Prolegómenos para uma toponímia performativa

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Prolegómenos para uma toponímia performativa na poética de Gonçalo M. Tavares M. Graça Santos Universidade de Évora (CEL) A ciência das coisas substituída pela ciência dos nomes. Mas o primeiro dia: na véspera todos os homens tocavam no Fogo; sem intermediários. Se desconheço a palavra, investigo a carne das coisas. Agora os dias são claros de mais: tanta literatura!, E a luz que sai do cérebro tapou o céu. Evito levantar a cabeça: para não ser degolado. Gonçalo M. Tavares, 1, Relógio D’Água, Lisboa, 2004, p. 69.

(I) Desencaixe (Disembedding) “Um homem cruzou-se com um animal e leu-lhe três fábulas para o ensinar. (…)”1

Um nome - Gonçalo M. Tavares – para um mapeamento corpóreo em que poesia, prosa e dramaturgia dão espaço a um coreógrafo e performer na pulverização de linguagens múltiplas. Nesta moldura, procurarei sustentar que estamos perante um escritor performativo que, heuristicamente, encontra no objeto literário, a possibilidade de, pela originalidade e pela repetição, cumprir um projeto estético e político: metabolizar a sua convicção em criação. Será também tida em conta a dimensão biológica, incontornável nesta escrita, mais sustentada na participação do leitor do que propriamente na compreensão. Isto é, levantadas as questões de um corpo, ora individual, ora social, ora estético, ora ético, a urgência em levar o leitor a “mudar de posição”2 é de tal forma intensa que torna indissociável a trilogia escritor/performer/leitor. Ligar (a) técnica à expressividade desse(s) corpo(s), é criar, escrever, perturbar

pelo corpo (e com o corpo) um

estilhaçamento estético e ideológico na deriva do humano contemporâneo. Herdeiro, ou simplesmente leitor, de Helder, de Gusmão e de Carlos de Oliveira, Gonçalo M. Tavares vem resgatar, num estilo autónomo, o que estes poetas já haviam espelhado na sua criação. Neste sentido, Tavares começa por racionalizar, interpelando 1

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TAVARES, Gonçalo M., Biblioteca. Lisboa: Campo das Letras, 2004, p. 97. Expressão frequentemente usada nos livros e nas entrevistas de Gonçalo M. Tavares.

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(per) formativamente, na sua poética, o mundo, não mais adstrito às inquietações do homem limitado por fronteiras geográficas, mas o Mundo em que a crise do pensamento se instalou, para nele fixar as coordenadas ontológicas3 que adotará em todas as séries4. Para além de uma arquitetura literária circular, entra em ação uma (im)posição consciente e peremptória, que situa, per se, uma voz autoral autoritária e que, ao determinar um movimento dentro dessa cartografia, convocaria o leitor a mapear – também ele - o pensamento. Abreviando, esta geografia do humano (topo)nominaliza o(s) lugar(es) num espécie de caleidoscópio feito de pontos de encontro do eu consigo e do eu com os outros. Importa então problematizar uma abertura da paisagem do humano, enquanto lugar de recenseamento da palavra e da poiésis de Tavares. No espectro de um espaço ideológico, em que o desconforto do homem se faz pensamento, emerge, da escrita tavariana, um estado de urgência como se, no limiar do agora, a possibilidade de encontrar, ou mesmo de desvelar, um caminho, um norte, para o ser, se estivesse a exaurir. Nesse movimento de quase suspensão do humano, registo que uma certa independência do leitor se acha em jogo, correndo, também ela, o risco de se esgotar. Pese embora o apreço de Tavares pela tematização do poder na lógica dominação/ subjugação5, o escritor acaba exercendo o poder por via da palavra, na irrefutável eficácia de uma linguagem desambiguada6 e incisiva. Acresce a reiteração de signos e de imagens contaminados pelo pensamento lógico de um sujeito - o enunciador lírico, o narrador ou uma personagem – que, investido de um exercício racional de rigor vocabular, por aproximação (zoom) e reconhecimento, dominará o pensamento do leitor, emudecendo-o, paradoxalmente. “por exemplo, os pontos cardeais baralham um macaco. Ele olha para o norte para o sul desenhados e pintados no chão e não percebe nada e até fica com a cabeça doida. Começa a falar. Diz palavras humanas porque se sente perdido no meio dos pontos cardeais desenhados no solo. Um macaco que fala porque está perdido é um macaco que deve ser abatido e é isso que um funcionário do zoológico faz. Tem uma carabina com uma bala que faz dormir e alo está: o tiro e o macaco cala-se, deixa de falar. Quando acordar, depois na sua cela, passadas

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O Mal, o Poder, o Corpo, a Técnica, A Crença, o Medo, etc. São 14 as séries em que Gonçalo M. Tavares distribui os 33 livros até hoje publicados: O Reino, Canções, Epopeia, Poesia, Enciclopédia, Histórias, Atlas, Arquivos, Investigações, Cidades, Bloom Books, O Bairro, Short Movies e Teatro. 5 Na perspetiva de Michel Foucault sobretudo em Vigiar e Punir e Microfísica do Poder. 6 Utilização de nomes concretos e de verbos em detrimento da adjetivação; frases curtas; silogismos; aforismos... 4

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muitas horas, o macaco não se lembrará de nada e, claro, não conseguirá dizer uma palavra.”7 (TAVARES, 2013a, p.57)

Igualmente paradoxal, a convocação da cognoscibilidade a par da provocação de um sentimento de revolta, todavia mudas e ensurdecedoras; logo na interpelação a um “tu” subentendido no início do fragmento (vou-te provar que tenho a razão) e no advérbio de afirmação “claro” (corroborando a lógica do que digo, sem emoção, sem ponto de exclamação por ser um facto irrefutável), instigadora de aquiescência face à violência, enfim, inviabilizadora da orientação e, ao mesmo tempo, castradora do pensamento expresso via linguagem. O leitor/ interlocutor, face à heroicidade trágica do macaco, será impelido para um processo de reconhecimento e de catarse, da qual se excluí o sentido aristotélico de purificação para dar lugar a um efeito terapêutico, no espírito do legado freudiano. Atingido pelo tiro, o macaco fica curado, incluído na metáfora, o leitor emudecerá. Do fragmento, saliento, ainda, a brutalidade da indigência no presente (ou da contingência no futuro), o risível e ao mesmo tempo a concentração de normalidade para que contribuem um léxico comum, simples, e o ritmo, quer das conjunções copulativas, quer do compasso verbal ternário - i) “olha” /“não percebe”/ “fica com a cabeça doida”; ii) “começa a falar”/ “cala-se”/ “deixa de falar”; iii) “acorda”/ “não se lembrará”/ “não conseguirá dizer” - acentuando a concretização do silêncio imposto pela anestesia que, apesar de não provocar a morte, incapacita a linguagem do humano e remete para a construção da literalidade do dizível “animalesco”. Como se as palavras, perdendo o seu referente primordial, na circunstância de não mais remeterem para o ser mas para si próprias, instaurassem na poética de Tavares, também elas, barreiras ontológicas da linguagem, enquanto (im)possibilidade de abertura do eu ao outro. Este circunstancialismo, visível na criação de imagens intensas, perturbadoras umas, violentas outras, em forma de fotogramas, flashes, movimentos, takes, desmontagens, poderá ser entendido como a vontade liminar do escritor de “fazer” do leitor uma personagem intraficcional. No limite, Tavares, num torção linguístico, aproxima a forma da letra (grafia) da forma do corpo em movimento, leia-se no poema “Dansa”: Tem S a palavra,/ pois certas curvas do mundo/exigem alterações de grafia./ O traço imprevisto obriga a parar a meio;/ E à paragem insólita chamarás insólito movimento./ E ficarás contente. (TAVARES, 2001, p. 111)

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Título ”um macaco um funcionário o zoológico”; fragmento transcrito na íntegra.

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Respigo o fragmento 206 de Humano, Demasiado Humano, pela similitude desta relação de proximidade entre linguagem, movimento e leitor: “ Há escritores que, por apresentarem o impossível como possível e falarem do que é moral e genial como se ambas as coisas fossem apenas um capricho, um gosto, provocam um sentimento de atrevida liberdade, como se a pessoa se pusesse em bicos de pés e, por íntima alegria, tivesse absolutamente que dançar.” (NIETZSCHE, 1997, p. 186)

Apesar de separados por um intervalo de mais de um século, Tavares e Nietzsche, nos dois fragmentos, concretizam claramente na linguagem o deslocamento de um espaço (realidade) para outro (ficcional): ponto de encontro do escritor com o leitor (Tavares: (subentendido: tu) “ficarás contente” e Nietzsche: (“a pessoa”) “íntima alegria” ). Em ambos, a partilha nessa “coabitação” reforçará a plenitude presente num ato de (co)criação, salvaguardando um movimento de concretização, pois, corpo (físico e ontológico), linguagem (silêncio incluído) e espaço (em que o tempo de encontro se realiza) convergem para uma arte coreográfica de incorporação característica

da

performance art . Importa salientar aqui a etimologia do verbo performare8 para concluir que as ações de criar/ de representar/ de guiar presumem a participação do espetador/leitor que Tavares, a todo o momento, perquire, seja no plano (1) da investigação que não esconde, seja (2) no experimentalismo da forma, seja, ainda, (3) na cartografia do pensamento que provoca. Isto é, as etapas de pré-produção, produção e ação (/interação) sugeridas nas justificações que se seguem: (1) Em entrevista a Carlos Vaz Marques, Gonçalo M. Tavares, à pergunta “Cada livro oferece um tipo de resistência diferente?”, responde que aquilo que lhe interessa “é tentar alcançar cantinhos do mundo que só se conseguem perceber com formas de escrever diferentes. (…) o obstáculo é conseguir passar ao lado daquilo que já conheço para ir em direcção ao que é novo para mim. Por isso uso muito a palavra investigação.”9;

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in Dicionário de Latim: palavra formada pelo prefixo per (por meio de) e pelo verbo transitivo formo,as,are,avi, atum cujo significado pode ser 1. “dar forma a, modelar, formar, figurar, representar”. // 2. Formar (espiritualmente) dar esta ou aquela disposição aos espíritos, ensinar, instruir. //3. Produzir, criar, fazer // 4. Arranjar, organizar, regular. // 5. Conceber, imaginar. (sublinhado meu) 9 in Revista Letras, n.º 97, dezembro de 2010.

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(2) Roselee Goldberg, fazendo a história da arte performativa, menciona a dificuldade de uma definição exata que “transcenda a simples afirmação de que se trata de uma arte feita ao vivo pelos artistas.” (GOLDBERG, 2007, p. 10) acrescentando que “Qualquer definição mais rígida negaria de imediato a própria possibilidade de performance, pois os seus praticantes usam livremente quaisquer disciplinas e quaisquer meios como material – literatura, poesia, teatro, música, dança, arquitectura e pintura, assim como vídeo, película, slides e narrações, utilizando-os nas mais diversas combinações.” (Idem, ibidem, p.10)

(3) Jorge Glusber, em A Arte da Performance, recorre às noções de Austin10 de atos locutórios, ilocutórios e perlocutórios11, para enquadrar a performance no dinamismo corporal que a reveste. Não sem razão, Gonçalo M. Tavares, nos Cursos de Cultura e Pensamento Contemporâneo que orienta, destaca frequentemente, os trabalhos de Marina Abramovic12 o que não deixa de ser um referencial importante na sua aproximação à arte performativa. Além de Marina Abramovic, Roselee Goldberg enquadra outros performers como Hermann Nitsch13, Stuart Brisley14, Gina Pane15 e Otto Mühl16 na categoria de “performers ritualistas” (GOLDBERG, 2007, pp. 207-210). Na estrutura e na própria construção ontológica da escrita tavariana, há uma eloquência que se aproxima da caracterização que Goldberg faz destes trabalhos ritualísticos, já que se revestem de “uma natureza muito mais emotiva e expressionista” do que outros. (Idem, ibidem) Se bem que cada um dos artistas citados trabalhe com rituais sociais e religiosos portadores de mensagens diferenciadas, únicas, têm todavia em comum a necessidade de revelar (des-velar17) e de despertar a angústia de ser. Ao colocarem o(s) 10

John Langshaw Austin (1911-1960), professor (Universidade de Oxford) e filósofo da linguagem, na linha da Filosofia Analítica; deu importante contributo para a teoria dos atos do discurso. 11 Locutórios - atos que delimitam uma atividade corporal com o objetivo de produzir um enunciado; ilocutórios - atos que determinam uma atividade corporal com o objetivo de produzir sons e os correlatos fisiológicos; a mensagem e a sua relação com o receptor recebem o nome de ato ilocutório; perlocutórios - referem-se aos efeitos posteriores que os discursos sociais produzem sobre os seus destinatários. 12 Expõe a dor ritualizada do auto-abuso, sobretudo na forma como o exibem os pacientes com perturbações psicológicas, e a desconexão que se verifica entre o corpo e o eu. 13 Trabalhos que envolvem rituais e sangue, descritos como “uma forma estética de oração”. 14 Responde ao que considera o estado de anestesia e alienação da sociedade. 15 Acreditava que a dor ritualizada tinha um efeito purificador, auto-infligia-se com cortes nas mãos, nas costas e no rosto; Pane conseguiu -nas suas próprias palavras – “levar o público a entender perfeitamente que o meu corpo é o meu material artístico”. 16 Representante do”acionismo” vienense que representava “não apenas uma forma de arte, mas, acima de tudo, uma atitude existencial”, com interesse pela psicologia e pela arte como terapia. 17 Na perspectiva heideggeriana, o des-velar ocorre a partir do velar; o desvelamento é o fatum da liberdade que o homem possui.

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corpo(s) em situação de contingência e de violência, a ação destes artistas experimenta a exploração do corpo como o único instrumento que aqui e agora pode dar voz à problemática existência do que existe para lá dele. Também uma certa convicção expressionista, latente na insatisfação perante a alienação e o tédio do homem hodierno, produz no todo que são as 14 séries, esta materialidade evanescente que a linguagem procura captar. A este propósito, Tavares recupera no Atlas do Corpo e da Imaginação, do romance A Lição de Alemão, de Siegfried Lenz, um momento “fulcral” da narrativa em que, depois de regressar da guerra, deficiente e sem pernas, um homem e a sua mulher são observados por dois outros homens que comentam a respetiva mudez com as seguintes palavras: “«não dizem uma palavra um ao outro». «Porquê?», pergunta um. Porque vêem «o suficiente», responde o outro. ” e acrescenta Tavares: “Vêem o suficiente, para quê falar? Como se a brutal modificação do corpo constituísse um insubstituível discurso.” (TAVARES, 2013, p. 99). Enquanto desconstrução, esta imagem revela-se nitidamente performativa, pois a linguagem, a acontecer, caracterizarse-ia pela sua perda de sentido. Coloco a questão: Tavares encena na sua obra uma construção performativa no ato de fazer participar o leitor na sequela do processo trágico, como atrás evidenciei? Ou afinal a repetição epistemológica e nominalizadora é de tal modo excessiva e transversal em todas as séries que enforma a sua poética numa redoma espiralada de conceitos, em jeito de programa ético, do qual a sua poesia, a sua prosa, a sua dramaturgia, excluem qualquer ação da órbita ontológica? (II) Torções “(…) Mais tarde um animal cruzou-se com um homem e deu-lhe três dentadas para o ensinar. (…)”18 A exposição pública19 de Gonçalo M. Tavares permite que estética e filosoficamente, o seu fazer literário e o seu pensamento possam ser amplamente

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TAVARES, Gonçalo M., Biblioteca. Lisboa: Campo das Letras, 2004, p. 97. Da sua agenda constam entrevistas frequentes e participações regulares em eventos literários para além de cursos que orienta sobre Pensamento Contemporâneo e outras intervenções com projeção no espaço mediático. 19

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conhecidos. Pedro Mexia20, um dia, disse que “Entrevistar Gonçalo M. Tavares era muito parecido com ler Gonçalo M. Tavares: já sabemos que não vai haver espaço para trivialidades, que tudo será questão de energia e pensamento.”21 Na realidade, Tavares é a arte viva: a coerência é quase obstinada, os silogismos tão racionalmente incontestáveis e a assertividade com que se pronuncia sobre o comportamento do humano contemporâneo são traços que correspondem à depuração das suas ideias e das suas palavras levadas à essência, ao “osso” do pensamento, fazendo da criação uma alternativa ética à fragilizada e angustiada condição humana. Neste mesmo sentido, Agamben distinguira, em O homem sem conteúdo, poiésis de praxis, recuperando dos gregos a essência da primeira que residia “na produção da verdade e da abertura, que resulta dela, de um mundo para a existência e a ação do homem.” (AGAMBEN, 2012, p. 122) Ora, justamente, o último livro de Gonçalo M. Tavares22 vem revelar-se um manual de reflexão filosófica. É sobretudo nele que corpo, logos e pensamento convergem na linguagem, num procedimento de retorno epistemológico transversal a todos os cadernos

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do autor. No Atlas reúnem-se a conceptualização da poética do

pensamento e a corporeidade do pensamento da poética dos 32 cadernos anteriores. “O organismo é feito para a palavra, esse organismo a que damos o nome de Homem; como se todos os órgãos trabalhassem, de facto em silêncio, internamente, para culminar na possibilidade de frase. Os órgãos existem para o Homem poder falar; todos eles, até os que aparentemente nada têm a ver com isso – o fígado, os rins, etc.” (TAVARES, 2013b, p. 178)

A arquitetura literária circular, referida inicialmente, vê-se assim reforçada quando ainda no seu primeiro livro, no fragmento 91, Tavares, ao apresentar o movimento e a sua suspensão inscritos na esfera do nascimento (“Milagre”) do corpo para a dança, que lhe sendo anterior o ressuscitaria, antecipasse o regressar do corpo à linguagem, não à verbal, mas à linguagem visual: “(O milagre não é o Ruído, é o SILÊNCIO ASSUSTADO, é o enorme Ruído Suspenso; é a enorme Suspensão do ruído enorme.)” (TAVARES, 2001, pp. 110-111). O gesto visual que aqui a dança propõe é alargado ao nível sinestésico, e os órgãos, que constituem a linguagem totalizante desse corpo em ação, verbalizam o nascimento do sentido. Na perspetiva de José Gil “Dançar é situar-se à partida no plano dos acontecimentos no espaço, esses micro-devires (…) 20

Crítico e poeta português. In revista Ípsilon, 29 de outubro de 2010. 22 Atlas do Corpo e da Imaginação. 23 Os livros são designados pelo autor como “cadernos” cronologicamente numerados (de 1 a 33). 21

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que produzem o «esplendor do sentido»” (GIL, 2001, p. 249) O efeito totalizante do movimento é alargado ao que Gil chama espaços «impossíveis» (Idem, ibidem) mas nos quais o bailarino está condenado a «elevar-se» (Idem, ibidem), isto é a “dançar imediatamente num plano que o afasta radicalmente do trivial (do sentido da dóxa)” (Idem, ibid.), mesmo as “coreografias ou performances que quiseram introduzir o ínfimo e o banal quotidiano na dança (…) puderam escapar à impressão de que o movimento dançado «elevava»” (Idem, ibid.). Gil refere ainda a existência de uma zona transcendental, como ele mesmo diz, “carregada de energia”, em que bailarino e espetador se encontram no “sentido” que aí se origina. Gonçalo M. Tavares deixa, então, ao leitor um espaço de participação possível resultado do seu idealismo ético-político e de uma crença wittgensteiniana na linguagem enquanto elo privilegiado na responsabilidade de mover, de (re) posicionar24 o corpo humano no espaço-mundo em consonância com uma filosofia existencialista que remete, por sua vez, para o Dasein de Heiddeger entendido como abertura, Erschlossenheit.25 O desvelamento da essência do Ser e o ser do homem são privilégio desse espaço em que “a linguagem é a casa do ser” (HEIDEGGER, 1997, p. 165). No pensamento do filósofo alemão, que recupera, para título da sua conferência, uma parte de um verso de Hölderlin, “…poeticamente o homem habita…”, a poesia possibilita ao homem “habitar” na medida em que “é a poesia que permite ao habitar ser um habitar. Poesia é deixar habitar, em sentido próprio”, pois encontramos habitação “mediante um construir” e destaca que a poesia “Entendida como deixar-habitar é um construir.” (Idem, p. 167). Continuando a análise do poema de Hölderlin, Heidegger refere que as palavras “esta terra” que se seguem no verso do poeta

protegem o “poético”

(“poeticamente”) de interpretações fantasiosas, remetendo “esta terra” para “o vigor essencial da poesia (…) É a poesia que traz o homem para a terra, para ela, e assim o traz para um habitar.” (Idem, p. 169). Conclui-se que o habitar não tem, de forma alguma, carácter utilitário, ora essa função também se encontra excluída da póiesis de Tavares, em que o poeta habita no que constrói, no limite, no que pensa, leia-se o poema “Arquitecto”: “Depois da arquitectura/ deslocou-se para o invulgar:/ fundou um

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A consciência da “posição”, a própria mudança de posição do corpo, para Tavares faz parte do movimento que a leitura deve provocar. 25 . O Dasein não habita o espaço, ele espacializa: abre o espaço que ocupa como ser no mundo.

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poema.” (TAVARES, 2004, p. 82). É desfeita, justamente, a funcionalidade da arquitetura do habitar e Heidegger deixaria este aspeto claro numa outra conferência:26 Habitar é, porém, o traço essencial do ser de acordo com o qual os mortais são. Quem sabe se nessa tentativa de concentrar o pensamento no que significa habitar e construir torne-se mais claro que ao habitar pertence um construir e que dele recebe a sua essência. Já é um enorme ganho se habitar e construir tornarem-se dignos de se questionar e, assim, permanecerem dignos de se pensar. (HEIDEGGER, 1997, p. 140)

A escrita, como forma de conhecimento, encontra na poesia uma casa para o homem “habitar”, não no sentido de residir, mas de existir, o que se revelaria acontecimento impossível no universo mercantilista de palavras utilitárias e racionais. A poesia, como de resto todos os textos tavarianos, encontra-se mergulhada nesta relação de consciência-linguagem: “A linguagem utiliza a ciência para alcançar a ilusão da Verdade, tal como a linguagem utiliza a arte para alcançar a ilusão de uma certa Beleza” (TAVARES, 2006, p.43). A teorização encontramo-la mais tarde no fragmento “casapalavra” do Atlas do Corpo e da Imaginação: “O tratamento da linguagem – ou do raciocínio – deve considerar o desnivelamento do corpo (do utilizador da linguagem). Devemos olhar para a linguagem como se olha para um objecto – para uma mesa, por exemplo – e ver, por vezes, a linguagem de baixo para cima, de modo respeitoso, de cima para baixo, de modo altivo; observar depois um perfil da palavra, depois o outro; ver os sapatos da palavra e o seu chapéu, a sua nuca e o seu rosto. Porque pensar também é mudar de posição relativamente à própria linguagem. Não olhar sempre da mesma maneira para as palavras.” (TAVARES, 2013b, p. 46)

O esboroamento parcial ou total, das fronteiras canónicas de género, transversal a quase todas as séries, pode ser entendido como elemento catalisador da vitalidade para que a escrita de Tavaras apela, numa atitude, também ela, performativa porque em primeiro lugar o leitor encontra-se nessa dinâmica artística proporcionada pela utilização do corpo como parte constitutiva da obra e em segundo lugar porque o carácter experimental, de investigação, repele a fixidez do género espartilhado pelos (pre)conceitos forma e de conteúdo. Os seus textos, mesmo aqueles que não fazem parte da série Teatro, são frequentemente dramatizados, coreografados, musicalizados, originando objetos artísticos em diferentes formatos,27 pois o movimento que sugerem facilita múltiplas leituras. 26

“Construir, habitar, pensar” (HEIDEGGER, 1997, p. 125) Teatro: o romance Jerusalém levado a cena pelo Teatro O Bando em Lisboa (2008) com encenação de João Brites e em Atenas com encenação de Vana Pefani, (2013); O Hotel, na Figueira da Foz com

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(III) Contrações “(…) Mais tarde a Natureza inteira cruzou-se com o homem e com o animal e enterrou-os com três pazadas de terra para os ensinar.”28 A ser compreendida como uma poética da leitura, esta é uma literatura que se revela lugar agregador da alteridade, num modelo relacional que Jorge Luís Borges assim define “Uma literatura difere de outra, ulterior ou anterior, menos pelo texto do que pela maneira de ser lida” (BORGES, 1998, p.121). O contexto em que este leitor, borgesiano se inscreve, é temporal, diz respeito à receção de um texto no tempo, mas não deixa também de responsabilizar o leitor pela ação derradeira de interferir na literatura. As intervenções performativas no espaço-tempo-texto que me interessam aqui perspetivam ilimitadas “posições” de leitura, cada leitor poderá contaminar, através do seu próprio movimento, a informação cultural, política e literária de que está impregnado. Como consequência disso, constitui-se uma dupla performativa unida pela demanda desse objeto intangível: a linguagem, ela própria, em ação. É anunciado no caderno 13, inscrito na série Poesia: “Não avançamos na linguagem como num caminho. Na linguagem começa-se sempre, repete-se o início como se a cada momento nos amputassem as pernas.” (TAVARES, 2011, p. 184) A linguagem, ela própria, é uma via, num mundo de avanços, de rapidez, lugar feito de lugares violentos e paradoxais (e.g. O Reino) e onde pensamentos complexos procuram a paz no dizível, no encontro com o outro e na incapacidade de, na solidão, dizer o mundo. O drama existencial reside nessa impossibilidade corpórea entendida como experiência viva e que, por isso, precisa de tempo. Os diferentes registos discursivos de Tavares (ficcional, poético, filosófico, aforístico, crítico…) forçam o leitor a abandonar as formas tradicionais de leitura e a encenaçãode Júlio Sousa e na Culturgest em 2014; libreto para ópera (Jerusalém) com música de Vasco Mendonça e encenação de Luís Miguel Sintra; espetáculo Two maybe more de Marco Martins - encontro dos coreógrafos Sofia Dias & Vítor Roriz com o Coro Gulbenkian em 2013; Performance: leituras encenadas de Fernando Pessoa em ligação com a arquitetura de Oscar Niemeyer com o ator Vítor Roriz; etc.. 27 Fragmentos de texto acompanhados por imagens de um coletivo de artistas plásticos, “Os Espacialistas”; a encenação e a coreografia das imagens acompanha a escrita (ou vice-versa) de tal modo que o discurso se encontra minuciosamente ilustrado na materialidade possível. 27 Fragmentos acompanhados por imagens de um coletivo de artistas plásticos, “Os Espacialistas”; a encenação e a coreografia das imagens acompanha a escrita (ou vice-versa) de tal modo que o discurso se encontra minuciosamente ilustrado na materialidade possível. 28 TAVARES, Gonçalo M., Biblioteca. Lisboa: Campo das Letras, 2004, p. 97.

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procurar o seu lugar, como exemplo extremo refira-se o Atlas do Corpo e da Imaginação29, ou o livro Breves notas sobre as ligações,30 pois a partir deles, o leitor é obrigado a procurar a sua construção: o lugar inicial e o lugar final onde a linguagem faz acontecer, no espaço comum, uma cartografia do pensamento. Será oportuno estabelecer nexos com o pensamento de Jacques Rancière (2005) que assinala a existência de uma estética primeira (na base da política) entendida como forma de partilhar a experiência do sensível num espaço comum, uma vez que “as práticas artísticas são ‘maneiras de fazer’ ” (Idem, 2005, p. 17) que vivem no seio de outras maneiras de fazer e das “suas relações com maneiras de ser e formas de visibilidade” (Idem, ibid.). A perspetiva do filósofo baseia-se no regime estético de Platão cujo conteúdo recupero: “(…) Platão destaca três maneiras a partir das quais práticas da palavra e do corpo propõem figuras de comunidade. Identifica a superfície dos signos mudos: superfície dos signos que são, diz ele como pinturas. E o espaço do movimento dos corpos, que se divide por sua vez em dois modelos antagónicos. De um lado, há o movimento dos simulacros da cena, oferecido às identificações do público. De outro, o movimento autêntico, o movimento próprio dos corpos comunitários.” (Idem, p. 18) É neste intervalo que movimento produzido e movimento autêntico se entrelaçam no lugar do sensível, para Rancière as formas de “partilha do sensível”, definidas como obras ou performances, ‘fazem política’” (Idem, ibid.) e, em linhas de grande concisão, mais à frente, refere que “As artes nunca emprestam às manobras de dominação ou emancipação mais do que lhes podem emprestar, ou seja, muito simplesmente, o que têm em comum com elas: posições e movimentos dos corpos, funções da palavra, repartições do visível e do invisível. E a autonomia de que podem gozar ou a subversão que podem se atribuir repousam sobre a mesma base.” (Idem, p. 26). Para que pudesse ser feita uma abordagem mais profunda da relação entre arte moderna e política, a partir do contributo de Rancière, destacaria a diferença que o filósofo aponta entre a arte tradicional e a arte moderna, a primeira que se afasta da vida

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Fragmentos acompanhados por imagens de um coletivo de artistas plásticos, “Os Espacialistas”; a encenação e a coreografia das imagens acompanha a escrita (ou vice-versa) de tal modo que o discurso se encontra minuciosamente ilustrado na materialidade possível. 30 Com páginas de colunas (algumas duas, outras cinco) onde se encontram citações, aforismos, fragmentos cuja leitora não pode ser linear sob risco de não ter sentido. (cf pp. 43-47)

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(do ponto de vista da política) e a segunda que dela se aproxima, uma vez que a arte moderna é agora um trabalho comum e não extraordinário. Rancière,31 no último capítulo, retoma esta relação, reforçando o carácter de não exclusividade da arte pelo facto de, na atualidade, ter especificidades tecnológicas características de outro qualquer “fazer”. Interessa ainda recuperar, para estes prolegómenos, a ideia de que a relação artística moderna, ao propor a partilha democrática do sensível, “faz do trabalhador um ser duplo” dando tempo ao “artesão” para estar também no “espaço das discussões públicas e na identidade do cidadão deliberante” (Idem, p. 65). Assumindo que as estratégias do discurso poético, ou poiético, de Gonçalo M. Tavares refletem a emergência de romper com a organização que, frequentemente, a teoria literária regula, e que nessa estética ontológica, a presença de leitores/ públicos é absolutamente indispensável, pois a partir da apropriação de um espaço indefinido e sem fronteiras precisas, o leitor terá liberdade de construir percursos existenciais em que o corpo potencialize significados, então estaremos perante uma escrita/ leitura que apela para um estudo performativo mais desenvolvido.

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“Da arte e do trabalho. Em quê as práticas da arte constituem e não constituem uma exceção às outras práticas” pp. 63-69.

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