antes superado o que dissera antes, levantando o interdito que lançara sobre a arte e a poesia. Adorno compreendeu, então, claramente que o sofrimento não suporta o esquecimento. (Ibidem).

Quem escreve sobre a violência, ou a fotografa, de alguma maneira provoca um olhar predador, sendo esse olhar tanto mais ávido e inconsciente, quanto mais elevado for o volume de representações da violência. Como educar para uma leitura ética da história que em primeira análise não se quer esquecida, sabendo que é a arte que tem esse papel nas suas mãos? De que modo podem a literatura e a fotografia ocupar o lugar de testemunhos sem destruição do valor da dignidade humana? Sabemos que a expressão inevitável da agressão humana é a guerra, não o campo de batalha, mas os danos colaterais que, mais do que os mortos e estropiados, deixa o humano na situação de contingência, no medo que animaliza. Paradoxalmente, a guerra, com os seus conflitos religiosos, étnicos ou civis, é uma construção humana, consequência atual de estratégias tão perversas quanto racionais e avançadas, bem como de uma organização social e global restrita ao poder económico. Na verdade, a representação do medo que, por um lado, tolhe a dignidade e, por outro, movimenta os seres impelindo-os para uma diáspora de sobrevivência, precisa, lamentavelmente hoje mais do que nunca, de se valer de testemunhos recentes da história da barbárie.

Quando falham os mecanismos sociais e políticos num sistema de

mercantilização humana, sem margem para a empatia, resta a intervenção da arte, do seu património humanizante, criador da consciência do outro.

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