Zine FORÇA ESTRANHA

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Este zine nasce do encontro. Ou dos encontros, pra ser mais preciso.

Seu forjar se inicia a partir do convite inesperado de Clarice para escrever sobre Força Estranha, sua nova criação em dança.

O que escrever sobre um trabalho de dança?

Enquanto assistia pela primeira vez a um ensaio de Força Estranha fui habitado e atravessado por muitas sensações e imagens. O ensaio acontecia em um espaço que conheço e frequento há muitos anos, mas que por quarenta e poucos minutos tornou-se estrangeiro. Uma brecha rompeu ali nos convocando a uma percepção sensível daquela zona desconhecida e temporária a qual erámos também parte.

Me percebi ao fim do ensaio sem menor desejo de nomear tais sensações ou elaborar qualquer pensamento sobre elas. Meu corpo havia sido convidado a tão-somente sentir e conviver com aquelas sensações.

Quando então recebi o convite para esta escrita, me deparei com um conflito: Como dar corpo, a uma força que me atravessa várias vezes mas nunca é a mesma?

São Paulo, março de 2023

Foi preciso convocar a presença do tempo.

( abre-se espaço
a um desvio

Força Estranha é um trabalho de muitas mãos-cabeçascorações, criado e desenvolvido por Clarice Lima em parceria com Aline Bonamin.

Recentemente me encontrei com o trabalho de Lynn Margulis uma bióloga apaixonada que mudou a percepção que tínhamos da evolução a partir de sua pesquisa com a endossimbiose.

Ela nos apresenta as redes de colaboração como grandes agentes da evolução da vida na Terra, que não se deu somente pela competição, como nos fizeram acreditar os neodarwinistas.

Empresto esse termo da biologia para falar desse encontro entre Clarice e Aline, e sua parceria simbiótica. As acompanho mais de perto há um ano e emociona ver troca tão bonita, rigorosa e cuidadosa entre elas e com as redes de colaboração que tramam juntas.

Como é de se esperar, essa simbiose transborda também para a cena e o que presenciamos em Força Estranha são dois corpos que não se colocam em disputa, mas que parecem estar sempre numa cooperação mútua, viva e adaptativa.

E assim sussurram em nossos ouvidos: Vamos juntes que o caminho fica mais gostoso! )

Meditando e permanecendo com o problema, intuí que o caminho a se tomar não era escrever sobre Força Estranha, mas escrever COM.

com os corpos que brincam no palco; com as imagens que dançam dentro de mim; com o que toca o profundo da pele; com o que faz expandir os órgãos; com o que fica; com o que não está mais; com parceires simbiontes; com os cacos espalhados por aí; com o tempo que torce e espirala; com aqueles com virão antes de nós; com pensamentos, com dúvidas, com desejos;

Este zine é a tessitura dos fragmentos que me atravessam a partir e para além de uma dança, criado e escrito com forças, estranhas ou não.

Te convido a habitar e transformar este espaço com a gente. Seja bem-vinde!

Fique o tempo que precisar.

atenciosamente, i.

Que força é essa que faz meu corpo mover?

Que faz vibrar minhas entranhas?

Que sorrateiramente penetra a pele da minha cabeça e a descola levemente do crânio?

O que é isso que nos faz continuar?

Que faz pulsar o escuro?

Que nos convida a ouvir com o corpo todo?

Que nos transporta para um espaço-tempo suspenso e desconhecido?

Que nos acompanha onde estivermos? Você sente?

Outro dia tive um sonho que a gente se preparava para o fim do mundo como o conhecemos. Esse mundo humano, antropocêntrico, ocidental.

Era preciso se arrumar. Não é todo dia que se vive tal evento. Colocávamos nossas roupas mais enfeitadas, como quem ia para uma festa de outro tempo: cores vibrantes, mangas bufantes, camisas com babados e vestidos com brilhos bordados.

Um apito longínquo nos eriçava a espinha. Pausa. Era possível sentir a primeira fissura e ouvir a queda dos primeiros indivíduos.

A gente voltava a nossos preparativos, como quem pratica um conhecimento milenar.

Éramos muites. Um bando bagunçado e diverso.

Preparávamos o terreno vibrando o chão para fazer subir a poeira pesada e fétida de nossas células mortas e assim, podermos mover e amassar o ar.

Na insistência dessas ações, criávamos uma espécie de dança.

Uma dança despedida.

Uma dança celebração.

Uma dança convite.

A cada segundo nos despíamos de nossa suposta humanidade, e já não nos comunicávamos por palavras. Nossos sentidos se aguçavam e se multiplicavam. A gente gargalhava enquanto aprendia a pisar suave no chão. Podíamos sintonizar com toda micropartícula existente naquele espaço vazio o que colocava nossos corações em harmonia com o Universo. Meu corpo, que de meu já não tinha nada, arrepiava-se.

Praticávamos e mais uma fissura se formava. Os apegados a sua falsa superioridade evolutiva caiam dessa vez no abismo do seu próprio ego.

Nós - bichos, rochas, plantas, água, bactérias, fungos e fumaça - vibrávamos juntes e mudávamos a densidade daquele lugar sem nome.

Começamos então, a sentir um som. Um som profundo que nos penetrava as solas do pé e cantava aos nossos ossos: está chegando a hora.

Era preciso aprender a parar.

A partir daí tempo e espaço já não existiam.

Tudo se suspendia.

Observámos passado e futuro se entrelaçarem ao nosso redor; num vai e vem temporal percebíamo-nos pequenes, apenas um conjunto de partículas; nossos corpos brincavam, numa tentativa impossível de virar luz;

Nos transformávamos em pulso quando acordei.

Desde então, derivo por aí buscando companheires para brincar de fim do mundo, tentando sentir essa futura que se arrasta atrás de nós.

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