
4 minute read
China
UMA REVOLUÇÃO MUSICAL MOVIDA A SMARTPHONES
pr_ Alessandro Soler ∎ de_ Cannes (França)
Advertisement
Festejada há décadas pelo mercado global por seu apetite inesgotável por tecnologia — celulares, software —, carros e commodities, a China sempre foi um ponto fora da curva no setor musical. Pirataria generalizada, desregulação que resulta em pífias cifras de arrecadação e distribuição de direitos autorais, um quase monopólio no setor de distribuição digital e outras anomalias dessa economia tão peculiar vinham adiando sua inserção no clube dos grandes da música.
Mas algo acontece aceleradamente ali.
A alta penetração da internet e do uso de smartphones numa população vertiginosa provoca, quase sozinha, uma revolução mercadológica — movida a pop e hip hop, como destacaram em junho diferentes especialistas durante o Midem, a maior feira de música do mundo, no balneário de Cannes. Há mais de 800 milhões de internautas e cerca de 720 milhões de smartphones no país. E são eles o combustível dos robustos crescimentos do digital, que em 2017 puseram a China, pela primeira vez na história, no top 10 do maiores mercados globais de música gravada, segundo a IFPI, a federação internacional da indústria fonográfica.
Pop e hip hop chinês começam a atravessar as fronteiras do país e ter algum sucesso na Ásia Central e em nações como Japão, Coreia do Sul e Austrália (onde há uma importante diáspora chinesa). “Como se viu com o K-pop, há uma grande oportunidade de inserção do C-pop (pop chinês) em outros países”, afirma Andrew Chan, da Sony Music China, ressaltando que muitos artistas locais cantam em inglês, mas também em mandarim, o que denota busca por autenticidade.
Durante o Midem, Ba- Pe Reggie, diretor da agência de marketing 88rising China, de Xangai, e Ed Peto, fundador da agência de serviços à indústria musical Oudustry, de Pequim, falaram sobre a fervilhante cena hip hop local.
“Globalmente, o hip hop, de certa forma, substituiu o rock. Na China, antes marginalizado, ele agora vive uma fase de popularização sem precedentes, uma busca por uma linguagem única que canalize as emoções e os sentimentos da juventude. Será uma grande chance de a música do país dar seu salto para o mundo”, prevê Reggie.
Em só um ano, o gigante asiático já saltou para a sétima posição. E ainda há muito por fazer.
Com uma população de 1,386 bilhão de pessoas, não há mais do que 33 milhões de assinantes de streaming musical. A cultura de não pagamento por música persiste. E se reflete também nas baixas taxas de arrecadação de direitos autorais musicais. Apesar dos esforços da sociedade local MCSC, TVs e rádios públicas estão inadimplentes, assim como a esmagadora maioria dos produtores de shows, entre eles o Ministério da Cultura e Turismo, responsável por um sem-número de festivais e atividades de promoção da cultura chinesa. É o que sustenta à Revista um executivo com ampla experiência no mercado local e que pediu para não ter seu nome publicado.
“Contribui para manter isso o modo como se consome música na China: através de redes sociais ou em plataformas de streaming que incorporam, elas mesmas, inúmeras funcionalidades das redes sociais. A cabeça do chinês ainda funciona segunda a lógica de que ‘se é fácil compartilhar, enviar e receber canções, por que vou pagar’?”, ele define, lembrando que a chegada dos CDs piratas, nos anos 1990, abriu esse país pela primeira vez à música contemporânea global.
Com a censura a gigantes do mundo digital ocidental, Spotify, Amazon Music ou Google Play Music não operam na China. A Apple Music é uma notável exceção — e às custas de atender às draconianas exigências do regime comunista de partido único, como remover todas as músicas do catálogo que evoquem “democracia” e “liberdade”. Dois gigantes locais dominam o mercado, Tencent e NetEase. À chinesa, ambos funcionam como híbridos de streaming e redes sociais.
“Temos um sistema de comentários, compartilhamentos e avaliações dos usuários que chegam às dezenas de milhares. São como um disco de ouro para um artista”, empolga-se Mathew Daniel, vice-presidente da NetEase, segunda do mercado.
Durante o Midem, ele se queixou da situação de quase monopólio da líder, a Tencent — que, segundo a Reuters, está em plena ofensiva para tentar comprar o Universal Music Group por coisa de € 20 bilhões. Na China, muitos selos licenciam exclusivamente para a Tencent seus catálogos, e esta decide se os compartilha ou não com as rivais. “É disfuncional”, criticou Daniel.
Até então, e ainda sob influência da Revolução Cultural (1966-1976), de Mao Tse-tung, unicamente canções tradicionais nativas eram bem aceitas no espaço público, fechando ouvidos e olhos a tudo o que vinha de fora e pautando a pouca inserção chinesa no palco musical internacional.
Agora, eles correm como podem para recuperar o tempo perdido. No último relatório da Cisac (a Confederação Internacional das Sociedades de Autores e Compositores), a China aparece em 29º lugar entre os países que mais arrecadam direitos autorais musicais, com uma cifra de € 27 milhões em 2017, só um milhão de euros a mais do que uma única parte do seu território cujos números são calculados à parte, a cidade autônoma de Hong Kong. No Brasil, sétimo no ranking global, foram € 252 milhões.
Há mais de seis anos, o Parlamento chinês debate uma reforma total da sua velha lei de proteção à propriedade intelectual, que poderia criar novas categorias de direitos autorais musicais e audiovisuais, punições para as infrações e um marco legal que permita a chegada de novos players. Diretor-geral da Sony Music na China, que atualmente opera em Hong Kong, onde se beneficia de um ambiente de negócios mais amigável, Andrew Chan é otimista sobre o mercado que se desenha, com a aparente boa disposição do governo por reformas. “Não há dúvida de que é um momento muito empolgante este que estamos vivendo, a expectativa é grande”, ele resume.

CHINA, UM RAIO-X
POPULAÇÃO: 1,386 bilhão de pessoas.
PIB: US$ 25 trilhões em poder de compra, 1º do mundo(2º em valor nominal).
ARRECADAÇÃO DE DIREITOS AUTORAIS:
€ 27 milhões
29º no mundo e quarto na zona Ásia-Pacífico da Cisac, atrás de Japão (€ 799 milhões), Austrália(€ 226 milhões) e Coreia do Sul(€ 132 milhões).
PAGANTES DE STREAMING:
33 milhões
(nos EUA, só Apple Music e Spotify somam 54 milhões).
ADOÇÃO DA CONVENÇÃO DE BERNA:
o 1º tratado global de reconhecimento de direitos autorais é de 1886. O Reino Unido o ratificou em 1887; o Brasil, em 1922; a China, só em 1992.