Jornal da ABI 387

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OPINIÃO

Ramificações republicanas Considerações sobre a nossa evolução político-institucional desde Vargas, a partir de 1930, aos dias atuais. POR FÁBIO LUCAS

No dia da eleição municipal de São Paulo (outubro de 2012), dei com uma entrevista televisiva de Chico de Oliveira (um dos fundadores do Partido dos Trabalhadores; mais tarde dissidente, desligado da agremiação), concedida a Kennedy Alencar. Cientista social de elevado conceito na Usp, postulou que o PT se tornara, na prática, grupo de centro-direita, enquanto o Partido Social Democrático Brasileiro se posicionara na extrema-direita. Perguntado sobre personagens do quadro político brasileiro, indicou Getúlio Vargas como verdadeiro estadista. Quanto a Juscelino Kubitschek, manifestou menor entusiasmo, pois talvez se enquadrasse no perfil de um empresário ousado. A meu ver, a República do Brasil, até 1930, representou continuidade do período imperial, com suas virtudes e seus defeitos. Não escapou do mandonismo patriarcal de uma economia pouco diversificada, apoiada no trabalho escravo. Monocultora na produção e exportação do café, seus líderes constituíram a elite da Economia e da Política, mormente nos Estados de São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro. Getúlio Vargas adotara um esquema protecionista, contraposto ao livre-cambismo dominante. Tentou ampliar a participação do salário na composição da Renda Nacional. Enfatizou a classe média urbana, mesmo evitando escapar ao domínio do estamento rural, reacionário, conservador por excelência. A grande falha do período Vargas fora a inibição à vida política e ao exercício da cidadania. Sonhou com a modernização autoritária. Quando voltou ao poder pela via eleitoral, teve que enfrentar rude oposição, palmilhada de conspiradores e de grupos golpistas apoiados externamente pelas multinacionais e seu braço armado, o poderio do sistema industrial-militar, tão fustigado e temido pelo general Eisenhower, chefe das Forças Aliadas que venceram a Segunda Grande Guerra. Vejamos outras personagens. No auge da Guerra Fria, tomou posse do governo o Presidente João Goulart, graças à resistência nacional comandada por Leonel Brizola. O aparato informativo instalado no Brasil moveu implacável campanha contra as Reformas de Base propostas por João Goulart, demonizando o Presidente. O ponto mais sensível do Programa assentava-se na Reforma Agrária, que pretendia dar cunho social à propriedade e à exploração da terra, tentando abolir a tradição de privilégio do latifúndio, desde as concessões de sesmarias do período colonial. A CIA montara vários organismos de apoio a lideranças golpistas operantes no País.

Infiltrados na mídia e nos quartéis (das Polícias e das Forças Armadas), operou-se a derrubada do Presidente mais democrata do período republicano. Presidente em cuja administração não se verificou uma vez sequer prisão de qualquer trabalhador por motivo político. Disso falávamos durante a posse da Diretoria da União Brasileira de Escritores (UBE/SP), 2012, em conversa com o Ministro do Trabalho daquela época, Almino Affonso, que ainda hoje se orgulha de sua gestão. É difícil, passado o tempo, sacudir de nossas Forças Armadas o ranço da herança escravagista, quando as patrulhas existentes eram mantidas pelos senhores patriarcais para sufocar resistências e punir os rebeldes. O governo mais realizador do período republicano foi indiscutivelmente Juscelino Kubitschek. Discute-se se o seu Programa de Metas teria provocado desequilíbrios setoriais estimuladores de incontrolável inflação. Melhor ponderar sobre o velho tema do homem e suas circunstâncias. Sem os investimentos alemães e europeus, atraídos por JK, a dependência do País em relação aos Estados Unidos teria reduzido o Brasil a uma republiqueta de bananas. Como Getúlio Vargas tivesse estimulado a iniciativa interna, mediante providências protecionistas, mantidas no seu período ditatorial, foi com JK que o Brasil experimentou, pela primeira vez no período republicano, a entrega do poder ao candidato do partido de oposição. Não obstante gozar de ampla popularidade e de controle, no âmbito do Congresso Nacional, de confortável maioria de representantes, não se deixou embalar por sugestões continuístas. Passou o governo ao Presidente Jânio Quadros e cuidou da volta no próximo pleito. Deste modo, creio eu, faltou ao corajoso analista de Política conceder as devidas credenciais a JK, como o pioneiro Presidente da República a cumprir seu mandato sem dar seqüên-

cia a manobras continuístas. Mais do que Getúlio, legou uma lição de prática democrática. O que espanta, na sucessão de eventos políticos da História pátria, é a inabalável permanência do substrato patrimonial da fundação do País. O legado português, do poder rural assentado sobre as bases escravagistas, cristalizou hábitos de convivência ornados de ostensiva exibição de privilégios, de inclusões e exclusões inexplicáveis. Ainda hoje parece que vivemos um clima de senzala, não obstante um dilúvio de leis e de pronunciamentos retóricos dizer o contrário e abrir-se em lisonja aos excluídos. As mutações cobiçadas, por mais enfáticas que se tornem as proclamações públicas, destinam-se ao silêncio. Lembremonos do movimento “Diretas Já”, capitaneado pelo Governador Franco Montoro e puxado pelo Governador Tancredo Neves. A população brasileira não percebeu as sutis articulações da classe dominante, as mesmas que apoiaram o golpe militar: empresas multinacionais, latifundiários metidos no agronegócio, industriais que formaram a clientela dos financiamentos privilegiados. Como fantasmas incorpóreos, deixaram a seus agentes, já assentados no poder, a tarefa da “saída” honrosa. Fez-se até a nova Constituição, com a originalidade de os “constituintes” não se demitirem após a elaboração do caudaloso texto constitucional, já que, convocados, deveriam dar como concluída a sua função. Aliás, seria de desejar que nos Atos de Disposição Provisória constasse a proibição de elegerse, por duas legislaturas, qualquer cidadão que tivesse colaborado com a ditadura, em cargos e representações de 1º, 2º e 3º escalões. Somente assim poderíamos ter a renovação política do Brasil, com maior circulação de lideranças. Mas o que se viu é que os mesmos quadros da ditadura passaram a dar a feição à “nova democracia”. Esta que aí está. JORNAL DA ABI 387 • FEVEREIRO DE 2013

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