2. Idade Antiga
À luz da História e da Arqueologia, há evidências da aura sagrada 1 dos titulares dos poderes político e religioso, designadamente no Egipto, na Mesopotâmia, na China, no Império Romano 2
Quanto a Israel, o próprio «Antigo Testamento» nos atesta a excelsitude dos sacerdotes e, no plano secular, dos Juízes. Há registo, no «Antigo Testamento» 3, da viragem para uma maior complexidade da realidade política, ou seja, a substituição da era dos Juízes pela era dos Reis; e neste mesmo texto (1 Samuel, cap. 8), em jeito dum sábio alerta, se vinca a advertência de que dos reis inevitavelmente advirão pesporrências contra os súbditos.
Eis que surge, na Grécia, a democracia – uma conceção de governação/poder em que os súbditos aparecem a dar o seu voto, em que há «Direito», em que há instituições estatais e, havendo diferenciação entre governantes (eleitos) e governados, há poder daqueles sobre estes. Tratava-se da Cidade-Estado, a «Polis» (em que se exercia a «Politika»), abrangendo não apenas o respetivo centro urbano, mas também a zona envolvente, de que se retiraria o sustento para as gentes Passemos a apresentar o contexto sociocultural em que tal ocorreu:
As ciências, designadamente as que, na classificação de Ampère, cabem no grupo das «noológicas» ou «ciências do espírito» (Filosofia, Política, etc.) 4 tinham alcançado, na Grécia, um nível relativamente significativo; a cumular o apreciável Saber ministrado em escolas, era usual o debate de ideias. Estas ocupam um lugar central no comando da vida tanto a nível individual como coletivo; «a ideia preside ao ato».
A difusão de ideários elevados faz avançar a noção e o sentido da dignidade humana, induz numa opinião pública mais esclarecida, desabrochará em bem-estar. A
1 Doutos informes nos são transmitidos sobre «teocracias», designadamente pelo Prof. Doutor Jorge Dias, em lições policopiadas de «Instituições Nativas» («Antropologia Cultural»), cit., pp. 140 e segs.
Quanto ao Império Romano, aduza-se a frase que, então, expressava tal jactância idolátrica: «O Imperador é o último dos Deuses… mas o primeiro dos homens. Enquanto permanecer na Terra está separado da sua verdadeira divindade, mas em relação aos homens há algo excecional nele, relacionado com o divino: sua alma, que provém de um lugar mais elevado que a alma dos homens.» –«Corpus Hermeticum», ed. Festugière, Paris – 1954, vol. IV, 53, frag. 24, 3.
2 Designadamente William Barclay, muito clara e circunstanciadamente, exara que o culto ao Imperador eclodiu de venerações e rituais exercidos, nesse sentido, por parte de povos que melhor se sentiam depois do que antes de integrados na Administração Romana/«Pax Romana» (repisando, na sua obra, o referido autor que muitos países foram invadidos pelos Romanos, a pedido dos respetivos povos, os quais desejavam relativo alívio para a vida que tinham). Muitos imperadores terminantemente rejeitaram ser cultuados. Por exemplo, eis o que diz Cláudio (41-54 d.C.): «Eu rejeito a nomeação de um alto sacerdote para mim, bem como proíbo que se construam templos para minha devoção, pois não pretendo ofender os meus contemporâneos e considero que as honras divinas apenas seaplicam aseres imortais». William Barclay– «TheDailyStudyBible», Edinburgh – TheSaint AndrewPress, edição revista, 1976, vol. I da parte intitulada «The Revelation of John», pp. 16, 18 e passim.
3 1 Samuel, cap. 8.
4 Prof. Doutor José Júlio Gonçalves, ob. cit., vol. I, no extenso capítulo «A Sociologia face às demais Ciências», designadamente na pág. 39.
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evolução sociocultural no sentido positivo sugere progressos, incita a correspondentes mudanças de diversa ordem… Mas tal fenómeno é indissociável destoutro: é segura a tese de que os poderes são cronicamente prenhes em logros, manipulações, estratagemas hábeis e até, frequentemente, violentos para se manterem, para, afinal, manterem o transpersonalismo em que consistem: há que, de vez em quando, mudar-se qualquer coisa para que o «statu quo», em termos substanciais, em termos de fundo, continue na mesma 1
O enviesamento frequente para o despotismo, o cometimento de graves atropelos (por exemplo, execução de Sócrates) levaram, designadamente, o grande Platão a, desiludido, anelar por uma democracia liderada por filósofos exemplares. O mais razoável seria que o insigne Platão tivesse reafirmado a conclusão de que os poderes são transpersonalistas.
Pondere-se no que diz Marcel Prélot: «A ideia de que o Estado seria uma família de grandes proporções, tese perfilhada por vários doutrinários da política, foi logo rejeitada por Aristóteles 2. E, assim, é evidente que, entre a família e a Cidade, existe não uma simples diferença de grau, mas uma diferença de natureza» 3 .
«A cidade antiga, segundo Aristóteles, era justificadamente totalitária, porque, como ele ensinava, o todo é anterior à parte e superior a ela. O poder é uno e indivisível (imperium 4 = jus sacrum + jus publicum), e, portanto, não há fins individuais nem fins da sociedade que sejam diferentes dos fins do Estado» 5 .
Recuando até aos primórdios da Ciência Política, vemos que já a consideravam como tal nomeadamente Aristóteles (autor de «A Política»), Cícero, Tito Lívio.
Segundo classificação de Aristóteles, as três grandes categorias das ciências são as teóricas (Física, Matemática e Metafísica), as práticas (Ética, Economia e Política) e as poéticas (Poesia, Retórica e Dialética) 6 .
Segundo ele, «o objeto da Ética é uma espécie de Política», quase fundindo aquela nesta e vai ao ponto de atribuir à Política uma especial excelência, um lugar de topo em relação às outras Ciências.
Cícero, admirador da cultura grega, repisou na posição de Aristóteles, ao definir República: em termos de extensão, ela é, agora, um vasto Império, mas, em termos de
Eis expressão recolhida em Marcel Prélot: «Toda a vida do indivíduo tende a ser cada vez mais submetida à influência do Estado e a receber a sua marca». Marcel Prélot – «Ciência Política Atual», trad. de Jonas Negalha, Círculo de Leitores, 1975, ob. cit., p. 19.
2 Marcel Prélot, ob. cit., p. 26.
3 Em 1615, Montchrestien exara que «o príncipe deve aplicar ao Estado as leis da administração de um lar» – Prélot, ob. cit., p. 39.
4 Imperium = Poder soberano/Estado.
5 Prof. Doutor Adriano Moreira – «Política Internacional», Portucalense Editora, Porto – 1970, p. 261.
6 Prof. Doutor José Júlio Gonçalves, ob. cit., vol. I, pp. 37-38.
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compreensão, é tradução da «Polis», da Cidade, designando-se «Respublica»; enfim, à «Ta Politika’ – as coisas cívicas, concernentes à cidade – corresponde a ‘res publica’, a coisapública»(Prélot, ob. cit., p. 9).Éclaroqueàvastidãoterritorial passaacorresponder uma bem maior complexidade em termos de organização política.
Desde já se faça o reparo de que Ulpiano associa a palavra Estado à «coisa pública», ou seja, à «Respublica», nesta definição que deixou sobre Direito Público: «Publicum ius est quod ad statum rei romanae spectat» 1 E foi Maquiavel, autor de «O Príncipe», quem, repisando no termo Estado, fez com que este passasse a ficar em voga. Agostinho de Hipona, seguindo Cícero, quanto possível, em termos formais, no conceito de Estado, neste introduz, porém, em substância, esta diferença: conceptualizao com índole «cristã», na sua «Cidade de Deus». Tenha-se também presente a posição de Tomás de Aquino, que aparece exposta no ponto «9. O Estado» Sobretudo durante a Idade Média, veja-se como a Igreja se afirmou como dominadora (Prélot, ob. cit., p. 28).
De caminho, quanto aos Romanos, que nutriam simpatia pelo Saber grego e que designadamente das «ciências do espírito» foram consideráveis cultores, são mais que pertinentes alguns considerandos
Não fique por dizer-se que, tendo Roma sido subjugada pelos Bárbaros, sobre a História dos Romanos impenderam distorções (ao correr da pena, evoque-se que vários povos integrantes do Império haviam pedido a interferência romana nesse sentido). A «Verbo – Enciclopédia Luso-Brasileira de Cultura» 2, ao referir as odiosas perseguições em que martirizados muitos Justos/seguidores de Jesus, não deixa de «acentuar o carácter lendário de certa literatura martirológica», sendo de exprobrar, antes de mais, a enormidade no empolamento do número de mártires 3. E, a dado passo do vertente texto enciclopédico, também figura este registo: «De notar que de 64 a 313 (249 anos), houve apenas uns 129 anos de perseguições 4 aos cristãos»
1 Tradução literal: «Direito Público é o que respeita ao estado da coisa romana».
2 Vide «Perseguições aos Cristãos», in «Verbo – Enciclopédia Luso-Brasileira de Cultura», Editorial Verbo, Lisboa - 1973, vol. 14, p. 1823.
3 Não me pronunciando, a nível histórico, sobre abordagens numéricas desta ordem, direi apenas que duas publicações conheço em que apontada à volta de meia dúzia de milhares de mártires.
4 Quanto às «circunstâncias que concorreram» para as referidas perseguições, a «Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira» (vide «Perseguição», in vol. XXI, p. 388) não apenas indigita «os preconceitos do povoléu, as surdas ameaças dos judeus, as queixas dos sacerdotes do paganismo (…), a desconfiança, de dia para dia maior, que inspiravam ao poder imperial essas reuniões de homens…»; são apontados também «os atos escandalosos praticados por várias seitas e atribuídos a toda a Igreja», sendo, quanto a isto, de evocar que Cornelius Tacitus, em «Annales», ao execrar a ferina atitude de Nero contra os «cristãos», quanto a estes deixa uma pincelada não elogiosa – vide William Barclay, in «The Daily Study Bible», cit., vol. I da parte intitulada «The Revelation of John», p. 146.
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Para o negro «statu quo» em que a Igreja Católica mergulhou a Humanidade, na Idade Média, apontavam já certas condutas, no seu seio notórias, quando ainda em vigor o Império Romano.
A História Eclesiástica de Eusébio de Cesareia (nasceu cerca do ano 270) relatanos graves desvios em relação à mensagem de Jesus de Nazaré. Mas muito importa também referir que, nas próprias explanações doutrinárias/apologéticas de Eusébio de Cesareia, há desvios da mesma ordem. Ia, além de mais, germinando o conluio entre poder político e poder religioso.
Abstraindo-se da ambição pelo Poder, pergunte-se: a não denúncia, por falta de sensibilidade cristã, das crueldades e injustiças não induz, mais tarde ou mais cedo, na ativa conivência em relação às mesmas?
Ditos «cristãos» houve, apaniguados de Constantino, que, após entronizado este em Constantinopla, foram coniventes em execrandas vindictas.
Paulo Orósio (falecido no ano 431), na sua obra «Historiarum libri VII adversus paganos», pretende «demonstrar que o cristianismo não é o responsável pelas desgraças do tempo» 1 – pois que círculos romanos achavam ter a Igreja significativas responsabilidades na decadência que se ia verificando no Império.
3. Idade Média. O poder eclesiástico. A intolerância religiosa
Na longa noite da Idade Média, a conjugação do poder religioso (então com a sua mais elevada sacralização) e do poder secular atingiu uma expressão particularmente crua na «Respublica Christiana», tendo vindo esta, na Idade Moderna, a tão opressivamente transbordar sobre o Mundo, na Expansão Europeia dita cristã
Os servos da gleba eram impiamente relegados pelos «senhores» do clero e da nobreza – «senhores de pendão e caldeira» – para uma penosa existência de escravidão e obscurantismo, sendo, além de mais, vítimas, carne para canhão, nas tão frequentes guerras desencadeadas quer a nível do poder religioso quer do secular.
O poder dos senhores feudais, há que dizer-se, traduzia-se numa grande limitação do poder da Coroa; mas aqueles passaram a ver minorado o seu poderio em prol desta, a partir do contexto de que é marco assinalável «O Príncipe», de Maquiavel; passa a ter
1 «Orósio (Paulo)», in «Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira», Editorial Enciclopédia, Lda., Lisboa, vol. XIX, p. 661.
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projeção o «Estado-principado» 1; o poder real 2 ruma em direção à supremacia em relação ao poder religioso.
Note-se que, já antes do édito de 313, havia grande entendimento entre muitos «cristãos» e o Imperador Constantino Magno, absorvido este em assenhorear-se de todo o poder, anulando todos os rivais – ele que não se eximia de cometer grandes crueldades em expedições contra os Francos e os Godos e que, sem engulhos, matou o próprio filho Crispo, a esposa, o cunhado, o sogro. O Imperador (que, a dada altura, se «institui como ‘pontifex maximus», conforme o assinala Raoul Vaneigem 3), «converteu-se em 323» e «só à hora da morte recebeu o batismo» 4 , ministrado pelo Bispo Eusébio de Cesareia, o qual sobre ele deixou escrito «Vida de Constantino» – um nefelibático panegírico. E eis que foi adotado pelos papas o jactante título «Pontifex» («Pontífice»), oriundo do sacerdócio pagão.
Após conluiados o poder secular e a Igreja Católica (o que assumiu rotunda expressão com o édito de Milão, em 313, publicado por Constantino, com o acordo de Licínio, senhor do Oriente e também augusto), não tardou que ela levasse aquele poder a vergar acerviz antesi eos soberanos passaram aserseus lacaios, emborahouvessealguns que se afoitaram a uma posição menos submissa, sabendo, de antemão, que o poder eclesiástico logo lhes faria cerco e lhes tornaria a vida cara 5 .
Complementando-se algo que atrás se exarou, diga-se que, ainda antes do referido conluio com Constantino Magno, à harmonia da mensagem de Jesus não correspondia uma harmoniosa vivência a nível dos cristãos, muitos havendo propensos a divisões, a dissídios. Eis, a propósito, esta transcrição de «O Homem em Busca de Deus»: «Poucas décadas após a morte dos apóstolos, os cismas já se haviam manifestado entre os cristãos. Will Durand diz: ‘O próprio Celso (oponente do cristianismo, do segundo século) havia sarcasticamente observado que os cristãos se dividiam em muitas fações, cada um desejando ter o seu próprio partido’. Lá por 187 D. C., Irineu colecionou 20 variedades de cristianismo; em 384 D. C., Epifânio contou 80’ (‘A História da Civilização, volume III – César e Cristo)» 6 .
1 Marcel Prélot, ob. cit., pp. 32 e segs.
2 Também ele considerado como de origem divina, por «graça de Deus» instituído e ungido.
3 Raoul Vaneigem – «As Heresias», trad. de Júlio Henriques, Edições Antígona, Lisboa – 1995, p. 77.
4 Vide «Constantino I, o Magno», in «Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira», cit., vol. 7 (de 1998), p. 496.
5 José Lourenço D. de Mendonça e António Joaquim Moreira – «História da Inquisição em Portugal», Círculo de Leitores, 1979, pp. 23-24.
6 Em Francisco de Azevedo Gomes – «Falsificação da História», cit., vol. II, p. 119.
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OProf.PadreSilvaRego 1 dizqueas «lutasreligiosasqueafligiramocristianismo nos primeiros séculos» foram «mais mortíferas» do que as «perseguições» movidas aos «cristãos» por uma parte dos Césares. Aluda-se aqui a um só exemplo: contra o bispo Prisciliano (acusado de heresiarca), espanhol, encarniçaram-se «senhores» tais como o bispo de Mérida e Ossónoba, tendo ele e seis dos seus companheiros, no tempo do imperador Máximo (sucessor de Graciano), sido decapitados, em Tréveros, no ano de 385 ou 386. Com a queda de Máximo, inverteu-se a situação: os bispos de Mérida e Ossónoba foram detidos e os restos de Prisciliano e seus companheiros foram «conduzidos triunfalmente para Espanha», sendo muito venerados. E o movimento priscilianista conheceu, durante uma boa temporada, grande expansão e começou a contar com muitos bispos, designadamente o de Braga 2 .
A Igreja Católica tornou-se a senhora suprema 3 deste mundo, o seu hegemónico poder deixou um historial de imposições iníquas, de práticas belicosas, de ganância, de entenebrecimento e opressão dos Povos – o que se desenvolverá nesta tese. O Supremo Bispo, o Papa, era o «chefe» do Planeta e tornou-se até indispensável, como se verá, o seu beneplácito para os mais relevantes cometimentos políticos e não só. Como nesta tese se documenta, tinha nas suas mãos os cordelinhos da política mundial, induzindo até na investidura e destituição de Príncipes. Eis, por exemplo, esta pincelada ilustrativa 4 : «O Papa Nicolau V (1447-1455) dizia: ‘Eu sou tudo, em tudo e acima de tudo a minha vontade prevalecerá; Cristo mandou Pedro embainhar a espada, mas eu mando desembainhar» – era, enfim, a afirmação dum poder inquestionável, teocrático, que se implantou, que medrou e que tornou possível, por exemplo, o à vontade com que Alexandre VI lançou esta ameaça faiscante contra várias entidades europeias que verberavam os seus enormes escândalos: «Se continuais a dar-me cabo dos ouvidos, mando-vos atirar a todos à água» 5 .
1 Prof. Padre António Silva Rego – «Lições de Missionologia», Junta de Investigações do Ultramar, Lisboa – 1961, p. 35.
2 Vide «Prisciliano», in «Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira», cit., vol. XXIII, p. 293.
3 Acerca da insuperável proeminência a que, desde o fundo dos tempos, se alcandoraram os Papas, é esclarecedora a transcrição seguinte: «… reis, imperadores, leigos eclero deviam obediência (aos SumosPontífices)… ‘Toda a ordem social ereligiosa do mundo dependia do papado romano.» – Heitor Morais da Silva, S. J., em «História dos Papas – Luzes e Sombras», Editorial A. O./Braga (2005), 2ª ed., p. 165.
4 Francisco de Azevedo Gomes – «Falsificação da História», cit., vol. II, p. 117.
5 Adriano Vasco Rodrigues – «História Geral da Civilização»/«Civilização Moderna e Civilização Contemporânea», Porto Editora Lda., 6ª ed., 1972, vol. II, p. 310.
Recorde-se, de caminho, que o célebre Savonarola, «depois de excomungado por Alexandre VI, morreu na fogueira, em 1498». Este papa, «ao embaixador de França, justificava-se com estas encantadoras palavras: ‘Vós, os Franceses, não conseguis compreender que o papa é um homem como os outros» (ob. cit., vol. II, pp. 308 a 310).
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É pertinente referir-se que, em estudo de A. Ferreira Marques 1, são versados aspetos tais como: o alcance por parte do papa Estêvão II 2 do apoio de Pepino o Breve (que, após golpe de Estado, se tornou rei dos Francos, obtendo o sacro beneplácito do Papa) às suas aspirações, tendo sido até firmado entre ambos, «em Quierzy, uma aliança defensiva e ofensiva…»; as atitudes de Carlos Magno, «na linha do seu antecessor», Pepino, o Breve 3; a génese do «Sacrum Imperium Romanum». E, no mesmo estudo, exara-se: «Para garantir uma base jurídica à formação do Estado Pontifício invocou-se o famoso ‘Constitutum’ ou ‘Donatio Constantini’, uma das maiores falsificações medievais. Reza o documento que, grato pelo batismo (suposto) e pela cura da lepra, Constantino Magno concedeu ao Papa Silvestre (314-335) e seus sucessores poder e dignidade imperiais, doou-lhes o palácio de Latrão e deixou-lhes o domínio sobre Roma e todas ‘as províncias, territórios e cidades de Itália e regiões do Ocidente’, transferindo, por isso mesmo, para Bizâncio, a residência imperial. Este documento, cujo texto integral aparece pela primeira vez em meados do século IX, foi considerado genuíno por toda a Idade Média, até que os humanistas do século XIV, como Nicolau de Cusa e Lourenço Valla, demonstraram a sua inautenticidade. Lugar, tempo e intuito da falsificação ainda hoje se discutem. Provavelmente teria sido forjada ainda no tempo de Estêvão II, influenciando os acordos de Quierzy, onde se fala de ‘restituição’. Ou então pouco depois, no pontificado de Paulo I (757-767) e, neste caso, não em França mas em Roma, para anular juridicamente as pretensões bizantinas e longobardas ao exarcado de Ravena e outros territórios italianos. Com a sua formulação imprecisa e o seu conteúdo altissonante, a ‘Donatio Constantini’ serviu mais tarde de argumento ao Papado para ulteriores reivindicações territoriais, para exigências de autonomia política e até para fundamentar a teoria do predomínio pontifício sobre o Ocidente, sendo, nesta linha, invocado pela Santa Sé, sobretudo a partir dos fins do século XII, nas suas lutas contra as potências seculares.»
Essa anticristã sofreguidão por um poder supremo levou a cúpula clerical à urdidura 4 também das «Decretais de S. Isidoro» (as denominadas «Falsas Decretais» ou
1 A. Ferreira Marques – estudo intitulado «O fim do poder temporal e a unificação da Itália. Infalibilidade papal: dogma com 100 anos», na revista «Vida Mundial» nº 1632, de 18.9.1970, pp. 40 e segs.
2 Neste contexto, atente-se, designadamente, no que ocorreu nos anos 754 e 756.
3 O poder eclesiástico deu mais um passo em frente, «o papa fez cunhar moeda com o seu nome e efígie e começou a datar os documentos segundo os anos do seu pontificado…»
4 E, além dos dois embustes aqui mencionados, outros houve.
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«Decretais do pseudo-Isidoro») e alegava-se que o conteúdo destas integrava contributos de Bispos dos primeiros séculos da era cristã 1 Antes da Inquisição na sua aceção mais corrente, já havia, desde há muito, tribunais eclesiásticos 2 para julgar heresias e outras atitudes consideradas «crimes», segundo o prisma da Igreja Católica. E com este mesmo objetivo tinham sido criadas leis punitivas pelo poder secular (é claro que era, sobretudo, o poder eclesiástico que estava por trás destas medidas), sendo certo que os reis e demais membros do estrato aristocrático, salvo alguns, eram comungantes dos interesses perversos do referido poder clerical, de que eram subservientes, importando a ambos os poderes oprimir e embrutecer a gentalha, que existia, acima de tudo, para servir o fausto e saciar os caprichos dos «senhores».
Conforme se diz em «A Inquisição» 3 , a princípio, tentando-se esbater a vileza de condenaralguémporrazõesreligiosas(recorde-se,apropósitoque,porexemplo,Silviano, apelidado de «o mestre dos bispos», repudiou, com rara clareza e vigor, a atitude execranda de perseguir alguém por motivos de fé) qualificava-se a vítima como «cabeça de motim».
As cúpulas da Igreja Católica, designadamente os papas, na sua afirmação de uma cada vez mais galopante ambição e tirania, lograram ir mais longe, consagrando aquilo que, desde há muito, vinha sendo urdido – a «Santa Inquisição». Era mais um execrando preciosismo na reafirmação do poder absoluto da «Santa Madre Igreja». Os próprios reis, os magistrados seculares, etc., além de tolhidos face ao «teocrático» poder dos arbitrários e torcionários inquisidores, ficavam sujeitos à terrífica possibilidade de caírem sob a tarraxa inquisitorial.
«A palavra inquisição designou, a princípio, o processo adotado, desde o século XII, nos tribunais eclesiásticos…», lê-se na «Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira» 4 , na qual se acrescenta: «… A Inquisição ou inquirição consistia
1 Não basta dizer-se que os congeminadores dessas urdiduras reivindicavam para as mesmas a alta sacralidade que eles a si mesmo se arrogavam;équetambémimportaevocarque,então,aescritaemLatimserevestiadeumasignificativamistificação. Esejamreferidas tão só estas duas pinceladas elucidativas sobe a etérea auréola que a si mesmos atribuíam os clérigos: no séc. XII, na abadia de S. Vaast d’Arrhas, deparava-se com esta estarrecedora ameaça: «Liber Sancti Vedasti Atrebatensis quicumque eum furaverit anathema sit» – «Quem furtar o livro de S. Vaast d’Arrhas seja anátema»; e eis palavras do Papa Leão Magno: «… mesmo os subdiáconos como ministros do altar têm que se abster de toda a união sexual…, de modo que os que têm mulher vivam como se a não tivessem e os que não têm, assim permaneçam…», expressamente se preocupando o papa com os «vasos sagrados», em que não podia tocar quem se «sujava» no «leito conjugal» (Doutor A. Silva Campinho – no «Correio do Minho de 11/7/1982).
Sebemqueumpouco «a latere», aluda-se«quea preocupação, aindahojemantida, depronunciarcorretamenteos textos sagrados do sânscrito védico é de preceito tanto para a tradição revelada – ‘sruti’ – como para a lembrada – ‘smrti» (Francisco de Azevedo Gomes – «Os Fataluku», ensaio antropológico (tese de licenciatura), I.S.C.S.P./Universidade Técnica de Lisboa, 1972, p. 82).
2 Ver, por exemplo, José Lourenço D. de Mendonça e António Joaquim Moreira, ob. cit., p. 413.
3 Carlos Babo – «A Inquisição», Lello e Irmão – Editores, Porto – 1940, pp. 7-8.
4 «Inquisição», in «Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira», cit., vol. XIII, pp. 846-847
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essencialmente na investigação promovida pelo juiz. E os juízes, no caso de heresia, eram bispos ou outros eclesiásticos com delegação especial para esse fim. Os primeiros que ordenaram disposições particulares neste sentido foram os papas Lúcio III (1181-1185) e Inocêncio III (1198-1216) e o 4º Concílio de Latrão (1215)…»
Respigue-se também algo da «Verbo – Enciclopédia Luso-Brasileira de Cultura» 1:
A seguir a Constantino Magno (sob a vigência deste, tinham sido, por exemplo, remetidos para duro desterro líderes religiosos não trinitários), agrava-se o quadro das duras penas contra os «hereges» e, em breve, se desemboca até na aplicação da pena de morte.
Lê-se, na referida Enciclopédia, que os membros destacados da Igreja Católica Tertuliano, Cipriano, Lactâncio, Martinho de Tours, Ambrósio, João Crisóstomo «resistiram ao uso da violência contra os ‘hereges». Os canonizados Leão Magno e Agostinho de Hipona vieram a admitir a aplicação de medidas violentas contra os «hereges», «com exclusão da pena de morte».
E mais adiante: «Há documentos comprovativos da execução, na fogueira, de alguns hereges: em Colónia (1163), Vézelay (1167), Troyes (oito cátaros queimados em 1200), Nevers (um em 1201 e vários em 1204)».
A seguir, são referidas medidas publicadas (estipulando pena de morte), no fim do século XII e princípio do século XIII, em alguns domínios católicos, contra «cátaros e albigenses»
É dado, depois, o devido enfoque às medidas de «carácter geral» contra os «hereges» tomadas por Alexandre III, no III Concílio Ecuménico de Latrão (1179), e por Lúcio III, no Concílio de Verona (1184). Quanto a medidas de Lúcio II, diz-se, a dado passo: «… para que se lhes impusesse o castigo devido (animadversione debita puniendi). Acrescentava a recomendação de que se procedesse à inquisição ou busca dos hereges. Para isso, se começou a estabelecer tribunais ordinários que procedessem contra os hereges de acordo com o direito existente (não eram ainda os tribunais especiais da típica inquisição medieval)».
Inocêncio III organizou a cruzada contra os Albigenses – indivíduos honrados, em cuja atitude algo se encontrava da elevação de espírito de Arnaldo de Bréscia, morto na
1 «Inquisição», in «Verbo – Enciclopédia Luso-Brasileira de Cultura», cit., vol. 10, pp. 1510 e segs.
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fogueira da Inquisição (ele, que, tal como, por exemplo, João Salisbury, denodadamente punha ao léu iniquidades do papado/catolicismo); aos «hereges» considerava-os «réus de lesa-majestade» e «urgiu o cumprimento das leis estabelecidas». «Disso se fez eco o Concílio IV de Latrão (1215), que codificou toda a legislação anti-herética e ameaçou com a excomunhão os príncipes que a não cumprissem…», tendo vários destes sido excomungados pelo dito Papa.
Depois de referirem os horrores espalhados pelos Inquisidores (mesmo entre as altas autoridades seculares, algumas das quais unânimes com os Albigenses), os autores de «História da Inquisição em Portugal» (cit., pp. 48 a 50) aduzem, quanto à denominada Inquisição «dispersa», que durou meio século, registos deveras expressivos:
«Eles faziam sofrer horríveis tormentos aos que prendiam com o pretexto de heresia, para lhes fazer confessar crimes de que não eram culpados, subornavam testemunhas, falsificavam escrituras, etc., de sorte que todos os povos pareciam dispostos à revolta (D. Vaissette, ‘História do Languedoque’)».
«Não encontro por toda a parte senão cidades devoradas pelas chamas e casas arruinadas. Os perigos que me cercam me fazem ter sempre presente a imagem da morte (o abade de santa Genoveva)».
«Não se pode ler sem horror a severidade, ou antes, a crueldade, que se usou com os Albigenses, severidade que não era inspirada pelo espírito de Jesus Cristo. A matança deBéziers, osaquedeCarcassona, atomadade Lavaurfazem horror (oabadedeNonotte, ‘que não gozou de opinião de tolerante’)».
As cidades acabadas de referir, bem como muitas outras (Tolosa, Narbone, S. Gil, Arles, Aix, Marselha, Avinhão, Albi, Montpelier…) foram inundadas de sangue. Só em Béziers, foram barbaramente assassinadas, segundo se calcula, cerca de sessenta mil indivíduos (homens, mulheres, crianças). E, como sempre, a sede de matar a eito esteve conjugada com os demais consabidos horrores, designadamente as violações – o que era tão frequente nas matanças perpetradas em nome da dita «Fé», algumas das quais (por exemplo, a «Matança de S. Bartolomeu», em Paris 1) mencionadas em «Falsificação da História», cit., no mesmo ponto em que se versa sobre o massacre dos Albigenses
E «consta que perguntando os lidadores católicos ao abade de Citeaux (um dos líderes da ‘cruzada’ nomeados pelo Papa) como poderiam distinguir os fiéis dos
1 «… Matança de crianças, velhos e mulheres, a quem abriram as entranhas depois de saciar nelas bestiais desejos», eis o que ocorreu na matança de S. Bartolomeu, em Paris, desencadeada, em 24.8.1572, contra os Protestantes. Francisco de Azevedo Gomes – «Falsificação da História», cit., vol. I, pp. 307 e segs.
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Albigenses, lhes respondera este: ‘Matai a torto e a direito, por isso que Deus saberá bem conhecer quais os seus» («História da Inquisição em Portugal», cit., p. 35)
Refira-se: Inocêncio III 1 coloca, na vanguarda dessa campanha rechaçadora, Domingos de Gusmão como comissário-inquisidor e, como chefe das hostes, que aniquilariam os hereges, Simão de Montfort 2, o qual, diz-se na «História da Inquisição em Portugal» 3, tão iníquo era que chegou à aberração de «fazer desocular barbaramente sua filha Maria só porque ela albergara em seu coração um amor desaprovado por seu pai».
Eis um apontamento retiradode «A Inquisição» 4: «Em 1229,reuniu-seoConcílio Provincial de Tolosa, no qual foram promulgadas quarenta e cinco resoluções, sendo dezoito relativas aos hereges ou suspeitos de heresia. Vejamos como se exprime a este respeito Alexandre Herculano: ‘Estatuiu-se que os arcebispos e bispos nomeassem em cada paróquia um clérigo com dois, três ou mais assessores seculares, todos ajuramentados, para inquirir da existência de quaisquer heresiarcas, ou de alguém que os seguisse ou protegesse, e para os delatarem aos respetivos bispos ou aos magistrados seculares, tomando as necessárias cautelas para que não pudessem fugir. Estas comissões eram permanentes. Os barões ou senhores de terras e os prelados das Ordens monásticas ficavam, além disso, obrigados a procurá-los nos distritos ou territórios de sua dependência, nos povoados e nas selvas, nas habitações humanas e nos esconderijos e cavernas. Quem consentisse em terra própria um desses desgraçados seria condenado a perdê-la e a ser punido corporalmente. A casa onde se encontrasse um herege devia ser arrasada… A completar e reforçar esta obra, veio Luís IX (S. Luís, rei de França) com um decreto ‘não só concorde na substância com as provisões do concílio tolosano, mas em que também se ordenava o suplício imediato dos hereges condenados e se cominavam duras penas de confisco e infâmia contra os seus fautores e protetores’. Esta legislação francesa, aliada à de Frederico II na Alemanha, dando sanção legal ao sistema de intolerância sanguinária seguido contra os dissidentes, e à de parte da Itália, tornou muito mais tremendas as providências tomadas na assembleia de Tolosa. Ainda assim… e
1 «Para se fazer uma ideia distinta de quem foi o Papa Inocêncio III, não será por certo necessário mais do que recordarmo-nos do sem-número de excomunhões fulminadas contra os reis de França e Bretanha, bem como da subtileza com que à força de armas soube usurpar as soberanias de Úmbria, de Marca de Ancona, de Orbitello, de Viterbo e de toda a România. A história revela amplamente o seu carácter imensamente oposto aos dogmas fundamentais da moral evangélica». José Lourenço D. de Mendonça e António Joaquim Moreira, ob. cit., p. 33.
2 Do catecismo (mencionado no final desta nota) prescrito por Pio X não fique por aduzir-se que, aí, se enaltece a «Fé viva» de Simão de Montfort e, além do mais, nele se assevera que «o Rosario foi dado por Maria Santíssima a S. Domingos», durante a campanha contra os Albigenses: «Esta Senhora appareceu-lhe e deu-lhe o Rosario como arma poderosa» – Padre G. Perardi – «Manuale del Catechista Cattolico» («prescrito por S. S. Pio X»), 1912, respetivamente nas pp. 557 e 259.
3 José Lourenço D. de Mendonça e António Joaquim Moreira, ob. cit., p. 35.
4 Carlos Babo, ob. cit., pp. 11-12.
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embora, pelo que respeita ao extermínio dos hereges, o poder eclesiástico e o civil ou secular ‘se compenetrassem na prática’, conforme escreve Alexandre Herculano, não foi o Concílio de Tolosa que firmou o cunho definitivo da Inquisição como entidade independente.»
No tocante ao estabelecimento da Inquisição como instituto legal, os autores de «História da Inquisição em Portugal» (cit., p. 62) acharam que deviam dar maior enfoque a dois nomes: Inocêncio III (1198-1216) e Inocêncio IV (1243-1254). Ao primeiro, no fim das horripilantes operações marciais contra os Albigenses, se deve a criação da Inquisição nesses autores denominada «dispersa»; ao segundo se deve a Inquisição como «tribunal permanente, metódico e constitutivo».
Em «A Inquisição» 1 , lê-se: «O Tribunal da Inquisição só foi realmente constituído em 1233 pelo papa Gregório IX. E, no Concílio Provincial de Béziers, em 1245, foi redigido, por ordem de Inocêncio IV, o regulamento definitivo sobre o modo de proceder contra os hereges, regulamento que serviu de base a todos os ulteriores regulamentos da Inquisição…» (em 1252, na bula «Ad extirpanda», Inocêncio IV converteu em instituto legal o uso da tortura no sistema processual da Inquisição).
Para se fazer uma pálida ideia sobre o agigantamento do já todo-poderoso poder eclesiástico e sobre o rebuscamento de uma já tão feroz intolerância que vinha do fundo dos tempos, vejamos um pouco do que ocorreu a partir do pontificado de Gregório VII (com inclusão deste, que se situou entre 1073 e 1085) até à instituição da Inquisição como «Tribunal permanente, metódico e constitutivo».
Como já se disse, desde os mais recuados tempos, os «chefes» da Igreja Católica (Papas/Cúria Romana, etc.) bem demonstravam não poder aceitar «qualquer outro poder independente ou superior, e se, por alguns anos, estas suas intenções se deixaram ficar estacionárias, foi sem dúvida porque a má disposição das conjunturas lhes não apresentava uma favorabilidade oportuna. Desde que os concílios se começaram a tornar uma como que última instância onde se decidiam, sem recurso, as graves questões do mundo cristão e os papas entraram logo a manifestar a virtualidade dos seus propósitos de engrandecimento absoluto, e estes, com o correr dos tempos, se volveram de tal arte, incessantes e temerários que nenhuma dúvida houve em reconhecer de pronto o alvo a que se dirigiam» 2
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Carlos Babo, ob. cit., p. 12.
José Lourenço D. de Mendonça e António Joaquim Moreira, ob. cit., pp. 53-54.
A «Corte de Roma», na pessoa de seu elemento destacado – o papa Gregório VII – acaba por, sem rodeios, considerar-se na «fruição do pretendido direito de conceder e abstrair dos tronos» 1 .
Era, então, imperador Henrique IV (sobre o qual, conforme noutro ponto se referirá, Gregório VII atirou excomunhão e submeteu a mui dura humilhação).
Defrontam-se os exércitos dos dois poderes. Após tanta mortandade e devastações, acaba por sair vencedor Gregório VII.
Mais tarde, muito acirrada luta houve entre o Imperador Frederico II (1194-1250) e papas sucessivos.
«Inocêncio III (1198-1216) tinha sido tutor de Frederico II» e tudo fez por o modelar a seu jeito. Mas o pupilo não lhe saiu muito dócil. Insiste-se na acesa contenda entre os dois poderes.
A Inocêncio III sucede Honório III (1216-1227), que, além de mais, desencadeou a Quinta Cruzada (1217-1221)
Segue-se o papa Gregório IX (1227-1241). «Achando-se Frederico enfermo, porque logo não partiu para a cruzada da Terra Santa, foi severamente excomungado e quando, na volta desta expedição, o imperador pretendeu dar o reino de Sardenha a um dos seus filhos, tornou a ser anatematizado por este excesso de soberania – por isso que invadira as atribuições do papa, outorgando aquele reino sem o seu beneplácito. Porque os seus anátemas não tiveram o efeito antolhado, o pontífice chegou ao extremo de depor do trono Frederico, ofertando o império a Luís IX 2, rei dos Francos, que o deveria fazer ocupar pelo conde de Artois, seu irmão. As armas foram logo empenhadas, a peleja abriuse, o sangue correu com abundância, mas Frederico triunfa e conserva o Império. Gregório IX, a quem a morte não deixou lograr muitos anos as honras da púrpura, finouse sem ter conseguido abater o imperador, a quem votava um ódio figadal e encarnecido.»
«As exigências da CúriaRomanaapareceram cadavez mais formidáveis ea guerra incendiou-se logo e não pouco furibunda»; pelo papa Celestino IV (1241) e pelo Papa
1 Idem, p. 54.
2 «Luís IX recusou semelhante oferta, expressando, admirado: ‘Como se atreveu o papa a depor um tão grande príncipe que nunca foi convencido dos crimes de que o acusam? Se mereceu ser deposto, nunca o poderia ser senão por um concílio geral» – apontamento constante de «História Completa das Inquisições de Itália, Espanha e Portugal» (livro I, p. 36) e recolhido em José Lourenço de Mendonça e António Joaquim Moreira, ob. cit., p. 55.
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Inocêncio IV(1243-1254) 1 foidadoprosseguimentoaessatorrentedeódio, àfulminação com excomunhões, à insistência bélica 2
A todo-poderosa cúpula eclesiástica, mui compenetrada de que o referido «Tribunal permanente, metódico e constitutivo» era monstruosidade por demais iníqua, estatuiu que nenhuma resistência ou reação incómoda seria tolerada. Remetendo para o muito que, quanto a isto, mais adiante se explanará, aludo aqui, a título de exemplo, apenas à neutralização dos magistrados seculares. Veja-se como os autores de «História da Inquisição em Portugal» 3 vibrantemente increpam a completa e arrogante sobranceria da Inquisição sobre os mesmos, que não eram vistos senão como seus míseros fâmulos: «Podiam jamais os tribunais seculares deixar de condenar aqueles desgraçados…? Não incorriam eles em pena de excomunhão maior se logo, logo, os não condenavam e não importaria esta mesma excomunhão o ser lançado sob o jugo dos inquisidores?» Os «magistrados seculares…, no sentir da Inquisição, não eram mais do que uns servis instrumentos da prepotência e arbitrariedade inquisitorial… O juiz secular não goza a liberdade de julgar…; a sua missão, nos processos remetidos da Inquisição, limita-se unicamente a sancionar os impiedosos julgamentos dos inquisidores. Assim o diz mui expressamente Simancas, asseverando ‘que o juiz leigo é obrigado a condenar e a executar a sentença, em caso de heresia, com os olhos fechados, sem tomar conhecimento ou certificar-se da justiça da causa» 4
«Inocêncio IV, não julgando bastante a submissão que os seus súbditos deviam à qualidadesoberanadequeseachavarevestido,resolveuaindajungi-los mais estritamente, para o que tratou de prendê-los pela imunidade dum solene juramento, por meio do qual as autoridades locais, em nome dos povos respetivos, se obrigavam a guardar e obedecer rigorosamente a tudo quanto fosse ordenado», em ordem ao «estabelecimento e governo» dos Tribunais da Inquisição 5 .
«Ligados os povos por meio dum tal juramento, apareceu a bula que erigia o Tribunal», fazendo parte do seu articulado duas disposições (consubstanciadas nos dois pontos exarados, de seguida), que compeliam, sem rodeios, o poder secular a vergar-se, colaborar, alinhar, sem titubear:
1 Tendo pelo Papa Inocêncio IV sido Frederico II excomungado e «solenemente destituído dos seus títulos de rei da Alemanha e Imperador de Roma», a propósito se diz na publicação de seguida referida: «Era um novo impulso para o ocaso do poder imperial e, aomesmotempo,umaprovadaplenitudedospoderespapais».HeitorMoraisdaSilva,S.J.– «HistóriadosPapas– Luzes eSombras», cit., p. 254.
2 José Lourenço D. de Mendonça e António Joaquim Moreira, ob. cit., pp. 55-56.
3 Idem, pp. 414-415.
4 Idem, p. 415.
5 Idem, p. 63.
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«1. Que estes regulamentos seriam registados sem demora em todos os arquivos públicos, para serem inviolavelmente observados, não obstante todas e quaisquer oposições, cujo conhecimento e decisão a ele (papa) só era reservado.
2. Que os inquisidores seriam obrigados sem demora a pôr imediatamente interdito nos lugares em que fossem derrogados estes regulamentos e a excomungar as pessoas que recusassem conformar-se com eles.» 1
4. O Tribunal do Santo Ofício
4.1. Introdução
Em temos de operacionalidade, eis o que se impõe começar por dizer: Por razões óbvias, designadamente a de uma compreensível simplificação, passarei, em alguns pontos seguintes, quanto às duas fontes que se seguem, a mencionálas, frequentemente, pela respetiva sigla, assim:
H.I.P. = «História da Inquisição em Portugal» (mais propriamente, «História dos Principais Atos e Procedimentos da Inquisição em Portugal»), de José Lourenço D. de Mendonça e António Joaquim Moreira. Círculo de Leitores.
S.I.C. = «Sentenças da Inquisição em Coimbra em metropolitanos de D. Frei Bartolomeu dos Mártires (1567-1582)» – Introdução e Leitura de Elvira Azevedo Mea (Faculdade de Letras Univ. do Porto). Arquivo Histórico Dominicano, Porto – 1982.
Ficará truncado o que aqui se exara sob esta epígrafe se não se tiver bem presente o que se explanou no ponto anterior.
O Santo Ofício, deleitando-se nas mais iníquas, ingentes crueldades e arbitrariedades, atentava contra, como claramente ficará demonstrado, os mais elementares princípios ético-jurídicos, a todos os níveis: a sacralização dos processos mais monstruosos e cavilosos de culpabilização/condenação, a recusa às vítimas de recorrerem a advogado e a testemunhas de defesa, o secretismo imposto sobre as maiores sevícias, as mais requintadas torturas, as iniquidades mais inimagináveis ininterruptamente perpetradas pelos plenipotenciários julgadores inquisitoriais, eis algo dessa atuação de séculos, além de mais imperturbável, pois, por um lado, não receava a 1 Idem, p. 64.
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Igreja que o poder secular, subalternizado e, na maioria das situações, mui conluiado, ousasse qualquer interferência ou destom, e, por outro lado, descansava a clerezia na mais completa, sacralizada submissão dos magistrados seculares – qual destes se arriscaria a excomunhão maior e demais implacáveis tarraxas?
Atente-se no que diz Alexandre Herculano: «Nos três factos principais, manifestação completa de espírito da mais atroz, da mais anticristã instituição que a maldade humana pôde inventar, se resume a história da inquisição portuguesa – nas capturas arbitrárias; nos longos cativeiros sem processo; nas fogueiras devorando promiscuamente o Cristão e o Judeu por honra da Inquisição e glória de Deus… Eis o que se fizera antes de 1547 e o que se fazia depois: os escândalos…, as espoliações, as falsificações, as mentiras impudentes, os atentados contra os bons costumes, as hipocrisias insignes, as barbaridades ocultas, as hecatombes públicas de vidas humanas» 1 .
Tinham os teólogos e entidades da Igreja Católica debatido esta questão 2 : os sentenciados à morte 3 tinham que irrefragavelmente ser executados, mas com que tipo de morte? Arredaram-se as fugazes opiniões de o serem «por meio de ferro… ou por virtude doutro qualquer meio aflitivo», pois se lhes impunha como incontornável e brilhante o imperativo de o serem pelo fogo, com base neste versículo evangélico: «Se alguém não permanece em mim, é lançado fora, como um ramo, e seca. Esses são apanhados e lançados ao fogo, e ardem» 4 .
E até pretendia incutir-se que a morte (pelo fogo) era «para o próprio bem dos hereges e para maior glória divina» 5
Aos condenados à pena máxima os inquisidores perguntavam se queriam «morrer na lei de Cristo» ou não (H.I.P., p. 141). Se sim, eram mortos como «cristãos» («confessados», etc.), sendo garrotados, antes de queimados. Os que não morriam na «lei de Cristo» eram queimados vivos. A estes, muitas vezes, um tropel de populares bestializados, em ensandecido delírio, «fazia-lhes a barba», chegando-lhes ao rosto tições acesos, antes das labaredas os envolverem.
As torturas, diversas e horripilantes (potro, polé, fogo, etc.) eram executadas no antro que passa a caracterizar-se:
1 Carlos Babo, ob. cit., p. 62.
2 H.I.P., cit., p. 379
3 Acerca da consagrada «fórmula processual», ou seja, da verborreia ingentemente cínica e abominável com que se ditava a pena máxima, leia-se Francisco de Azevedo Gomes – «Falsificação da História», cit., vol. II, pp. 278-279.
4 João, cap. 15, vers. 6.
5 Expressão recolhida do posfácio de Fernando Alvarez-Uria em «Brevíssima Relação da Destruição das Índias», de Bartolomeu de Las Casas, Edições Antígona, Lisboa – 1990, trad de Júlio Henriques, p. 178.
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«A casa dos tormentos, propriamente construída para o ministério horroroso de atormentarem os infelizes caídos nas mãos dos inquisidores, era mui ordinariamente uma como quegrutasubterrânea,todadeabóbada, aquesedesciaporumainfinidadedevoltas e torcicolos, assim muito de propósito fabricada com o fim de servir a tão abominável mister e abafar completamente os rijos clamores dos atormentados… O seu horror era ainda aumentado pela ordinária escuridão, sendo necessário, mesmo de dia, o socorro da claridade artificial: dois luzeiros, ministrados por um candelabro sepulcral, serviam a esclarecer esta casa infernal… Além das pessoas necessárias aos tratos, ninguém mais ali penetrava, sendo que os presos não podiam conhecer os executores por estes se apresentarem amortalhados em umas como olandilhas, que os cobriam todos.» (H.I.P., cit., p. 329)
Eram sostra e vexatoriamente despidos, «despojados de seus vestidos» (homens e raparigas/mulheres) e atados os submetidos a tortura.
Eis a fórmula, exarada no Manual dos Inquisidores, com que atiravam os infelizes para as torturas: «Nós, pela graça de Deus, N…, inquisidor, etc., vista a causa formada contra vós e que variais em vossas respostas, havendo contra vós suficientes indícios, para saber da vossa boca a verdade e que não prossigais enganando os vossos juízes, mandamos, declaramos e ordenamos que em tal dia, a tal hora, sejais postos a tormento, etc.» (H.I.P., p. 327).
E, antes de iniciado o suplício, era pelos inquisidores enunciada esta fórmula tão cruel como cínica: «… se morresseno tormento ou quebrasse algum membro ouperigase, que a culpa fosse delle, Réu, e nom deles…» (S.I C., cit., p. LVI) 1
Acontecia que os inquisidores, ao exararem, nos processos dos réus, as tramitações e ocorrências das respetivas sessões de tortura, vincavam que, «com muita caridade de Christo N. S.» (isto no auge da dor), os haviam admoestado a olhar pela alma, confessando as «culpas» e denunciando pessoas (H.I.P., pp. 249 e segs ).
No final da sessão de tormentos, com frequência, danos físicos graves ora tinham incapacitado uns infelizes de assinarem o dito «auto de abjuração» ora tinham induzido outros em assinatura sintomaticamente desajeitada e trémula 2
1 No âmbito datorturadopoeta António Serrão, regista-se, em AntónioBaião, algo substancialmentecoincidente:«… seellemorresse no tormento, quebrasse algum membro, perdesse algum sentido, a culpa seria sua e não dos Senhores Inquisidores que o julgaram ao dito tormento, segundo o merecimento do seu processo». António Baião – «Episódios Dramáticos da Inquisição em Portugal», Seara Nova – 1973, 3ª ed., vol. II, pp. 25-26.
2 António Baião (ob. cit., p. 25), quanto a Serrão, apresenta o cotejo entre esta e o respetivo fac-simile.
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Com justeza, os autores de H.I.P. (p. 121), referindo-se à Inquisição, dizem: «… constantemente ficarão ignorados muitos dos seus atos – talvez os mais formidáveis –que o silêncio da morte conserva envoltos nas cinzas de imensos finados».
Esses entes supinamente cruéis, impondo o mais rigoroso segredo, acobertandose em labirintos, em resguardos, em ardis, em sofisticadas simulações, ávidos de sugar a alma de multidões, a fim de facilmente as resignar, despersonalizadas, no seu tenebroso império, neste as tendo à mercê da sua perversão e opressão, será que poderiam ser ultrapassados em maldade por quem nesse sentido porfiasse? Que sociedade secreta, por mais industriada que fosse na oficina da iniquidade, atingiria o patamar dessa engrenagem? Em H.I.P. (p. 282), a Inquisição é denominada «o mais diabólico tribunal do mundo» 1 .
De tantos indivíduos liquidados, de tantos horrores da Inquisição houve o tresjurado empenho de não restar sequer o mais secreto registo (respeitante, por exemplo, aos «mais de dois mil cadáveres mumificados» de pessoas que terão sido «emparedadas vivas» pela Inquisição de Lhenera, «cuja jurisdição abrangia as Astúrias» – os corpos apareceram «atrás de paredes duplas de uma torre perto da igreja de Lhenera, havendo «documentos que provam», além de mais, jazerem nessa torre «vários crucificados») 2 Houve, repita-se, a inabalável determinação de que, quanto a tantas monstruosidades cometidas, jamais qualquer indício viesse à tona.
Os torcionários, encapuçados, reclamavam, à medida que iam progressivamente agudizando o sofrimento, que as vítimas fossem confessando «culpas» e mais «culpas», bem com denunciando pessoas. Quantos indivíduos, nas torturas, acabavam por dizer, em delírio, aquilo que nunca fizeram e por denunciar sem fundamento (sendo então alijada e acrescida sobre os mesmos também a culpa de, antes das mesmas, não terem feito a confissão e denúncias). As atrozes e morbígenas manipulações psíquicas e físicas não raro levavam certas vítimas a magicar, a conjeturar, delirantes, oníricas, enlouquecidas, que, embora disso não tivessem consciência, fariam, possivelmente, mirabolâncias e práticas de que eram acusadas.
Diga-se, de caminho: um tal «statu quo» sociorreligioso, cumulado com a dantesca contextura inquisitorial, até tornou possível que designadamente algumas freiras
1 Eisumdospreceitos bem vincadospela Inquisição: «Os ministros eoficiaiscontínuosqueassistemnaMesadodespacho,no Secreto e na Sala do Santo Ofício procurarão, com toda a pontualidade e devoção, ouvir missa que se há de dizer no oratório da Inquisição meia hora antes de se entrar em despacho, para que, por meio deste sacrossanto sacrifício, cumpram todos melhor com a obrigação de seus ofícios». Raul Rego – «O Último Regimento e o Regimento da Economia da Inquisição de Goa» (Ministério da Cultura). Leitura e prefácio de Raul Rego. Lisboa –1983 (1ª ed.), p. 34.
2 A notícia foi divulgada pela televisão e por jornais, designadamente o «Jornal de Notícias», de 8-7-1979 («Descoberta Macabra»), p. 32.
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acabassem por descair em delirantes/esotéricas dicas acerca de relações sexuais com diabos. «Foram também os tempos da grande mística. E da mística inversa, a do demónio… Àbeatade Aguilarbeneficiou-a,durantetrintaanos, um diabo ‘transformista’ e houve centenas de processos por amancebamento com diabos de pénis frio e com escamas, especialmente tendentes à sodomia sem distinção de sexo, estado e condição» 1 .
Procedia-se logo ao inventário rigoroso dos tão cobiçados haveres da vítima, desdeos bensimobiliáriosatéaossimplesutensílios,paraquenadaescapasseàusurpação, o que, em imensos casos, ocorria; desde já se afirme que não apenas os «relaxados» (os condenados à morte) eram espoliados de tudo, mas também muitíssimos outros sentenciados (de tudo ficando desprovidos filhos e outros familiares) 2. Por exemplo, no auto de 23.6.1663, em Évora, em que houve 142 punidos, «a todos foram confiscados os bens» (H.I.P., p. 211).
E,note-se,apossibilidadedesaltaremcimadehaveresexistiaatéàquartageração em consonância com a possibilidade, que muitas vezes ocorreu, de se alegar que tinham algo contra a fé indivíduos já falecidos há muitos anos, sendo, então, desenterrados e a preceito tratados com a devida ignomínia
Os cárceres (H.I.P., pp. 383 e segs.), que, em pontos recônditos, tinham buracos por onde os agentes da inquisição podiam vigiar o comportamento dos presos, eram horrendos antros 3; os presos, ali encafuados, definhavam com mau passadio, falta de higiene e de arejamento, mais não havendo que a tão diminuta luz coada a nível da parte superior da porta; ali comprimidos, por falta de espaço, a ponto de ficarem «costas com costas», enquanto dormiam no estrado, alguns havendo que tinham de ficar no lajedo. Era mui violentamente açoitado (enquanto o pregão anunciava o «delito») quem passasse sinais dum cárcere para outro, através, por exemplo, de pancadinhas na parede. Ver-se-á que, por motivos calculistas e execráveis do Santo Ofício, tinham as Inquisições que dispor de vários cárceres (na de Goa, por exemplo, havia «vinte cárceres pequenos e dois maiores») 4 .
1 Pablo Larraneta – texto (citando-se Ricardo Herren) na revista «Tiempo», nº 493, de 14.10.1991, p. 22.
2 Outros considerandos seriam aqui tão pertinentes como o seguinte, que é tão úbere em conclusões a tirar: essa atitude de cruelmente roubar os bens às pessoas perfilava-se, sacralizada e arrogante, face a estes tão claros e sublimes ensinamentos/proclamações de Jesus deNazaré:«Recebestes degraça,dai degraça; nãopossuaisouro,nemprata,nem cobre…»(Mateus,cap.10, vers.8-9)/ «Afelicidade está mais em dar do que em receber» (Atos, cap. 20, vers. 35) / «Não julgueis para não serdes julgados, não condeneis para não serdes condenados, perdoai e sereis perdoados, dai e ser-vos-á dado…» (Lucas, cap. 6, vers. 37-38).
3 Veja-se, por exemplo, descrição de Padre António Vieira, que esteve preso (H.I.P., pp. 383 e segs.).
4 Raul Rego, ob. cit., p. 10.
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Ninguém, mesmo ninguém, encarcerado no Santo Ofício podia receber visitas; e que horrendo «crime» seria, com a conivência de alguém da Inquisição, chegar o mais simplesbilheteescrito às mãos dequalquerdos presos…Abordavam-nos exclusivamente os tiranos. Muitas pessoas (designadamente raparigas/mulheres), nessas enxovias, jazendo, definhando, durante anos, aí acabavam por falecer. E note-se: estatísticas permitem-nos dizer que era particularmente significativa a percentagem de damas jovens entre as vítimas da Inquisição. A partir dos processos analisados (período de 1567 a 1582 – Inquisição de Coimbra) por Elvira Azevedo Mea (S.I.C.) 1 , verifiquei que 45,4% das raparigas/mulheres se situavam entre os 14 e os 30 anos; e se alargado o leque até aos 40 anos, eis-nos perante setenta por cento. Tantas delas alvo de investidas soezes dos inquisidores e agentes da Inquisição – é a História que o regista 2 (e o próprio Padre António Vieira, embora de forma tímida, com receio das consequências, não deixa de referir isto – H.I.P., pp. 385 e 387). Havia meninas/meninos de treze anos presos; e há registo de, após sessões de horripilantes torturas, terem ido para a fogueira jovens com dezasseis, dezassete anos.
Havia pessoas que se suicidavam nos cárceres e muitas neles enlouqueciam 3 , acontecendo que os Regimentos da Inquisição continham, também, um feroz clausulado para aplicar a estes casos.
É oportuno e indispensável referir-se que toda a gente (designadamente os processados pela Inquisição e os «agentes»da mesma) era obrigada a rigoroso «segredo» sobre o que se passava nos antros do «Santo Tribunal», desde os tratos e ocorrências nos cárceres até aos interrogatórios, trâmites, manobras, tormentos, etc. Havia estarrecedoras estipulações neste sentido, sendo esclarecedor o que, por exemplo, se exara, em «Falsificação da História», vol II, nas pp 265 a 267.
Nem sequer as mínimas suspeitas podiam ser formuladas a esse respeito, tendo havido, conforme pode comprovar-se, indivíduos presos e sentenciados por apenas terem dito (a quem julgaram de confiança, mas que os traiu) que sabiam algo do que se passava na Inquisição. Apenas dizer que sabiam, sem descerem a revelações. E, por exemplo, houve até um alfaiate que, no auto-de-fé de 20 2 1656, em Lisboa, foi «punido com
1 Elvira Azevedo Mea – «Sentenças da Inquisição de Coimbra em Metropolitanos de D. Frei Bartolomeu dos Mártires (1567-1582)» (Introdução e leitura). Porto – 1982
2 Sobre a temática algo se poderá ler (e compulsar pertinentes publicações aí referidas), em «Falsificação da História», cit., vol. I, pp. 158 a 165.
3 Ver casos, por exemplo, mencionados no rol de autos-de-fé, em H.I.P., pp. 146 a 279.
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açoites e degredo por fingir que sabia segredos do Santo Ofício» («Falsificação da História», vol II, p. 266)
Passe a transcrever-se o «Termo de Segredo» 1, neste caso o que fecha o processo respeitante a José Anastácio da Cunha (colocando eu entre parênteses o que aparece manuscrito no modelo impresso):
«Termo de Segredo
«Aos (dezasseis) dias do mez de (outubro) de mil e setecentos e setenta e… (?) anos em Lisboa nos Estaos, e casa do despacho da Santa Inquisição, estando ahi em audiência da…(?) os Senhores Inquisidores mandarão vir perante si do carcere da penitencia a (José Anastácio da Cunha) – R. prezo conteúdo neste processo, e sendo presente, lhe foy dado juramento dos Santos Evangelhos, em que poz a mão, e sob cargo dellelhefoymandado,quetenhamuitosegredoem tudooquevio,eouvionestescarceres, e com elle se passou acerca de seu processo, e nem por palavra, nem escrito o descubra, nem por qualquer outra via que seja, sob pena de ser gravemente castigado, o que tudo elle prometteo cumprir, e sob cargo do dito juramento, de que se fez este termo de mandado dos ditos Senhores, que…» (e lá seguem três assinaturas, entre as quais a de Anastácio da Cunha).
Aos encarcerados eram, note-se, proibidos todos os atos religiosos/devocionais 2 (ostensivaproibiçãoesta secularmenteacalentada no âmagoda Igreja Católica/Inquisição, esgrimindo-se a alegação de que a devoção dos mesmos seria uma imposturice, um subterfúgio para obtenção de «misericórdia» do Santo Ofício, quando deles urgia apenas a confissão de culpas e denúncia de indivíduos – H.I.P., p. 386); era-lhes vedado – o que para muitos era sentido como uma drástica privação «espiritual»/«salvífica» –, nos cárceres, rezarem, fazerem leituras devocionais, etc., sendo espoliados de terços, cartilhas, etc. que tivessem em sua posse quando abarbatados; perante tão rigorosa proibição, era muito em surdina, era com enorme preocupação de segredo que os desgraçados iam tendo atitudes devocionais.
1 Carlos Babo, ob. cit., p. 61.
2 Eis simples pincelada da elucidativa e extensa exposição do Padre António Vieira: eram os presos «privados de todos os atos de cristãos» – H.I.P., pp. 389-390.
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Um auto-de-fé 1 , cuja «celebração» (termo exarado no próprio edital) era de antemão anunciada por homens a cavalo, era uma festa a que se atribuía um esplendor celestial, de forma que, caso não houvesse condenado à fogueira, chegavam a ir buscá-lo, de noite, onde o havia, para engrandecer-se tão solene liturgia 2 – H.I.P., pp. 134 a 144.
Escoltadas, as vítimas seguiam, nesse domingo, em procissão, para o enorme palanque de madeira, adrede construído, com as mãos atadas atrás das costas desde a sexta-feira anterior e envergando «sambenitos»/«samarras» 3 – farpelas cinicamente pintalgadas com labaredas infernais e com diabos de fauces arreganhadas, dragões ou serpentes. Era expressamente proibido que, designadamente com lenço, a vítima em algo encobrisse o rosto.
Veja-se (em H.I.P., pp. 138-139), por um lado, a nota descritiva do referido palanque (no Terreiro do Paço 4, assentava em «28 mastros de grandes dimensões cravados no chão»), que, tendo «pavimento superior» e «pavimento inferior», se compunha de «casas», «pátios fechados», «camarotes», «varandas», «sacadas», púlpito, cadeiras, portas, escadas, estrados e, ainda, «bancos para espetar as estátuas (representativas dos de paradeiro desconhecido, dos «idos por aí além»ou «fugidos», dos falecidos nos cárceres – entre estes, não raros clérigos e freiras –, dos falecidos em suas casas)... e mais dois camarotes, um para os moços do coro da Capela Real, outro para o da Sé; e, note-se, havia solene menção das personagens que aí tinham espaço reservado, enfim, bastante gente, na quase totalidade membros do clero e da nobreza e, designadamente, «o enviado de Castela» 5 , «o embaixador de França», o «núncio apostólico»…
«Principiavam os autos-de-fé por um longo sermão (…) Nada há de mais curioso do que a leitura de qualquer desses sermões. Nele se dizem maravilhas tais da Inquisição que excedem a compreensão humana e de mistura com as muitas dissonâncias lhe chamam: ‘Arca da Aliança entre Deus e os homens’, ‘Íris da Paz’, ‘Templo da Justiça’, ‘Céu da Doutrina’, ‘Montante da Religião’, ‘gazofilácio da Nossa Fé», etc. Algumas vezes deixou de haver sermão para dar lugar a poderem-se ler as culpas de todos os réus
1 Chegava a haver vários por ano em cada centro inquisitorial.
2 Tão grandiosa festa atingia um inimaginável clímax, quando conciliada com a festividade do nascimento e ou aniversário de um príncipe, um casamento real, etc. E consabida é a singular arte com que eram cultivados os sentimentos mais crapulosos duma imensidão de pessoas.
3 «Sambenito» (que etimologicamente advirá de «sacus benedictus» – saco benzido) era ignominiosa «veste de baeta amarela…», alvo de benzedura, antes de enfiada nos desgraçados.
4 «Era próximo ao Paço para que el-rei e as pessoas reais vissem bem à vontade este tão sanguinário espetáculo…» (p. 138).
5 Numa descrição dum auto-de-fé em Espanha («Falsificação da História», cit , vol. II, pp. 354 e segs.) refere-se que, no anúncio festivo do mesmo, com um mês de antecedência, pelos ministros da Inquisição a cavalo, recorria-se a trombetas e timbales. E aplicase o termo «gaiolas» para o espaço, no dito palanque, em que punham os condenados.
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no mesmo dia – tal era a quantidade deles. Autos houve em que gastaram dois dias e em Coimbra houve dois que levaram três dias. Acabado o sermão, lia-se o edital da Fé e monitório geral da Inquisição, que obrigava, em virtude da santa obediência e sob pena de excomunhão maior, «ipso facto incurrenda», toda a pessoa a denunciar quem ela soubesse que vivia apartado da «Fé» ou tivesse incorrido em alguma das «culpas» tão profusamente anunciadas.
A caminho do palanque, «partia o inquisidor-geral do seu paço, a cavalo, acompanhado de todos os ministros e oficiais do tribunal, também montados em cavalos soberbamente ajaezados e levando diante o meirinho com a vara alçada…» (p. 139).
Muitos desgraçados levavam enormes «carochas»1 («com rótulos de heresiarca, dogmatista, feiticeiro, etc.») e, além disso, mordaça 2 . Muitos, com tocha na mão e baraço ao pescoço.
Uma corda, com nós, atada ao pescoço de infelizes presentes nessa procissão, indicava que a pena dos mesmos implicava o tão costumeiro ror de açoites.
Explorando-se efeitos picarescos/vexantes, eram os acusados de sodomia obrigados a levarem rocas com meadas de linho.
No final do espetáculo da «Fé», ou seja, após a queima de uns na fogueira e da partida de outros para o calvário de outras penas impiamente aflitivas como amarfanhantes, os senhores dos poderes político e religioso prolongavam, de forma festiva, esse seu especial «momento de encontro» ditado, segundo se propalava, por tão excelsa causa.
E, sendo afixados, nas igrejas, os «retratos de réus relaxados ou em estátua» 3 , atente-se nesta frase de «A Inquisição» 4: «Ao outro dia eram levados às igrejas dos Domínicos os retratos das cabeças, ao natural, dos que tinham sido executados, desenhadas em chamas – e tendo por baixo de cada um o seu nome, o do pai, o da sua pátria, a espécie de crime por que foi condenado, o ano, o mês e o dia da execução (…)» Os sambenitos dos condenados à fogueira (deles sendo despidos antes da queima) assim como os daqueles que acabavam penas que implicavam o seu uso eram expostos, com
«Mitras de papelão todas fechadas e nelas pintados muitos fogos e diabos a saltar e tanto maiores eles eram mais estupendo se supunha o crime» (p. 138).
2 Alegavam os consagradores de tal prática que, assim, não profeririam blasfémias, mas a verdade é que alguns desgraçados, sabendo qual o seu destino, poderiam ter a coragem de dizer algo sobre monstruosidades dos inquisidores e dos antros inquisitoriais (H.I.P., p. 138).
Ver também, quanto a isto, «Falsificação da História», cit., vol. II, p. 267.
3 H.I.P., p. 359. E não deixe de aludir-se a Raul Rego – «O Último Regimento e o Regimento da Economia da Inquisição de Goa», cit., p. 121.
4 Carlos Babo, ob. cit., p. 53.
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menção do nome de cada infeliz, nas respetivas paróquias, para «perpetuar-se a infâmia». E eram substituídos por novos os que iam apodrecendo.
Tão só este relato se aduza de um enorme acervo de tantos outros: Do festejo do auto-de-fé, de 11/2/1543, no Porto (no qual, o respetivo bispo, em articulação com Lisboa, mandou fazer três cadafalsos junto à Porta do Sol), o corregedor da cidade dava notícia a el-rei: «O auto foi bem feito e sossegado, com boa ordem que nele houve, pôs grande espanto a gente desta terra… Estimou-se a gente, que a ele veio assim desta terra como de fora, em 30 000 pessoas, e parece que esta justiça foi feita por vontade de Deus, que chovendo os dias antes de muita água e vento, o dia do auto subitamente tornou mui sereno e claro; durou o auto com a queima até às 5 da tarde, nesta terra houve muito proveito, e fruito assim no espiritual como temporal depois que a Santa Inquisição é nela…» 1
A rebuscada simbiose da crueldade com a exaltação da dita «fé»; a excelsa festa do auto-de-fé, tão anunciada e para a qual eram convidadas 2 as altas entidades, designadamente o rei; a tão apregoada e enaltecida (como notório, por exemplo, no relato acabadodetranscreversobreo auto-de-féjunto àPortadoSol, no Porto)presença «viva», palpitante, complacente da «divindade» nesse clímax de dor, luto, desespero, enfim, tudo isto não nos mostra o subjacente propósito de imolar, de proceder a sacrifícios humanos para com «deus»? Esse «deus» não é a projeção do ego dessa gente, uma projeção à imagem e semelhança da mesma? Quanto ao que acaba de dizer-se, evoque-se o seguinte episódio descrito em «Êxodo». Durante uma ausência de Moisés, houve adoração a um ídolo no acampamento. Deparando com isto, «Moisés foi colocar-se à entrada do acampamento e gritou: ‘Quem é pelo Senhor junte-se a mim» e «todos os filhos de Levi (tribo a que Moisés pertencia) se uniram à volta dele». Ele disse-lhes: «O Senhor, o Deus de Israel, diz o seguinte: ‘Cinja cada um de vós a espada sobre a coxa. Passai e tornai a passar através do acampamento, de uma ponta à outra, e cada um de vós mate o irmão, o amigo e o vizinho». «Os filhos de Levi fizeram o que Moisés lhes ordenara, e cerca de três mil homens morreram nesse dia, entre o povo. Moisés disse: ‘Consagrai-vos desde hoje ao Senhor porque, sacrificando o vosso filho e o vosso irmão, atraístes hoje sobre vós uma bênção» (Êxodo, cap. 32, vers. 26-29).
1 Idem, pp. 38-39.
2 Convites com significativo pendor de intimação.
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Não se resume à projeção do ego de falanges religiosas a «divindade» em nome da qual aquelas – como acontece nos nossos dias – matam (imolam) seres humanos? E não nos diz a História consistirem na projeção dos mais abomináveis instintos de falanges políticas aqueles «sacralizados ideários» em nome dos quais elas oprimem, torturam e matam?
Para além da morte na fogueira, havia outras penas geralmente muito cruéis (e, não raro, associadas a imposições vexatórias/achincalhantes), designadamente prisões/encerros de diversa ordem; escravidão nas galés, após infligido um ror de açoites pelas ruas (com pregão a vociferar as «faltas»alegadas); longos degredos para as colónias, etc. E, sob as mais diversas formas (para além da extorsão de todos os bens a enorme percentagem de sentenciados), a Inquisição sugava impiamente quem abarbatasse. Para além da «conservação e sustentação do Santo Ofício», lê-se no Manual dos Inquisidores, «é justo que a Inquisição faça pagar as suas despesas à custa daqueles que são levados perante o seu tribunal; pois, segundo São Paulo, cap. 9, ‘Epístola aos Coríntios’, ninguém está obrigado a fazer a guerra à sua custa, ‘nemo cogitur stipendiis suis militare…», acabando por, no referido Manual, enfatizar-se a imperiosidade da «sustentação dos inquisidores e seus familiares» 1 , nos termos seguintes: « e não devemos crer que esta aplicação só deva ter lugar em caso de necessidade, pois é muito útil e muito vantajoso à fé cristã que os inquisidores tenham muito dinheiro, a fim de poderem manter e pagar bem aos seus familiares para procurarem e prenderem os hereges…» 2 .
Quem não fosse queimado na fogueira ficava, para sempre, fulminado no espírito e no corpo, votado a pesadelos que jamais o largavam. E a «Santa Inquisição»não perdia de vista os que referenciava, movendo-lhes perseguição sistemática. Houve pessoas presas três e mais vezes.
Os processados, que tivessem a relativa sorte de regressar a casa, eram votados ao ostracismo, assim como os próprios familiares dos mesmos (S.I.C., p. LXXX): uns odiavam-nos ou ridicularizavam-nos, outros fugiam de com eles comunicar, com receio deserem acusados à Inquisiçãode «contágio»ou «conivência»nos «erros»contraa «Fé». Enfim, uma amálgama de tudo oque há de mais dantesco: a intoxicação religiosa; o pavor da Inquisição, mas, também, o pavor de cair no «inferno» ou nas profusamente anunciadas «excomunhões maiores» por falta de «confissões» de «erros» ou por omissão na denúncia de outrem (a começar pelos próprios familiares); uma certa tendência para
1 «Familiares do Santo Ofício» – espiões, lacaios.
2 Carlos Babo, ob. cit., pp. 54-55.
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atraiçoar/denunciar, quer por força de venenos inoculados na alma (através de pregações, «visitações», editais/monitórios, confissão auricular, etc.) quer até, em tantos casos, por má-fé, vingança, ajuste passional de contas, sórdidos interesses e sentimentos, tendência essa que, não raro, andava geminada com a propensão para odiar, repudiar, ridicularizar os que tivessem passado pelo Tribunal do Santo Ofício. Eram, acrescente-se, muitos os queandavam aí pelasparóquiasobrigados afigurarderechaçados palhaços, com «hábitos penitenciais», quantos delescom insígniasdefogo eatégravuras demoníacas… equantos infelizes tinham aindaqueaparecer, em certos atos doculto,com velaacesa e/ou mordaça. Eis dois exemplos: uma tal «Filipa Brandoa pede para sair da prisão e simultaneamente para lhe ser tirado o hábito, pois que assim ninguém casará com a filha…» (S.I.C., p. LXXX). O poeta António Serrão, expropriado dos bens, esbulhado de tudo e até da saúde, velho e quase cego, estendendo a mão, como pedinte, a implorar pão para si e seus dois filhos(umdelesmédico)enlouquecidospeloshorroresquesofreramnaInquisição,requer a esta 1 que o dispense dessa indumentária sinistra, pois, em vez de esmolas, recebe insultos e chalaças.
Não fique por mencionar-se que, a nível inquisitorial, recomendava-se um relativamente menor zelo eum menor espalhafato (aque subjacente uma certaprecaução) no acometimento contra pessoas de elevado «status» social – «Os Inquisidores não mandarão prender pessoas graves (como senhores de título ou pessoas religiosas) principalmente sendo pessoas notáveis, nem pessoas que pela qualidade dellas ou por serem muitashajaasuaprisãodefazeralvoroço,oumovimentograndeem algumacidade ou villa sem fazer primeiro saber e mandarem as culpas ao Inquisidor Geral (…)» 2 –, mas, na verdade, ante as tão pusilânimes, as tão despersonalizadas gentes jacentes na «Respublica Christiana», caíram sobre poderosos e renomados indivíduos os maiores flagícios, por exemplo, quanto a clérigos, sobre o Arcebispo Carranza (Toledo), o Arcebispo Fernando de Talavera (Granada), o Bispo Constantino Pôncio de La Fuente… e, quanto a nobres, os Ordefalos, os Manfredos, os Malatestes, Mateus Visconti (duque de Milão), os Príncipes da Casa de Est… 3
Um apontamento avulso se aglutine ao que acaba de dizer-se: «Foge-nos o ânimo para exprimirmos que um rei se deixou castigar por se ter enternecido pela desgraça das vítimas relaxadas de um auto-de-fé… Foi o rei D. Filipe III de Espanha aquele que,
António Baião – «Episódios Dramáticos da Inquisição em Portugal», cit., vol. II, pp. 33 a 35.
2 Excerto do capítulo vigésimo do Regimento da Inquisição, de 1 de março de 1570. Elvira Azevedo Mea, ob. cit., p. IV.
3 «História da Inquisição em Portugal», cit., pp. 69 e 86 a 89.
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assistindo a um auto-de-fé e não podendo deixar de condoer-se do fim desgraçado dos pacientes condenados à fogueira, deixou humedecer os seus olhos com algumas lágrimas de piedade, e isto, que não escapou à perspicaz vigilância dos inquisidores, foi imediatamente classificado como um verdadeiro crime, para expiação do qual o rei teve de se deixar sangrar e consentir que o seu sangue fosse queimado em purificação da précitada culpa» (H.I.P., p. 89).
À laia de apêndice, importa acrescentar um breve apontamento sobre a Reforma (séc. XVI). Ela foi para o «statu quo» até então vigente como que um grande terramoto (e, logo, com grandes repercussões). «Em 25 de Setembro de 1555, assinou-se a ‘paz religiosa de Augsburgo’, segundo a qual a religião do soberano seria a religião dos seus súbditos», ou seja, «cujus regio illius religio» 1
A dialética, a bipolarização então gerada trouxe indubitáveis vantagens para o ser humano.
À Reforma devem-se, repita-se, tais vantagens, mas não pode ficar por perguntarse: o que fez ela em termos de execração, em termos de banimento de gravíssimas injustiças, de barbaridades tão redondamente ofensivas da mensagem de Jesus, tão atentatórias contra o que há de mais elementar a nível do Direito Natural (como, por exemplo, a escravatura e violências de diversa ordem, a que fazemos abordagem nesta tese)?
De caminho, algo se diga, por exemplo, quanto à atrás aludida matança de S. Bartolomeu (em 1572, em Paris) perpetrada por católicos contra protestantes, na qual foram mortas, em três dias, mais de vinte e cinco mil pessoas. Terá sido «o mais célebre entre os mais repugnantes episódios das guerras de religião»; o «populacho» juntou-se aos militares e a «matança tornou-se geral»; «saqueava-se e roubava-se ao mesmo tempo que se assassinava… A carnificina foi festejada em Lisboa com uma procissão geral, missa solene em S. Domingos, sermão gratulatório pregado por Frei Luís de Granada, repiques e luminárias. D. Sebastião mandou a Paris um embaixador extraordinário, o comandante-mor de Cristo, D. Afonso de Lencastre, incumbido de significar a Carlos IX o seu contentamento por tamanha obra, executada com tanto zelo». «… O Estado do Vaticano orgulhou-se daquela matança, o papa mandou que cantassem o Te Deum, houve trocadepresentesecunharam-semoedascomemorativasdomassacre» 2.E,logoaseguir,
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Prof. Padre António Silva Rego – «Lições de Missionologia», cit., p. 100.
Vide Francisco de Azevedo Gomes – «Falsificação da História», cit., vol. I, p. 308.
em «Falsificação da História», em relação ao curto período entre 1540 e 1570, fala-se em várias centenas de milhares de pessoas chacinadas em campanhas/massacres movidos em nome da dita «Fé».
E foi numa atuação, em grande medida similar à do historial da catolicidade, que prosseguiu o protestantismo e, a nível deste, mesmo a perseguição religiosa (ficando, como é sabido, aquém dos patamares dos horrores que, ao longo dos tempos, vinham sendo consagrados e requintados pela «Santa Inquisição») teve, se bem que mais nuns domínios do que noutros, grande expressão 1. E, na faina de interiorizar essa crueza nas gentes, empenharam-se renomados líderes, que não apenas Calvino, o qual asseverava: «Se os papistas são tão duros e violentos na defesa das suas superstições que cruelmente derramam sangue inocente, não devem os magistrados cristãos se envergonhar de serem menos ardentes na defesa da segura verdade?» 2 E na sequência, por exemplo, da «Matança de S. Bartolomeu», ele, corroborando as sequentes reações violentas levadas a cabo por protestantes contra católicos, em não raras localidades onde aqueles se sentiam em posição sobranceira em relação a estes, clamava, em «Declaração para manter a Fé Verdadeira»: «Deus não quer que nenhuma cidade ou pessoa seja poupada». O déspota (que fugira da França ao pesadelo da Inquisição), na cidade de Genebra, a «cidademodelo» por ele amarfanhada, «fez cumprir com rigor as suas ‘Ordonnances Ecclésiastiques’, vitimando opositores com expulsão ou morte». Entre os indivíduos aí executados, figura o célebre Miguel Servet, que não aceitava o «dogma da Trindade» –em 1533, foi queimado vivo e «lentamente» (e um outro exemplo: em 1547, foi decapitadoTiagoGruetdeGenebra,o «principalobreirodaoposiçãogenebrinaàditadura de Calvino»). Aconteceu que líderes do Protestantismo enviaram a Calvino mensagens de anuência e regozijo pela morte do cientista Miguel Servet. Calvino 3 chegou ao ponto de alertar as autoridades católicas da cidade belga de Tournay para a imperiosidade de neutralizar-se Quintino Thierry de Tournay (e seus companheiros), o qual foi queimado na fogueira (em 1546), quando, vindo de outras paragens, chegou à cidade referida, onde nascera.
1 Sobre crueldades perpetradas por Huguenotes, atentar, por exemplo, em: «Huguenotes (Guerra dos)», in «Verbo – Enciclopédia Luso-Brasileira de Cultura», cit., vol. 10 (1970), pp. 568-569.
2 Ao correr da pena, aponte-se, a coberto da «Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira», a asserção de Agostinho, Bispo de Hipona: «Quando o erro prevalece está indicado que se invoque a liberdade de consciência; mas quando, pelo contrário, predomina a verdade, está bem que se use de coerção». Vide «Perseguição», in «Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira», cit., vol. XXI, p. 387.
3 Quanto a Calvino, poderá compulsar-se, por exemplo, Henry Thomas e Dana Lee Thomas – «Vidas de Grandes Religiosos», Edição «Livros do Brasil» [sem data], Lisboa, pp. 223 e segs.
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SebastiãoCastellion, «revoltadopelaexecuçãodeServet,decidedifundir,emtoda a Europa, cartas destinadas àqueles que considerava capazes de partilhar as suas ideias e de propagar os efeitos delas. Publicado em 1562, o seu ‘Conselho à França Desolada’, denúncia dos fanatismos e das guerras de religião», conta com uma contestação generalizada por parte das diversas denominações religiosas, acusando-se o autor de projetar «abolir a pena de morte por delito de heresia», segundo se lê em Raoul Vaneigem 1
No mundo católico e no mundo protestante, ergueram-se vozes corajosas contra a cruel imposição do seguidismo religioso, contra o iníquo «statu quo», úbere de injustiça social, opressão, mentira 2. Porque fervilhava neles o sentido das Harmonias e remaram contra a maré, foram, por exemplo, executados Noel Journet (em Metz, em 1582) e Geofredo Vallée (em Paris, em 1574): a este último (que tinha apenas vinte e quatro anos de idade) foi arrancada a vida porque escrevera «A beatitude dos Cristãos ou o Flagelo da Fé’, obra em que execra todas as religiões’, e isto porque ‘quem vive no temor, seja ele qual for, feliz não pode ser». Gerardo Winstanley, que encabeçava o movimento «Diggers’ ou Cavadores de Enxada», exclamava 3 : «Esse Deus que vós servis, esse que vos confere os títulos de nobreza e senhorio, de cavaleiros, de fidalgos e proprietários, esse Deus é a cupidez» 4 .
4.2. A engrenagem para sacar «culpas» e delatar «culpados»
«A Inquisição… por meio das suas assanhadas maquinações obrigava cada um a denunciar-se a si mesmo, até daquilo que nem pela ideia lhe tinha passado, sem por isso ficar isento de bem gravíssimas penas. Ainda mais, levava a sua frenética inumanidade a obrigar o pai para que acusasse o filho e este o pai, convertendo assim o género humano
1 Raoul Vaneigem – «As Heresias», trad. de Júlio Henriques, Ed. Antígona, Lisboa – 1995, p. 143. Este mesmo autor (ob. cit., pp. 128-129) aponta como ficou cara a sensibilidade e coragem, por um lado, a Bernardo Delicioso, que, em 1313, «se atreveu a exigir o fim da Inquisição e da pena de morte por razões de crenças» e, por outro lado, a Prous Boneta, que, «por se ter insurgido contra o massacre dos ‘espirituais’ e dos leprosos, acusados de envenenamento das fontes, é atirada às chamas em Carcassonne, em 1325…».
2 De passagem, refira-se: quanto à Igreja Ortodoxa não deixa de ser esclarecedor o conteúdo dos dois últimos parágrafos do ponto 19.16 desta tese.
3 Idem, pp. 156 a 158.
4 Ao correr da pena, aduza-se o seguinte de Raoul Vaneigem, ob. cit., p. 165: «João Meslier, padre de Etrépigny, teve o bom senso de só depois de morto revelar, em forma de escrito póstumo, o desprezo em que tivera a religião e o poder: ‘… Feliz a humanidade só o há de ser quando o derradeiro padre for enforcado com as tripas do último dos príncipes» – cabendo-nos, a propósito, repisar que, no sentido das Harmonias, apontam, sim, os bons ideários, não as violências.
E, um pouco antes, Raoul Vaneigem refere que «Ricardo Coppin rejeitou a Igreja em nome da sua própria experiência em Deus» – ob. cit., pp. 158-159.
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em um bando de delatores e a sociedade cristã em uma horda de espiões. Progenitores, descendentes, esposo e consorte, irmãos, parentes e amigos, deviam todos mutuamente observar-se e sem respeito a quaisquer considerações reciprocamente acusar-se. A maledicência, a calúnia, a delação, a vingança e toda esta caterva de paixões inimigas da felicidade dos homens, eram seus favoritos instrumentos, e por meio dos quais as mais atrocíssimas calúnias se convertiam mui estudadamente em verdades indestrutíveis…» (H.I.P. pp. 133-134).
Nessa contextura dantesca, até havia quem se antecipasse a denunciar alguém, porque ou havia indícios ou até certeza de que por esse alguém ia ser denunciado (ver, por exemplo, H.I.P., p. 372).
Como já se disse, em qualquer centro inquisitorial havia vários cárceres e em grave punição incorria quem tentasse passar mensagens para fora do seu antro.
À implacável imposição do «Segredo do Santo Ofício» adicionava-se a tão consagrada «incomunicabilidade» dos presos, para tal contribuindo designadamente o facto de serem encafuados em cada uma das muitas masmorras existentes.
O preso era arrastado pelas sessões inquisitoriais prescritas no Regimento da Inquisição (H.I.P., pp. 307-308).
Na sessão de genealogia, inteiravam-se os inquisidores, com obcecada minudência, até ao último limite possível, da árvore genealógica (ascendentes, descendentes, colaterais, etc., recaindo sobre vivos e mortos a sanha da Inquisição) tanto dos cristãos-velhos como dos cristãos-novos, não havendo, é claro, menos avidez quanto à destes últimos, sendo algo airoso para um cristão-novo preso ter um familiar cristãovelho, por exemplo, o cônjuge 1, sendo, pois, célere, em dizê-lo, quantas vezes sem qualquer proveito. Muitos presos, ao serem interrogados sobre o paradeiro de elementos da sua família, da sua genealogia, alegavam vagamente: «foram-se», «idos por aí além», «foram-se deste reino», «idos por esse mundo», «fugidos», «absentes», etc.2 Por mera curiosidade, avulsamente se aduza este registo da «História Trágico-Marítima»: numas paragens remotas do mundo colonial, uns náufragos foram deparar com um tal Simão Lopes que, aí, «estava fugido por cousas que tocavam à Fé» 3
Os inquisidores, nos processos, aglutinam muito frequentemente a expressão «sangue limpo»à designação «cristão-velho». Ter sangue judeu era ter «sangue impuro»,
1 Elvira Azevedo Mea, ob. cit. (S.I.C.), p. XLIV.
2 Idem, p. LXXIII.
3 Bernardo Gomes de Brito – «História Trágico-Marítima», publicações Europa-América, 1982, vol. II, p. 118.
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«sangue infeto» – expressões profusamente empregues. Os apuramentos genealógicos levam os inquisidores a mensurar, não raro, nos processos, os réus como sendo um quarto ou oitavo de cristão-novo… Intercale-se o seguinte: enquadrado no parág. 2º do título VI do livro II do Regimento de 1640, depois do disposto sobre a sessão de genealogia, exara-se: «Mandarão ao preso que se ponha de joelhos 1 e que se benza e diga a doutrina cristã, a saber, o Padre-Nosso, Ave-Maria, Credo, Salve-Rainha, Mandamentos da Lei de Deus e da Santa Madre Igreja, o que se fará ainda que o preso notoriamente seja pessoa de letras. Será mais perguntado se sabe ler e escrever, se estudou alguma ciência e onde, se tem algumas ordens, se saiu fora do Reino e por que parte andou e nele em que terras esteve, com que pessoas tratava e comunicava e se foi outra vez preso, ou penitenciado pelo Santo Ofício, ou teve alguns parentes que o fossem (…) Será mais perguntado se sabe ou suspeita a causa por que foi preso e trazido aos cárceres do Santo Ofício, e dizendo que não e que antes presume que o prenderam por algum testemunho falso levantado por inimigos, se lhe fará a primeira admoestação na forma de estilo do Santo Ofício, na qual lhe não será declarada a qualidade das culpas por que foi preso e somente lhe será dito que está preso por culpas e no fim da sessão tornará o inquisidor a admoestar o preso, que cuide de suas culpas e trate de as confessar, de que o notário dará fé» (H.I.P., pp. 307308)
Para além da sessão de genealogia, prosseguia-se com a sessão «in generis», a sessão «in specie» e sessões de tortura.
E, prosseguindo, é indispensável aludir também à dita «sessão de crença»: nesta, «o preso deviaserperguntadopelo tempoem queseapartoudafécatólica e setresmalhou para a seita em que se acha. Por quem lhe ensinou tais erros e muitas exigências deste género, que se recomendam no parág. 11º» (H.I.P., p. 313).
O preso era colocado face a este tétrico espetro, em que implícitos os três itens seguintes:
1 Isto surpreendeu o bacharel Hipólito de Almeida, preso em 1802, pois julgou tratar-se duma cilada para ver se ele anuía (ao ajoelharse e «rezar» perante homens) a uma indicação indutora numa atitude de idolatria (H.I.P., p. 399).
Vem a talho de foice referir que, há bem poucos anos, havia ainda, nas freguesias, a dita «desobriga», que implicava a indução de todos os paroquianos (sob pena de não serem os faltosos desarriscados no rol a enviar ao arcipreste), nas proximidades da «Semana Santa», no sentido de comparecerem na igreja ou sacristia, a fim de serem interrogados pelo padre, a eito, individualmente, sobre fórmulas do catecismo e outros aspetos doutrinais. As perguntas eram, não raro, rebuscadas e cada interrogado, inquieto com isto, que considerava um duro exame sacro e, humilhantemente, na presença de outros comparoquianos, muito frequentemente não acertava na resposta ou nem adivinhava o alcancedo que lhe era perguntado. Recordo-me, perfeitamente, quea meu pai foi, certa vez, perguntado quantos caibros tinha a igreja. Ele refletiu… e disse que os não tinha contado. Desvanecido com a sageza da pergunta, respondeu o próprio interrogante que os caibros da Igreja eram os doze apóstolos. A quem não acertasse na resposta, a troça popular caía-lhe em cima com esta chalaça: «… trouxe o banco da igreja» (desconheço o porquê desta expressão).
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a) atribuía-se-lhe um rol de «culpas» (não lhe sendo reveladas estas nem a respetiva origem) e exigia-se que ele, sem titubear, começasse a confessá-las, integralmente (sendo, compreenda-se, grande a ânsia do mesmo em adivinhar o que lhe era imputado, até para, no caso de, «in extremis», ver-se induzido em descair, se desviar, a todo o transe, quer de confessar «culpas» quer de denunciar «comunicantes» não constantes do referido rol);
b) dizia-se-lhe que designadamente familiares/parentes seus, presos ali em qualquer das outras masmorras, o tinham implicado já no rol de culpas e no rol de «comunicantes» («coniventes») – tanto podendo, explicite-se, isto ser cilada 1 , para descaída do infeliz, como ser algo de real: por um lado, não raro se prendia mais que uma pessoa da mesma família ou da vizinhança (em «Falsificação da História», cit., vol. II, pp. 315 a 317, há apontamento elucidativo acerca de familiares mortos no mesmo auto), por outro lado, até um preso não excecionalmente arguto recearia que a outros encarcerados, como ele atenazados, manipulados, podia afigurar-se-lhes, pelo menos «in extremis», que a opção menos tétrica a assumir seria a de descaírem em confessar algo;
c) dizia-se-lhe que resultaria/seria incomparavelmente mais horrendo para elenão sercéleree exaustivo naconfissão do rol de «culpas»enadenúnciadeoutros, designadamente familiares e parentes
Para mais palpitante elucidação de certos aspetos do que fica dito, recolhamos apenas dois da imensidão de exemplos possíveis:
No auto-de-fé de 31/8/1760, em Évora, «uma das mulheres relaxadas pediu três vezes mesa no auto (ou seja, comparência na mesa inquisitorial), mas não lhe sendo possível adivinhar o que devia confessar, morreu queimada pelas 10 horas da noite. Morreu também uma rapariga de 23 anos de idade, que tinha 15 quando a prenderam» (H.I.P, p. 225).
No auto-de-fé de 26/10/1664, em Coimbra, «morreu negativo um letrado, cujo filho e filha, ainda menores, deram nele (acusaram-no) inocentemente e sucedendo no auto, quando passava por junto do filho, pedir-lhe este perdão e a bênção, respondeu-lhe
1 Não havia qualquer pecha moral nas mentiras adrede proferidas pelos clérigos empenhados em tão «Santo Ofício»… À laia de parêntese, refira-se: em bilhete (apenso a um processo) da autoria de um clérigo, diz-se haver «huma bulla do Padre Santo para poderem jurar falso …» (S.I.C., pp. LXXIII e LXXIV).
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o pai: ‘Perdão vos dou de me pordes neste estado, para que Deus me perdoe; bênção não, porque não é meu filho quem confessou o que não fez e sendo cristão disse que era judeu» (H.I.P., p. 245).
Até aqui, vimos abordando o que se passava intramuros, no centro inquisitorial; segue-se, agora, o que se passava na sociedade.
Eis quem lídima e expressamente podia ser testemunha contra as vítimas da Inquisição 1:
«Os excomungados – mortos civilmente, segundo afirmavam os próprios Domínicos–inábeis paravender,testar,herdar,testemunharemjuízo:despojados,enfim, de todos os direitos de cidadão e até dos direitos naturais»; «os cúmplices do acusado» (que, no intuito de se safarem, embrulhavam inocentes em mentiras); «os infames e os criminosos quaisquer que fossem os seus crimes»; «os hereges – com a condiçãoexpressa de que os seus depoimentos fossem sempre contra os acusados»; «os maometanos, os judeus, os infiéis» – testemunhas, note-se, sobre «faltas cometidas» contra o catolicismo; «os perjuros na causa» 2; «a mulher, os filhos, os parentes, os criados do acusado – mas semprecontraele.Justificava-seestapráticaespantosacomestasrazões:‘1º-énecessário obedecer antes a Deus que aos pais, 2º - se qualquer pode matar seu pai, logo que é inimigo da Pátria, com mais razão o pode denunciar, quando é culpado de heresia’ E os Domínicos, os Santos Apostólicos que estabeleceram esta prática infame, davam ao filho a recompensa: ‘o filho, delator de seu pai, ficava isento das penas impostas por direito aos filhos dos hereges, e isto em recompensa da sua delação, in proemium delationis» 3 .
Complemente-se o que acaba de dizer-se com este passo de «A Inquisição» (cit., p. 45): «A Inquisição empregava quatro modos para tomar conhecimento de uma causa: ‘orumor público, a delaçãosecreta, a descoberta porespionagem, a acusaçãovoluntária». E, na toada do que se vem expondo, eis mais umas breves achegas: São do «Manual dos Inquisidores para Uso das Inquisições de Espanha e Portugal» os seguintes excertos: «Quando mesmo a denúncia feita não apresente algum vislumbredeserverdadeira,nem porissooinquisidordeve inutilizaroprocesso encetado,
1 Carlos Babo, ob. cit., pp. 53-54.
2 Explique-se: no decorrer dum processo, uma testemunha tem atitude favorável ao réu (encarada, pois, pelos inquisidores como «testemunha falsa»); se, depois disso, «por via de inimizade ao réu, ou corrompida, ia depor de novo contra ele, dava-se-lhe inteiramente todo o crédito».
3 «… Um insaciável furor de trucidar tornava a alma de gelo para toda a espécie de sentimentos» (H.I.P., p. 88).
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que sempre deve levar por diante, porque o que não descobre hoje, poderá alcançar-se amanhã» (…) «E quando as testemunhas não depuserem de heresia formal, senão de indícios e presunções dela, depois de formar os artigos dos ditos das testemunhas, fará outro artigo em que diga que contra o réu resulta presunção conforme direito, que ele cometeu tal heresia e concluirá o libelo na forma sobredita» (H.I.P., p. 311).
Ante o que de tão abominável acaba de exarar-se, os autores de H.I.P. (p. 309) consideram, adadopasso: «Eum desgraçadosofrendotudo istosem nem aomenoslograr o direito de queixar-se, pois que cada palavra, mesmo a mais simples, era reputada uma blasfémia escandalosa» – a isto devendo acrescer-se este rasgo de «A Inquisição»(p. 45): «O crime, porém, mais sem remédio e sem perdão e que era sempre seguido de morte era a ofensa, por mais ligeira que ela fosse, feita aos oficiais ou ministros da Inquisição – ou amais leveameaçacontraos delatores ou testemunhas num processo, seacaso sechegava a conhecê-las».
Como já referido, os inquisidores não revelavam às vítimas as «culpas» de que eram acusadas; do mesmo modo, eles nunca revelavam ao preso quem o denunciava. Por um lado, propiciavam, assim, a atuação dos denunciantes e, por outro lado, intentavam concluir, deste sinistro jeito, se o encarcerado incorria na gravidade de ser «diminuto»ou ser «negativo», isto é, no primeiro caso, não era achado exaustivo na «confissão» de «culpas contra a Fé» e denúncia de «coniventes» e, no segundo caso, negava ter «culpas» e, consequentemente, negava «conivências»…, acontecendo, frequentemente, que os ditos «cúmplices»(designadamente familiares), após terem sido igualmente encarcerados, eram induzidos (quer transmitindo a realidade quer mentindo) a confessarem-se «errados» e a denunciá-lo, sem que ele o soubesse. Não fique por dizer-se que os inquisidores não sentenciavam apenas sobre «atos» (as ditas «heresias», «erros contra a fé», a mesquinhice de um simples ditoou gesto, etc.), sentenciavam, implacavelmente, sobre «intenções» e «sentimentos» (por eles perversamente alegados): imputavam, por exemplo, contrição deficiente em relação ao que o processado fez ou não fez e que, no entanto, confessou; imputavam «intenção» de não confessar tudo e de não denunciar exaustivamente; ou imputavam-lhe até o delito de «sentir mal da Santa Inquisição» 1 .
1 Ou: «sentir mal ou duvidar de algum dos artigos da Fé», «sentir mal dos votos, religiões e cerimónias aprovadas pela Santa Madre Igreja», «sentir mal da pureza da Virgem Santíssima Nossa Senhora, não crendo que foi virgem antes do parto, no parto e depois do parto», etc.
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Alguém vai, por exemplo, para a fogueira com este juízo dos inquisidores: «… confitente (confessou, uma vez apertado), impenitente (não há arrependimento ou é deficiente), revogante» (negou o que tinha confessado, uma vez livre das torturas e, portanto, impenitente).
Eis, entre inúmeros e chocantíssimos exemplos, apenas este, em que à processada é aplicada a pena máxima: «… há os pouquos sinais que mostra de boa convertida e penitente» 1
Não apenas se evoque que alguns padres foram sentenciados por «sentirem mal» do Santo Ofício ou do «retíssimo procedimento do Santo Ofício», mas também que não raros clérigos e religiosas foram queimados ou cruelmente punidos por divergirem ou discordarem (ou mesmo contestarem) a teoria e a práxis dessa teia de iníquos. E acrescente-se que há quem admita o seguinte: não raros dos portugueses que, face à monstruosidade do poder eclesiástico e, designadamente, da Inquisição, se sentiram levados a buscar «um conjunto de valores alternativos», foram engrossar a corrente dos criptojudeus 2 .
Porque com pleno cabimento neste contexto, não fique por aludir-se às «visitações», «comissários» e «familiares do Santo Ofício», «Procissões de Fé».
Os «visitadores», agentes do «Santo Ofício», faziam «visitações», ou seja, deslocações (com estadia demorada) às localidades, às circunscrições, para induzir os indivíduos, sob pena de excomunhão (culminando esta, segundo se inculcava, na queda no «inferno»), a denunciar outros, bem como a «confessar»os seus próprios «erros contra a fé» (e, está claro, a apontar «coniventes»/«comunicantes»), do que, de imediato, era feito assento por escrito, seguindo-se os tais tenebrosos trâmites. Prosseguindo-se, não haja tardança em exarar-se o seguinte: muitos dos processados são acusados de coisas que só não eram vistas como corriqueiras por quem, como os inquisidores, transbordava de perversão e sadismo Por exemplo, na publicação «Visita da Inquisição a Entre-Douro-eMinho, em 1570» 3, que nos dá conta das denúncias então formuladas na dita região, eis um rosário de acusações banais: uma palavra solta a que se imputava leviandade; um insólito gesto, meneio ou trejeito; uma piada dita aquando da passagem de uma procissão; um chiste possivelmente com alcance anticlerical…
1 Elvira Azevedo Mea, ob. cit. (S.I.C.), p. LIX.
2 Evoque-se, por exemplo, comunicação do Prof. Herman Salomon, no Ateneu Comercial do Porto, acerca de «Novos Pontos de Vista sobre a Inquisição em Portugal» – «O Primeiro de Janeiro», de 17.6.1976, p. 11.
3 Frei António do Rosário (dominicano) – «Visita da Inquisição a Entre-Douro-e-Minho em 1570» (extratos), em «O Distrito de Braga» – Boletim Cultural de Etnografia e História, Administração Distrital de Braga – 1978, vol. III da 2ª série, pp. 341 a 394.
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Refira-se, de caminho, que, em «Falsificação da História», se faz uma narrativa sobre «Visitação» inquisitorial do Bispo de Ceuta e Tânger a Mazagão 1
Eis o «statu quo» monstruoso que se tinha conseguido urdir na Humanidade: a muitaspessoaso medodenãodelatar –pois quedesignadamenteas atormentavaoacicate datenebrosa excomunhão –nãomenosas atormentavadequeoterrordeserem delatadas; e mais: a quantos indivíduos, no íntimo roídos por enorme dialética, tanto o terror os afugentava da Inquisição como os movia a encarar o mórbido «dever» de «apresentaremse» e confessarem suas «culpas», assim incorrendo no horrível calvário, acontecendo que a Inquisição induzia nesta atitude, ao acenar que correspondia uma atenuante ao facto de ser-se «apresentado» 2 . Não há mais eficaz e iníqua trela do que a que amarra a consciência da pessoa humana. Muitos eram os que se «apresentavam», roídos pela doentia sensação de incursos em «erros contra a Fé» – a massiva doutrinação/coação por parte da clerezia a isso os arrastava (mormente, repita-se, os mais alienados com os dejetos persistentemente nas consciências despejados).
«Edital e Monitório Geral»são, em suma, extensas, intrincadas, muito minuciosas listagens (aclaradas com imbricantes aspetos catequéticos) elaboradas pela Igreja daquilo que ela tinha na conta de «erros contra a Fé» (heresias, «blasfémias», «irreverências», «graçolas», atitudes relacionais, incumprimento de prescrições, mesmo as mais banais, de ordem catequética/teológica, enfim, até tantos dos aspetos mais elementares como naturais do quotidiano dum ser – listagens estas não apenas a afixar profusamente, mas também a proclamar nos atos do culto, reiteradamente se martelando na obrigação de denúncia, sob pena, além de mais, de excomunhão.
Não pouco frequentes eram, também, as «Procissões de Fé». E estas igualmente ocorriam e punham em ebulição os meios coloniais, conforme algo se discorre em «Falsificação da História» (ob. cit., vol. II, pp. 340-341).
«Familiares do Santo Ofício» eram espiões espalhados pelo Reino e colónias, tendo que ser pessoas com «fazendas… que possam viver abastadamente», que os inquisidores instituíam em seus lacaios e que iriam estar atentos aos «desvios contra a Fé», na área da sua residência e redondezas. Em muitas paragens, havia «comissários» além de «familiares doSanto Ofício»(porexemplo, TeodorodeMatos alude acomissário de Santo Ofício em Timor e envio de Timorenses para a Inquisição de Goa) Por todo o
1 Pedro de Azevedo – «A Inquisição em Mazagão em 1607 e 1609», na «Revista de História» (da Sociedade Portuguesa de Estudos Históricos), 1916, 5º vol., pp. 182 a 185, 282 a 284, 327 a 337.
Deste assunto bastante é por mim aduzido em «Falsificação da História», cit., vol. II, pp. 418 e segs.
2 Uns «apresentavam-se» porque, compenetrados de que estavam para ser presos, não viam escapadela ante tal iminência.
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lado se estenderam os tentáculos dessa hidra avara e sanguissedenta. Registe-se, ao correr da pena, que, denunciado pelo Padre José Manuel Leiva («para descargo de sua consciência»),o Padre FranciscoManuel do Nascimento (com onome arcádico deFilinto Elísio), com valentia e destreza física, conseguiu, empunhando um punhal, escapar aos dois «familiares do Santo Ofício» enviados para o prenderem, tendo vindo a exarar em «Epitáfio»: «Como todos, entrei neste universo / Sem conhecer os homens / Com eles vivi, tratei. Não fui ditoso (…) / Por três homens que vi dignos de estima / Vi mil malvados Judas (…) / Sem pesar me despeço; e, se o previra, / Rejeitava entrar no orbe» 1. E da mesma toada são, por exemplo, estes flamejantes versos, que aqui transcrevo em pé de página 2, exarados por Filinto Elísio, em 4 de julho de 1806, em Paris 3 . Ao falarse de Filinto Elísio – um nome entre o de tantos autores que pugnaram contra a «Santa Inquisição» – não será supérfluo aduzir-se esta tirada satírica de Voltaire: «Depois do tremor de terra que destruíra três quartos de Lisboa, os sábios do país não encontraram um meio mais eficaz de prevenir uma ruína total do que oferecer ao povo um belo autode-fé; a Universidade de Coimbra decidira que o espetáculo de algumas pessoas queimadas em fogo lento, com grande cerimonial, era um segredo infalível para impedir a terra de tremer: por conseguinte, apanharam um biscainho convencido de que casara com a sua comadre, e dois portugueses que tinham comido um frango e posto de parte o toucinho; vieram amarrar depois do jantar o doutor Pangloss e o seu discípulo Cândido, um por ter falado, outro por ter ouvido com ar de aprovação (…) Cândido foi açoitado cadenciadamente, enquanto se cantava; o biscainho e os dois homens que não tinham querido comer toucinho foram queimados, e Pangloss foi enforcado, embora isso não fosse costume. No mesmo dia a terra voltou a tremer com um fragor espantoso.» Apesardetãoomnipresentee feroz aengrenagem da Inquisição, repise-se: sempre houve gente de «boa vontade» vitimada por ter remado contra a maré; também, a nível larvar, houve um ou outro movimento associativo, de que há alusão em «Falsificação da História»; houve não raros intelectuais que foram perseguidos, torturados, tantos deles mortos (ver, por exemplo, em «Falsificação da História», cit., vol. II, pp. 385 a 395 e passim)
1 Ver «Público», de 22.6.1990, p. 20.
2 «Inda vive, inda reina, para injúria / Dos reis, que o não confundem, para escárnio / Dos Povos alumiados, a despeito dos Sábios e Homens probos, / Esse antro de assassinos tonsurados, / Que, novos Polifermos, despedaçam /As carnes inocentes das Donzelas? / Que ao saber põem mordaças?
(…)
Venha, venha, em meus dias um Rei justo / Que à valente Razão dê fausto ouvido: / Que adite o Reino, assoberbando os Monstros / Que o gastam, que o aviltam. / Contente morrerei, se antes da morte / Me raia a nova que atupiram, ledos, / A Caverna do Caco os Portugueses / E lhe dançam em roda».
3 Carlos Babo, ob. cit., p. 57.
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4.3. Fereza sobre crianças e até sobre defuntos
Aos filhos dos espoliados nada lhes cabia do que dos pais era pertença, mas a bem mais supino grau subia a iniquidade: «Os filhos e netos», lê-se na Enciclopédia Portuguesa e Brasileira, «por linha masculina dos relaxados ficavam impossibilitados de exercer cargos públicos e certas profissões, como a de médicos e boticários», mas, de forma mais rotunda, eis o estipulado no Manual dos Inquisidores 1:
«Se os hereges, penitentes antes da sentença, não perdem seus bens, não é senão por pura bondade que lhos deixam, bem como a vida, pois mereciam perder uma e outra coisa. Com efeito, os bens de um herege cessam de lhe pertencer, e são confiscados só pelo facto.
A comiseração com os filhos do culpado, que fica reduzido à mendicidade, não deve adoçar esta severidade, pois os filhos, pelas leis divinas e humanas, são punidos pelas faltas de seus pais 2 .
Os filhos dos hereges mesmo sendo católicos não são excetuados desta lei, nem se lhes deve deixar coisa alguma, nem mesmo a legítima, que parece pertencer-lhes de direito natural.
Contudo, os inquisidores poderão, por favor, prover na subsistência 3 dos filhos dos hereges. Farão aprenderum ofício os rapazes, eporãoas filhas aserviralgumamulher de consideração da cidade. Quanto àqueles cuja idade ou débil saúde os prive de ganharem a sua vida, dar-lhes-ão algum leve socorro!
Depois da morte de um herege, também se podem declarar os seus bens sujeitos a confiscação, e privar deles os seus herdeiros, ainda que esta declaração não tenha sido feita durante a sua vida.
Pode-se proceder contra um herege, depois da sua morte, e declará-lo tal, com o fim de confiscar seus bens, ‘ad finem confiscandi’, arrebatá-los aos que os possui até terceira mão, e aplicá-los em proveito do Santo Ofício.
1 Carlos Babo, ob. cit., pp. 54-55.
Eis considerando de Carlos Babo (ob. cit., p. 55): «E era desta casta um tribunal que não passava no ponto de vista religioso da mais nefanda e vil das monstruosidades, que era o meio infame de se apoderarem os inquisidores das riquezas dos outros em proveito próprio, eum recurso sempre aberto à vingança de todos os inimigos que qualquer podia ter, ou por seus talentos ou por suas riquezas, ou até… por preferências obtidas na simpatia de uma mulher… como tantas vezes sucedeu».
2 «Deus», segundo exarado no Deuteronómio, «castiga» a «iniquidade dos pais nos filhos, até à terceira e quarta geração» –Deuteronómio, cap. 5, vers. 9.
3 Simulação e dissimulação a par de prepotência e crueldade.
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Se um acusado, depois de morto, é absolvido, isto não obstará que com o tempo se não possa recomeçar o seu processo. Por amor da fé, em causa de heresia, nunca uma sentença de absolvição deve ser considerada como um juízo definitivo.
Quando aos inquisidores se apresentarem hereges, excomungados, contumazes, e por conseguinte privados de seus bens, poderão admiti-los à penitência, mas não à restituição dos mesmos bens!»
Famílias inteiras (e ainda indivíduos a elas aglutinados) foram presas e sentenciadas – e não haja tardança em dizer-se que as crianças, mesmo as que não tinham «idade bastante para fazer abjuração», eram submetidas a um duro calvário 1 –, sendo vulgar, no mesmo auto-de-fé, serem queimados alguns membros da mesma família (pais, filhos, irmãos, etc.)
Sobreaformacomoeram encaradasas crianças,tambémnoselucida,porexemplo, esta citação quanto à dura sina de Trancoso, terra do «profeta sapateiro» Bandarra (tanto tendo caído sob as iras da Inquisição ele como os seus clandestinos escritos, «Trovas», que alcançaram muita popularidade e que começaram por circular de forma manuscrita): «A vila foi cenário de algumas perseguições que hoje ainda são lembradas por judeus portugueses: no século XVII, por exemplo, fizeram com que muitos deles 2 abandonassem cerca de trezentas crianças que – dizem os historiadores – durante três dias se arrastaram pelo vizinho vale do Metoque, chamando pelos pais» 3 .
E sobre a maneira beatífica com que os torcionários encaravam o desespero de crianças ante a execução designadamente dos pais é também eloquente este passo de «A Inquisição», ao falar-se do inquisidor de Lisboa, João de Melo: «só em si tinha a lascívia de Frei Bernardo da Cruz, a ferocidade de Baltazar Limpo e a astúcia de Pedro Álvares Paredes. Os cárceres de Lisboa eram devassados por atrocidades e devassidões. Como estavam sempre à cunha, de vez em quando fazia-se um auto-de-fé para aliviar as masmorras ehaveralgumahigiene.Elemesmo, referindo-seaum auto que assistiu,disse: ‘Eram cem. Um frade subiu ao púlpito e orou. Pregou… Cantou-se o Veni, Creator Spiritus… Fez-se a leitura das sentenças. Primeiro as de degredo e prisão temporária, depois as de cárcere perpétuo e no fim as de morte, que eram vinte: sete mulheres e treze homens…Denenhumacoisaestou tãoespantado –escreviaele–como dar NossoSenhor
1 Veja-se, a propósito, o estatuído no Regimento de 1640 – H.I.P., cit., p. 302.
2 Posto que foram presos, numa «razia», pela Inquisição.
3 Reportagem intitulada «O judaísmo vive na Beira Interior», em «O Primeiro de Janeiro», de 6-10-88, p. 13.
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tanta paciência em fraqueza humana que vissem os filhos levar seus pais a queimar, e as mulheres seus maridos, e uns irmãos aos outros, e que não houvesse pessoa que falasse nem chorasse, nem fizesse nenhum outro movimento senão despedirem-se uns dos outros com suas bênçãos como se partissem para tornar ao outro dia…». E, no mesmo encadeamento, ao falar-se do inquisidor de Coimbra, Frei Bernardo da Cruz (bispo de São Tomé e reitor da Universidade), «A Inquisição» recolhe de Herculano este apontamento, onde palpita o desespero duma criança: «Precisava ele de provar crimes de judaísmo, perpetrados no Porto, por Simão Álvares – cristão-novo – que tinha vindo daquela cidade, havia nove anos, com sua mulher e uma filha de pouco mais de seis meses…ChamouafilhitadeSimãoÁlvaresàsuapresença,pôs-lheemfrenteumbraseiro, cheio de carvões acesos, e disse-lhe: ‘Se não confessas que viste teu pai e tua mãe açoitar um crucifixo, mando queimar-te as mãos neste braseiro’. A criança confessou logo tudo – embora se referisse o bispo a uma época em que ela só podia ter o máximo seis meses» (de seguida, aponta-se como ele se ia derreter junto de ‘mulheres casadas e donzelas’ presas) 1 .
Passemos adiante, acrescentando algo ao já referido acerca de fereza sobre defuntos
Lê-se no Regimento da Inquisição de 1640 (H.I.P., pp. 306 e 359):
«… começará pelo inventário (dos bens) do preso na forma do parág. 2º e logo continuarão as sessões, como adiante se dirá nos títulos VI e VII. E em caso que se haja de acusar algum ausente, ou defunto, para efeito de ser condenada a sua memória e confiscados os seus bens naformadedireito,seporãonaprimeiraparteas culpassomente e a segunda começará com o requerimento do promotor e assento que sobre elas se tomar e logo se ajuntará a carta dos éditos por que foram citados os ausentes e herdeiros do defunto 2, com certidão do notário, do dia em que se afixou e em que foram tirados, e continuará o processo como se declara nos títulos XVIII e XIX deste livro.»
«Se, depois de se haver procedido contra os defuntos na forma que fica declarada no livro II, título XVIII, eles forem havidos por convictos no crime de heresia e apostasia, serão em sua sentença declarados por hereges e apóstatas da nossa Santa Fé e condenada a sua memória e fama e confiscados os seus bens do tempo em que se provar que cometeram delito, contanto que não estejam legitimamente prescritos por espaço de 40 anos, e serão os seus ossos desenterrados, e tirados das igrejas, adros ou qualquer outra
1 Carlos Babo, ob. cit., pp. 32-33.
2 A rapina caía sobre os próprios herdeiros de indivíduos sepultos sobre cujo espetro a Inquisição achava conveniente arremeter
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sepultura eclesiástica em que estiverem, podendo-se separar os ossos dos fiéis cristãos, e levados com a sua estátua ao auto-de-fé público e relaxados à justiça secular».
E considera-se em H.I.P. (p. 306): «Prossegue o parág. 3º (do título V) com mui positivas recomendações pelo que pertence aos bens e haveres do preso, no caso de haver ousualsequestro,estatuindo-seasemelhanterespeitoasmaisamplas,eficazeserigorosas providências, para que nada escapasse à rede de arrastar com que os padres inquisidores pretendiam senhorear-se do que era pertencente aos infelizes entregues à sua insaciável rapacidade». Fique bem claro que, no inventário dos bens dos presos, tudo era executado com indescritível espírito de rapina, tudo era minuciosamente vasculhado, nada escapando, mesmo talheres, pratos, tachos de arame, chocolateiras, chávenas, candeeiros, bancos e caixas, catres e camas, escravos, os mais simples objetos de uso pessoal (de toda a família, mesmo dos bebés) e, claro está, até as menos valiosas moedas 1 Quanto aos falecidos nos cárceres, o Regimento da Santa Inquisição estatuía que fossem feitas «a posteriori» indagações «sui generis» sobre o que lhes ia na alma, acontecendo que tais cadáveres eram arrumados em espaço recôndito («em conserva», comosedizemH.I.P.,p.339)atéchegarodiaem quesedecidisseporumdestesdestinos: o vitupério ou o tratamento «sacro».
É claro que aos falecidos nos cárceres e condenados à pena máxima (ou seja, «relaxados» nos ossos), que não podiam «ser recebidos ao grémio da igreja» (S I C , p. L), eram-lhes queimadas as ossadas, sendo levadas pelos «magarefes», em «caixões cobertos com samarras», para a fogueira. Note-se que, desta mesma forma, eram levados os livros proibidos 2: «Não poucas vezes, os livros, dentro de caixões cobertos com samarras, figuravam nos autos, porque tinham sido processados como ímpios e sentenciadosaserem queimados como hereges, oqueassim seexecutava»(H I P.,p.141) Muitíssimos indivíduos houve que, por não terem sido denunciados em vida ou por não ter ocorrido viabilidade de os afogar no caudal das iras, enquanto vivos, isso se tornou viável depois de mortos (e, quantas vezes, era, exatamente, a sempre insaciável sede de bens a confiscar e/ou a raiva sobre familiares sobrevivos que lançava os inquisidores sobre eles), sendo-lhes, então, quantas vezes depois de sepultos há vários
1 Ver, por exemplo, António Baião – «Episódios Dramáticos da Inquisição em Portugal», cit., vol. II, pp. 183, 184, 187, 192 e 193.
2 Quanto a livros proibidos, quanto a peias, a rechaço sobre a divulgação do pensamento, razoavelmente nos elucidam, por exemplo, António Baião em «A Inquisição e os livros suspeitos – Os livreiros de Lisboa em 1550», no «Boletim da Associação do Magistério Secundário Official» (Lisboa), anno III – agosto a dezembro/1907, fasc. XVI, e, também, Pedro Azevedo em «Explorações archivisticas – Destruição de livros», na «Revista de História» (da Sociedade Portuguesa de Estudos Históricos), 1913, 2º vol., pp. 103 a 105.
E,depassagem,faça-semençãoaosseguintestextosdeAntónioBaião(mencionadosnasuaobra«EpisódiosDramáticosdaInquisição em Portugal», cit., vol. II, p. 351): «A censura literária da Inquisição no século XVII» e «A censura literária inquisitorial».
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anos, desenterrados os ossos e queimados; eis um avulso exemplo de entre muitíssimos, em nada menos escabrosos, que ficaram registados: «Saiu um padre a morrer e outro homem em estátua, que havia morrido em sua casa a 15 de Setembro de 1618, mais de oito anos antes, e se lhe foram desenterrar os ossos para os queimar» (auto-de-fé, de 16/8/1626, em Coimbra, nele havendo 247 indivíduos sentenciados, sendo sete relaxados em carne e sete relaxados em estátua) (H.I.P., p. 237).
Não fique por registar o episódio que envolveu o próprio rei João IV 1: no dizer dos autores de H.I.P. (pp. 131-132), o monarca, «imaginando» que «tudo se acabaria mal cessassem as confiscações, objeto por que os inquisidores praticavam as suas maiores prepotências, publicou um édito rigoroso, por meio do qual ficavam proibidos os confiscos aos presos pela Inquisição, porém pouco resultado deu, se não é que ainda veio a contribuir para os encarniçar mais furiosamente contra a humanidade portuguesa»; de caminho, diga-se, a coberto de Joel Serrão 2, que a questão do «confisco dos bens dos acusados» arrastava-se «desde o tempo dos Filipes» e, «nesta altura, se exacerbou a tal ponto que o Conselho da Inquisição veio a declarar excomungados ‘todos aqueles que de qualquermodo tinham concorrido paraapromulgaçãodaleisuspensivadas confiscações; no número dos excomungados achava-se o rei falecido» 3 Em suma, o poder eclesiástico movera-se logo, abespinhado, e obteve do Papa uma bula, contrariando o édito do rei 4 . «El-ReiD.João IVfoiexcomungadodepoisdemorto,asuarealossaturafoitirada do caixão à vista dum concurso imenso de fiéis, despojado das suas vestes soberanas e estendido no chão junto aos pés dos do Conselho do Santo Ofício…»
«Pode dar-se uma impiedade mais horrorosa e demais tendo-se constrangido a própria rainha D. Luísa de Gusmão, bem como os príncipes D. Afonso e D. Pedro, seus filhos, para que assistissem a um tão escandaloso vilipêndio das cinzas de seu querido pai e seu lamentado esposo?!»
Numa tétrica exibição teatral, perante o caixão colocado no templo, os inquisidores, «com suas vestes sacerdotais, procederam à leitura dum processo, muito em
1 Na «História da Inquisição em Portugal», cit., diz-se que este rei (em cuja entronização foi significativo o empenhamento/respaldo popular) fez algo em prol do povo esmagado pela Inquisição, mas, na verdade, fez muito pouco – avulsamente se leia, por exemplo, breve apontamento em «Falsificação da História», cit., vol. II, p. 321.
2 Joel Serrão e outros – «Dicionário de História de Portugal», Iniciativas Editoriais, vol. III, p. 778.
3 Assinale-se: a Inquisição portuguesa, «acusada de se inclinar abertamente, durante a Restauração, para o lado espanhol», abarbatou (terminando uns na fogueira) vários amigos/colaboradores de João IV/Restauração. E urdiu-se até uma conspiração para «restituir o trono a Filipe IV». Joel Serrão e outros, ob. cit., pp. 621- 622.
Ver também: «Inquisição», in «Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira», cit., vol. XIII, pp. 846 e segs., bem como in «Verbo –Enciclopédia Luso-Brasileira de Cultura», cit., vol. 10, pp. 1510 e segs.
4 De caminho, refira-se: logo que pela Inquisição facilmente derrubados os obstáculos que, algumas vezes, se lhe depararam, era por ela, no dizer dos autores de H.I.P., espampanantemente festejado o acontecimento, com «repiques de sinos», «luminárias», brilhantes solenidades (durante dias a fio), na «monita secreta», e imprimindo-se mais urgência, festividade e crueza, nos autos-de-fé.
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‘segredo’ formado contra o próprio monarca português e pelo qual o declaravam excomungado e morto sob a perniciosa qualidade de inimigo da igreja católica. A este segundo aparato de ludíbrio seguiu-se ainda um outro mais vituperante, chovendo os impropérios públicos sobre a memória do finado e seguindo-se-lhe uma cena muda e ridícula de escárnios não menos insultuantes. A 'absolvição' foi, afinal, pronunciada e só depois de tudo isto é que os ministros do Santo Ofício consentiram se desse a um rei de Portugal as orações...» (H I P., pp. 131 a 133).
No seguimento do que acaba de dizer-se, refira-se que sobre o jogo de disparos de excomunhões feitos por Bispos sobre Reis é, por exemplo, elucidativo o apontamento exarado em «Falsificação da História» 1 quanto a quatro reinados consecutivos 2 (Sancho I, Afonso II, Sancho II, Afonso III).
E a encerrar este ponto refira-se: o Papa Estêvão VI (que, pouco após, por uma fação católica viria a ser metido num cárcere e, aí, estrangulado) instaurou «um processo solene» (conhecido por «concílio do cadáver») contra o falecido Papa Formoso, pelo que o cadáverdeste «foi sacrilegamentearrancadodasepultura»esubmetido aumasequência de sinistros rituais. E, segundo palavras do historiador medieval Gregorovius, no fim, «arrancaram-lhe as vestes pontificais, cortaram-lhe os três dedos da mão direita com que os latinos costumam abençoar e com selvagem gritaria lançaram o cadáver fora da sala, entregando-o à população que, arrastando-o pelas ruas, o lança no Tibre.» 3
4.4. Ciladas
Já se disse que, na Inquisição, se acenava às vítimas com uma certa indulgência caso confessassem tudo e denunciassem fartamente. Por exemplo, no auto-de-fé, de 6/5/1657, em Évora, «Maria Mendes, que foi a morrer, estando já no cadafalso, lhe disse uma filha, que saiu penitenciada: ‘Minha mãe, salve a vida e dê (denuncie) em quantos lhe lembrarem». Respondeu esta: «Filha, nada disso me ficou por dizer, corri toda a CastelaePortugalenadamevaleu.Heidemorrerporforça,poisassimoquerem»(H I P , p. 211).
1 Francisco de Azevedo Gomes, ob. cit., vol. II, pp. 152 e segs.
2 Ao discorrer sobre estes, Fortunato de Almeida, note-se, diz, a dado passo: «Os excomungados que, com violação do interdito, houvessem recebido sepultura eclesiástica, deviam ser desenterrados, a fim de novamente e de modo devido serem sepultados, para o que se passariam instrumentos autênticos de absolvição, quando fossem pedidos». Fortunato de Almeida – «História da Igreja em Portugal», nova edição prep. e dirigida por Damião Peres, Portucalense Editora/Porto, vol. I, 1967, p. 176.
3 Heitor Morais da Silva, S. J. – «História dos Papas – Luzes e Sombras», Editorial A. O./Braga (2005), 2ª ed., pp 175-176
E note-se: «todos os que haviam recebido as sagradas ordens por meio de Formoso teriam de ser ordenados novamente.»
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Conforme assinalado em qualquer estudo sobre Inquisição (designadamente, em S I C , pp XLVIII e XLIX), era prática constante a vigilância secreta (eram dadas instruçõesaos guardasnessesentido),espreitando-se,porexemplo,comojáficoureferido, através de buraquinhos («espreitadeiras»), o comportamento dos presos nas celas, verificando-se, por exemplo, se alguns «meneios» de cabeça ou inclinação do corpo indiciavam orações judaicas ou se emergiam outros atos indiciadores de criptojudaísmo (S I C , pp. XIII, XIV e XV): jejuns às segundas e quintas-feiras, jejum grande do «Yom Kippur»(em setembro), guarda dos sábados, abstenção de comer carne de porco ou lebre, que, adrede, era servida, etc.
No Tribunal do Santo Ofício, havia, designadamente, as chamadas «casas de vigia», ou seja, cárceres especiais, em que eram encarcerados réus e, sem que estes o soubessem, «continuamente os esbirros do tribunal espreitavam os seus mínimos atos» 1
Em Coimbra, escavações orientadas por dois arqueólogos puseram «à mostra quatro celas – ‘é possível que existam mais’, afirmam os arqueólogos – com ‘pinturas negras, bastante tétricas no teto’. Completamente disfarçadas pelas pinturas, estavam as chamadas ‘espreitadeiras’, dois buraquinhos através dos quais os ‘Familiares da Santa Inquisição’, voluntários ao serviço do tribunal, espiavam os presos, para escutar o que eles diziam nas celas. Esses espiões sentavam-se em bancos de pedra, num corredor escavado dentro da parede que dividia as celas. Dois bancos, duas espreitadeiras e dois ‘familiares’ para cada cela. ‘A Inquisição desconfiava dos próprios familiares, ao ponto de nunca pôr um só a escutar as conversas…» 2 Muito frequentemente, recorriam, também, a presos ensaiados/incitados ou, mais usualmente ainda, a indivíduos que, simulando-se presos, intentavam, ardilosamente, encaminhar as vítimas para confidências comprometedoras ou, conforme o assegura o Padre António Vieira, tais farsantes malvados blasfemavam, na mira de criar clima propício para que os presos embalassem na mesma toada (Falsificação da História», vol. II, p. 290).
Exemplifique-se com um acontecimento em que a traição tão elevadamente se casa com a rapacidade e a fereza da Inquisição: a prisão e calvário dos banqueiros Duarte da Silva e Gomes Henriques, ligados por laços de amizade.
1 António Baião – «Episódios Dramáticos da Inquisição em Portugal», cit., vol. II, p. 256.
2 Isabel Braga – texto intitulado «Dos Templários aos Inquisidores», no «Público», de 18.11.96, p. 22.
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Gomes Henriques 1, que veio a ser queimado (sendo ainda vivo o rei João IV, que tantas dádivas e favores dele havia recebido), apercebeu-se de que o «espiavam» por um buraco da parede, tendo tapado este com um rato, que matou, e acabou por suspeitar do primeiro traidor colocado a seu lado. A um segundo traidor («D. José Carreras»), a seu lado colocado, Gomes Henriques desgraçadamente tomou como amigo e confidente. Sobre a densa trama quanto aos dois referidos banqueiros, leia-se António Baião, ob. cit., ou ponto 10 do cap. IV de «Falsificação da História», cit., vol. II. Eis apenas uma ou outra das confidências que lhe imputaram os traidores, ditando-as para o processo: «Ladrões, com que consciência tivestes preso seis anos a Duarte da Silva e a um menino e uma menina de treze anos, filhos do mesmo, justiça de Deus!’ Acrescentava: ‘A casa da Inquisição é casa de aflição e má ventura, onde as mentiras são verdades e as verdades, mentiras. A justiça de Deus virá e o castigo não tardará.» Sobre os inquisidores dissera (ele que esperava que amigos poderosos acabariam por acudir-lhe) que «queriam presos ricos para lhes comerem as fazendas» e asseverara que «prenderam Duarte da Silva para lheapanharemodinheiro…» 2 (depassagem,àlaiadeavulsoexemplosobreacapacidade de engendração de iniquidades, refira-se o episódio que no ponto 19.16.1. desta tese se transcreve 3 sobre a prisão do abade de «S. Pedro de Vaboô» pelo cónego João de Meira Carrilho).
Acontecia que, nos despachos (sob a epígrafe «foram lidos estes autos»), eram, superiormente,dadasinstruções (S.I.C.,p.XLV)aosinquisidores(porescritoe,estáclaro, sem quemais ninguém a elastivesseacesso),nosentidodearmarnovas ratoeiras, detecer ardis ao preso ou submetê-lo a novos interrogatórios ou torturas, na mira de lhe arrancarem «confissões»(oucompletarestas)edenúncias(oualargarestas) deindivíduos.
Quanto a algumas armadilhas urdidas pelos inquisidores contra as vítimas, apenas aqui refiro que sobre elas serão esclarecedoras as pp. 46-47 de «A Inquisição», cit.4
Era frequente, também, dizer-se ao preso, de chofre, com as tais maléficas intenções,quejálheestavaaplicadaapenamáxima(porexemplo,opoetaAntónioSerrão
1 Um filho seu era membro destacado do clero.
2 António Baião – «Episódios Dramáticos da Inquisição Portuguesa», cit., vol. II, pp. 213 a 215.
3 Doutora Maria Marta Lobo de Araújo – «Enquanto o Mundo Durar: João de Meira Carrilho e o Legado Instituído na Misericórdia de Braga (Séculos XVII – XVIII), Santa Casa da Misericórdia de Braga, Braga – 2017, pp. 78-79.
4 Mesmo reações das vítimas, nas sessões de tortura, podiam também propiciar aos inquisidores inferências sobre o que lhes ia no íntimo: por exemplo, no processo do escritor judeu José Maria da Silva regista-se que, nos gritos, clamava por Deus, mas não por Jesus – para os inquisidores, «sinais» reveladores.
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1 e sua filha Teresa foram «fingidamente» condenados à morte 2). Esta estocada brusca e surpreendente, não por soar a arbitrariedade, pois tudo era de esperar de tal instituição, mas por surgir como culminante dum decurso processual que os indícios não levavam a calcular como esgotado, além de que nem pareceria indiciar um semelhante rigor, fulminava o preso com um tal estado de choque que ele, conforme em vários casos aconteceu, desatava a «confessar» e a «denunciar» (não raro, dizendo-se o que nunca se fez e acusando-se pessoas, sem fundamento)
4.5. Ganância, fausto, privilégios, honrarias dos agentes da Inquisição
O estudo da factualidade inquisitorial deixa ao léu as mais réprobas motivações, taiscomopoder,infrene ganância,presunçãoidolátrica,devassidão,rebuscadoe,nãoraro, lúdico sadismo.
Seria de grande préstimo um estudo sério que conduzisse a uma ideia aproximada acerca do colossal montante de fortuna que um qualquer dos centros inquisitoriais espoliou de tão vasto rol de vítimas, empanturrando os agentes inquisitoriais, a Igreja em geral, a generalidade dos magnates do poder político e do poder religioso.
Complemente-se o que fica dito com o seguinte: Papas, inquisidores e quejandos tinham também um farto manancial de receita na venda de «absolvição» aos que conseguiam comprá-la; ou no usual direito de solicitar a reabilitação dos hereges («como sesabe,osfilhoseos netosdoscondenadosna Inquisiçãoficavamdesonradoseincapazes do exercício de qualquer cargo», mas, «com dinheiro», era possível «reabilitar o morto e com ele os seus herdeiros»); ou envidando-se a «faculdade de recusar» (atente-se na explicação em «A Inquisição», cit., pp. 59-60).
Atente-se, designadamente, em achegas de Anita Novinski 3: «Em Roma nunca houve segredo sobre as intenções de D. João III, e também tinha-se conhecimento de que a autorização do estabelecimento da Inquisição fora
1 De António Serrão (cuja vida continuou a ser tétrica tal como a de sua filha Teresa – que veio a enlouquecer –, após saídos do cárcere), eis belo soneto alusivo ao calvário de onze anos na masmorra do Santo Ofício, em frente da qual havia uma ameixoeira:
«Onze vezes de folhas revestida,/Onze vezes de flôres adornada,/Onze vezes de folhas carregada,/Te vi ameixieira, aqui nascida.// Outras tantas também te vi despida,/ De folhas, flôres, frutos despojada,/Pelo rigor do Inverno saqueada,/ E a seco tronco toda reduzida.//Tambéma mimme vi já revestido,/ De folhas,flôres,frutos adornado,/ Deamigos e parentes assistido.// De todos eis-me aqui tão desprezado;/Mas tu voltas a ter o que hás perdido,/E eu terei jamais o antigo estado!» – António Baião – «Episódios Dramáticos da Inquisição em Portugal», cit., vol. II, p. 23.
2 Idem, ibidem, vol. II, pp. 22, 23 e 31-32.
3 Anita Novinsky – «O Tribunal da Inquisição em Portugal», texto inserto em «A Inquisição em Portugal – 1536-1821» – Biblioteca Nacional (Ministério da Educação e Cultura), Lisboa – 1987, pp. 40-41.
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concedida por razões políticas». O papa Paulo III intimava João III a deixar sair do país os cristãos-novos, mas ele, cruel e ávido de rapina, nãosedispunha a ceder (também antes e não apenas após a implantação do tribunal da Inquisição, os cristãos-novos muito diligenciaram no sentido de ser-lhes permitido sair de Portugal e «buscar abrigo entre povos menos cruéis», conforme expressão dum Memorial por eles elaborado). Paulo III mandou dizer a João III «que tinha informações de seu núncio em Portugal, Hieronimo Ricenati Capodiferro, de não terem sido razões de fé que o levaram a se interessar pela instituição do Tribunal, mas seu desejo de apoderar-se das riquezas dos cristãos-novos. O próprio Capodiferro acumulou enormes riquezas, ajudando cristãos-novos a fugir. Quando um navio que transportava os seus bens naufragou, o embaixador português comentou satisfeito: ‘não é sem razão que este barco, carregado de despojos do sangue de Nosso Senhor Jesus e dos presentes ofertados por seus inimigos soçobrou no mar». E Anita Novinski prossegue: «… Afinal toda a Cúria Romana foi comprada por dinheiro. O cardeal Farnese recebeu (de João III) em pagamento o Bispado de Viseu, além de uma renda anual de cerca de 20 000 ducados. O Cardeal Santiquatro, velho amigo do rei, obteve uma pensão anual de 1 500 cruzados e o Cardeal Crescentis, uma pensão de 1 000 cruzados. Ninguém trabalhou gratuitamente 1 , sendo todos pagos por Portugal. Os Portugueses cristãos-novos não conseguiram comprar a piedade de Roma…»
Dando, desse jeito, uma no cravo e outra na ferradura, eram colhidos dividendos farisaicos pelo Papa Paulo III («foi graças às relações de sua irmã Júlia Farneso Orsínia com Alexandre VI que alcançou o cardinalato»), o qual denotou crueldade, designadamente no tocante à vertente inquisitorial (é dele a bula «Licet ab initio», de 1542, que «reorganizou» a Inquisição e a bula «Meditatio Cordis» que «confere à Inquisição portuguesa poderes semelhantes aos da Inquisição espanhola» 2) e esbordou de outras pechas 3 , inclusive de nepotismo, favorecendo designadamente «seu filho natural, Pedro Luís Farnésio», a quem constituiu duque de Parma e de Placência 4
1 Lê-seem CarlosBabo,ob.cit.,p.40:«Só o netodePaulo III, AlexandreFarnese, auferiadoestabelecimentodefinitivoda Inquisição, em dinheiro corrente e em título seguro para o receber sucessivamente, perto de meio milhão de cruzeiros».
2 Biblioteca Nacional – «A Inquisição em Portugal – 1536-1821» – I Congresso Luso-Brasileiro sobre Inquisição, Lisboa – 1987, p. 18.
3 Pelo papa Paulo III foi nomeado cardeal, «com o título de S. Pancrácio», aquele que viria a ser o papa Paulo IV («membro de uma das mais nobres e antigas famílias do reino de Nápoles» e sobrinho do cardeal Oliveiro Carafa), que não menos desbragado foi designadamente em termos de nepotismo: «atraiu as censuras de muitos pelo favor que dispensou aos seus parentes: elevou ao cardinalato seu sobrinho Carlos; a outro sobrinho conferiu o título de duque de Paliano; a um terceiro fez marquês de Montebello»… Foi inquisidor-geral antes de ser papa e a sua crueza foi tal que «presidia com assiduidade às reuniões do tribunal da Inquisição» e a políticapor eledesenvolvida não seeximiu debatalhas sangrentas…,deforma que, volvidos os tempos, o povo de Roma, recordandose designadamente do que se sofrera com a guerra de Nápoles, «insultou a sua estátua e saqueou o edifício da Inquisição e o convento principal dos dominicanos» – e, em nada destoando, nesta linha de caracterização continuou designadamente o papa Paulo V: «O seu exagerado conceito das prerrogativas papais, a sua arrogância e obstinação levaram-no a prolongadas lutas»; «a sua dedicação aos interesses dos membros da sua família excedeu todos os limites e tornou-os imensamente ricos» (Francisco de Azevedo Gomes –«Falsificação da História», cit., vol. II, designadamente pp. 239-240).
4 «Paulo III», in «Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira», cit., vol. XX, pp. 668-669.
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O terror da Inquisição fazia correr outros grandes caudais de fortuna, que mormente dos cristãos-novos jorrava para aplacação de hidras insaciáveis, como se descreverá. Diversas destas ocorrências estão por demais documentadas, mas, porque, a este nível, em muitas das situações, era preferível a atuação à socapa, muito dinheiro, muitas entidades envolvidas, muitos segredos haverá por trás da cortina… Conhecedores da avidez dos opressores, os cristãos-novos veicularam fabulosas somas em dinheiro para o papa, para o rei, para as mais altas entidades religiosas e seculares, no sentido de conseguirem anuência quanto a petições por eles formuladas no sentido de serem aliviados ora deste ora daquele dos imensos horrores que lhes iam dilacerando a alma e o corpo – e, quantas vezes, tais entidades receberam as vultosas verbas e, sem que a traição lhes causasse quaisquer engulhos, não cumpriram o prometido ou quedaram-sepelo cumprimento domais insignificanteaspeto doque fora «negociado» 1 .
Não é suficiente dizer-se que os cristãos-novos iam «comprando» os poderosos, a peso de ouro, pois, por outro lado, eles eram uma importantíssima fonte de réditos do erário público, faziam, quantas vezes, vultosos empréstimos (além de dádivas) ao rei (o que aconteceu, por exemplo, com João IV), deram precioso contributo (até para conquistarem simpatias) para efetivação de certos projetos políticos. Encare-se, com profundo pendor reflexivo, o que, quanto à implantação da Inquisição em Portugal como «Tribunal permanente, metódico e constitutivo», se segue: Os cristãos-novos, através de delegados seus em Roma, deram vultosas somas a magnates do Vaticano. Nessa altura (nessa altura!), neste contexto, em que corriam caudais de dinheiro para certas bolsas, alguns cardeais, por exemplo, arengaram que era nitidamente imoral usar de coerção para induzir em atitudes religiosas, fossem elas quais fossem. E os senhores, tantos deles considerados letrados, que se agarram, com pendor determinista, ao mito da «luz da época», acham que havia eclesiásticos, por exemplo, no Vaticano, a quem a consciência não dissesse exatamente isso que esses cardeais «comprados» arengavam?
Complexas movimentações e negociatas nos bastidores deixaram empanturrada a Cúria Romana de vultosas somas; delegados de Judeus tudo fizeram, em Roma, por demover Papas e Cardeais de autorizarem a criação do dito tribunal; sedentos de dinheiro, esses tais, ao receberem elevadas somas dos Judeus, simulavam aceder às pretensões 1
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Anita Novinski – «O Tribunal da Inquisição em Portugal», já cit., pp. 35 a 41.
destes, mas, logo após, na generalidade, voltavam a arreganhar-se, implacáveis. Enfim, um perverso e traiçoeiro jogo de conveniências que a Cúria Romana ia, com calculismo, gerindo. Neste imbróglio sustentado pelos mais perversos interesses e instintos, o rei João III, como algures referido, não ignorou a conveniência de também ele saciar as fauces da hidra.
Explane-se, a coberto de «A Inquisição» 1:
O rei João III continuava a solicitar a bula que autorizasse o estabelecimento «definitivo» da Inquisição e os representantes dos cristãos-novos, em Roma, diligenciavam no sentido contrário. «E a Cúria fazia e não fazia, prometia, faltava, dava com uma das mãos e tirava com a outra, jogando de porta com o fanatismo e com a desgraçadosHebreus,sugando,horaahora,odinheirodestes,mamandoincessantemente na teta dos hereges. E era esta a situação que à Cúria Romana convinha: manter a situação de direito indecisa – visto que, de facto, os tormentos, as infâmias, as fogueiras, os assassinatos,nãodescansavam;vistoquearealidadecrua,a Inquisiçãoalastravaemplena atividade;vistoque‘essemonstrodeiniquidade’–comolhechamaHerculano–praticava todas as atrocidades por toda a parte. À Cúria de Roma convinha manter indecisa a situação de direito, para ter sempre à mão a riqueza dos cristãos-novos (…) E, enquanto a discussão, com mais bula, com menos bula, se prolonga indefinidamente, a Inquisição comete atrocidades por toda a parte »
«De ambos os lados, exigia-se, continuamente, que estes (cristãos-novos) fornecessem fabulosas somas em dinheiro e, em Portugal, chegaram a ser ameaçados de um massacre, caso não aumentassem seus donativos. Os banqueiros pertencentes à família Mendes ofereceram 5 000 escudos, através dos agentes portugueses em Roma, mas assim que o rei (João III) 2 tomou conhecimento desta soma, imediatamente fez oferta semelhante.» 3
O rei João III, consciente de que era suprema iniquidade ter sido o que foi –extorsionário e cruel –, quando já no inverno de seus dias, roído no íntimo, enviou um requerimento ao «Sumo Pontífice» para este pôr em liberdade os que se achavam presos (H.I.P., p. 416).
1 Carlos Babo, ob. cit., pp. 31-32.
2 Vivendo o povo português sufocado pela opressão e pela miséria, o brutal rei, joguete do poder religioso, em 38 anos de reinado, apenas reuniu três vezes as Cortes, uma delas em Almeirim, onde pediu ao «terceiro estado» 200 000 cruzados, tendo-lhe sido dados apenas 50 000… «Depois, mandou escrever cartas às pessoas abastadas do Reino, significando a cada uma com quanto desejava que concorresse» (Carlos Babo – «A Inquisição», cit., p. 31).
3 Anita Novinski – «O Tribunal da Inquisição em Portugal», já cit., p. 39.
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Mais tarde, numa altura em que o poder religioso andava um tanto acurvado face ao poder secular, o Cardeal João da Cunha, Inquisidor-Geral, embora viperinamente e comtodoocalculismo,reconhece(nopreâmbulodoRegimentode1774)queaInquisição tem cometido – e é claro que continuaria a cometer – toda a gama das mais execrandas injustiças e prepotências, sendo abominável a ofensa aos mais elementares princípios do «direito natural e divino» (H.I.P., pp. 351 a 355 e 347-348) – nesta imputação se subsumindo ofacto deo Marquês dePombal ter granjeadosólidos apoios a nívelda Igreja Católica/Inquisição quanto ao seu despótico desempenho político.
Quanto a privilégios, honrarias, presunção idolátrica muito se diz em determinados pontos dos volumes de «Falsificação da História», cit., mas algo se aduza, porexemplo,docapítulo«Cronologiada Inquisição»de «A Inquisiçãoem Portugal», cit., no qual aparecem, com menção de data e conteúdo, ao longo da vigência do Tribunal do Santo Ofício até à sua extinção em 1821, logo após o triunfo dos Liberais na Revolução de 1820, vinte e nove disposições legais (umas provenientes do poder religioso e outras, do poder secular) em prol dos oficiais do Santo Ofício, atribuindo-lhes aumento de ordenados, rendas/pingues proventos, regalias e privilégios (por exemplo, «isenção de impostos eserviços», autorizaçãode porte de armas, autorização para «vestirseda mesmo sem ter cavalo», etc.), honrarias («precedências», etc.), benesses, etc. Se, como acaba de dizer-se, a Inquisição (inquisidores e demais agentes) gozava de imensas rendas/proventos, privilégios, considerações e benefícios, logo que o Cardeal Henrique, Inquisidor-Geral (grande era a «amizade» deste com o Arcebispo de Braga, Frei Bartolomeu dos Mártires), pôde dar mais asas às suas abominações, então tudo se acresceu fartamente 1 no Santo Ofício. A Inquisição foi «dotada de enormes rendas subtraídas às mesas episcopais e conezias de várias dioceses (Breves de 23/3/1556, 27/1/1559, 20/6/1564, 7/10/1567, 26/10/1575, 13/11/1579, 2/12/1579, 28/7/1583)» 2
Quanto a honrarias e petulância de eclesiásticos em geral, transcreva-se este passo de H.I.P. (p. 29): «Por via de tão ardilosos impulsos o fausto das abadias e mosteiros chegou a uma gradação tão quilatosa que deixava os palácios, mesmo os mais sumptuosos, submergidos numa inferioridade notável logo à primeira vista. Nenhum religioso, ainda dos mais mofinos, se apresentava em público sem que viesse seguido de numerosos criados a
1 Grande parte das atitudes
papas Pio IV e Pio V. 2 «Inquisição», in «Verbo – Enciclopédia Luso-Brasileira de Cultura», cit , vol. 10, p. 1516
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por ele assumidas foram-no sob o cru beneplácito/encorajamento dos
cavalo, chegando a competir a comitiva dos abades e superiores com as dos próprios soberanos,que,muitasvezes,eemváriosmodos,eramuitomaisdiminutaeinsignificante. Para duma vez exprimirmos tudo: todos os homens eram considerados vítimas da sua opressão e todas as damas tidas como objetos destinados ao satisfazimento dos seus apetites desordenados e licenciosos!»
4.6. Reação em países europeus contra a implantação do Tribunal da Inquisição
A Igreja Católica sabia e sentia – de tal forma era iníquo e cruel o seu projeto –que, apesar da «Respublica Christiana», ao longo de séculos, vir, «ab intrinseco» e «ab extrinseco», manietando e despersonalizando as gentes, contra a monstruosidade da Inquisição levantar-se-ia significativa reação. Pelo que a Corte de Roma maquinou usar de muito ardil na implantação e/ou revigoramento da Inquisição, mormente em países, que faziam prever maiores obstruções.
NaInglaterra,as tentativasforamváriasemuimanhosas,masfoi grandearepulsa, a resistência, e conseguiu-se impedir o pior.
Quanto à Alemanha, o passo que se transcreve 1 (H.I.P., p. 74) demonstra (e não se tenha por ousada esta leitura, designadamente a nível psicológico e ético) que a Igreja tinha bem consciência, por um lado, da horribilidade do seu empreendimento contra a Humanidade e, por outro, da consabida índole relativamente afoita dos Germanos, pelo que elucubrou e assentou que «se empregasse a mais rigorosa moderação nas investigações, se depusesse o fisco e o encerro, cujo emprego só teria lugar em face de provas concludentes do crime de heresia, e que tais fossem capazes de convencer plenamenteospovosdetodaaenormidadedestefeiocrime;seusassedetodaadelicadeza e cortesia nos interrogatórios, guardando-se sempre uma suavidade e inteireza a toda a prova e, sobretudo, se inculcassem antes medianeiros que juízes e mais encarregados de atrair do que de castigar. Ainda mais, fora expressamente defendido, a estes inquisidores, o não se ingerirem nas particularidades familiares dos Alemães, fosse sob qualquer pretexto que para isto se desse, não lhes sendo permitida resolução alguma acerca dos casos vindos à sua jurisdição sem que primeiro dessem conta ao Santo Padre e dele recebessem apontamentos definitivos… O sucesso iludiu as suas esperanças. Das 1 H.I.P., p. 74.
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diferentes cidades em que os papas tinham feito penetrar furtivamente, por assim dizer, os seus inquisidores, umas nem mesmo lhes deram tempo de se estabelecerem e os expulsaram logo à sua chegada e outras os sofreram por algum tempo, mas recusaram ter com eles comunicação, proibiram os mercadores que lhes vendessem ou fornecessem cousa alguma e por este modo os obrigaram a retirar-se. Em algumas, finalmente, os seus primeiros procedimentos foram marcados por insurreições gerais, nas quais, cobertos de maldições, assaltados de ameaças e cercados de perigos, se viram obrigados, para segurança própria, a se ausentarem para sempre. Tal foi o êxito da tentativa que fizeram os papas pelo que toca à Alemanha e a experiência lhes mostrou que deviam renunciar inteiramente à esperança de manter ali a Inquisição». Como se diz em H.I.P. (p. 74), o poder eclesiástico multiplicou-se em manobras para «fascinamento dos povos da Alemanha, a fim de se conseguir pela doçura a introdução deste instituto que, uma vez arraigado, cuidaria bem em se indemnizar amplamente dos sacrifícios despendidos…»
Na França, houve significativa resistência, conseguiu-se o abrandamento 1 de alguns aspetos da praga teocrática, mas os males sofridos 2 não deixaram de ser terríveis e inesquecíveis.
Os Países Baixos, a República de Veneza 3 e a de Nápoles também reagiram vivamente, algo conseguiram, mas não deixaram de ser afetados por grandes horrores.
Os Espanhóis, os Portugueses e os Italianos foram selvaticamente sufocados, destroçados 4 .
Os Espanhóis reagiram vivamente, várias províncias lutaram denodadamente contra a Inquisição (H.I.P., pp. 80 a 82), mas os «Reis Católicos» (Isabel e Fernando) consagraram-na. Para o efeito, houve um insistente e calculista, sinistro trabalho de sapa, em que assumiu posição de relevo o vergonhosamente célebre Torquemada; como assaz iníquo, teve fácil ascensão a Inquisidor-mor, ele que entrara na vida clerical, após a cordovesa, que ele tinha sob mira, se afeiçoar a um «filho da raça mauritana».
Quanto à hecatombe orientada pelo torcionário, registe-se esta alusão ao círculo inquisitorial de Sevilha: «Para maior facilidade das execuções – escreve Alexandre
1 Evoque-se a atitude do «grande-chanceler» Miguel do Hospital (ver, por exemplo, H.I.P., pp. 76-77).
2 Transcreva-se o seguinte: «A França, além do que acabámos de expor, teve momentos horríveis: Francisco I nunca se cansou de perseguir as vítimas da cólera da Igreja. Como verdadeiro mandatário do papa, bastou que alguns cidadãos fossem acusados de ter falado irreverentemente do chamado ‘Santíssimo Sacramento’ para que logo os condenasse a morrer queimados na fogueira, presos a umacadeira quesefazia descer sobreum braseiro ardenteese elevava por meio deum básculo, para lhes prolongar a agonia» – Carlos Babo, ob. cit. p. 16.
3 Veja-se em H.I.P. (pp. 410 e segs.) como Veneza teve uma penosa, mas deveras denodada atitude de resistência e repulsa contra a Inquisição.
4 Por sua vez, Portugal e Espanha, sob as bênçãos da Igreja, estenderam o cutelo, o suplício teocrático, por esse mundo além, na dita «epopeia» dos «Descobrimentos»/«Conquistas».
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Herculano – levantou-se em Sevilha um cadafalso de cantaria onde os judeus e os cristãos-novos eram metidos, lançando-lhes depois fogo. Este monumento, que ainda existia nos princípios do século XIX, era conhecido pela expressiva denominação de ‘Quemadero.»
É bem revelador isto que nos é transmitido por Fernando Alvarez-Uria 1 sobre Torquemada: este, no dizer de Lea, arrecadou «grandes somas procedentes das penas pecuniárias impostas pelos seus subordinados aos hereges». Viveu «num palácio com um séquito principesco de 250 familiares armados e 150 soldados de cavalaria» 2 (…) «Torquemada foi o inspirador do édito de Março de 1492» (expulsão dos Judeus) e «em Abril do mesmo ano promulga édito a proibir que, após dia 9 de Agosto, qualquer cristão se relacione com judeus ou, de qualquer jeito, lhes faculte alimentos, alojamento ou qualquer outra ajuda (…) Em compensação por esta medida desapiedada, Isabel e Fernando receberam, em 1495, do Papa Alexandre VI o título de reis Católicos 3. Depois da morte deste primeiro inquisidor-geral, Francisco Ximenes (Franciscano), cardeal e primeiro-ministro, sustentou a obra de Torquemada com singular cuidado e por virtude das suas delicadas diligências a Inquisição tornou-se pavorosa e temível, fazendo degenerar o carácter do povo e tornando os Espanhóis pusilânimes, receosos, versáteis.»
4.7. Exportação da Inquisição até aos confins do Mundo
Da Inquisição foi vítima, direta ou indiretamente, toda a Humanidade, todos os povos – «cristãos», judeus, islamitas, hinduístas, budistas, todos os demais, inclusive os animistas das mais remotas paragens do Globo Ela atirou-se, atroz, sobre multidões de indivíduos/famílias (e respetivos bens, num instante por ela extorquidos), ora sob a acusação de certas práticas ou omissão de certas condutas, ora a pretexto quer de cogitações não cingidas às balizas impostas pela Igreja ao pensamento quer de indícios/suspeitas de formulações ou questionamentos de «lana caprina» – mas logo reputados como exercício perturbador do boçal e rígido seguidismo religioso e/ou como
1 Fernando Alvarez-Uria, cit., pp. 188-189.
2 O Papa Sisto IV, que não foi menos tíbio do que outros no acalento da monstruosa engrenagem da Inquisição, «reconhecia» (em bula de 1482) a «cobiça da riqueza» por parte da mesma – Fernando Alvarez-Uria, cit., p.188.
3 Sobre Torquemada, sobre os «Reis Católicos» (a estes os Judeus «ofereceram trinta mil ducados, números redondos, para que os deixassem em paz», mas de nada lhes valeu), sobre a execranda traição do Papa Sisto IV para com os cristãos-novos que o compraram (alguns destes, confiantes numabuladele datada de2 de agosto de1483, mas que ele veio a revogar onze dias após,tinham regressado de Roma a Sevilha e, aqui, «foram queimados e os seus bens confiscados») atente-se, por exemplo, nas pp. 18 a 20 de «A Inquisição», cit.
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1
sacrílega intromissão no «santuário teológico»apenas reservado ao corpo clerical; e, com frequência, caía sobre os mais fiéis e embrutecidos comungantes do «statu quo» imposto pela Igreja, desde que caídos em desgraça ou fossem alvo da mais perversa cupidez ou vingança.
Como veremos, até aos confins dos impérios português e espanhol se estenderam os tentáculos da Inquisição, por estes tendo sido arrastados para os patíbulos inclusivamente muitos animistas das mais longínquas paragens do Globo
Notocanteao Impérioportuguês, versaremos, designadamente, sobrea Inquisição de Goa, a qual se empenhou em flagelar com a morte e o desespero os filhos da milenar civilização indiana. Ela «… encheu as prisões e alimentou as fogueiras como nenhuma outra» 1 .
Num Colóquio realizado em Crêt-Bérard (Suíça), de que Frei Bento Domingues nos fala 2 , o «pensador neopagão» Alain Benoist afirmou (tendo em mente o «cristianismo histórico») que «o Ocidente é esquizofrénico desde que é cristão»e «ao não suportar sozinho a sua própria doença procurou tornar todo o mundo doente».
4.8. O especial ódio aos Judeus
Está profusamente documentado o ressentimento, o racismo, o ódio contra os Judeus, na Europa, na «Respublica Christiana». São por demais sabidas as frequentes investidas sanguinárias contra eles, no continente europeu.
AEspanhadecreta, em 1492,aexpulsãodos Judeus: noperíododequatro meses, com exceção dos batizados, teriam que, sob pena de morte, sair do país.
Partiram para vários destinos; «… foram desterrados mais de 420 000 hebreus e padeceram gravíssimas extorsões e tiranias, trabalhos e misérias» – palavras de Imanuel Aboab publicadas em Amsterdão, no ano de 5487 do calendário judaico 3. À volta de cento e trinta mil vieram para Portugal, onde já muitos havia 4, não querendo o rei João II deixar escapar a oportunidade de «bom negócio»: segundo acordado, haveria o pagamento dum «imposto de entrada de oito cruzados por pessoa e permaneceriam no
Raul Rego – «O Último Regimento e o Regimento da Economia da Inquisição de Goa», cit., p. 9.
2 Frei Bento Domingues – texto «O desconforto dos cristãos na Europa», no «Público», de 27.9.1992, p. 28.
3 Manuel Dias – «A Península Ibérica sob um Manto de Vergonha», no «Jornal de Notícias, de 5-12-96, p. 9.
4 Segundo alguns autores, eles rondariam talvez um sexto da população portuguesa e, note-se, a sua presença, em Portugal, é anterior à própria nacionalidade – quando, por exemplo, se «conquistou» Santarém aos mouros, em 1147, já aí existia uma sinagoga.
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país até oito meses, sendo-lhes entretanto facultado transporte marítimo para outros países». O monarca logo «faltou ao prometido ao limitar as suas passagens de barco para Tânger e Arzila» 1. Não podiam, é claro, ir para Espanha e, odiosamente, não se lhes propiciou o transporte em naus. Eis que também ponderosa razão por que muitos acabaram por não partir (só a menor parte partiu, tendo o Norte de África sido o destino para que rumaram bastantes) foi a de ter-lhes chegado notícia das violências caídas sobre os que tinham saído, conforme o refere, por exemplo, Lúcio de Azevedo: «Os cronistas registam inauditas violências que, no êxodo, padeceram as tristes vítimas do ódio da raça e da perversidade humana exacerbada pelo fanatismo. Espoliados, esfomeados e sujeitos a ignomínias de verem mulheres e filhas desonradas a bordo pelos marinheiros…» (Imanuel Aboab, um dos destacados narradores da pungente sina dos Judeus, evoca, designadamente, as «mil misérias e extorsões» de que foram vítimas, quando concentrados em Lisboa, onde se viam metidos «como cordeiros nos estábulos»). «Quanto aos que não embarcaram, ao expirar o prazo concedido, foram considerados cativos e sujeitos a toda a espécie de aviltamentos, enquanto seus filhos dos dois anos aos dez seguiam para a ilha de S. Tomé, descoberta pouco antes…» 2
A João II sucede, em 1495, o rei Manuel I; quando este negociava com os reis de Castela o seu casamento com a infanta D. Isabel, ficou assente que se realizaria em dezembro de 1497, mas com uma condição: a infanta só entraria em Portugal quando o reino estivesse «limpo de Judeus». «D. Manuel assinou, em 5 de Dezembro de 1496, o édito segundo o qual os que não quisessem receber o batismo tinham de abandonar o reino até Outubro do ano seguinte, sob pena de morte natural, e perder as suas fazendas para quem os acusar. E qualquer pessoa que passado o dito tempo tiver escondido algum judeu, ou Moro forro, por este mesmo feito queremos que perca toda sua fazenda, e bens, para quem o acusar…» 3
Para além do racismo/ódio (que permeava Clero, Nobreza e um povo persistentemente industriado nas trevas e bestialidade) contra os Judeus, também eram subjacentes ao referido édito outros intuitos perversos, mas havia, também, motivos que induziam os poderes deste país a detê-los cá: «saída de haveres pessoais», «perdas dos direitos reais pagos pelas comunas» e, mais ainda, havia plena consciência de que eles, com «seus espíritos subtis e delicados», iriam acrescentar valia aos Mouros, ensinando-
1 Manuel Dias, cit., p. 8.
2 Idem, p. 8.
3 António Melo – texto intitulado «Que os judeus se saiam destes reinos…», no «Público», de 24-11-1996, pp. 28-29.
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1
lhes, designadamente, os «seus ofícios mecânicos, em que eram mui destros, principalmente no fazer das armas…» 1
Ante o édito (nele são considerados «filhos de maldiçam»), os Judeus, firmes nas suas convicções, nãodescortinam outrasaídaanão seroêxodoeverifica-se queamaioria esmagadora se apresta para deixar o país. Então, em março de 1497, o rei Manuel «promulga novo édito: o da conversão forçada» – medida que, por exemplo, «D. Fernando Coutinho, depois Bispo de Silves», repudiou (é claro que não eram poucos os Portugueses que execravam toda esta crueldade) como «injusta» e «iníqua»; nesta contextura, diz-nos Maria José Tavares 2 que, pouco após o édito da expulsão, o rei Manuel determina «só poderem partir os judeus que estivessem munidos de licença régia, sob pena de perda dos bens, pertencendo metade ao acusador e outra metade à arca da piedade».
A coberto de Manuel Dias, prossiga-se:
«Em 1497, D. Manuel ordenava que tirassem aos Judeus os filhos, que passariam a ser educados a expensas do reino e, em 1499, impedia, por alvará, que os conversos forçados saíssem do país e que com eles se fizesse qualquer câmbio sem licença régia e especial mandato.» 3
Imanuel Aboab, «recorrendo ao testemunho de Jerónimo Osório, alude à medida iníqua e injusta que foi ‘mandar que todos os filhos israelitas que não passassem os 14 anos fossem sacados dos poderes de seus próprios pais e apartados deles os fizessem por força cristãos; novidade que não pode fazer-se sem grandíssima alteração dos ânimos e era (prossegue Osório) um espetáculo horrendo e miserável ver arrancar os ternos filhos dos braços e peitos das aflitas mães, arrastar os pobres pais que os tinham asido e dar-lhes muitos golpes e feridas para sacar-lhos das mãos; ouvir os clamores que subiam ao céu, os suspiros, gemidos e prantos de que tudo estava cheio. De maneira que foi causa esta crueldade que muitos daqueles atribulados pais deitaram filhos aos poços e outros se mataram com suas próprias mãos para não ver cousa tão acerba aos seus olhos». E o mesmo é dito, de forma nada menos palpitante, por Damião de Góis (que viria a ser liquidado nos antros da Inquisição), além de outros «cronistas cristãos e judaicos» (p. 9). Aboab, objurgando as violências designadamente exercidas em Portugal e Espanha,assimsereferia aospaísesparaosquaisosJudeusrumavam: «todosospríncipes
1982, 1ª ed., vol. I, p. 484.
2 Idem, pp. 483, 485-486.
3 Manuel Dias, cit., p. 8.
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Maria José Pimenta Ferro Tavares – «Os Judeus em Portugal no Século XV». Universidade Nova de Lisboa, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas,
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da terra os recebiam, acariciavam e honravam’, embora chegassem ‘pobres e peregrinos’, despojados de tudo quanto tinham». E Manuel Dias comenta: «… E enquanto neste recanto da Europa tudo isto acontecia, a Holanda (e não só…) abria os braços a um povo vilipendiado que ali se instalou e trabalhou pela prosperidade do país» (pp. 8-9).
Enfim, os Judeus (poucos deles conseguiram sair do país) foram forçados a batizar-se, a fazer-se católicos – passando a designar-se cristãos-novos (cristãos-velhos ou «cristãos-lindos» eram os indivíduos de origem não judaica). Cristãos-novos são, na generalidade, criptojudeus (ou seja, sob a capa de católicos, são fiéis às suas convicções judaicas).
Aduzamos algumas achegas de Maria José Tavares 1: «Pela Páscoa de 1497» e, portanto, antes do limite de Outubro/1497 previsto no édito de expulsão, são, por ordem do rei, retirados os filhos menores a muitos judeus.
O rei ordena, também, que aos que se aprestam para sair do país (e que tinham vendido, apressadamente, os seus bens, a preços baixíssimos e, em quantos casos, não tendo recebido do comprador a totalidade da bagatela combinada) sejam tirados (isto depois de tirados os filhos menores de 14 anos) «os filhos maiores de 14 anos aos pais e os fazem batizar à força. Depois sucedem-lhes estes, sendo poucos os judeus que conseguem obter permissão para partir».
Ante um tal vórtice de violências e vexames, os Judeus, transidos, esmagados, implorantes, propõem ao rei «converterem-se, em troca da restituição dos filhos e de que, durante vinte anos, não se inquira sobre o seu comportamento religioso».
Ocorre, então, o «batismo forçado». São-lhe pelo rei confiscados os bens, que os doa, afora e vende a quem entende» (diga-se, de caminho, que, segundo a referida autora bem o documenta, os Judeus eram esmagados com múltiplos tributos, encargos e serviços, em proveito de rei, da Igreja, dos concelhos…); são desapossados das sinagogas, logo estas passando a ser antros doprofanoe do escárnio; évandalizado/destruído,exorcizado, extorquido/mercadejado tudo o que para os Judeus é sagrado, designadamente os cemitérios, bibliotecas e escolas. O rei passa, além de mais, a despachar/transacionar até alfaias religiosas, paramentos, dinheiro, pratas, móveis, etc., retirados de sinagogas. Há espaços por excelência sagrados que viraram cavalariças; há cemitérios tornados prados de pasto para animais; são enviadas «as pedras das campas e cabeceiras dos jazigos para a fábrica do hospital real de Todos-os-Santos» 2 .
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Maria José Pimenta Ferro Tavares, ob. cit., p. 486 a 493.
Idem, pp. 488-489…
Tal batismo era uma simulação (Samuel Usque, judeu ilustre, afirmará que as águas do batismo não lhes modificarão as crenças nem os pensamentos) e, afinal, perspetivado pelos Judeus como um «meio para melhor alcançar a fuga». Esta era muitíssimo difícil, porque proibido saírem do país, além de que, no interior deste, não podiam, livremente, mudar de residência.
Refira-se, de caminho, que o Cardeal Infante Henrique, Inquisidor-Geral, determina, em 1580, que os «cristãos-novos não se podem ausentar do bispado onde residem, desde o início da visita inquisitorial (ao mesmo) até seis meses depois, sendo proibidos de vender a sua fazenda durante esse período» (não fossem eles vendê-la na ânsia de evitar o confisco pela Inquisição!) 1 .
Houve insistentes disposições legais repisando na proibição de ausentarem-se do país, bem como nas limitações de movimentos. Mas, apesar de tantos obstáculos, bastantes foram conseguindo evadir-se. Na sinopse «A Inquisição em Portugal», cit., verifica-se que, ao longo dos tempos, se repisou oito vezes na proibição de cristãos-novos se ausentarem do Reino.
A título de exemplificação, Maria José Pimenta Tavares (pp. 492-493) alude a uns cristãos-novos que foram «condenados à morte na fogueira, por terem tentado partir para terra de mouros» (de caminho, refira-se que também alude a cristãos-novos punidos por terem «livros em letra judenga», ou seja, em hebraico, o que passara a ser proibido). E diz-nos ainda a referida autora que o rei chegou a «proibir, em data que não podemos precisar, o casamento entre cristãos-novos». Será arriscado conjeturar que um dos mais ocultos objetivos desta medida seria o estiolamento da «raça» desses que apodavam de «perros», «perros cães», «tinhosos», «arreneguados judeus», «infames», marranos, de «nacimento com macula», de «sangue impuro», de «sangue infeto», de «sangue infamado», etc.? O racismo, essa visceral aversão transbordava numa caracterização injusta, insultuosa, caluniosa, dos indivíduos de origem judaica, no tocante ao seu temperamento e carácter, ao seu «modus vivendi», à sua ação, ao que lhes respeitava, e, muito frequentemente,pormais incrívelquepareça,eram responsabilizados (tal a crónica «pecaminosidade» de que os acusavam) por desaires militares (por exemplo, a derrota de Alcácer Quibir) e cataclismos naturais (por exemplo, Peste Negra e tremor de terra ocorrido em 1531). O estigma, a sanha era de tal ordem que os inquisidores se preocupavam em avaliar matematicamente o grau de «sangue impuro» ou «infeto» dos 1 Biblioteca
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Nacional – «A Inquisição em Portugal (1536-1821)», cit., p. 22.
processados: um quarto, um oitavo, etc. de cristão-novo (o dos «cristãos-velhos-inteiros» ou «cristãos-lindos» era por eles designado «sangue limpo» ou de «boa qualidade», de «boa raça»).
Neste enquadramento, não fique por respigar-se este registo 1 de entre um acervo de congéneres existentes: em 1680, um notário do Santo Ofício, Padre António Barreto, reclama do Padre Bento, cura de Parada de Bouro, designadamente a menção de sete testemunhas que, no tocante ao que seguidamente se expressa, testifiquem quanto ao candidato a seminarista «Gervasio da Costa». Na declaração da praxe, o Padre Bento, além da indicação das sete testemunhas, afirma, em face do conhecimento que tem do moço e do que apurou junto de «pessoas antigas e sem sospeita», que Gervásio «he de boa gente, christao velho filho legitimo de…2, baptizado…, neto de… , todos desta freguezia os quais todos forao tidos e avidos sempre por christaos velhos e nao tem fama de judeu, mouro, mulato nem mourisquo nem outra infecta naçao nem disso tiverao nunqua raça… nem disso forao nunqua infamados. E asi o affirmo e iuro in verbis sacerdotis» (… juro com palavras de sacerdote).
Na senda de uma acirrada apologia do ódio/racismo contra os Judeus, Mário de Saa, situando-seàtestadum significativo movimento antissemitaemPortugal, diz, adado passo do seu livro «A Invasão dos Judeus» (1924): «para canalizar a aversão dos Portugueses contra os judeus foi criado o Tribunal da Inquisição» 3
Na sinopse «A Inquisição em Portugal», aparecem referidas, desde 1496, vinte e seis disposições legais segregacionistas contra cristãos-novos (não contando as ordens de expulsão do país e as medidas relacionadas com a criação, ação e moldes de funcionamento do Tribunal da Inquisição), somando as oriundas do Vaticano (bulas, breves, etc.) 4 e as oriundas do poder secular (alvarás régios…): exclusão dos cristãos novos do «provimento de benefícios eclesiásticos» (1600); «carta régia para que se não admitissem ao serviço de letras cristãos-novos ou casados com cristãs-novas inteiras sem dispensa de Sua Majestade» (1605); «breve de Paulo V para que os cristãos-novos não exerçam curato de almas nem sejam admitidos a ordens» (1612); «proibição de matrimónio de cristãos-novos com os nobres» (1614); «proibidos os cristãos-novos de candidatarem-se a cadeiras na Universidade de Coimbra» (1621); «Ordem régia para os
1 Arquivo Distrital de Braga – «Inquirição ‘de genere», pasta 1 200, processo 27 348.
2 «… avido de legitimo matrimonio».
3 Mário Saa – «A Invasão dos Judeus», 1924, p. 30.
4 Acerca de medidas do papado contra Judeus, designadamente os de Roma, atente-se, por exemplo, em breve esquisso em «Falsificação da História», cit., vol. II, pp. 364-365.
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cristãos-novos saírem da corte» (1623); «carta régia declarando os cristãos-novos inábeis para os cargos públicos» (1632); «carta régia para se não admitirem a ofícios de governança e justiça pessoas que não sejam de sangue limpo» (1636); «os cristãos-novos são excluídos de procuradores das cortes»(1667); proibição de ingresso em determinadas funções e ofícios; uso obrigatório de sinal distintivo ao peito («estrela de pano encarnado de seis pontas»…) e roupas identificadoras, bem como medidas contra a comunicabilidade física e a conversação entre eles e cristãos-velhos, assim como contra o «direito de vizinhança»; etc. Tratando-se, portanto, de normas jurídicas publicadas, não foram, é óbvio, no dito montante, abrangidas as propostas igualmente odiosas, racistas, discriminatórias, várias vezes formuladas em instituições (Cortes…) deste país, várias delas assinaladas também na sinopse histórica (em «A Inquisição em Portugal», cit.) da qual se aduziu o que se exarou neste extenso parágrafo.
Não raro, não se procurava averiguar e fazer justiça ante o encontro de indivíduos judeus assassinados. Pedro Jorge de Castro 1 menciona disposição legal do rei Pedro, «o Justiceiro» ou «o Cruel», estipulando pena de morte para mulher «cristã-velha» que «entrasse em casa de um mouro ou de um judeu».
Lá bem nos escaninhos das entranhas ímpias e calculistas da «cristandade», reivindicar-se-ia ante os céus tanto maior galardão quanto mais efetivo ódio nutrido contra os descendentes de quem «rejeitou Jesus».
Sobre os Judeus, como fartamente no-lo assegura a História 2, não apenas eram feitas rapinas, mas mesmo frequentes montarias. E pior ainda: grandes chacinas. Considerando apenas o período decorrente desde 1499, houve, em Portugal, ao longo dos tempos, segundo as anotações (com precisão de data e local) da sinopse atrás referida, cinco vezes motins contra os cristãos-novos, tendo alguns deles sido enormemente trágicos, durado mais que um dia e afetado, simultaneamente, mais que uma cidade do país 3. Evoque-se, por exemplo, a carnificina sobre eles perpetrada, em Lisboa, em 1506, por uma turbamulta, sob a batuta de dois frades dominicanos, tendo sido assassinados à volta de três mil, incluindo crianças da mais tenra idade. Damião de Góis 4 faz do massacre uma horripilante descrição. Após o sermão de um frade, convocando indivíduos contra os Judeus, dois outros frades, de crucifixo na mão, com brados incitadores,
1 Pedro Jorge de Castro – texto sobre «História», na revista «Sábado» nº 434, de agosto/2012, pp. 32 a 38.
2 Ver, designadamente, «Falsificação da História», cit., vol. II, pontos 1 e 18 do Cap. IV.
3 Idem, ibidem, vol. II, pp. 240-241.
4 Damião de Góis – «Crónica do Felicíssimo Rei D. Manuel», nova edição conforme a primeira (de 1566), Universidade de Coimbra, 1949, Parte I, cap. CII, pp. 253-255.
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encabeçam o frenético morticínio. Uns alimentavam com lenha as fogueiras na Ribeira e no Rossio, enquanto uma multidão de outros corriam por todo o lado, lançando-se carniceiramente sobre as vítimas e arrastando-as para o fogo. Iam com vaivéns e escadas às casas dos Judeus (e às suspeitas de os terem recebido), roubavam-lhes tudo e «tirandohos dellas arrasto pelas ruas, cõ seus filhos, molheres, e filhas, hos lançavam de mistura vivos e mortos nas fogueiras, sem nenhua piedade, e era tamanha ha crueza que atte nos mininos, e nas crianças que estavão no berço has executavam, tomandohos pelas pernas, fendendohos em pedaços, e esborrachandohos darremeso nas paredes (…) Das egrejas tiravã muitos homes, molheres, moços, moças, destes innoçentes, desapegandohos dos Sacrarios, e das imagens de nosso Senhor, e nossa Senhora, e outros Sanctos, com que ho medo da morte hos tinha abraçados, e dalli hos tiravam, mattando, e queimando… sem nenhu temor de Deos…» (e não deixa de referir que esta ocasião foi aproveitada por uns tantos para se vingarem de alguns «Christãos lindos», apontando-os à turbamulta como sendo «christãos novos»).
O clero, conforme fartamente o atestam os documentos, dava especial calor, por todos os meios, a esse ódio e neste industriava o despersonalizado e oprimido lastro popular. Em «A Inquisição» 1, aponta-se o povo como «amassado no fanatismo bronco e selvático» do clero «dentro de uma sociedade crapulosa» e refere-se, a dado passo, que, «em 1525, reunidas, já por motivo de falta de dinheiro, as Cortes em Torres Novas, os representantes do povo, ao passo que se queixavam dos abusos dos fidalgos, do clero e da Corte, vociferavam contra os cristãos-novos…».
«… Em 1674, os Procuradores do reino escreviam ao Papa chamando aos Judeus ‘entes com figura humana e ânimo de fera, inimigo comum, peste pública…» 2
«O Infante D. João no parecer dado (em carta) a D. Duarte, define-os como a mais ruim gente do mundo» 3. E «Pedro de Cluny dizia: ‘Para quê ir-se ao fim do mundo… combater Sarracenos, quando deixamos viver entre nós outros infiéis mil vezes mais culpados para com Cristo do que os maometanos?» 4
Ante o terror, a dor, em que afogados os cristãos-novos, eis reações que eles tiveram: na sua generalidade, instantemente se preocupavam em passar a imagem, a ideia de que neles superabundava um extraordinário fervor católico; muitos, apesar de tão obstada a fuga, escapuliram-se do país; muitos, tanto homens como mulheres, passaram
1 Carlos Babo, ob. cit., pp. 29-30.
2 Mário Saa, ob. cit., p. 109.
3 Maria José Pimenta Tavares, ob. cit., p. 25.
4 Idem, p. 25 e pp. 30-31.
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a ingressar na vida monástica 1… E, de acordo com a transcrição que se segue, até havia quem recorresse ao «abafador»/«afogador» 2: «Começava seu serviço por afastar do quarto os membros da família, encostava a porta e começava a sinistra operação… matava-o por pressão ou asfixia entre murmúrios de preces e credo que fingia estar rezando ou frases cheias de consolação: ‘vai, irmão, o Senhor te espera» 3 .
4.9. Considerações finais. Reflexões
Tenha-se bem presente o que se explana em vários pontos deste nosso estudo. Sou ainda levado, de caminho, a evocar aquele entrecho de «Falsificação da História» 4, em que, quanto a homens que existiram antes da era cristã (Zoroastro, Buda, Confúcio), é feita breve alusão a certos aspetos dos respetivos ideários.
Na sequência do Congresso Luso-Brasileiro sobre Inquisição, em Lisboa, de 17 a 20/2/1987, em «O Comércio do Porto» (p. 2), de 24/2/1987, lê-se:
«Os recalcamentos são sempre significativos. Se em Portugal se guardou um tão flagrante silêncio sobre um fenómeno como a Inquisição… foi porque os seus efeitos perduraram muito para além da sua extinção oficial decretada com o advento do liberalismo. Houve, naturalmente, exemplos esparsos de denúncia. Herculano esboçou as primeiras linhas do seu estudo, Antero apontou-a como uma das ‘causas da decadência dos povos peninsulares’, a I República fez dela um dos cavalos de batalha da propaganda anticlerical. Apesar disso, a Inquisição permaneceu sempre como um pecado coletivo que a comunidade parece querer ocultar de si própria. Não se trata apenas da falta de investigação, dos documentos perdidos ou por analisar, da omissão quase completa do tema em manuais de história pátria. Trata-se, sobretudo, da paradoxal mitologia erguida por sobre esse recalcamento e que quer fazer dos Portugueses um povo de ‘brandos costumes’, justificando ou atribuindo a meia dúzia de culpados» o tão longo historial desse execrando «tribunal das consciências». E, logo a seguir, diz-se, com veemência,
1 Isto está bem documentado, por exemplo, ao longo do livro de Luiz de Bivar Guerra intitulado «Um caderno de cristãos-novos de Barcelos» – Braga, 1960.
2 Com a «missão de estrangular no leito os moribundos cristãos-novos para que, na sua inconsciência, não traíssem seus cúmplices naspráticas judaizantes. Eram sufocados com umtravesseiro antes mesmodo padrechegar para dar a extrema unção. Assim, a família ficava em segurança ou corria menos risco de se ver processada pelo Tribunal da Santa Inquisição.»
3 Nelson Omegna – «Diabolização dos judeus: martírio e presença dos sefardins no Brasil Colonial», Rio de Janeiro, Record, 1969, p. 239.
«Falsificação da História», cit., vol II, pp. 275-276.
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queencararessahistória«deveriaconstituirum verdadeiroobjetivo dos responsáveis pela cultura, em particular nos últimos tempos, em que tanto se fala de identidade nacional e sereivindicam imaginários portuguesismos». E,nomesmo jornal, eis umadas afirmações da Professora Doutora Anita Novinski, que participou no referido Congresso: «Dizem alguns que não podemos condenar ou julgar os erros do passado. Eu não penso assim. É evidente que o historiador não é um advogado de acusação, não é um promotor de justiça. Eu não acuso, mas penso que uma das minhas missões e dos outros historiadores é dar a devida importância ao homem e analisar o passado procurando tirar dele os exemplos que permitam não voltar a cometer os mesmos erros. E mais, devemos tirar do estudo do passado as lições que nos permitam até evitar determinados erros que estamos em risco de cometer. A informação que o historiador obtém deve levar a posições éticas face ao mundo»; e, noutro passo: «Creio que na Europa se perdeu muito o sentido da grande violência que foi a dessa intolerância chamada Inquisição».
NoDicionárioda Históriade Portugal 1,caracterizando-sea Inquisiçãocomo «um organismo com poderes extraordinariamente vastos, que atingiram todos os setores da grei: religioso, político, social e cultural», refere-se, às tantas, quanto aos «motivos profundos da sua criação e funcionamento»: «Esses motivos não podem reduzir-se ao fanatismo, à credulidade, à ignorância, à diversidade de tempos e costumes, como simplistamente se tem julgado…».
A possibilidade de ser-se autêntico seguidor de Jesus depende da época? Repisando-se no que já algures foi referido, insista-se na asserção de que ao ser humano assiste a intuição 2 das mais elementares noções do Bem e do Mal.
Na mensagem de Jesus de Nazaré, repise-se, não há qualquer imposição, há, sim, dons que são oferecidos, há propostas em ordem a que o ser humano livremente as assuma; é apontado, enfim, um percurso de liberdade rumo à libertação 3 . Na Sua mensagem, sublinhe-se, tudo conflui no Amor; um Amor e perdão que sublimemente implica igualmente os inimigos. Ante tanta sublimidade e evidência, não é imaginável monstruosidade simultaneamente mais supina e evidente (consabida, é claro,
1 Vide «Santo Ofício (Tribunal do)», in «Dicionário de História de Portugal» («coordenação de Joel Serrão»), impr Ramos dos Santos e Ca. Lda./Porto, 1992, vol. V, pp. 475-476.
2 Nesta se enleando traços fundamentais de sabedoria e sensibilidade.
3 Quanto a isto, são elucidativos designadamente os seguintes passos do Novo Testamento: Jesus repreende dois discípulos que lhe sugeriram uma atitude de violência («fogo vindo do céu») sobre um povoado da Samaria e clama: «Porque o Filho do Homem não veio para destruir a vida dos homens, mas salvá-los» (Lucas, cap. 9, vers. 56 – ver, por exemplo, «Bíblia dos Gedeões»). E eis o que Jesus tão límpida e sublimemente proclama: «O ladrão não vem senão para roubar, matar e destruir. Eu vim para que tenham vida e vida em abundância» (João, cap. 10, vers. 10) / «… pois que não vim para condenar o mundo, mas sim para o salvar» (João, cap. 12, vers. 47) / «Ouvistes o que foi dito: ‘amarás o teu próximo e odiarás o teu inimigo’. Eu, porém, digo-vos: amai os vossos inimigos…» (Marcos, cap. 5, vers. 43-44).
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designadamente pelos que se diziam «outros Cristos» 1) do que matar em nome de Jesus. «Não vim para matar, mas para salvar» – assevera Jesus, repreendendo discípulos que lhe sugeriam tal atitude. E a acrescer à Sua asserção acabada de mencionar, eis tudo o que de tão sublime e persuasivo Ele diz e, mais ainda, eis o Seu desempenho.
Antes deprosseguir,não voudeixarde, ao correrdapena,apensar aqui o seguinte: A pena de morte, que tem contado ora com o aval ora com a indiferença de uma imensidão dos ditos «cristãos», é uma das enormes iniquidades redondamente antitéticas em relação à mensagem de Jesus de Nazaré – a esta não sendo sensível, repise-se, quem não reage contra tal iniquidade. É execranda a dita pena, é supina e muito generalizada a monstruosidade de não sentir-se que o condenado padece tantas vezes a morte quantos os minutos/momentos durante os quais ele, com desespero e aflição, aguarda pelo momento final 2 . De caminho, não é inoportuno dizer-se que o catecismo «promulgado», em 26-6-1992, pelo Papa João Paulo II desencadeou 3 celeuma, designadamente no meio católico, não apenas pelos aspetos que seguidamente se apontam e que vivamente foram repudiados pela ALOOC 4 : «A Associação Livre dos Objetores e Objetoras de Consciência (ALOOC) está contra o novo Catecismo da Igreja Católica e já enviou a todos os bispos um documento explicando as razões da sua ‘profunda preocupação’. Em causa está o facto de o novo Catecismo… alegadamente admitir ‘guerras justas’, não excluir a pena de morte e defender que os cristãos devem prestar serviço militar. Para a ALOOC, o novo Catecismo vai gerar ‘graves implicações’, já que a classe política – especialmente os católicos apostólicos romanos – poderá tentar ‘verter para o Direito Nacional e Internacional’ aqueles ‘preocupantes conceitos medievais’. Isto implicaria, segundo um dirigente da Associação, a abolição do direito à objeção de consciência e mesmo o ressurgir da pena de morte», salientando-se, enfim, que o ditoCatecismo contraria, assim, a mensagem de Jesus.
De caminho, evoque-se esta asserção de Séneca (exarada em «De Ira»): «Nemo prudens punit, quia peccatum est, sed ne peccetur» («ninguém sensato pune porque é prevaricação, mas para que não se volte a prevaricar»).
1 Manuseei catecismos que referem ser um «alter Christus» («outro Cristo») aquele que tem múnus sacerdotal
2 E, posto que só com Amor autenticamente se recupera, se corrige (corrigir, sim, pois jamais esmoreça o combate ao crime), porque não debater, meditar em tantos aspetos de enormidade repressiva? Porque não debater, meditar designadamente no arrazoado de criminologistas «fiéis à conceção ‘interativa da criminalidade», os quais, não estando relativamente menos compenetrados do carácter «inquietante’ de que se reveste, nos nossos dias, a recrudescência da criminalidade no mundo inteiro», que tem de ser combatida, apontam para medidas que não as cadeias? – ver texto «Não se justifica a existência de prisões – opinião de criminologistas americanos», no diário «Primeiro de Janeiro», de 22-9-1973, p. 2
3 Júlio Roldão – texto «Pecados e Virtudes em Tempo de Mudança», no «Jornal de Notícias», de 22-10-1992, p. 6
4 Texto «Objetores de Consciência Criticam Novo Catecismo», em «O Comércio do Porto», de 29-10-1992, p. 40.
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Na imposição de ditames pelo poder religioso, ademais secundada pelas mais atrozes ferezas, há, em relação à mensagem de Jesus, uma antítese rotunda e com dupla feição: é que a própria feroz imposição nega, em si mesma, qualquer harmonia intrínseca à própria mensagem/doutrina assim difundida pelo poder religioso.
O que o Novo Testamento regista, quanto, note-se, à mensagem de Jesus, traduzse no total repúdio de qualquer violência e nela se alcandora clara e insistentemente o Amor, a mais sublime Sensibilidade. É-se irrecusavelmente levado a saltar do que acaba de dizer-se para o seguinte: os que se consideravam «representantes de Jesus» sobre a Terra imputavam-se o múnus supinamente sagrado de decidir e de impor sobre as gentes, com supremo poderio, com uma autoridade que não excluía as mais atrozes violências –pois para tudo isto sofismariam haver resguardo no versículo bíblico «tudo o que ligares na terra ficará ligado no Céu e tudo o que desligares na terra será desligado no Céu» 1
Evoque-se, de caminho, que, em documento religioso, que será referido em ponto posterior, se diz, acerca do «sacerdote»: «quem é esse a quem o próprio Deus obedece?»
Como se refere em mais que um ponto desta tese, alguns altos mitrados, quando movidos por suas conveniências momentâneas, denunciaram a conduta implacável da Inquisição: sejam recordados os cardeais e quejandos que os Judeus, ávidos de apoio contra as perseguições de que eram vítimas, iam empanturrando com chorudas verbas; evoque-se também a imputação de horrendos crimes à Inquisição por parte do InquisidorGeral Cardeal Cunha 2, o qual, com o feroz Santo Ofício, corroborou iníquos desígnios do Marquês de Pombal, pois que deste ele era lacaio.
E as resistências denodadas e, quantas vezes, convulsivas, conforme já se referiu, de vários países contra a Inquisição não ocasionaram, ao menos, um ténue exame de consciência,umalevereflexãoporpartedosalgozes? Etambémnãosuscitounosmesmos nem sequer uma ténue elucubração o facto de muitos países nada poderem estrebuchar, tal o seu «statu quo» de castração, de sufocamento 3 ?
Eanteador,os inúmeros gritos e gemidos, odesesperodetantas vítimas, de tantas gentes, em todo o Globo, num quotidiano de tantos e tantos séculos, não houve, a partir da consciência/intuição (em que, como já referido, elementares alvores de sabedoria e sensibilidade se conjugam), ao menos uma ténue leitura de que tudo isso era sintoma, era
1 Mateus, cap. 16, vers. 19.
2 Este especificava, claramente, que tais crimes eram gravíssima afronta ao Direito Natural e aos ditames do Evangelho.
3 Conformeexposto,adiante,nestatese,umInquisidor-Geral,numManualdaInquisição,inflamadamenteenalteceofactodoTribunal do Santo Ofício ter tornado os povos pusilânimes, e, logo, devidamente amodorrados aos pés dos poderes religioso e político.
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alarmequeapontava, instanteainstante,parauma existêncianãocruelmentedesnaturada, não iniquamente violentada?
A perversa, a iníqua natureza 1 que foi fautora das aberrações inquisitoriais não ditou, do mesmo modo, horrores dos mais diversos tipos: a belicosidade, a escravatura, a opressão e extorsão, a idolátrica presunção, os tão iníquos atropelos de vária ordem? As aberrações geminam-se e potenciam-se como gânglios de tumor maligno.
E como é que o poder eclesiástico pretende que seja encarada, hoje, a Inquisição?
A nível do clero, publicou-se um livro intitulado «Caixa de Perguntas» 2, com que se visava dar resposta a algumas das questões mais embaraçosas que costumam ser colocadas aos católicos. E quem não perguntará, chocado: o que aí se diz acerca da Inquisição (designadamente no capítulo XXXIV) não é uma enorme deturpação, uma enorme ocultação da verdade e um intento de induzir as pessoas a encará-la de modo leve e até compreensivo? 3
E a Igreja não desaprova que alguém traga a público o que ela própria oculta? Atente-se,por exemplo, nos veementes repúdios vindos apúblicocontra uma «exposição, em Lisboa, dos artigos de tortura usados pela Inquisição» 4 .
Atente-se no apontamento avulso que passa a exarar-se:
A Igreja Católica desde há muito vinha intentando a canonização de Bartolomeu dos Mártires, o responsável pela metrópole de Braga, a qual abarcava, então, a Inquisição de Coimbra.
Na «metrópole de Braga – quiçá a região mais ortodoxa do país de então» 5 –, ainda mais o dito arcebispo, quando regressado do Concílio de Trento, porfiou em rebuscar o ferrete da dita «ortodoxia», aliás em sintonia com o Inquisidor-Geral Cardeal Henrique, a quem, como já se disse, o ligava uma especial amizade.
Ao poder eclesiástico foi-lhe relativamente fácil arredar qualquer outro poder (o dos reis, o dos magistrados, etc.) de interferências na Inquisição, mas, quanto aos Bispos, sendo mais difícil contorná-los, foi-lhes consignado o direito de assento nos julgamentos inquisitoriais. Ora tão afincadamente se empenharam os prelados em esmagar as gentes
1 Por antítese, aluda-se à «nova criatura» (logo, nova Atitude) proclamada na mensagem de Jesus: 2 Coríntios, cap. 5, vers. 17; João, cap. 3, vers. 3; João, cap. 4, vers. 13-14.
2 Rev. Bertrand L. Conway – «The Question Box»/«Caixa de Perguntas» – objeções vulgares contra a Religião», trad. do Padre José Rolim, ed. União Gráfica – Lisboa.
3 Contra esta maré designadamente remou o Bispo Carlos A. Moreira Azevedo, autor do livro «Ministros do Diabo». Carlos Azevedo – «Ministros do Diabo – Os seis sermões de autos da fé (1586-1595) de Afonso de Castelo Branco, Bispo de Coimbra» Círculo de Leitores, 2018.
4 José Pacheco – texto «Religião e política», no «Público», de 9-2-1996, p. 16
5 No dizer designadamente de Raul Rego, a Inquisição de Goa e a de Coimbra terão sido as que mais elevado índice de crueldade atingiram.
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na Inquisição quão iniquamente se eximiram de sequer admitir a vaga hipótese dum qualquer simples gesto em prol da pessoa humana, tão calcada em todas as suas vertentes, tão evidentemente violada quanto aos designados «direitos pessoalíssimos».
Bartolomeu dos Mártires (tal como outras altas entidades eclesiásticas), em assomos de presunção e soberania, asseverava que os delegados do Rei não podiam entrar nos «seus domínios» sem sua autorização. Como pálido exemplo, atente-se neste extrato dum protesto dirigido por ele ao rei Sebastião:
«… que sendo desmembrado e apartado da Coroa Real destes Reinos todo o domínio da dita cidade de Braga e seu termo e aplicado por contrato oneroso de permudação celebrado entre os reis passados destes Reinos de gloriosa memória e seus antecessores, a Santa Igreia de Braga de que ele é prelado, com toda a jurdição civel e crime, alta e baixa, etodo digo e com todo o mero e mixto império,epertencendooutrossi à dita sua igreia, assi por vigor do dito contrato como por outros justos títulos, todo o domínio dos Coutos que ora possui a dita igreia com toda a sua jurdição, mero e mixto império e superioridade, e estando a dita sua igreia e ele Senhor Arcebispo em legitima e pacíficapossedetodo o sobreditodetempoimemorial aestaparte,oranesteanopresente Dom Pedro da Cunha, presidente da alçada que Sua Alteza mandou a estas partes Dantre Douro e Minho e a outras destes Reinos, com outros oficiais da dita alçada, de feito e contra direito, pretenderam entrar na dita cidade e seu termo e nos ditos Coutos e devassar e usurpar a dita jurdição pertencente à dita sua igreia…» 1
Nas várias e acesas contendas entre o dito Arcebispo e os clérigos do Cabido, aquele chega a recorrer, para triunfar e para continuar nas boas graças do Papa, às diligências do seu parceiro Cardeal Henrique (ambos indicavam, diga-se de passagem, Filipe II de Espanha como «legítimo sucessor na coroa de Portugal»), às da Rainha Catarina e até às do Cardeal Carlos Borromeu.
Já se aludiu algures como se forçou a extinção (nos casos de Portugal e Espanha, em 1821 e 1842, respetivamente 2 ) da «Santa Inquisição». Foi extinta em Portugal, no seguimento do triunfo dos Liberais 3 , mas as ferozes e prolongadas lutas miguelistas tudo envidaram no sentido da reviravolta, o que nos leva a evocar esta advertência de Filinto Elísio (Padre Francisco Manuel do Nascimento), na «Ode», que escreveu, em Paris, em
1 À margem do que se versa neste ponto, recorde-se que, conforme assinalado em «Falsificação da História», uma viúva, porque desapossada de casa sua em proveito do dito Arcebispo, acabou por recorrer para o Rei Sebastião, por este lhe sendo dada razão. Francisco de Azevedo Gomes – «Falsificação da História», cit., vol. II, pp. 260-261.
2 Em Espanha, Napoleão tinha-a abolido, em 1808, mas ela conseguiu ressurgir, em 1814, vindo a ser extinta, em 1842.
3 Não será despropositado transcrever o seguinte: «Ao pôr fim ao poder repressivo e penal da Igreja, a Revolução Francesa suprimiu a existência da heresia no direito» – Raoul Vaneigem, ob. cit., p. 8.
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1806: «Considerai bem que a Inquisição é uma serpente, que está por ora como amodorrada, mas que apenas, por desgraça de Portugal, subir ao trono um rei, a quem os frades fanatizem, súbito a modorrada serpente acorda, espreguiça-se, e tomando novas forças, remoçada devorará o Reino, que a não matou.» 1
Note-se: extinta a «Santa Inquisição», ficou constitucionalmente definido que apenas aos estrangeiros era permitido, em Portugal, outro culto religioso que não o católico 2 , mas eis alcançada uma «liberdade religiosa parcialmente resguardada…, uma vez que se declarava que ninguém podia ser perseguido por motivos religiosos, desde que respeitasse a religião do Estado e não ofendesse a moral pública»; «a legislação penal continuava a incluir o conceito de crime religioso no caso de publicações que não respeitassem a religião católica, crime submetido a um processo criminal duplo, em juízo eclesiástico primeiro, em juízo temporal a seguir (…) O rasto de intolerância instilado pela Inquisição nalguns estratos da sociedade portuguesa não desapareceu em 1821» 3 .
E, no tocante aos nossos dias, leia-se, em «Falsificação da História» 4, o ponto «Manifestações de espírito inquisitorial, no nosso tempo».
Note-se que do Santo Ofício emergiu, para a atualidade, a Congregação do Santo Ofício: esta, «presidida pelo próprio sumo pontífice é a sucessora legítima da antiga Inquisição Pontifícia», dirimindo, julgando, pronunciando-se sobre diversas matérias 5 . Em 1965, passou a ter a designação de Congregação para a Doutrina da Fé.
5. Idade Moderna: bula «Inter Coetera», Tratado de Tordesilhas, a Expansão Europeia
Nesta tese, a partir do ponto 19 até ao ponto 19.16.1. (inclusive), a temática da Expansão Europeia está, com sageza, sem menosprezo pela ótica multidisciplinar, abordada, interpretada, repensada,posto queela tão estreitamente seimbrica,se confunde com a temática do enorme transpersonalismo dos poderes
Com calculismo, opapado dividiu todooMundo não «cristão»: era cedida metade a Portugal e a outra metade à Espanha, sendo, sob gravíssimas penas, vedado a qualquer
1 Carlos Babo, ob. cit., p. 61.
2 O que só veio a desaparecer com a Constituição republicana em 1911.
3 Miriam Halpern Pereira – «Exclusão e intolerância religiosa em Portugal», no «Público», de 18.12.96, p. 31.
4 Francisco de Azevedo Gomes, ob. cit., vol. II, pp. 489 a 505.
5 Prof. Padre A. Silva Rego – «Lições de Missionologia», cit., p. 56.
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outro povo europeu o acesso a esses mares. Como se verá, na sequência da bula «Inter Coetera», em 1493, do papa Alexandre VI, ocorre, em 1494, o Tratado de Tordesilhas
O que se passou durante esses vários séculos é profundamente atestador do referido transpersonalismo.
6. Fuga do real e utopismo. O socialismo científico/marxismo
A fuga do real, o «utopismo» emerge como apologia de mudança social, como crítica, como lampejo de esperança e ânsia de bem-estar, como ideário colocado à consciência coletiva, face a uma realidade sociopolítica em que, em vez de felicidade e justiça, abundam aopressão, os abusos, os problemas sociais – quanto a estes, vem a talho de foice, a coberto de Henrique Manzanares Abecasis 1, atentar-se no respetivo conceito, aqui remetido para pé de página 2 , bem como salientar-se que os mesmos se dividem em três grandes grupos: 1. «a desorganização social» 3 – que «se refere, como indica Merton na sua obra ‘Social Problems and Sociological Theory’, ‘a inadequações ou deficiências num sistema social, de ordem tal que os propósitos coletivos e os objetivos individuais dos seus membros são menos plenamente realizados do que seriam num sistema alternativo praticável»; 2. «o comportamento desviado» – «… comportamento que viola as expectativas institucionalizadas, isto é, expectativas que são partilhadas e reconhecidas como legítimas dentro dum determinado sistema social» 4; 3. «a anomia», ou seja, «ausência de normas sociais de conduta» 5
O Prof. Doutor Adriano Moreira, ao versar sobre a temática em epígrafe, sublinha a «relacionação do sistema político com a constituição social» (binómio Estado e sociedade) Diz ele, a dado passo: «Esta fuga do real é ainda um processo de luta contra o poder estabelecido, visto que oferece à meditação dos povos eventuais modelos de organização que advertem contra o existente ou contra as perspetivas da evolução do
1 Prof. Doutor Henrique Manzanares Abecasis – «Problemas Sociais Contemporâneos», cit., p. 17.
2 Eis definição de problema social (sublinhando-se as três características indispensáveis): «uma situação que afeta um número significativo de pessoas e é julgado por estas ou por um número significativo de outras pessoas como uma fonte de dificuldade ou infelicidade e considerada suscetível de melhoria»/ou eliminação (caberá, pois, na designação de tragédia aquilo para que humanamente não há solução e que é causa de gravíssima infelicidade) (ob. cit. , p. 17).
3 Abrangendo a fome, a injustiça social, a opressão, «as deficiências sanitárias», «a crise demográfica mundial, as relações raciais, a desorganização familiar», etc.
4 Aqui cabem «o suicídio, o crime em geral, a delinquência juvenil, o alcoolismo, o uso de estupefacientes, a prostituição, etc.».
5 Situação, por exemplo, de «destribalizados» que, em África, tendo partido em busca de novo horizonte, arrastam existência penosa, bastante desinseridos socialmente, nos subúrbios pobres de grandes cidades.
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existente» 1 . E a introduzir o ponto seguinte ele faz esta observação: «A fuga do real a que nos referimos até aqui só pode ser inteiramente compreendida no caso de simultaneamente termos em conta a conjuntura real em que o Estado atuava e o modo real do seu comportamento» (ob. cit., p. 258).
E, neste mesmo contexto, sustenta o referido catedrático que, de igual modo, há variações a nível dos «Fins do Estado» em função do tipo de «constituição social», em função do «statu quo» sociopolítico, ou seja, conforme se trate de Estado árbitro, Estado gestor, Estado coordenador ou Estado revolucionário (pp. 258 e segs.).
No mundo feudal, como expoente do «utopismo», surge «Utopia» (1516), de Tomás More – «Utopia» é comunidade idealizada nos moldes referidos no primeiro parágrafo deste ponto. Não fiquem por referir também Campanella, autor da «Cidade e o Sol», e Francis Bacon, autor de «A Fábula da Nova Atlântida» (pp. 230 e segs ).
No mundo demoliberal, de forma tanto mais aguda quanto mais se foi desenvolvendo a Revolução Industrial, tomaram, sob a égide das leis da economia liberal – lei da livre concorrência, do lucro, do preço, do salário (pp. 250 e também 244) – grande vulto problemas sociais graves de que eram vítimas trabalhadores, assim como crianças e mulheres, tendo passado a respetiva estrutura social a crescentemente experimentar tensãosocial,enfim,dialéticaentreestratosemcrispação(burgueses/detentoresdocapital e proletariado). Face a isto, emerge um utopismo, cujos paladinos são referidos em Adriano Moreira como «socialistas associacionistas» (Robert Owen, Louis Blanc, Charles Fourier, etc.) e, a breve trecho, surge o socialismo científico/marxista 2
Os arautos do socialismo científico/marxismo consideravam incongruente e até ridículo o propósitode mudar a sociedade com base em enunciados éticos como pretendia o socialismo utópico.
O marxismo, sustentando que, no contexto social, era de capital importância a infraestrutura económica (eis o postulado do determinismo económico e mecanismo de transformação social de Marx), a qual, segundo asseverava o marxismo, era a primordial determinante 3 daestruturaepercursodasociedade,moldandoasprópriassuperestruturas, como claramente no-lo transmiteaseguintetranscrição 4: «… Aorganização daprodução (chamada por Marx a infraestrutura económica da sociedade) não somente limita como
1
Prof. Doutor Adriano Moreira – «Política Internacional», Portucalense Editora, Porto – 1970, p. 228.
2 Idem, ibidem, p. 244 e segs
Prof. Doutor José Júlio Gonçalves, ob. cit., vol. I, p. 228.
José Júlio Gonçalves (ob. cit., vol. I, p. 231) assinala que Marx, numa posição rotunda que mostra «incapacidade de discernimento entre metafísica e teoria científica», «reduz todo o fenómeno concebível ao económico».
4 Idem, p. 229.
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também, na análise final, molda toda a superestrutura: organização política, lei, religião, filosofia, arte, literatura, ciência e a própria moralidade». Refira-se, de caminho: o marxismo repisa que as superestruturas Estado, Direito, Religião e Filosofia são armas que uma classe usa para manter a(s) outra(s) classe(s) à distância.
Respigue-sedeJúlioGonçalves(ob.cit.,p.229)oseguinte: «Osegundopostulado da Sociologia marxista – prossegue o mesmo autor (Timasheff) – refere-se ao mecanismo de transformação. De acordo com este ponto de vista, é preciso compreender a transformação social em termos de suas três fases sempre presentes. Trata-se do esquema dialético que Marx tomou emprestado ao filósofo idealista alemão Georg Hegel (17701831), orgulhando-se de tê-lo virado de cabeça para baixo (aplicando o esquema, não ao espírito fundamental, como fez Hegel, mas à matéria). Tudo no mundo, inclusive a própria sociedade, passa por uma espécie de necessidade dialética através dos três estágios de afirmação ou tese, negação ou antítese e reconciliação de opostos ou síntese. Neste mais alto nível de síntese continua o processo histórico» (ou seja, esta síntese constitui, por sua vez, uma tese que será confrontada por uma antítese… e assim por diante).
Com esta contextura se prende a asserção de que cada sistema de produção económica tem início, auge e fim.
«O socialismo marxista vaticinava que a concorrência e a luta entre os capitalistas conduziria sucessivamente à eliminação dos mais fracos de entre eles, de tal modo que, dentro de pouco tempo, a multidão dos proletários, em face do número diminuto dos capitalistas, poderia simplesmente expropriar estes, acabando com a apropriação individual dos meios de produção: à produção coletiva corresponderia a apropriação coletiva (…), vaticinava-se a catástrofe da economia liberal capitalista como simples consequência do funcionamento das leis económicas que os próprios capitalistas tinham enunciado e posto em prática » 1
«A sociedade socialista, derradeira fase da evolução, será uma sociedade sem classes da qual o espírito de luta e de dominação terá desaparecido. Sem qualquer diferenciação, regê-la-ão normas livremente aceites que nenhum dos seus membros se sentirá disposto a violar porque, fazendo-o, atentaria contra os seus próprios interesses. A meta do marxismo é um anarquismo atingido naturalmente pelo inevitável jogo da
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1
Prof. Doutor Adriano Moreira – Lições policopiadas de «Princípios Gerais do Direito», Assoc. Académica do I.S.C.S.P. (Universidade Técnica de Lisboa), 1967, p. 77.
evolução. Esta fase final só poderá todavia ser alcançada quando todos os Estados 1, ou pelo menos os mais adiantados e importantes, se tornarem socialistas Até lá, a necessidade de suprimir o espírito burguês (e não apenas, simplesmente, de banir a burguesia) impõe o revigoramento do poder estadual. A ditadura férrea do proletariado será indispensável para que possam ser levadas a bom termo as tarefas extraordinárias deste período de transição contra o cerco e as insídias dos Estados capitalistas.» 2
Marques Guedes 3, ao transmitir-nos o conceito marxista de Estado e conceito marxista de Direito, coloca-nos perante as seguintes frases muito esclarecedoras: «… O Estado não é uma instituição necessária, mas sim instituição ocasional e de carácter histórico», «não existiu sempre, houve sociedades que o desconheceram e nas quais não foi nunca praticada qualquer forma de diferenciação política entre governantes e governados». «Não existirá sempre: cessará naturalmente, quando a distinção de classes desaparecer»; «as classes morrerão» e «o Estado cairá com elas». «O Estado não é um ‘imperativocategórico’,comoqueriaKant,nem‘arealidadeda Ideiamoral’ou‘oespírito ético realizado’ de que falava Hegel. Tão pouco é fruto de um contrato social como na tese fantasiosa de Rousseau; ou o resultado da distinção entre governantes e governados, como afirmava Duguit; ou simplesmente a outra face da ordem jurídica, como (do particular ângulo de visão da sua Teoria Pura) Kelsen pretendeu demonstrar». E, neste enquadramento, Marques Guedes insiste em evocar (algo aduzindo, de caminho, da obra Anti-Duhring, de Engels) que o Estado e o Direito, apontados no marxismo como superestruturas, a par de outras superestruturas, enfim, como instrumentos que o poder «maneja para fazer a sua vontade», automaticamente «desaparecerão quando as classes sociais desaparecerem», desembocando-se no anarquismo.
1 Daí a aposta na internacionalização do projeto marxista.
2 Prof. Doutor Marques Guedes – Lições policopiadas de «Direito Político», Assoc. Académica do I.S.C.S.P. (Universidade Técnica de Lisboa), 1967, cit., p. 331.
3 Idem, pp. 326 e segs.
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O elitismo
Onazismo, deque foi paladinoAdolfoHitler 1,preconizavaa «valoração absoluta da raça, o mito da raça ariana» e projetava, com recurso à força, reunir num só Estado todos os indivíduos de sangue alemão, ou seja, a «Volksgemeinschaft»: «uma comunidade étnica e social que engloba todas as pessoas de origem alemã, em qualquer lugar que se encontrem…» 2. E mais: projetava-se também organizar hierarquicamente os povos, conforme a sua pureza racial. Mormente aos Judeus não lhes era reservada a não ser a «solução final»: a eliminação.
O fascismo, de que foi paladino Mussolini, preconizava a valoração absoluta do Estado/Nação. Asseverava ele: «Tudo no Estado, nada contra o Estado, nada fora do Estado» Agitava-se o lema de «viver perigosamente» ao serviço do Estado. Rocco, ministro da Justiça do regime, dizia que o indivíduo «é um instrumento que se emprega na medida em que serve ao fim em vista e que se afasta quando já não serve» e tendo a sociedade «fins e uma vida que ultrapassam os fins e a vida dos indivíduos… toda a vida da sociedade consiste em fazer do indivíduo o instrumento dos seus fins sociais» 3
A revolução russa de 1917 conduziu ao sovietismo, uma forma de Estado totalitário, ditadura despótica, em que duplamente se nota elitismo: o Poder só pode pertencer ao Partido comunista (mais precisamente, a uma vanguarda deste), o qual se traduz numa percentagem limitada do proletariado – a classe doutrinariamente arvorada.
O elitismo abarca as orientações ideológicas que proclamam a desigualdade dos homens 4 .
Ao exposto apense-se o seguinte: «Aristóteles afirmava que aquele que por natureza sua não é livre, mas sim a propriedade de outro homem, é por natureza um escravo, e que, desde o nascimento, uns são marcados para a subordinação e outros para o mando» (de passagem, realce-se a existência, nessa mesma altura, de autênticos filósofos, bastiões na defesa da dignidade da pessoa humana).
1 Inspiravam-no
2 Prof. Doutor Adriando Moreira – lições de «Ideologias e Política Internacionais», Associação Académica do I.S.C.S.P (Universidade Técnica de Lisboa), 1967/68, pp. 220-221.
3 Idem, ibidem, pp. 219-220.
4 Idem, ibidem, p. 204
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7. Nazismo, fascismo, sovietismo – posições transpersonalistas.
as teorias racistas de Houston Stewart Chamberlain e Comte de Gobineau; e, no tocante ao projeto da constituição dum vasto território economicamente autossuficiente (autarcia), designadamente se estribava Hitler nas teorias de Haushofer.
Abjetamente se urdiram «doutrinas tendentes a demonstrar a legitimidade e o fundamento natural da escravatura Chegou mesmo a procurar fazer-se tal demonstração com base na Bíblia…» 1 . A temática da escravatura 2 será razoavelmente abordada, em capítulo próprio, nesta tese.
Não fique por aludir-se, por um lado, a certas imbricações entre racismo e escravatura, e, por outro lado, ao facto da teorização racista e esclavagista ter vindo a procurar encontrar sustentáculos na teoria evolucionista de Darwin
8. Roupagem
16. As escolas sociológicas
Como bem o refere um compêndio de Psicologia, na investigação científica não basta chegar à intelecção das coisas, sendo forçoso poder explicá-las.
Acontece que a abordagem científica desta sociedade que nos vem do fundo dos tempos divide os estudiosos por muitas correntes sociológicas, por múltiplas e marcadamente distintas teorias.
Aquela ideia sobre o Estado que os próprios poderes têm zelado em impor à «consciência coletiva» – um Estado absolutamente indispensável à vida social – está longe de ser a consagrada em certas teorias 1. E ante estas, bem como perante tão grandes malefícios que, conforme no-lo assegura a História, os poderes têm cometido, não é, no mínimo, justo, sábio, perguntar-se: o que é o Estado? O que são os poderes?
Quanto a escolas sociológicas, primacialmente me estribo no Prof. Doutor José Júlio Gonçalves, pelo que a menção de páginas, entre parênteses, ao longo deste texto, respeita ao vol. I de sua obra «Sociologia» 2
Na escola do darwinismo social, Ludwig Gumplowicz (judeu, que foi perseguido) sustenta que a distribuição demográfica a nível do planeta é a resultante de uma milenar frenética dialética (conflito, física social…) entre os povos: o conflito 3, devido a motivos instintivos, é fator fundamental na distribuição espacial dos povos, no percurso da sociedade e nas suas transformações 4 (além de significativamente contribuir para os moldes estruturais e funcionais da vida). A guerra aparecia como meio para, neste seguimento de ideias, consolidar as estruturas sociais (p. 194). Há, nesta escola, autores a salientar a preponderância da fome, da libido, do medo e da vaidade na evolução da vida social 5 (p. 196), tendo esta como «motor e guia» o «instinto de conservação», latentemente reclamando consecuções políticas e económicas 6
A propósito, eis o que se exara num compêndio de Demografia: «Ludwig Gumplowicz, na sua ‘Luta das Raças’ (1882) analisava o processo de formação das nações através de invasões e lutas, salientando que os membros das diversas classes pertenciam às diferentes raças que em cada caso se tinham afrontado, definindo-se o seu
1 Em que, é óbvio, se imbricam aspetos das Ciências Sociais e Humanas.
2 Prof. Doutor José Júlio Gonçalves – «Sociologia», Portucalense Editora (1969), vol. I, pp. 165 a 309.
3 Sociologicamente designado «processo social derivado dissociativo» (ob. cit., vol. I, p. 190).
4 Evoque-se, de caminho, que Nietzsche estabeleceu uma profunda correlação entre conflito social e «vontade de poder» (p. 192).
5 O sociólogo Gustav Ratzenhofer desceu a uma classificação de fulcrais interesses subjacentes aos conflitos sociais (… a vida social «é um conjunto de interesses enraizados na própria natureza dos homens») (pp. 193-194).
6 Como se verá, não deixa de haver nesta escola quem sublinhe a grande importância da cooperação social.
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estatuto social em função dos resultados desses conflitos, cabendo assim aos vitoriosos as posições mais eminentes e aos derrotados os lugares mais humildes.» 1
Enfim, à sociedade estende-se a teoria de Darwin sobre luta pela sobrevivência, seleção e variabilidade naturais.
Face ao exposto, que induz numa certa demarcação de identidade grupal, há autores a vincar que daí resultou o etnocentrismo das raças (enaltecimento da cultura própria e menosprezo pela dos outros).
Ante uma sociedade assim analisada e percecionada, em que subjacentes/latentes, pois, a luta/força, o ardil, a injustiça social, o alinhamento de uns contra outros, a submissão de uns por outros (esclavagismo, etc.) não deixa de haver, na escola do darwinismo social (caso de Small), quem enalteça a cooperação social como de grande importância para a sociedade (p. 195); e o sociólogo J. Novikov, apontado como alinhando tanto pela escola em apreço como pelo organicismo social, «denunciou os propalados benefícios da guerra – essa destruidora forma de conflito» (p. 189).
Enquanto a escola do darwinismo social perceciona a sociedade como composta por grupos, a escola sociológica organicista (na qual, Spencer é figura de topo) perceciona-a como integrada por órgãos: ela estabelece uma forte correlação entre a realidade social e a realidade biológica, aponta a sociedade como que um organismo integrado por órgãos, cada qual com a sua função, o que reflete as leis da evolução tal comoDarwinaencara.Oindivíduoévistocomoquefuncionandoemcertaempatiasocial em relação ao todo, ou seja, ao superorganismo 2
Assim percecionando a sociedade, os organicistas, não fique por notar-se, «profetizavam», na peugada do mestre, Spencer, uma era em que a sociedade muito se preocuparia com os direitos individuais e se aboliria a guerra (à semelhança do que prediziam os sociólogos Saint Simon e Augusto Comte) (p. 185).
O organicismo «minou a ideia de que o Estado constitui uma máquina-mestra à qual todos os cidadãos devem automaticamente submeter-se» 3 (p. 188).
Não é de estranhar que os sociólogos mais representativos da escola do darwinismo social sejam referidos, igualmente, entre os mais representativos da escola do historicismo sociológico,pois quesendoaHistóriacomo queum singularobservatório
1 Prof. Doutor Óscar Soares Barata – «Introdução à Demografia», Universidade Técnica de Lisboa, Lisboa – 1968, p. 271.
2 O organicista Alberto Schaffle vê a sociedade não «como um grande organismo, mas como uma mente gigantesca» (p. 189).
3 Nessa altura, procurava-se justificar o lema «laissez faire laissez passer».
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visionando a Humanidade, eles caracterizam o comportamento desta como de índole darwínica.
Sustentam os representantesda escolado historicismosociológico que, anível das civilizações, segundo um percurso (em jeito circular), há, tal como nos seres vivos (a comparação tem algum matiz de organicismo), nascimento, crescimento, maturação e morte, para, de seguida, renascer-se. Como se disse, em jeito circular: o fechar de um ciclo é origem de um outro.
Max Weber, um dos principais pensadores da escola em apreço, seguiu métodos (entre outros, o método comparativo, o método compreensivo, o método tipológico ou método do «tipo ideal ou idealtipus», etc.) que lhe permitiram fecunda abordagem e interpretação da História; quanto ao último método referido, diga-se: uma das espécies de tipos ideais respeitaaelementos abstratos, ouseja, destacados, por abstração,darealidade histórica, os quais «se reencontram num grande número de circunstâncias (por exemplo, a burocracia 1 ) e que, combinados, permitem caracterizar e compreender os conjuntos históricos reais» (p. 296). E mais: Max Weber procedia a «reconstruções racionais», ou seja, quanto a lógica/razão o permitia, subia, por abstração, dos fenómenos/dados sociohistóricos estudados a níveis elevados de compreensão, de ideal colmatação2. Referindoseàssuasprofundaselucubrações/asserçõesdesignadamenteacercadotranspersonalismo dos poderes, um autor 3 diz o seguinte: «Dentro dos três tipos ideais de Max Weber, de acordo com os quais o poder é definido como Força Arbitrária (poder do mais forte), Força Legal (submetido a critérios de racionalidade lógico-formal) e Autoridade (que possui a mais do que o último o consentimento dos ‘governados’), pensamos que aquele que define de facto a essência do poder é o primeiro tipo, pois o poder, pela possibilidade de o ser (o que é demonstrado em situações de crise), tende a assumir-se sempre como força arbitrária. Ora bem, pensamos que é precisamente dentro da Instituição Militar que o fenómeno se mostra com mais clareza… A Instituição Militar acaba assim por se constituir como o númeno do Estado, a sua essência mais aproximada, permitindo-lhe (ao Estado) assumir-se, noutras áreas, fenomenologicamente, como poder enquanto ‘força legal’ e poder enquanto ‘autoridade».
1 Publicou até um estudo sobre a burocracia.
2 Método de colmatações em termos ideais por alguns autores designado «método ideal de Weber».
3 Mário Paulo Tenreiro – «O Direito na Instituição Militar», na «Revista Crítica de Ciências Sociais» nº 21, de novembro de 1986, pp. 136-137.
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À laia de parêntese, repare-se: historicamente, os povos têm sido, efetivamente, conduzidos sob a batuta de poderes transpersonalistas. É claro que a História regista uma dialética entre valores e desvalores, mas está implantado o império do transpersonalismo. Os poderes, manietando os povos, gerindo-os, têm arrastado estes para situações mais ferozes do que as da selva, pois que potenciadas pela imaginação e pelas capacidades intelectivas. A História é espelho/testemunho da atitude da Humanidade, dos instintos, das ideias (da respetiva urdidura, propagação e concretização). É indispensável fazer a interpretação da História – esta, no seu autêntico conceito de ciência que, jamais desarticulada das demais Ciências Sociais e Humanas, oferece à nossa reflexão, quanto possível circunstanciadamente, o quotidiano dos que nos antecederam.
Para a escola psicológica ou de psicossociologia há um nexo causal entre o fator psicológico e os fenómenos sociais, a vida social (p. 220). Júlio Gonçalves recolhe de Paulo Dourado Gusmão esta síntese: «Esta escola tem por ponto de partida as ‘características psíquicas de um indivíduo, tomando-as como variáveis, das quais pensam derivar os fenómenos sociais’… Instintos, complexos e pulsações subconscientes, particularmente a libido, impulsos biológicos, reflexos condicionados, emoções, sentimentos e outras experiências sociológicas internas têm, como assinala Sorokin, servido de critério para interpretação das realidades socioculturais» (p. 217).
Gabriel Tarde, um dos nomes mais sonantes a referir neste contexto, «reduziu os fenómenos sociais a processos mentais, principalmente à «imitação», que tem sua origem na «invenção». «Esta, produtora das transformações sociais, é individual 1, dependendo de poucos, enquanto a ‘imitação’ é coletiva, necessitando sempre de mais de uma pessoa. ‘Assim, o processo social caracteriza-se pela ‘invenção’ de poucos e a ‘imitação’ de muitos» (pp. 218-219). Gabriel Tarde repisava na tendência natural para imitar a tradição (no tocante ao passado) e imitar o «modo» (moda), no tocante ao presente.
Ante esta tese, as semelhanças culturais entre vários países fica predominantementeadever-seàdifusãoculturalporforçada «imitação»,quandoaescola darwínica as faz brotar dos próprios processos darwínicos 2 .
1 «Natura non facit saltum» («a Natureza não faz salto») é, no mundo da Ciência, uma sentença/máxima que há a referir-se quanto ao processo que conduz a uma invenção de notoriedade científica: a invenção é feita por um ou por poucos, mas para ela muitos contribuíram, com as suas achegas, ao longo, quantas vezes, de milénios.
2 Há teses, há escolas sociológicas com significativas imbricações entre si, sendo fácil entender, por exemplo, que Giddings, um dos grandes sociólogos da escola psicológica, foi muito influenciado por Buckle (sociogeografia), por Spencer (organicismo), bem como pelos «antropogeógrafos» e, mais ainda, «pelos psicólogos sociais e demógrafos franceses» (p. 220).
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Aponta-se ao referido autor, é claro, o exagero de isolar a «imitação» como o processo social por excelência, sem franca disponibilidade para o emparceirar com outros processos sociais.
A.W. Small (pp.194 e221/222) –da escolaem apreço,mas que muito seinspirou em Ludwig Gumplowicz e Gustav Ratzenhofer (ambos da escola do darwinismo social) – sustenta que os processos individuais e sociais são suscitados por interesses humanos; a ação social é animada por estes e pelos conflitos sociais, ou seja, choques de interesses; e aponta, como fautora de bem-estar, como indutora num profundo sentido de comunidade, a cooperação social.
Note-se, de passagem, que também Vilfredo Pareto, da escola mecanicista, encara os fenómenossociais como enraizados em sentimentos, interesses, paixões, necessidades, sendo tudo isto, enfim, a mola subjacente a pautar a atividade social, a vida social; melhor dito, às motivações acabadas de referir como indutoras na fenomenologia social 1 vê-as ele, afinal, como «resíduos» 2 , ou seja, como que remanescências/resquícios de sentimentos, de interesses, de paixões, etc., de que está cronicamente imbuída/impregnada a sociedade (pp. 236 e segs). Complemente-se o que fica dito sobre a escola mecanicista com esta achega: sob a epígrafe «Grupos Sociais, ‘Elites’ e Massas», José Júlio Gonçalves 3, num lampejo sobre «elites governantes» («Poder»), «elites nãogovernantes» («Antipoder») e «massas» («Não-Poder»), em algo nos traz à mente a modorra das «massas» em relação ao «statu quo» vigente, ao apontar, a coberto de Salim Sedeh, certos aspetos da teoria de Vilfredo Pareto, importando transcrever, aqui, o seguinte: «As ‘derivações’ são as ideias desenvolvidas para justificar os sentimentos ou ocomportamentosocialquenelesseinspira.Podeservir-nosdeexemploafraseanalisada dentro do critério paretiano pelos professores Homans e Curtis: ‘Combatemos pela nossa pátria porque é nosso dever e porque os nossos inimigos ameaçam a civilização’, em que se separam o ‘resíduo’ (‘combater pela pátria’) da ‘derivação’ (‘porque é nosso dever e porque os nossos inimigos ameaçam a civilização’). Às ‘elites’ que têm em suas mãos o poder em geral correspondem as ‘combinações’, que representam sagacidade, inteligência e experimentações; às ‘massas’ correspondem geral e principalmente as ‘agregações persistentes’ que representam apego à tradição e receio à inovação». E não
1 No dizer dele, esta evolui segundo um percurso ondulatório, curvilíneo e cíclico.
2 Pareto fala de «resíduos» e suas «derivações» – estas, ditadas pelos próprios «resíduos», serão as tentativas de justificar/explicar aqueles, mediante teorias, doutrinas, etc. (explicar/apresentar, por exemplo, a autoridade/poder como costume vindo do fundo dos tempos, com raízes na ética, na vontade divina, etc.), procurando-se dar feição lógica àquilo que, em tantos casos, a não tem. Quanto às «derivações», veja-se ainda o exposto em Júlio Gonçalves, ob. cit., vol. I, pp. 257-258.
3 José Júlio Gonçalves, ob. cit., vol. II, p. 84.
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deixe de repisar-se que «resíduos», na teoria de Pareto, são os «sentimentos persistentes» (religiosos, patrióticos, morais, sacros, cívicos, etc.), dentro do comportamento social», acontecendo que, a nível destes, «ele distingue ainda as ‘combinações’ e os ‘agregados persistentes» (conceitos que Júlio Gonçalves expõe).
Na escola sociológica francesa, Durkheim, na peugada do positivismo, encara a realidade social como composta de fenómenos coletivos vistos como «coisas», bem demarcados em relação a quaisquer outros fenómenos e exteriores em relação aos indivíduos e sobre estes exercendo coação exterior, devendo, assim, buscar-se a causalidade social nos fenómenos sociais antecedentes «e não entre os estados da consciência individual» (p. 238).
Na grande celeuma que houve entre Gabriel Tarde e Durkheim, um dos aspetos vindos à liça foi o da «consciência coletiva», que este reconhecia e que aquele preteria face à consciência individual que a Psicologia contempla.
A escola sociológica demográfica encara o fator demográfico como fundamental na evolução da sociedade, enfocando-se a relevância quer da crescente densidade demográfica (com consequências tais como a fome e outros graves problemas sociais) quer de outros aspetos de ordem demográfica (e outros com estes estreitamente implicados) que induzem ora na decadência/declínio de povos 1 ora na sua ascensão ou dominância.
17. Fatores psíquicos e sociais na formação da personalidade humana
Segundo os ensinamentos da Psicologia, na formação da personalidade do homem – ser psicossomático e eminentemente social – há fatores psíquicos e fatores sociais. Esta duplaface (psíquica esocial)é explicada pela correntedenominada «psicologismo»2 com leis exclusivamente psicológicas, enquanto que a corrente denominada «sociologismo» 3 , de forma oposta, a explica com leis exclusivamente sociológicas.
1 Sendo trazidos, neste contexto, à liça aspetos tais como: perda de vigor demográfico, baixa da taxa de natalidade, substituição demográfica…
2 Ver escola sociológica psicologista, já abordada.
3 Ver escola sociológica francesa, já abordada.
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O «psicologismo, doutrina desenvolvida pelo sociólogo francês Gabriel Tarde», sustentahaver «nohomemduastendênciasfundamentais»:uma,ainvenção(quedepende de condições tais como liberdade, oportunidade, nível social), a qual responde pelas mutações sociais, pelos impulsos civilizacionais, aolongodaHistória; aoutra, aimitação, é o fator estático da personalidade, que explica «não só a propagação das invenções 1 , como o lado estável que nas coisas (linguagem, costumes, etc.) se verifica» 2 .
Segundo o «Sociologismo, tudo o que no homem é especificamente humano e o distingue dos animais resulta da sua participação na vida espiritual da sociedade’. A linguagem e o raciocínio, a ciência e a arte, a moral e a religião são factos sociais e o indivíduo só os possui na medida em que participa na vida e pensamento coletivos» 3 . Levy Bruhl, discípulo de Durkheim, diz: «Na vida mental do homem, tudo o que não é reação do organismo às excitações que o afetam, é naturalmente de ordem social» 4
Quanto ao que fica exposto, Augusto Saraiva, afirmando que a cada uma dessas posições antagónicas assiste apenas meia-verdade, diz: «não há sociedade fora dos indivíduos; não há indivíduos que se bastam e desenvolvem, fora de uma comunidade» 5 . Há sociólogos (designadamente Durkheim) que veem a sociedade como que eivadaporuma «consciênciacoletiva» Estaconfigura-secomo «habitat»emqueinserido o ser humano.
Em lições de Psicologia 6 , aponta-se o exemplo de «crianças selvagens» que vieram a ser descobertas (designadamente duas meninas da Índia, cuja vida até aí decorrera numa caverna com lobos): essa vida selvagem deixou nelas indelével sinete de inadaptação à vida humana… É claro que para manietar, despersonalizar a Humanidade era requisito fulcral a formatação da consciência coletiva e da consciência individual.
17.1. Aportes da Psicologia Social
Quanto ao que vimos desenvolvendo, a Psicologia Social tem importantes contributos a dar.
1 Já nos ocupámos com conceito de invenção.
2 Augusto Saraiva – «Psicologia», 2ª edição, Plátano Editora, 1977, p. 204.
3 Idem, p. 205
4 Idem, p. 206.
5 Idem, p. 206.
6 Idem, p. 57.
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«A Psicologia Social tenta compreender e explicar como é que os pensamentos, sentimentos e comportamento dos indivíduos são influenciados pela presença atual, imaginada ou implicada de outros» – e Teresa Freire 1, ao recolher de Alport esta definição, aduz estoutra de Smith e Mackie: «estudo científico dos efeitos dos processos sociais e cognitivos na forma como os indivíduos percecionam, influenciam e se relacionam com os outros».
E, citando Neto, Teresa Freire refere: «a ênfase no social distingue a Psicologia Social da Psicologia e a ênfase no individual distingue-a da Sociologia».
Eis conceitos recolhidos de Teresa Freire: «Processos sociais 2 – formas através das quais os inputs das outras pessoas e grupos à nossa volta afetam os nossos pensamentos, sentimentos e ações»; «processos cognitivos – formas através das quais as nossas memórias, perceções, pensamentos, emoções emotivos influenciam a nossa compreensão domundo e guiamas nossasações» – Teresa Freire 3, a coberto de Smith e Mackie.
Nos compêndios de Psicologia, quanto à temática da perceção 4 e quanto à da aprendizagem 5, são explanadas as pertinentes teorias 6 e feita a crítica das mesmas; nos compêndios de Psicologia Social, quanto à temática da nossa formação de impressões acerca dos outros, bem como quanto à temática da cognição social, lá se discorre sobre as correspondentes teorias 7
Ante o binómio indivíduo-sociedade, passemos a dar o devido enfoque ao meio social.
Nasociedadeemqueexistimos,apessoahumanaé,repita-se,gravementeabusada, despojada da sua dimensão de valor absoluto.
A atrás referida «consciência coletiva» bastante impende sobre os indivíduos, ela é realidade deveras presente (havendo variações graduais ao sabor de variações de contexto) na formação da personalidade, na cognição social, na atitude do ser humano
1 Teresa Freire – «Psicologia Social» - «Domínio da Psicologia Social» (2011/2012). Acedido em abril/2013 em http://slideplayer.com.br.
2 De caminho, ante a imbricação entre processos sociais e comportamento social, diga-se que, ao conceituar sobre este, o sociólogo Júlio Gonçalves diz: «uma vez que os processos sociais decorrem da interação e esta se cristaliza em maneiras de agir em comum que se repetem, naturalmente que aqueles são função e condicionantes obrigatórios do comportamento social, integrado por todas as formas de conduta individual e dos grupos sociais», in «Sociologia», vol. II, p. 49.
3 Idem, ibidem.
4 Augusto Saraiva, ob. cit., pp. 125 e segs.
5 Idem, pp. 140 a 148.
6 Ver, em Augusto Saraiva, ob. cit., o que se explana sobre associacionismo, gestaltismo, etc.
7 Ver o que se explana sobre esta temática, em Teresa Freire – «Psicologia Social» - «Perceção Social: Formação de primeiras impressões/Teorias Implícitas da Personalidade» (2011/2012). Acedido em abril/2013 em http://slideplayer.com.br.
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para com os outros, na atitude do ser humano em presença dos outros, enfim, no comportamento social.
A um espírito circunspecto não passam despercebidos os elos/nexos que duma forma significativa conectam o que acaba de dizer-se com os oito princípios, a seguir expostos, consagrados a nível da Psicologia Social, bem como com as abaixo definidas TIP 1; na transcrição que se segue, recolhida de Teresa Freire 2 , aos três «princípios motivacionais» seguem-se os três «princípios de processamento» e, a perfazer o referido total de oito, são, a fechar o parágrafo, exarados dois princípios/axiomas fundamentais: «1. Esforço de controle (controle/propiciação) – as pessoas tentam compreender e prever os acontecimentos do mundo social de forma a obter recompensas; 2. Procura de ligações/relações – as pessoas procuram o suporte, o gostar e a aceitação pelos outros e pelos grupos com que se preocupam e valorizam; 3. Valorização do ‘eu’ e ‘meu’ – as pessoas desejam ver-se a si próprias, aos outros e grupos relacionados consigo, de uma formapositiva; 4.Conservadorismo –pontos devistaestabelecidos sãodifíceis demudar; 5. Acessibilidade – a informação mais acessível é a que tem mais impacto; 6. Superficial versus profundo – as pessoas podem processar a informação de forma superficial ou profunda». 7. «As pessoas constroem a sua própria realidade – a visão da realidade é um processo construído por cada pessoa, moldado pelos processos cognitivos e sociais» 3. 8. «As influências sociais são constantes, subtis e infiltram-se nos indivíduos. As outras pessoas influenciam virtualmente todos os nossos pensamentos, sentimentos e comportamento, quer essas pessoas estejam presentes fisicamente ou não».
«Em combinação, estes oito princípios são responsáveis por todos os tipos de comportamento social, incluindo os pensamentos e ações que são úteis e adequados/valorizados, bem como todos aqueles que são considerados desadequados e destrutivos», vinca Teresa Freire.
Não perdendo de vista o peso da atrás referida «consciência coletiva», preste-se ainda atenção ao que se segue:
Quanto às referidas TIP (Teorias Implícitas da Personalidade), comece por dizerse (a coberto das lições de Teresa Freire 4) que os indivíduos agem e interagem «tendo por base teorias implícitas respeitantes à personalidade do ser humano», ou seja, como
1 Teorias Implícitas da Personalidade.
2 Teresa Freire – «Psicologia Social» - «Domínio da Psicologia Social» (2011/2012). Acedido em abril/2013 em http://slideplayer.com.br.
3 Com a asserção de que o homem constrói a sua realidade se conjuga a asserção de que ele é socialmente moldado – veja-se o que atrás se explanou acerca de psicologismo e sociologismo.
4 Teresa Freire – «Psicologia Social» - «Perceção Social: Formação de primeiras impressões/Teorias Implícitas da Personalidade» (2011/2012). Acedido em abril/2013 em http://slideplayer.com.br.
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que «matrizes de correlação 1 ou de coocorrência», que, jacentes ou entranhadas na nossa psique 2, nos induzem, a partir do que «uma pessoa faz ou diz», enfim, a partir de traço(s) sobre ela conhecido(s), a inferir quanto à mesma outros traços/características, a situá-la em determinado tipo de personalidade, segundo figurinos/matrizes em nós entranhados. Isto é visto na Psicologia Social como um processo de simplificação/categorização, que se traduz «numa representação mental geral do que são os outros e qual o seu modo de funcionamento».
«As TIP correspondem a crenças gerais que alimentamos a propósito da espécie humana, nomeadamente no que diz respeito à frequência ou variabilidade de um traço de carácter na população», lê-se em Teresa Freire, que acrescenta: «a partir de um traço que nos é dado, inferimos facilmente um segundo e até um terceiro ou quarto».
Rematando-se esta breve abordagem às TIP, aduza-se do capítulo, em que Teresa Freire 3 disserta sobre «Estratégias de manutenção» das mesmas, simplesmente o seguinte: «as teorias implícitas resistem à mudança», preservando-se como «de carácter inevitável e útil» e havendo a tendência/expectativa de delas obter «confirmação nas interações sociais». «As pessoas recorrem a estas teorias para se julgarem a si mesmas ou aos outros, para explicarem e preverem o próprio comportamento ou o dos outros.»
17.2. Influência Social
Ao longo desta tese, está satisfatoriamente vincado que há fortes nexos entre a influência social e a cognição social, a formação da personalidade do indivíduo, o comportamento social…
Face ao muito que em Psicologia Social se explana sobre Influência Social 4 , designadamente sobre os cinco tipos de influência social, preocupámo-nos em respigar para esta tese o que verdadeiramente importa, o que é imprescindível.
Prossigamos, referindo estes três tipos de influência social que não podíamos deixar de aduzir:
1 «Correlação de dados».
2 As TIP não têm «fundamentação científica», sendo «simplificações/categorizações aprendidas pela experiência», assinala Teresa Freire.
3 Idem, ibidem.
4 Ver Teresa Freire – «Psicologia Social» - «Influência Social: Processos de Condescendência/Processos de Normalização/Processos de Conformidade e Obediência/Processos de Inovação» (2011/2012). Acedido em abril/2013 em http://slideplayer.com.br.
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1. «Influência normativa» (designadamente a legislação) e «influência informativa» (designadamente 1 informação diversa advinda das Instituições…)
2. «Obediência à autoridade»
3. «Inovação» – conceito que abarca um vasto leque de vertentes, não podendo ficar por salientar a influência social de ideários inovadores 2 : uns havendo cuja propalação redundaem mal-estar,despersonalização,em opressão,outros,porém, elevados, corajosamente propalados, tendentes a mudança de «statu quo»
Aos poderes instituídos é-lhes inerente e por eles consagrada a consabida autoridade. E tal autoridade, é claro, implica como sagrado e indeclinável o dever de obediência.
A Psicologia Social explica que, em várias experiências laboratoriais 3 devidamente conduzidas, em diferentes contextos e por diferentes intervenientes, os «participantes», na sua grande maioria, «obedeceram às instruções do experimentador, apesar de provocarem dor 4 nos seus companheiros e de se sentirem emocionalmente perturbados». Lê-se, a propósito, numa das lições de Teresa Freire: «… Obedecer a ordens destrutivas é mais a regra do que a exceção».
Colmate-se com a transcrição deste importantíssimo passo das lições de Teresa Freire 5:
«Processos implicados na obediência à autoridade:
O estado agêntico – condição em que se encontra a pessoa quando se considera um agente que executa os desejos de outrem
A rotinização – transforma o comportamento em ações rotineiras. Evita o pensar sobre as implicações do que se está a fazer
A desumanização – as vítimas são privadas da sua individualidade, sendo mais fácil agir contra elas.»
1 É relevante também o vetor específico da propaganda/doutrinação.
2 A inovação é desencadeada por poucos, daí a pertinência desta asserção recolhida dos referidos textos letivos de Teresa Freire: «Os pontos de vista da maioria transformam-se mediante a ação de uma minoria».
3 Transfira-se a mente duma experiência laboratorial para, por exemplo, um real cenário bélico… 4 Experiências em que se aplicava dor (ex.: descargas elétricas) a indivíduos.
5 Idem, ibidem.
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18. Poderes e instituição militar
É sob o título «Forças»que Marcel Prélot discorre sobre forças militares, partidos, Igreja, Administração, sindicatos profissionais, agrupamentos diversos. Retenha-se do autor este passo: «As forças coletivas são primeiramente algumas forças públicas. Em princípio subordinadas ao Poder, podem, por sua vez, ambicionar detê-lo ou subjugá-lo mais ou menos diretamente. É o caso do exército ou da Administração» 1 Nesta contextura, Marcel Prélot, sob a epígrafe «A Dialética do Poder e das Potências», caracteriza estas como entidades que, «querendo servir» ou «querendo servir-se», «são levadas, direta ou indiretamente, a cobiçar o Poder assente na instituição. A vida política obedece assim a uma tensão constante entre o Poder (potestas) e as ‘potências’ (potentiae)» 2
A estrutura militar – à qual é, segundo uma filosofia e ética cronicamente elaboradas e consagradas, cometidaamissãodeservirsupremos ideais, valores – é fulcral no suporte e na reafirmação dos transpersonalistas poderes
E, note-se, por incontido manancial de ambição, ganância, belicosidade, não raros poderes/estruturas militares, ao longo da História, avançaram sobre outros países. Estabelecendo-se o devido contraste com a realidade apontada no ponto desta tese intitulado«Comunidadenatural»,elucubre-sesobreacrónicaarregimentaçãocompulsiva de jovens e sobre o febril e enormemente dispendioso armamentismo.
18.1.
A tropa à luz de Ciências Sociais e Humanas
À laia de preâmbulo, torna-se necessário recordar o seguinte: sobretudo em 1988 (já decorriam, pois, catorze anos sobre o 25 de Abril/74), neste país, rebentou, permaneceu durante uma temporada e ecoou a nível das esferas do poder um significativo alarido, veiculado por diversos meios de comunicação social 3, sobre «violências» que vinham ocorrendo a nível castrense (em instruções militares) De permeio com as ditas ocorrências, vieram a público, a propósito das mesmas, além de viva denúncia, pertinentes enunciados e asseverações a nível da Psicologia/Psiquiatria e do Direito, tal
1 Marcel Prélot, ob. cit., p. 137.
2 Idem, p. 133.
3 Sucederam-se, neste país, em diversos jornais de 1988, textos palpitantes de vários jornalistas (designadamente Fernando Dacosta, Olga Vasconcelos, Oliveira e Castro, Carlos de Sousa, Joaquim Vieira, Luís Costa, Joaquim Teixeira Bastos e José Luís Barata).
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como poderá verificar-se em capítulo de «Falsificação da História» intitulado «Brutalidades’ em instruções militares não ocorreram apenas antesdo25de Abril» 1.Não se afigura haver inconveniente em, no ponto em que ora nos ocupamos, deixar umas pinceladas sobre as ditas ocorrências, designadamente porque, no contexto das mesmas, aparecem, como se disse, asserções do foro científico atrás referido. É extenso o referido capítulo de «Falsificação da História», no qual, em transcrições recolhidas de muitos jornais, se sucedem muitíssimos depoimentos e narrativas de diversa autoria, a propalar o seguinte: ocorrências mortais; suplícios, designadamente o da enorme sede – não poucos tendo bebido urina própria ou alheia –, o do sono (reiteradamente impedido, logo após nele se caísse por ingente sonolência) e o da exaustão (secundada por pontapés e coronhadas, com, não raro, consequentes fraturas que, frequentemente, sendo graves, não faziam cessar a coação de prosseguir-se com o esforço físico em execução); desespero e mesmo suicídios; graves ignomínias, vexações 2; regozijo e/ou galhofa (por exemplo, derrame de copiosa água no chão ou atirada à cara de quem desfalece de sede, placidez ante quem se arrasta nas fezes de cano de esgoto ou mergulha, estando até com febre, em água gélida, indução em engolir gafanhoto, meter réptil na boca ou beijar lesma) por parte de quem é «autoridade» face a quem, transido de dor, é, para cúmulo, molestado com ímpias expressões (de uma destas aqui fique a transcrição: «30 vezes abaixo de cão»).
Posto isto, transcreva-se o seguinte do referido ponto de «Falsificação da História»:
«Em ‘o Jornal’ 3, diz-se, depois de falar-se em ‘crispações psicológicas crescentes nos mancebos no período de recruta’, por causa de ‘programas’ que ‘começam a ser postos em causa e a ser repudiados por educadores, psicólogos e psiquiatras’: ‘Grandes vultos da pedagogia têm-nos, aliás, denunciado com regularidade, como Adolfo Coelho (‘a disciplina militar, os exercícios com armas, as manobras, são o que há de mais eficaz para comprimir a espontaneidade de movimentos, enervar a mocidade, arrancar aos jovens toda a alegria, envelhecê-los antes do tempo’) ou mestre Rodrigues Lapa: ‘Se há instituições a quem deve ser negada a missão de educar, a tropa é uma delas. Nada mais contrário ao espírito da democracia e à essência duma boa educação do que as ideias que inspiram, por via de regra, os oficiais militares, com exceções notáveis já se vê.»
1 Francisco de Azevedo Gomes – «Falsificação da História», cit., vol I, pp. 361 e segs.
2 Ao correr da pena, aqui seexarepartedeumadas várias transcrições constantes do capítulo acima referido: «… Acrescenta o clínico: ‘Vi vários indivíduos a vomitarem sangue resultante de úlceras e gastrites provocadas pelo ‘stress’ a que eram submetidos’ (…) Na véspera de uma ‘prova de fogo’ (com tiro real) – ainda segundo Francisco R. –, ‘os recrutas foram obrigados a escrever uma carta aos pais, despedindo-se para a eventualidade de virem a morrer durante o exercício».
3 Fernando Dacosta – reportagem «O comando morto era sobrevivente daprova dechoque – Familiares do jovem afogado desmentem versão do Estado-Maior do Exército», em «o Jornal», de 2.6.88, p. 22.
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Em «O Direito na Instituição Militar», da autoria de um Professor de Direito da Universidade de Coimbra 1, logo após aludir-se aos «incorporados» na tropa como «simples peças de uma máquina», diz-se: «A instituição é tanto mais funcional quanto mais se assemelhar a uma engrenagem automática movida por inputs, semelhantes aos que se utilizam na informática e onde pensar é perfeitamente dispensável». E acrescentase, um pouco adiante: «Em suma, o serviço efetivo acaba por se traduzir na prestação de trabalhos forçados em regime gratuito».
De passagem, registe-se que, há não muitos anos atrás, designadamente nos telejornais, houve transmissão (que desencadeou profusas e veementes reprovações) do seguinte cenário, em que imagens arrepiantes eram acompanhadas de enormes gritos de dor: no Peru, recrutas acabados de chegar ao quartel, estavam sendo, numa sessão de «praxes», submetidos, desnudos, a elevadas descargas elétricas.
Neste seguimento de ideias, permita-se-me intercalar aqui o seguinte: que oportunidade teriam, por exemplo, as consabidas «praxes» académicas (por calculismo, em certos transes, quanto a estas se promete moderação… e, uma vez mais propícia a maré, logo se trepa a subidos patamares de abuso) no tipo de «Comunidade natural» abordado, em ponto próprio, nesta tese?
Tão pertinente como perguntar-se «quem não abusa se é titular do poder de abusar?» é dizer-se que há um «statu quo» propício a abusos sobre gentes cronicamente industriadas pelos poderes na submissão e, logo, a nível comportamental, travadas, peadas, quanto a rasgos de legítima defesa.
E aqui tem cabimento este título tão apodítico quão veemente, que flameja numa comunicação do professor universitário Daniel Serrão 2: «Milhões e milhões de jovens são educados para matar».
E, numa pincelada muito breve, não fique por recordar a condenável atitude de esferas eclesiais ante aquelas, a todos os níveis destruidoras, operações bélicas que os magnates de Portugal, que os paladinos do fascismo-colonialismo atiraram sobre as colónias africanas. De caminho, aduza-se o seguinte do já citado fascículo «O Estado do Vaticano…»: «… na última guerra, o papa abençoava as tropas de Mussolini e os padres benziam as bocas dos canhões que partiam para massacrar a Abissínia, na esperança de implantar naquele país a ‘Santa Madre Igreja Católica Romana». Não é inoportuno
1 Mário Paulo Tenreiro – «O Direito na Instituição Militar», na «Revista Crítica de Ciências Sociais» nº 21, de novembro de 1986, pp. 135-136.
2 No «Diário do Minho», de 26.5.1995, p. 15
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recordar-se que o elo de ligação do militar romano ao exército tinha o nome de «Sacramentum» 1
Parafinalizar, eis uns apontamentos, cujasubstância,tendocabimento neste ponto, também se imbrica com a matéria do ponto que se segue…
Do sentido de posse sobre seres humanos e despicienda avaliação de que eram alvo fala-nos, por exemplo, um documento coevo da Guerra da Aclamação, no qual se aponta a possibilidade de «tirar 2 oito ou des mil homens» (para o exército), nas terras de Entre-Douro-e-Minho, onde a gente é «naturalmente animosa, doméstica, sofredora do trabalho e do pouquo sustento porque o ordinário é pão de milho mui limitado com hervas», assinalando-se que dessa região «ordinariamente sai muita gente a trabalhar para Castela e o Alentejo» 3 . E acrescente-se: na obra de Damião Peres e outros 4, ao versarse sobre o fim das beligerâncias, sublinha-se a situação miserável, desprezível, em que se achava a soldadesca das hostes do Infante Miguel 5 (caracterizado como «tirano», na p. 228, ob. cit.)
Há documentos que se referem a um costume existente outrora, em Portugal, em ordem ao arrebanhamento, nas aldeias, de indivíduos para a tropa: após sorrateiramente cercadas povoações (como que se de uma caçada se tratasse) por um contingente armado, os varões mais capazes eram, pela força, trazidos para os quartéis 6 .
Mais grave do que o que acaba de dizer-se, eis o plano que o Marquês de Pombal pôs Pina Manique, superintendente da polícia, a cumprir, em 23-1-1777: com um contingente armado, atravessou, de noite, o Tejo, cercou a Trafaria – povoação de «choupanas de tábuas e colmo», onde, entre os moradores, se acoitavam designadamente alguns mancebos esquivados ao alinhamento militar – e ateou-lhe fogo. Houve significativas mortes pelo fogo; houve indivíduos que, fugindo às chamas, foram
1 QuantoàdicotomiaImpérioRomano/SeguidoresdeJesus,importaternoçãodaatitudesubjacenteaositensjurídicosseguintes: lapsi, sacrificati, thurificati, libellatici, acta facientes, traditores (vide «Wikipédia, enciclopédia livre»). Aproveite-se este ensejo para referir que os primeiros «cristãos» recusavam ser militares, não ocupavam cargos políticos, etc. (vide, por ex., «Wikipédia, enciclopédia livre» e «The Encyclopedia of Religion and War»)
2 Ninguém é propriedade de ninguém
3 José Viriato Capela – «Tensões sociais na Região de Entre-Douro-e-Minho», em «O Distrito de Braga», vol. III da 2ª série, 1978, Administração Distrital de Braga, p. 39.
4 Damião Peres e outros – «História de Portugal», Edição Monumental, Portucalense Editora Lda , 1935, vol. VII, pp. 225-226.
5 Diga-se, de passagem: «Sob a acusação de miguelista», foi atirado para a ilha de Santiago o batalhão de infantaria nº 21, «composto na sua maior parte por açorianos» (designadamente em Cabo Verde, havia muitos deportados políticos). Em 22/4/1835, o «batalhão caipira» (assim o alcunhara o vulgo), sublevando-se, «pôs a saque a vila da Praia». «O chefe da rebelião, sargento José Pedro Lopes» (que se autopromovera a major e que passou a dar ordens à população) e os soldados por ele amotinados levaram para o cemitério um bom número de oficiais e sargentos (só escaparam dois alferes e um sargento) e, aí, os assassinaram. Meses após (dezembro de 1835), houve, mas fracassada, uma sublevação de escravos – em certa medida, no dizer de Sena Barcelos, como repercussão da revolta do «batalhão caipira», cujos autores viam impunes, e, por outro lado, aventa o autor que, na sombra, alguém, poderoso, os incitava (e, de caminho, refira-se que José Capela, in ob. cit., 3ª ed., p. 128, alude, a coberto de Oliveira Martins, a uma «revolta de escravos negros em S. Tomé»).
Francisco de Azevedo Gomes – «Falsificação da História», cit., vol. II, pp. 62-63.
6 Idem, ibidem, vol I, p. 373.
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arrebanhados para a tropa; bastantes houve que, por soldados compadecidos, foram poupados ao holocausto 1
18.2. O doloroso fadário dos soldados
Estudos históricos diversos 2 são esclarecedores sobre o fadário 3 para o qual, ao longo da História, têm sido remetidos os soldados pelos poderes. O transpersonalismo rema no sentido da «coisificação»dos seres humanos. Encaremos, sem rodeios, com toda a objetividade, isto que é crucial na sina dos soldados: quanto a eles, ao longo da História, que expressão e significado tem tido o matar e o morrer? E não se olvide que o fadário de matar e de morrer é indissociável de degradações/depravações da mais diversa ordem que tanto vão inquinando a existência no Planeta.
Viver e respeitar a vida própria e alheia, eis direitos e deveres fundamentais a assumir pelo próprio ser humano. Como caracterizar a atitude de fazer deste tábua rasa e violentá-lo no que tem de mais inerente e sagrado?
Matar emorrer são duas facetas de umamesma realidadeque impregna a História: inúmeras gentes os soldados mataram, inúmeros soldados morreram.
E aqui se insira tão só esta pincelada exemplificativa acerca da tão consabida propensão sanguinária: por ordem do rei português João I foi executada (repise-se: foi iniquamente assassinada) uma multidão de militares adversários presos/rendidos. E não escaparam à morte os encontrados em esconderijos para que se tinham escapulido. E foi aqui, no Mosteiro da Batalha, que, em 16 de Maio de 2021, conforme reporte televisivo, houve cerimonial religioso com bastantes militares, tendo um oficial subalterno altissonamente ordenado «Firme. Sentido. Apresentar armas.» – isto junto ao altar do templo
A História mostra-nos o que foi o quotidiano das gentes, ao sabor dos poderes político e religioso. É oportuno evocar, por exemplo, esta afirmação do Presidente da Assembleia do Conselho da Europa: «Nos últimos dois mil anos, a História da Europa é uma história de guerras religiosas, de limpezas étnicas e holocausto» 4 .
1 Idem, ibidem, vol. II, p. 459.
2 Designadamente «Falsificação da História», cit., passim.
3 «Senhora do Livramento/ Livrai o meu namorado, /Pois não há vida tão triste/ Como a vida de soldado!» (Garcia Resende –romanceiro popular). Em «Falsificação da História», cit., vol. I, p. 373.
4 Pedro Caldeira Rodrigues, in «Público», de 31-1-1994, p. 10
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E essa Europa transbordou sobre o Mundo, subjugou-o.
A coberto do Tratado de Tordesilhas, em 1494 (precedido pela bula «Inter Coetera», de 1493), agigantou-se a singular tragédia da atuação de Portugal e Espanha. Rebuscou-se o sadismo, a tortura, o terror, o vilipêndio dos povos.
Um enorme frenesim de matanças, tendo sido possível, em certas paragens, rondar-se o extermínio.
Há imperiosidade de aduzir algo da História e, quanto ao que nos ocupa, tendo sido equiparáveis as enormidades perpetradas por Espanhóis e Portugueses, neste item nos limitaremos, pois que a matéria será, adiante, devidamente desenvolvida, a umas breves pinceladas quanto a estes últimos.
Era costume dos Portugueses fazer descer soldadesca em chalupas para, a golpes de lança (ou seja, «às zaragunchadas», expressão usada por Fernão Mendes Pinto, em «Peregrinação»), matar nativos que, após desbaratada a sua frota pelos canhões, se atiravam ao mar para, a nado, alcançarem a costa; eram frequentes as situações em que aos soldados era ordenado que cortassem mãos, narizes, etc., a inocentes civis, que apanhavam – isto na mira de cevar o sadismo, de saciar ódios e, importante é referi-lo, de colher proveitos em termos de tolhimento, de persuasão, de dissuasão de resistências ou sublevações por parte desses povos esmagados. Sobre cidades/regiões que resistiam à invasão ou que intentavam libertar-se do jugo imposto impendia supino horror, tal como o que passa a transcrever-se 1 quanto a Diu (cerco de 1546, sendo João de Castro o vicerei): «…osportuguesespilharamDiu,ondecometeramcrueldadeshorríveis massacrando todos os habitantes sem poupar as mulheres grávidas e crianças de peito» 2
Por outro lado, à semelhança do que ocorria com as naus, que, atulhadas com supina cobiça, sobrecarregadas em excesso, naufragavam, em enorme percentagem, era também enorme a percentagem dos soldados que jamais voltavam aos seus familiares, tragados pelos naufrágios, pelas andanças sanguinárias a que impelidos, por enormes agruras anímicas e físicas, por mau passadio, doenças, maus-tratos, castigos 3 .
1 «Civilizadores ou Bárbaros», cit., p. 203.
2 Pouco antes da chacina final, os portugueses decapitaram não poucos militares turcos recém-prisioneiros e lançaram-nos nas águas de um canal próximo da fortaleza, visando empolar a difusão do terror com mais este hórrido cenário.
3 Quanto a estes, eis um simples apontamento exemplificativo respeitante a uma das esferas do universo da tirania em Cabo verde – a dosditos«coronéis»(naobradeAntónioCarreirasefala destesarvoradose prepotentesfulanos,«senhoresdeescravos»,que,segundo palavras de A. Carreira, viviam «à margem da lei e da ordem» e «chegavam a desafiar o poder dos governadores»): «Em 21de Novembro de 1795, mandou João Freire de Andrade açoitar cruelmente um mendigo e dois soldados regulares, levando um destes, João de Pina, 1 228 açoites, com as mãos atadas atrás, com uma fortíssima corda. Fora açoitado por seis homens robustos, a dois e dois, até se cansarem, a ponto do fato do padecente ficar em pó junto das carnes das costas, mandando João Freire que os açoites fossem aplicados sobre os rins ebraços; e outro soldado, irmão daquele, Diogo de Pina, levou mais de 500, e o mendigo Caetano, 300, assistindo a tão inumano castigo João Freire. Os padecentes foram depois mandados embarcar para bordo de uma galera que ia para a Guiné, caminhando João de Pina, jáquase cadáver, não seatrevendo nenhum sacerdote a confessá-lo pelo receio que tinhamde João
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Bem sabia a soldadesca que cabeça que se desviasse, um pouco que fosse, do alinhamento religioso, militar, político, era cabeça decepada. Mas, não obstante isso, o desespero levou, por vezes, os subordinados a um esboço de sublevação. Palidamente se exemplificando, aluda-se à primeira viagem de Vasco da Gama e à de Fernão de Magalhães. Bastou que, na primeira viagem à Índia, a tripulação, após muitos tormentos, apenas pedisse a Vasco da Gama que regressasse a Portugal, para que ele, imediatamente, prendesse alguns homens; a Lisboa só um terço deles viria a chegar com vida 1 Fernão de Magalhães, acolitado por vários Portugueses, que, com ele, se puseram ao «serviço de Espanha», enfrentou ensaios de sublevação, durante essa longa viagem, tão tormentosa para a soldadesca 2. Os homens reclamaram-lhe que os «conduzisse à Europa». Ele castigou, ferozmente, alguns. Depois, «as equipagens de três navios recusaram-se a obedecer-lhe, o que lhe fez recear que o atacassem». Ele manobrou, ardilosamente, as coisas, a seu jeito «e, quando se viu em estado de comandar, mandou enforcar dois marinheiros e abandonar em terra um Padre e um soldado dos mais insubmissos, sem outras provisões senãoum saco debiscoitos ea suaespada.Estecastigo reteve os outros no dever». Num navio (capitaneado por um sobrinho de Magalhães) ocasionalmente desgarrado da frota, junto à costa da América, a tripulação amotinou-se eregressouàEspanha.TinhampartidonafrotadeMagalhães237homens; Cano,oúltimo comandante (Magalhães foi, como se verá, morto na ilha de Mauta num confronto com nativos) do que restava dessa frota, «chegou a Espanha, em 7 de Setembro de 1522, ao porto de S. Lucas, com dezoito homens, no mais triste estado possível. Esta navegação durou três anos e vinte e sete dias» 3
E note-se: era usual, em situação muito apertada de naufrágio, ocorrer a trovejante ordem 4 de (após recorrer-se a célere esquema de «sortes lançadas», mas visando-se apenas a rasa soldadesca) lançar ao mar, para alívio do peso do navio, soldados vivos –isto, éclaro,depois de como coisasaindabem mais despiciendas terem sido alijados,caso a bordo os houvesse, escravos e lascarins. Os soldados eram, repise-se, considerados abaixo de «coisas», até porque escapariam ao alijamento alguns víveres e bebidas, que,
Freire. A este atroz castigo assistiu o povo de Vila da Praia». António Carreira – «Cabo Verde – Formação e Extinção de uma Sociedade Escravocrata (1460 – 1878)», Imprensa Portuguesa, Porto – 1972, p. 365.
1 Francisco de Azevedo Gomes – «Falsificação da História», cit., vol. I, p. 376.
2 Por exemplo, ele, durante a travessia do Pacífico – três meses e meio –, determinou que apenas se distribuísse a cada homem «uma onça de pão por dia e se cozesse o arroz em água marinha».
3 Francisco de Azevedo Gomes – «Falsificação da História», cit., vol. I, pp. 376-377
4 Nesta conluiados nobres, chefes militares e clérigos, sendo-nos documentados patéticos casos de religiosos, com expressão de santinhos,a persuadirsoldadosa entregarema respetiva arma para não incorreremna tentação ouloucura,passemos termos, de a usarem em defesa da própria vida.
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previdentemente, se destinariam aos sobrevivos 1 . Eram, enfim, encarados como produto gratuito edefácil obtenção.E,sob umanuvem deindulgências,deperdões e incitamentos eclesiásticos, lá eram mobilizados os infelizes (quantos deles com apenas dezasseis anos de idade!), em sucessivas, em intermináveis levas após levas – segundo Oliveira Martins eram embarcados cerca e oito mil por ano – para a cruel sina de matar e de morrer, de degradação própria e alheia. Sobre o lançamento de soldados vivos ao mar não fique por ler-se o que de tétrico, agoniante, prenhe de inimagináveis cambiantes de horror, se explana no ponto «Naufrágios» em «Falsificação da História» 2 , no qual muito se transcreve das «Décadas», de Diogo do Couto, e da «História Trágico-Marítima», de Bernardo Gomes e Brito 3 .
Ora para as expedições ultramarinas ora para guerras cá em Portugal, esses infelizes eram arrebanhados como quem manipula objetos/«coisas», sendo pelos poderes impiamente sacados do seio de um povo afogado num chorrilho de enormidades 4. São, ao correr da pena, oportunos estes aportes:
Do que nos transmitem profecias de Bandarra (que acabou preso pela Inquisição em 1541) algo nos é apontado por Vítor Wladimiro Ferreira: era enorme a desgraça da sociedade, em que, além de mais, as naus «esvaziavam as vilas de homens moços e os campos de lavoura de braços. As mulheres estavam soltas, carentes de amor e de proteção» 5, enquanto os magnates «se carregavam de louçanias, orgulhos e vaidades…»
6 . E repare-se, por exemplo, no que nos diz a Enciclopédia Portuguesa e Brasileira ao discorrer sobre o rei João IV:
«Nas cortes reunidas em Dezembro de 1645, votou-se para as despesas da guerra uma contribuição de 2 150 000 cruzados. Nos capítulos apresentados pelos procuradores dos povos transparece a série de calamidades que a guerra significava para as populações. Queixavam-se das tiranias dos capitães-mores e dos oficiais em geral; das levas excessivas de certas localidades, de onde procedia a falta de braços para a lavoura; dos
1 Idem, ibidem, vol. I, p. 378
2 Idem, ibidem, vol. I, pp. 385 a 394.
3 Quanto a esta temática, algo exara Fernando Dacosta no texto «As espantosas tragédias marítimas», publicado no suplemento ao nº 691 de «O Jornal», de 20 a 26 de maio de 1988, pp. 130 a 135.
4 E até «… na Grande Guerra de 1914-18 (…), no norte de Moçambique, morreram mais soldados portugueses do que na Flandres. Não tanto pela razia das balas alemãs. Mais pela fome, pela sede, pela doença e pela incúria… Os cemitérios dos soldados foram profanados ou são lixeiras». Em 1917, o deputado Manuel Brito Camacho fez ante os «seus pares» esta denúncia: «Não é segredo para ninguém que se tem mandado tropas para a África como se não mandam reses para o matadouro». Manuel Carvalho Palma – «I Guerra Mundial – A Grande Guerra que Portugal quis esquecer», no «Público» de 28.7.2014, sendo o assunto complementado também no «Público» de 11.11.2018.
5 Não fique por evocar-se a enorme multidão de mulheres europeias tão carentes e até, quantas delas, mental e moralmente afetadas por terem os varões sido do seu meio arrancados e impelidos para a dita «epopeia»!
6 Vítor Wladimiro Ferreira, no texto intitulado «Bandarra de Trancoso», na revista «Tempo Livre», nº 68 (dezembro/96), p. 44.
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aboletamentos 1; das penas de prisão cominadas aos pais e mães dos desertores 2; da falta de pagamento aos almocreves a quem requisitavam as cavalgaduras». E cite-se também algo dum opúsculo (ver, a propósito, «Falsificação da História», cit., vol. I, pp. 383-384), datado de 1814 3 , que, além de mais, refere a extorsão de juntas de bois a populares e compulsão de homens, apanhados de supetão, para engrossarem as falanges… Domingos Joze Cardozo, o respetivo autor, referindo-se aos lavradores (a «classe mais indigente mas sem dúvida a mais útil ao Estado» e a que «sofreu todo o peso da guerra»), diz: «… tirarão-se-lhes os géneros sem os pagar, forão obrigados a servir e os seus bois o exercito até os perderem, do que taobem ainda não receberam paga, donde rezultou a perda de mais de 20 000 juntas de bois…; enquanto muitos capitalistas, ricas corporaçoens e eclesiásticos, grandes proprietários e comendadores sem soffrerem o mais pequeno incomodo estão gozando os bens que rezultaram da paz, engrossando cada vez mais seus cabedais com novos sacrifícios destes desgraçados o que não aconteceria se lhes fosse tirado o supérfluo para dar aquelles o que de justiça se lhes deve. Sendo a grande desigualdade de riquezas hum grande obstacullo á propriedade nacional quanto mais se augmentar tanto mais desgraçada será. A experiência própria nos vai mostrar a verdade desteprincipio enão só o hão desentir aquelles aquem selhestirouos meios decontinuar a cultura das terras mas o vai sentir o Erário, os donatários e funcionários públicos pela diminuição das rendas que necessariamente vai ter o Estado pois que provindo estas principalmente das produçoens da terra faltando os meios aos cultivadores hão de faltar as rendas o que não aconteceria se os sacrifícios fossem repartidos com mais igualdade» (pp. 27, 28 e 29) 4 O autor assevera o seguinte, caso não haja medidas pertinentes quanto aos mais desprotegidos: «…finalmentetornarãoa empregar-seas violências queaté1812 os povos experimentarão, tirando-se-lhes pela força o que era necessário para a manutenção do Exército de que rezultarão males mais nocivos do que os da Guerra» (p. 2). E apresentando (p. 29) «alguns remédios em geral para os males económicos e em particular para os que nascem da Divida Nacional» (após invasões napoleónicas), ele invetiva o «statu quo» e as medidas adotadas para saldar a tal «Dívida»; assevera, por exemplo, que o imposto da «Décima» (em ordem a saldar aquela) estava a ser lançado de maneira irracional, mui pouco criteriosa, desigual, injusta.
1 Obrigatoriedade de arranjar pernoita a soldados onde não houvesse aquartelamento.
2 Note-se a supina execração.
3 Domingos Joze Cardozo – opúsculo, de 24.12.1814 (do qual tenho fotocópia).
4 Reportando-seà primeirapartedo séc. XIX, os mais anciãosda minhaaldeialembravam-sedeseus predecessores lhes terem narrado que o Estado, através do exército, extorquia, para fins bélicos, juntas de bois a agricultores (e, juntamente, alguém que as conduzisse) e compelia homens, apanhados de supetão, a engrossar as falanges.
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18.3. Legislação do foro militar
Do muito que havia a dizer, sob esta epígrafe, apenas um ou outro apontamento se registe.
Decorreu um século sobre a tão devastadora e mortífera I Grande Guerra, mas mesmo que decorridos milénios, não ficarão indiferentes as consciências sensíveis ante as imagens filmadas 1 de soldados ajoelhados, recebendo, após o fadário de tão frequentemente compelidos a arrostarem incessantes/mortíferas vagas de metralha, o fuzilamento (para cúmulo,sob disparos aque compelidos colegas seus de infortúnio), não raro por imputação de não mui pronta obediência a ordens objetivamente implicadoras de grave risco de perder a vida, num determinado transe do combate (enfim, a rígida obediência militar estipulada nos respetivos ordenamentos jurídicos 2 )
E não fique por recordar-se, de caminho, isto:
A. Marques Pinto (jornalista da ANOP) dá-nos conta 3 das impressões recolhidas junto de alguns velhinhos que haviam participado na I Grande Guerra. A um deles traziao ainda muito emocionado, segundo disse, o fuzilamento de um colega. E narrou que este, antes da guerra, trabalhava numa firma alemã, no Porto. «Os patrões, que eram também alemães, refugiaram-se na terra deles, mas escreveram-lhe uma carta para a frente». E, ante o simples recebimento desta, foi considerado «um traidor, um espião dos alemães» A pena de morte, recorde-se, já há muito não figurava no Direito Penal português
Tal fuzilamento traz-me à memória esta das imensas crueldades perpetradas pelo General Franco: este disse a Millan Astray ter sido em atenção à «disciplina militar» que mandou fuzilar «um pobre legionário cujo único crime era ter recusado o rancho que lhe serviram… 4 ‘Após a execução, a Legião desfilou perante o cadáver, salientou Franco com a satisfação do dever cumprido» (o psiquiatra espanhol Enrique Gonzalez Daro, no
1 A par destas, outras imagens igualmente filmadas, respeitantes aos mais altos interventores no xadrez das operações bélicas, nas habituais (descontraídas) reuniões da «alta-roda social», nos pomposos salões de Paris.
2 A secundar o estipulado nestes, tal rigidez é corroborada designadamente com uma adequação psicológica dos soldados, mediante desempenhos a que, habitualmente, sujeitos, inclusive os chamados «exercícios de ordem unida», nos quais, em formatura, às sucessivas vozes de comando, eles vão obedecendo com prontas execuções gestuais, rebuscando-se a sincronização entre todos, numa aproximação progressiva do automatismo.
3 A. Marques Pinto – apontamento intitulado «Sobreviventes da IGuerra Mundial recordam a fomeea metralha», «Diário do Minho», de 14-4-1980, p. 4
4 Esta abominação aviva-me na memória designadamente o seguinte: o senhor O. L. (filho de pai português e mãe nativa), que tinha andado em campanhas militares numa colónia, disse-me que, tendo sido não só vivamente sentida, mas interpelantemente manifesta a dor e desaprovação dum soldado, ante as violências que ia presenciando, ocorreu, às tantas, que o comandante sobre ele disparou, logo após ter-lhe cinicamente dito: «não queres disparar tu primeiro sobre mim?».
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livro «Biografia Psicológica de Franco», sustenta que este, de «pequena estatura», tinha, por várias razões, «enormes complexos de inferioridade», acontecendo que «por detrás da imagem dura, autoritária e cruel… se escondia um personagem cheio de complexos e frustrações, ou seja, psicologicamente frágil») 1 .
Enfim, há «Direito» comum (em que se exara que «todos os cidadãos são iguais perante alei») e há «Direito»especial do foromilitar; há Tribunais comuns e háTribunais Especiais Militares.
Apense-se o seguinte ao que fica dito: Tendo-se presente o quadro geral do transpersonalismo, não deixemos de acrescentar às considerações feitas, em ponto atrás, sobre o «Direito» a asserção de que o poder judicial não deixa de ser poder político. Já atrás se exarou a expressão de Prélot: «Não há poder que não seja político». E, à luz da História, não se verifica ter sido muito recorrente a atrelagem do poder judicial em relação ao poder governamental?
Algo esclarecedora será a leitura de alguns considerandos sobre «justiça»/«poder judicial», em o «Mundo jaz no Maligno» 2 .
19. A Expansão Europeia inundou o Mundo com o mais extremado transpersonalismo
19.1.
Preâmbulo
Como já referido algures, o poder papal dividiu e manteve dividido o mundo dito «pagão», ou seja, o «Globo», à exceção da Europa, em duas partes: uma era entregue aos Espanhóis e a outra aos Portugueses. Importa descer à concatenação de uns certos passos históricos.
O que, de seguida, passamos a transcrever é dos já referidos volumes manuscritos do século XVIII «Les Indes Portugaises et Hollandaises» 3 , existentes no Arquivo Distrital de Braga:
1 Entrevista de José Alves, em Madrid, sob o título «Caudilho ‘por la Gracia de Dios», na revista «Expresso», de 5-12-1992, pp. 44R e 42-R.
2 Francisco de Azevedo Gomes – «O Mundo Jaz no Maligno», Romance histórico, Braga – 2001, pp. 187 a 190.
3 Estudo aturado, baseado, conforme o diz o próprio autor, em historiadores portugueses, holandeses, árabes, etc., e até, quanto a alguns aspetos, em achegas orais. Quatro espessos volumes manuscritos (ADB, vols. 891 a 894) que eu, tendo obtido
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«Ele 1 era Grão-Mestre da Ordem de Cristo, qualidade que o ajudava mais que a qualqueroutroaempreenderestasdescobertas,soboespeciosopretextodaglóriadeDeus e da propagação do Cristianismo, pretexto de que tanto os Portugueses como as outras nações europeiasseserviramparacometerumainfinidadedeaçõesodiosas edeextorsões inteiramente contrárias ao espírito do Cristianismo… Durante séculos tenebrosos, os Papas tinham-se arrogado o direito de poder distribuir todos os países do mundo aos Príncipes da sua religião. Como ninguém teria ousado contestar esta ridícula pretensão, embora diretamente contrária ao direito da natureza e das gentes, tal como a um dos pontos fundamentais do Cristianismo que não permite tirar a outrem o que lhe pertence, os Espanhóis eos Portugueses, queforam os primeirosconquistadores depaísesafastados, acharam-na demasiado vantajosa para si para que não a apoiassem e se aproveitassem desta pretensão quimérica. Ver-se-á também que, antes que eles chegassem a um país novamente descoberto, entravam na sua posse sem se preocuparem se os mesmos tinham já outros possuidores » E, nos mesmos volumes manuscritos, se regista: «O Papa Martinho V, tendo tido conhecimento destas descobertas, para as encorajar deu, em virtude do seu pretenso poder apostólico, aos reis de Portugal todos os países que eles poderiam descobrir. Vários outros Papas confirmaram esta doação » 2
Em 8/1/1454, a Bula «Romanus Pontifex», assinada pelo Papa Nicolau V (14471455), «proíbe sob gravíssimas penas que outros navegassem para as terras alcançadas pelos Portugueses sem autorização do rei ou do Infante». Fincando-se, pois, nesses direitos, que ninguém teria a coragem de discutir, o rei «João II, por carta régia de 6 de Abrilde1480,ordenavaadestruiçãodenavios estrangeirosem‘marportuguês’:‘…tanto que os tais forem tomados, sem outra ordem nem figura de juízo, possam logo todos (os marinheiros) ser, e sejam, deitados ao mar para que morram logo naturalmente e não sejam trazidos a este reino nem a outras algumas partes, para que a eles seja pena por atentarem equereremfazerumacousatãodefesaevedada,eaosqueouviremesouberem, bom exemplo.» 3
Complemente-se o que acaba de dizer-se com a seguinte transcrição: «Não admira, por isso, que tal como os seus antecessores, Nicolau V enchesse de favores e privilégios a coroa portuguesa na sua luta contra os infiéis. Tal como Eugénio
autorização para os fotocopiar, vim a traduzir e de que muito aduzi para algumas publicações minhas, que não apenas «Falsificação da História» (1998), cit., e «Civilizadores ou Bárbaros» (1975), cit.. Segundo me informou o Dr. Egídio Guimarães, então Diretor da Biblioteca de Braga, foi um embaixador português na Holanda que arranjou maneira de os trazer consigo. Curiosamente, não trouxe o volume inicial (que não versava assunto tão atinente à expansão portuguesa).
1 «Infante D. Henrique».
2 Francisco de Azevedo Gomes – «Falsificação da História», cit., vol. I, pp. 136-137.
3 Idem, ibidem, vol. I, pp. 242-243.
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IV, como refere Zurara, concedera plenária ‘perdoança de todos os pecados dos quais de coração sejam contritos e por boca confessados aos que perecessem nas conquistas contra os índios 1 (…)’, Nicolau V concedeu indulgência plenária na hora da morte aos que, arrependidos dos seus pecados, tendo jejuado todas as sextas-feiras do ano, tenham contribuído ao mesmo tempo com alguma esmola para defesa da cidade de Ceuta que, conquistada aos mouros em 1415, corria o perigo de ser recapturada. Outra Bula 2, de 18 de Junho do mesmo ano, autorizando D. Afonso V a prosseguir na conquista do norte de África, concedeu o mesmo privilégio aos que o acompanharam ou contribuíram, subsidiando a campanha (…)» 3
Aduza-sedeAdrianoMoreira 4 oseguinte: «… e,finalmente,aBuladeAlexandre VI,‘InterCoetera’,de4deMaiode1493,queestabeleceuaprimeiralinhadedemarcação dasesferasdeexpansãoportuguesaeespanhola,seguidada Bula‘Eaquaeprobonopacis’, assinada por Júlio II, em 1506, consagrando a linha de separação definida pelo Tratado de Tordesilhas, de 7 de Junho de 1494, fixada a 370 léguas a ocidente de Cabo Verde »
Recorde-se que, em 1496, em Cortes reunidas em Montemor-o-Novo, foi abordado o empreendimento da expansão ultramarina. A maioria dos presentes opinou contra tal, repisando-se que o mesmo redundava em mais infortúnio para os súbditos –rejeição esta que, segundo Diogo do Couto, iria estar latente, sob a forma de trauma na almaportuguesa,duranteséculos,tendo-aCamões estilizadonomitodoVelhodoRestelo. Fazendo tábua rasa da posição da maioria 5 , o Rei ordenou (claro que a contento dos seus lacaios) a prossecução dessa atuação, alardeando o apreço em que tinha o trilho seguido por «D. Fernando» e pelo «infante D. Anrique» e deu «por razão final àqueles que punham inconvenientes a se a Índia descobrir, que Deus 6, em cujas mãos ele punha este caso, daria os meios que vinham a bem do estado do reino» 7
No dizer de Rodrigues Lapa 8, essa decisão autoritária causou, no país, uma acesa polémica que se prolongou «até fins do século XVI» e que «está representada poeticamente no episódio do Velho do Restelo de ‘Os Lusíadas’ e largamente exposta no ‘Soldado Prático’ de Diogo do Couto» .
1 Isto é, nativos em geral.
2 A «Dum Diversas».
3 Heitor Morais da Silva, S.J., ob. cit., 2ª ed., p. 313.
4 AdrianoMoreira – «PolíticaUltramarina», 4ª ed.,Juntade Investigações doUltramar,EstudosdeCiênciasPolíticas eSociais, Lisboa
– 1961, p. 215.
5 Esta insistia nos muitos sofrimentos que tal acarretaria para o povo, aludia a contendas que daí já tinham advindo e das muitas mais que adviriam.
6 Foi o nome de «Deus» a capa escolhida para acobertar a sádica destruição de povos: o do próprio país e os de outros.
7 Francisco de Azevedo Gomes – «Falsificação da História», cit., vol. I. pp. 11-12.
8 Veja-se considerando de Rodrigues Lapa no prefácio de «O Descobrimento da Índia» («Ásia, Década I, Livro IV»), de João de Barros, 2ª ed., Lisboa – 1943, p. 3.
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A voz da razão, porém, seria, ao longo do tempo, sofreada com a censura, a perseguição e as demais consabidas formas de resignação e despersonalização.
Ao correr da pena, evoque-se o conceito que João de Barros tinha de História: «… A primeira e mais principal parte da História é a verdade dela; e porém em alguas cousas não há de ser tanta que se diga por ela o dito ‘da muita justiça que fica em crueldade’, principalmente nas cousas que tratam da infâmia de alguém, ainda que verdade sejam… Nas cousas dos reis e príncipes se deve falar com toda reverência, por a dignidade real que lhes Deus deu.»
Esta atitude improba faz cair sobre o palaciano João de Barros duras críticas, designadamente as do autor acima referido, Rodrigues Lapa.
No Continente americano, os Espanhóis, do mesmo modo que os Portugueses, afanavam-se, incessantemente, rebuscadamente, no cometimento dos maiores horrores Vozes de denúncia corajosamente se ergueram e persistiram, como se virá a explanar, mormente a do Bispo Frei Bartolomeu de Las Casas 1, mas também a de Frei António Montesinos, a do Bispo de Santa Marta, etc., reiteradamente sendo bradado que aquelas avalanches de monstruosidades eram a mais retinta, a mais iníqua antítese da mensagem de Jesus.
Posto que incómodo o alarido, o poderoso cardeal Cisneros («regente do reino») manda uma missão de frades Jerónimos à América, e diz o Prof. Padre António Silva Rego que, às tantas, «… não se sabe bem como, em 1517, chegaram à triste e incompreensível conclusão de que os índios eram incapazes de liberdade, pois careciam de razão» 2
Pouco após, o teólogo Francisco Vitória procede a uma análise (que publica) do conjunto de princípios que, mais adiante, enunciaremos – princípios a que eram tão atreitos e de que eram denodados prosseguidores o poder religioso e o poder político.
Na Europa, havia uma distância social enorme entre os poderes e os súbditos Quanto a estes, dos mais diversos modos eram, volte a insistir-se, atropelados os direitos mais elementares, enfim, mui gravemente se atentava contra a dignidade da pessoa humana. Com a expansão ultramarina, surgem ora novas ora enormemente ingentes expressões do transpersonalismo, nesse quotidiano de séculos e séculos em que pelos
1 Bartolomeu de Las Casas – «Brevíssima Relação da Destruição das Índias», tradução de Júlio Henriques, Edições Antígona, Lisboa – 1990.
O Bispo Las Casas (ele que, outrora, havia sido esclavagista, do que se arrependeu) denunciou também, veementemente, em suas publicações, a atuação dos Portugueses.
2 Prof. A. Silva Rego – lições policopiadas de «História da Colonização Moderna», Associação Académica do I.S.C.S.P. (Universidade Técnica de Lisboa), 1968, vol. II, p. 19.
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poderes remetida essa imensidão de povos para assaz dantesca situação. O que se reconhecia de valor humano, de direitos inerentes à pessoa humana, nos escravos, nos lascarins, nos «carregadores», nas gentes subjugadas?
Sobre este assunto se discorrerá mais adiante. 19.1.1. A ótica do «à luz da época» e seu pendor determinista
Antes de abordar-se o assunto em epígrafe, diga-se que doutos historiadores têm repisado que o atual conceito de História não é inteiramente coincidente 1 com o de um passado até não muito remoto. Remeto, a propósito, para pertinentes considerações e citações feitas em «Falsificação da História» 2
Repise-se que argumentos límpidos e certeiros 3, ressaltando em vários pontos desta tese, execram o pendor justificativo do «à luz da época» – ótica esta deveras acarinhada pelos poderes. Estes, conforme já dito, assegurarão a continuidade, no essencial, da Humanidade no trilho do passado (a dita «História» como que será um traço contínuo 4 que penetra no futuro), mesmo que para tal haja que recorrer-se quer às mais engenhosas e ludibriantes alterações do «modus operandi» quer a simulações de inversão derumo.Serádeinferirquedaquiaunstantosanosviráaregistar-se,emcertas «ciências» lecionadas nos estabelecimentos de ensino, que nefandas injustiças e iniquidades destes nossos dias vão ser explicadas com o «à luz da época», quando tanta gente, não apenas agora, contra as mesmas vem investindo
Os textos evangélicos 5, por exemplo, em vigor nos sécs. XV e XVI… (em que diferem dos de hoje?) não apontam clara e insistentemente para a antítese dos horrores cometidos? E os titulares dos poderes de então não estavam até, em termos cronológicos, históricos, uns séculos mais próximos do que nós duma primeva vivência cristã em torno de Jesus de Nazaré? Será que o «à luz da época» pode ir ao ponto de empurrar, durante tantos e tantos séculos, para um quotidiano deveras anticristão aqueles que se propunham e aqueles que se propõem ser cristãos? A possibilidade de ser-se autêntico
1 Neste contexto, não fique por evocar a marcante alvorada das Ciências Sociais e Humanas.
2 Ob. cit., vol. I, pp. 5-6.
3 Quanto a isto, além do que nesta tese se exara, muito se expõe (com aduções de vários autores, alguns deles de antanho), designadamente em «Falsificação da História», cit., vol. I., pp. 7 a 11, e, ainda, no prefácio de «Civilizadores ou Bárbaros?», cit.
4 Aquela linha de recorrência/contumácia que assiste, por exemplo, ao horror da beligerância: «Nos últimos dois mil anos, a História da Europa é uma história de guerras religiosas, de limpezas étnicas e holocaustos», conforme expressão, já noutro ponto exarada, da autoria do Presidente da Assembleia do Conselho da Europa.
5 O Cónego José Paulo Abreu, por exemplo, assevera haver «coisas que qualquer vista, de qualquer tempo neotestamentário, deveria enxergar!...». Cónego José Paulo Abreu – «Os Silêncios da Igreja Face aos Oprimidos», cit., na revista «Cenáculo» nº 154, p. 43.
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seguidor da mensagem de Jesus depende da «luz da época»? E mais: quando se tem total liberdade e capacidade para optar-se por seguir a transcendental, a tão harmoniosa mensagem de Jesus, que conclusão tirar se a atitude assumida for redondamente antitética dessa?
Não perdendo de vista o que, em outros pontos desta tese, se exarou sobre «superestruturas», vinque-se: o Estado, um certo «Direito», uma certa «História», uma certa «Filosofia», umas certas «ideologias», certas «místicas»/«éticas» têm sido instrumentos usados para calcar os povos, despersonalizá-los, embotar consciências, admitindo-se, pois, que tem havido graves condicionamentos do comportamento humano… Repise-se: mas sempre houve e haverá quem, fiel à intuição das elementares Verdades, fiel à consciência, não se deixe despersonalizar, massificar, degradar, não deixando mesmo de haver quem, quantas vezes perseguido até à morte, exemplarmente reme contra a maré. As verdades fundamentais são ou não intuitivas»? À luz de quê se pode considerar criminosa uma atuação e submeter a julgamento quem dela for acusado?
Sadicamente matar (matar multidões de inocentes), piratear/roubar, violar, assim como vender/maltratar, com suprema crueldade 1 , uma imensidão de escravos não implica, em qualquer tempo, responsabilidade moral?
No Congresso de Viena de 1815, os delegados ingleses defenderam a abolição imediata da escravatura, mas alguns outros, designadamente portugueses, contra tal extinção cruamente se afirmaram, alegando serem insuportáveis as consequências económicas da mesma 2 … Como admitir que nem esses acirrados debates tenham removido a «luz da época»? E foi à «luz da época» que, após a Conferência de Viena e outras, o tráfico transoceânico de escravos continuou até finais do século XIX, ao arrepio da legislação abolicionista? E foi à «luz da época» que, nas colónias, como adiante se explanará, continuou, no século XX, a feroz opressão, injustiça, crueldade, escravização e que aos esforços de libertação dos nativos se ripostou com a guerra colonial 3 , espalhando-se a destruição física e espiritual? E, para cúmulo do contrassenso, será que
1 Ao acervo de asserções que têm sido exaradas sobre este assunto não fique por adicionar-se este considerável raciocínio dos autores de «História da Inquisição em Portugal» (ambos falecidos no século XIX): «O entusiasmo com que em alguns países vimos abraçar o tribunal da Inquisição é uma dessas vicissitudes inexplicáveis, por isso que mal se pode compreender como a vítima possa abraçar o cutelo e a ovelha o carniceiro… Não se diga que tudo eram efeitos da ignorânciado século, porque a dor fere indistintamente o sábio eoignoranteenopadecertantosentimentopossuiumcomoooutro,eentãosemelhanteprincípioficacaduco.Tambémnãoadmitimos a imbecilidade, filha do terror, porquanto a demasia chama o limite e agora logo o poder toca o seu termo». Ob. cit., p. 72.
2 O que levou a Inglaterra a dar seiscentas mil libras a Portugal e igual montante à Espanha, mas isso em nada diminuiu o contrabando negreiro.
3 «Guerra pela paz», segundo clamavam os poderes.
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virá um dia a explicar-se com a «luz da época»o facto de hoje se comemorar como a mais elevada e honrosa epopeia todo esse historial de horrores da expansão europeia? 1
Haverá mais enorme contradição, mais afrontoso paradoxo do que dizer-se, na atualidade, que as torpezas do passado devem ser vistas (com pendor determinista, condescendente) «àluzdaépoca»,acontecendoqueseprossegue,nopresente,nãoapenas a escamotear, mas até a enaltecer, designadamente na dita «História» (a «oficial»), esse passado como glorioso? Enaltecer os horrores não será até mais preocupante e pernicioso do que cometê-los? O que é, então, essa fatídica, essa eterna «luz da época»?
E acentue-se: quem, com circunspeção, com não menos Sensibilidade do que sageza, observar, escalpelizar o presente, nele descortinará muito do passado.
José Capela 2 dá-nos testemunho sobre algo do que de chocante presenciou, em Moçambique, no início da «década de 50». Em Timor (onde permaneci entre 1965 e 1967), ora presenciei ora tive conhecimento de factos (dói-me recordá-los) que, palpitantemente,repito,palpitantemente,traziamàsnossasconsciênciasotétricohistorial de um passado de séculos versado nesta tese. De caminho, reporto para a leitura, em «Uma ‘deusa’ no Inferno de Timor», das páginas que menciono em rodapé 3 .
Repise-se: daqui a uns anos, haverá, como sempre houve, «tratadistas» (entendase!) que vão «explicar» os horrores, as injustiças, que hoje vivemos (por tantos denunciadas e ativamente esconjuradas), com a «luz da época».
A Sabedoria diz-nos: quem esborda de maus sentimentos não se arrepende dos horrores cometidos. Só se arrepende quem tem bons sentimentos. E, sem arrependimento (quer a nível individual quer coletivo), jamais se trilhará o caminho da Paz, da Felicidade. A propósito, aluda-se a sábias reflexões de Antero de Quental, em «Causa da Decadência dos Povos Peninsulares nos Últimos Três Séculos», onde, além de mais, ele clama: «Como era possível, com as mãos cheias de sangue e os corações cheios de orgulho, iniciar na civilização aqueles povos…?» 4
É premente que as consciências sejam alertadas para o seguinte: em outubro de 2018, foi divulgado por não poucos meios de comunicação social que a Comissão
1 Não está desamparada de argumentos esta afirmação que exarei em «Quase Dois Mil Anos de Falso Cristianismo – Jesus é o Grande Desconhecido da Humanidade» («História»), Braga – 2010, p. 19: É estulto considerar-se que, no atraso, nas trevas, no embrutecimento duma época ou de certas gerações, é que está, sem mais, a rotunda explicação para muitas maldades; é, sim, o exercício da maldade, é, sim, o caminho da perversão que aduz trevas, embrutecimento quer sobre indivíduos quer sobre gerações. E, por outro lado, quem pode refutar a verdade de que houve, há e haverá valores, mais que sabidos, que são desrespeitados, afrontados?
2 José Capela, ob. cit., pp. 9-10.
3 Francisco de Azevedo Gomes – «Uma ‘deusa’ no Inferno de Timor», Romance e História, 1980, pp. 68, 81 a 85, 91, 96 a 100, 129 a 135, 137 a 140, 145-146, 174 a 183…
4 José Capela, ob. cit., 3ª ed., pp. 172-173.
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Europeia contra o Racismo e a Intolerância (ECRI) «confrontou» as autoridades portuguesas «com a necessidade» de mudar-se o ensino da «História» (essa tão consagrada «historiografiaoficial»),nãopodendoignorar-sea «violênciacometidacontra os povos das ex-colónias».
E termine-se este ponto recordando uma práxis dantesca que vigorou até parte final do século XX (século vinte, repise-se), tendo tido início no fim do século XIX: os meios de comunicação social recentemente (não apenas em 2021) trouxeram a lume que, no Canadá (na província Colúmbia Anglicana), à volta de seis mil das crianças pela força retiradas às famílias nativas pereceram (já vários esqueletos, alguns deles de crianças de três anos, foram «encontrados com ajuda de radar de penetração no solo»), vítimas de horrendas e diversificadas violências, pelo que o primeiro-ministro Justin Trudeau publicamente «pede perdão» e sublinha esperar a mesma atitude por parte do Papa Tais crianças, repise-se, eram à força tiradas às famílias nativas – encaradas como subhumanas – e, nesses internatos católicos, encafuadas, sadicamente amarfanhadas por garras ditas «civilizadas», sendo vítimas de inauditas violências, vítimas de iníquos «abusos físicos, psicológicos e sexuais». E havia vozes que há já muito tempo alertavam para o dantesco historial!
19.2. «Mare liberum» e «Mare clausum»
Em «Portugal e a Internacionalização dos Problemas Africanos» 1 , sob a epígrafe «A Tese Portuguesa: Frei Serafim de Freitas», relata-se que o frade acabado de referir, doutor em cânones pela Universidade de Coimbra e lente na Universidade de Valhadolid, «procura rebater o ‘Mare Liberum’ de Grócio», insistindo, quanto ao domínio terrestre, em chavões, tais como: «Título de descobrimento (título ‘inventionis’) como princípio de ocupação…», «concessão pontifícia…», «direito de guerra justa…», e, quanto ao domínio marítimo, repisando em motes, tais como «apropriação pelo primeiro ocupante…», «concessão pontifícia…»/«direito exclusivo», «direito por prescrição imemorial»/«direito consuetudinário»/«usucapião»… Era, enfim, uma das frenéticas tentativas para manter o dito «Mare Clausum» (mar fechado). Era a calculista teoria antitéticaem relação às intuídasVerdades fundamentais, em relaçãoàmensagem deJesus
1 Marcello Caetano – «Portugal e a Internacionalização
Africanos», 4ª ed., Edições Ática, 1971, pp. 45 a 48.
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dos Problemas
de Nazaré, em relação a um historial que vinha de longe (designadamente na Insulíndia e no mar índico) e em relação, ainda, aos fundamentos de um Direito Internacional que ia ganhando corpo, designadamente com contributos preciosos de Grócio e outros.
Hugo Grócio, no seu «Mare Liberum» 1 (mar livre), publicado em 1608, equacionou o direito de livre navegação nos mares.
«Assim, o princípio de que é lícito a todas as Nações percorrerem as rotas que conduzem umas às outras e negociarem entre si é apresentado como regra primária e certíssima, cuja razão é evidente e imutável. ‘O próprio Deus a formulou na Natureza’ (Deus hoc ipse naturam loquitur) »
A validade das doações pontifícias é negada redondamente… «Os Papas não têm poderparadispordaterraedomar’,nãotêmautoridadeparacontrariarasleisdaNatureza e o Direito das Gentes…» 2
Hugo Grócio reafirmava princípios gerais, tais como: «O homem vive naturalmente em sociedade; os povos carecem de conviver e de comerciar. Esta sociabilidade e comércio só podem manter-se pela existência e pelo respeito do direito.» 3
De caminho, do livro «Portugal e o Direito Colonial Internacional» 4 transcrevase o posicionamento de João de Barros 5, exarado no capítulo I do livro VI da I «Década da Ásia», sobre paragens «descobertas/conquistadas» e que pelos Papas haviam sido dadas: «… A qual doação se fundou nas muitas e grandes despesas que neste reino eram feitas, e no sangue e vidas de tanta gente português como neste descobrimento por ferro, per água, doenças e outros mil géneros de trabalhos e perigos pereceram »
Durante o Estado Novo, repisavam os poderes, além do mais, no «direito histórico» sobre as paragens coloniais.
1 Em 1612, a Inquisição espanhola incluiu este livro «no índex dos livros proibidos» (Marcello Caetano, ob. cit. supra, p. 43)
2 Idem, ibidem, p. 41.
3 Ver também «Grócio (Hugo)», em «Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira», cit., vol. XII, pp. 793 a 795.
4 Marcello Caetano – «Portugal e o Direito Colonial Internacional», Lisboa – 1948, p. 32.
5 João de Barros foi alvo de críticas, designadamente por parte do Bispo Frei Bartolomeu de Las Casas (vide Francisco de Azevedo Gomes – «Falsificação da História», cit., vol. I, pp. 20-21).
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19.3. Escravatura – o tráfico transoceânico 1 que a Igreja «legitimou» e no qual também o clero avidamente se envolveu
Até finais do século XIX, permaneceu com rebuscados requintes de iniquidade essa monstruosa torrente de seres humanos odiosa e cruelmente mercadejados como o mais despiciendo «gado».
Conforme se explanará nos vários pontos desta temática, tantos foram os territórios escoados de suas gentes, enormes foram os caudais de seres humanos acorrentados, para sempre desligados dos seus entes queridos, violentados até à morte: estima-se que um total de cerca de cem milhões de «peças» partiram amontoadas nos porões com o pescoço e um braço amarrados pelo «libambo» 2, num ambiente dantesco, acontecendo que só na travessia marítima morria uma enorme percentagem deles, 30 por cento, tantas vezes, pelo péssimo passadio, pela crueza de toda a ordem, pelo «banzo», pelas diversas moléstias, pelo aperto/sufoco (ao correr da pena, aluda-se: num alvará de 1684, refere-se que «morrendo muitos, chegam impiamente lastimosos os que ficam vivos» 3).
Logo no princípio da arrancada pelos mares, o Infante Henrique ordenou que lhe fossem trazidos negros.Em 1436,deutais ordens a Afonso Gonçalves Baldaiae,em 1441, a Antão Gonçalves.
A Parceria de Lagos, formada por alguns «capitalistas», é devidamente autorizada pelo Infante para explorar o negócio esclavagista. O Infante recebia a quinta parte dos lucros. «Na primeira expedição, cativaram-se 235 pessoas, ficando o Infante com 46».
«A distribuição dos escravos fez-se no dia 8 de Agosto de 1444… Não houve respeito por nenhuns laços familiares, sendo os filhos separados dos pais, as mulheres, dos seus maridos. Zurara dedica dois capítulos da sua obra – o XXV e o XXVI – ao assunto. O Infante D. Henrique assistia à cena, montado em cavalo branco» 4
A dado passo do respetivo relato, na «Crónica dos Feitos da Guiné», o cronista palaciano Gomes Eanes de Zurara (faleceu em 1473) exara:
1 Iniciado pelos Portugueses: foram estes os primeiros a enviar escravos para a América.
2 Corrente de ferro que os prendia uns aos outros pelo pescoço (não raro se prendendo também a mão direita). Alguns «libambos» dispunham de argolas bastantes para amarrar cem escravos. As «fêmeas» e os «machos» eram amarrados em «libambos» distintos. António Carreira – «Notas Sobre o Tráfico Português de Escravos», 2ª edição revista, Universidade Nova de Lisboa (Ciências Sociais e Humanas), 1983, p. 87.
3 José Capela – «Escravatura – A Empresa de Saque, o Abolicionismo (1810-1875)». Ed. Afrontamento – Porto, 1974, 3ª ed., p. 165.
4 Prof. A. Silva Rego – lições policopiadas de «História do Ultramar Português», Associação Académica do I.S.C.S.P. (Universidade Técnica de Lisboa), 1968, pp. 169 a 171.
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«… tanto que os tinham posto em hua parte, os filhos que vyam os padres na outra allevantavam-se rijamente e hyam para elles; as madres apertavam os outros filhos nos braços e lançavam-se com elles debruços, recebendo feridas, com pouca piedade de suas carnes por lhe nom serem tirados.»
O cronista, evocando que até os animais («brutas animallias») dão conta do sofrimento dos seus semelhantes, salienta que muitos observadores populares havia que choravam decompaixão epergunta: «Mas qual seriaocoraçonporduroque seerpodesse, que nom fosse pungido de piedoso sentimento, veendo assy aquella campanha…?»
Tal cena era, porém, encantadora para o então capataz do empreendimento, InfanteHenrique 1 ,caracterizadocomocruedependormisógino, enormementeabastado, habitualmente rodeado de numerosa «criadagem» e outros servidores, ganancioso, embevecido com a perspetiva de fortuna fabulosa 2 que lhe adviria de torrentes futuras de escravos e não só. Eis, quanto a ele, passagem recolhida de Zurara («Crónica de Guiné») por José Capela 3: «Não posso contemplar na chegada destes navios, com a novidade daqueles servos ante a face do nosso Príncipe, que não ache alguma deleitação, porque me parece que vejo ante os olhos qual seria a sua folgança; porque quando as cousas são mais desejadas e se mais e maiores trabalhos por elas dispõem, tanto trazem consigo maior deleitação, quando as homem pode cobrar (…) Oh! Santo Príncipe! E porventura seria o teu prazer e a tua folgança, sob alguma semelhança de cobiça, do entender de tamanha soma de riquezas, como tinhas despesas, por chegares a esta fim; e vendo agora o começo do retorno, cobravas ledice, não pela quantidade daqueles, mas pela esperança que tinhas dos outros que podias haver!» 4
Estava-se ainda no princípio das arremetidas ao longo da costa ocidental de África. Quanto a esta fase inicial, os manuscritos «Les Indes Portugaises et Hollandaises» assinalam 5 , além de mais, a tragédia dos escravos do Congo, que, brutalizados e impelidos por constantes bastonadas ao trabalho sem descanso, se «suicidavam», frequentemente.
1 Em «Falsificação da História», poderá atentar-se em aportes de autores acerca da sua personalidade, das suas calculistas, egocêntricas manobras, dos seus enormes proventos e vastíssimas possessões. Ob. cit., vol. II, pp. 6-7.
2 O Infante Henrique tinha uma vastíssima fortuna, poderio, conforme pode verificar-se, por exemplo, nos números 43 e 38 da revista «Tempo Livre», num texto de Rosa Amaral e num texto de José Sarmento de Matos. E note-se: foi por intermédio do Infante que Gomes Eanes de Zurara (homem de opções palacianas) entrou na Ordem de Cristo e foi contemplado com comendas rendosas.
Rosa Amaral – texto «Lembranças do Navegador», em «O Independente», de 25-2-94, pp. 58-59.
José Sarmento de Matos – texto «O Punhal de D. João II», no «Público», de 30-4-96, p. 19.
3 José Capela, ob. cit., 3ª ed., pp. 92-93.
4 Enfim, «grande negócio à vista» (expressão de José Capela).
5 Francisco de Azevedo Gomes – «Civilizadores ou Bárbaros?» («Documentos Históricos»), Braga – 1974, pp. 34 -35. E, no mesmo contexto, lê-se nos ditos manuscritos: «O negócio de escravos, da maneira que se faz no presente, era, então, desconhecido», tendo sido os Portugueses «que iniciaram a introdução de escravos na América».
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Também quanto à escravatura tinha o poder secular que munir-se do aval da omnipotente Igreja Católica: e desta logo vem não só consentimento/legitimação, mas também palavrosos incitamentos, corroborados com farto e insistente derramamento de indulgências e bênçãos, em vários documentos pontifícios, designadamente as bulas «Dum Diversas», «Romanus Pontifex», «Inter Coetera». Nesses «sacros» documentos se dispunha que o rei de Portugal ficava «autorizado a atacar, conquistar e subjugar pagãos e outros infiéis, a capturar seus bens e territórios, a reduzir suas pessoas à escravatura perpétua…» 1
As igrejas/religiões tradicionais ditas «cristãs» praticaram e, em vários documentos oficiais, incentivaram e «legitimaram» a escravatura, esse execrando tráfico transoceânico de seres humanos reputados pelos ditos «cristãos» como as mais abjetas «peças», marcados com ferro em brasa e arrolados com a designação de «machos», «fêmeas» ou «bichas» 2 , «crias» ou «bichos» («de peito» ou «de pé», conforme se tratasse de crianças amamentadas ou não), sendo, ante tão horripilante fadário, fácil compreender que o «banzo» – a infinita, a indescritível angústia – fosse uma das principais causas de morte entre eles.
Da África, segundo se calcula, terão saído, ao todo, para o continente americano cerca de cem milhões de escravos. Chegaram a rondar os cem mil por ano os levados pelos Portugueses para o Brasil.
Os Portugueses, além de se afanarem nas «razias» (cerco de povoações, «assaltos noturnos desurpresa»para «amarrar»escravos),moviamàs tribos frequentes guerras; eis, por exemplo, o que descreve o Padre Baltazar Afonso, em carta de 3/10/1583, sobre guerras em Angola, numa delas sendo tantos os mortos, a ponto de se andar «por cima deles», desvanecendo-se ele no apontamento de que «temos já da nossa parte melhor guerra…», afanando-se os Portugueses em «correrem muito e tomarem os despojos, que são tantos que não há guerra em que não fiquem os nossos ricos, porque tomam muitas peças,bois,carneiros…», nãoseesquecendodemencionartroféus – «deumaoutraguerra trouxeram 619 narizes de cabeças que cortaram» 3 .
O licenciado Domingos de Abreu e Brito, em 1590, parte de Portugal para Angola com a incumbência de verificar se valia a pena conservar essa «conquista» (pois que o reino sentia dificuldade em conservar tanto mundo subjugado lá até aos confins da
1
José Capela, ob. cit., 3ª ed., pp. 93-94.
Na cotação esclavagista, refira-se, as «fêmeas» ou «bichas» de «peito erguido», ou seja, as mais jovens, valiam várias vezes mais que as de «peito caído».
3
José Capela (citando Gastão de Sousa Dias), ob. cit., 3ª ed., pp. 107-108.
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Micronésia); ele, no relatório elaborado, defende a sua manutenção e entre os prós apontados dá relevo à grande densidade demográfica desse território, sendo uma «mina de escravaria» que redundaria em grande lucro 1 . E Angola, tal como outras paragens, sofreu enorme sangria de suas gentes.
Descreve-nos Basil Davidson: «… bispos europeus do Congo que, década após década, se sentaram no seu trono de marfim, no cais de Luanda, estendendo a mão misericordiosa, em batismo coletivo, sobre os escravos que lhes iam passando pela frente, acorrentados uns aos outros, para embarcarem nos navios que os haviam de conduzir ao Brasil» 2 Como acaba de referir-se, o batismo era coletivo, mas cobrava-se por cabeça 3 «Como forma prática de contemporização, os padres acediam em simplificar os atos, passandoafazê-losemcerimóniascoletivas,envolvendodezenasoucentenasdeescravos alinhados nas praias ou a bordo dos navios. Mesmo assim a taxa era cobrada por cabeça e não pelo ato. Há referências, na primeira fase, a 10 réis e, mais tarde, a 100 réis por cabeça…Entre1760 e1765,segundoa contabilidadeda CompanhiaPombalina,por cada batismo de escravo o padre recebia entre 300 e 500 réis por adulto, e 100 réis por cria de pé ou de peito.» 4
Algo se aduza sobre o posicionamento dos Portugueses nas zonas costeiras, em feitorias, fortalezas… Diogo do Couto clamava contra as «grandes desumanidades e injustiças dos fidalgos capitães destas»; e, em 1802, é exarado no Relatório de D. Miguel António de Mello: «Os capitães-mores e geralmente todos os outros sujeitos, que vivem no sertão e nele exercitam cargos públicos, cometem grandes roubos e fazem grandes violências aos povos» 5 E, à laia de parêntese, acrescente-se que Ladislau Batalha refere a naturalidade com que um fidalgo arruinado, movendo influências, era nomeado governador duma colónia, vindo dali riquíssimo.
Ascapturasnaszonascosteiraslevaramosnativos«adistanciar-separaointerior», a debandar, em desespero, para zonas tanto quanto possível resguardadas. Mas os Portugueses, a partir da faixa costeira, maquinam, urdem, com primores ditados por uma insaciável cobiça, toda a sorte de tentáculos, que vão arrebatar os escravos lá mesmo nos
1 Prof. A. Silva Rego – lições policopiadas de «História do Ultramar Português», cit., pp. 380 a 382.
2 Basil Davidson – «Revelando a Velha África», 1959, p. 139.
3 O Padre Fernão Guerreiro verberava, em Cabo Verde, esse «abuso» de se batizarem «300, 400, 700 juntos…». António Carreira –«Cabo Verde – Formação e Extinção de uma Sociedade Escravocrata (1460 – 1878)», 1972, p. 265.
Nesta mesma obra de Carreira (pp. 262-263), se refere que o Padre Manuel de Almeida, «nos primeiros anos de 1600», em Cabo Verde, verbera os senhores querpor deixarem «morrer sem batismo»os «negros gentios»(e, no seu dizer, com o batismo ea catequese «se mandam muitas almas ao Céo quehouveram de perecer se se não usára deste remédio») quer por «levá-los aos monturos», quando eles morriam, para «não gastarem dois vinténs».
4 António Carreira – «Notas sobre o Tráfico Português de Escravos», Universidade Nova de Lisboa (Ciências Humanas e Sociais), 1978, 1ª ed., p. 57.
5 José Capela, ob. cit., 3ª ed., p. 167.
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pontos mais recônditos 1; tentáculos que se conectam com movimentações de agentes e meios, com incursões/guerras, com execrandas manobras e estratagemas; como escopo do mais abjeto calculismo e ardil, compeliam, segundo um círculo vicioso incontornável (de que a História nos inteira), as tribos e reinos a mutuamente se guerrearem e caçarem: «… viram-se implicados nas guerras para obtenção de escravos (a fornecer aos europeus) pois não podiam fugir à alternativa ou de se deixarem escravizar ou de tratar de escravizar os outros – e isto só podia ser feito com armas de fogo (arranjadas pelos europeus 2 ) e estas só podiam ser obtidas com escravos»; e José Capela prossegue: «algumas das mais poderosas nações do interior (de África) que se recusaram, até quanto puderam, vender escravos, viram-se, a determinada altura, obrigadas a travar verdadeiras batalhas para alcançar a costa e assim disporem de armas» 3 .
A propósito dos «lançados» ou «tangosmaus», diz o Padre Manuel Álvares, em 1646: «… são todo o mal, idólatras, perjuros, desobedientes do Céu, homicidas, sensuais, ladrões da fama, do crédito, do nome dos inocentes, da fazenda, traidores, lançando-se nos apertos com os piratas…, gente sem direito nem avesso, sem respeito mais que ao próprio apetite somente do inferno.» 4
«Tangosmaus»/«lançados» ou «pombeiros» eram os Portugueses que, na África, corriam os sertões na faina de arrebanhar escravos 5; eram denominados «bandeirantes» aqueles que (entre os quais membros do clero), com esse mesmo fim e cometendo os mesmos horrores, calcorreavam os sertões brasileiros, em chusmas, designadas «bandeiras»
As «bandeiras» (e as «entradas» 6) afanavam-se nas mais inauditas iniquidades 7: saqueavam, arrebanhavam índios, violavam, espalhavam o terror, a destruição, o sangue. Nas suas longas deslocações, «os doentes em estado mais grave eram, pura e simplesmente, abandonados à floresta». Como palpitantemente o diz o Padre António Ruiz Montoya, os bandeirantes eram inexcedivelmente iníquos, não se despiam da capa
1 Um apontamento elucidativo: «O povo da tribo Pende, que viveu na costa de Angola, no séc. XVI, que emigrou depois para o interior, para junto do rio Kasai, preservou, na tradição oral, a conquista pelos Portugueses da sua terra: ‘Desde esse tempo até aos nossos dias, os brancos não nos trouxeram senão guerras e misérias». José Capela, ob. cit., 3ª ed., p. 73.
2 Aduza-se o seguinte: «Já em1562, emLondres, o ministro português, João Pereira Duarte, protestando contra a intromissão que os ingleses estavam a fazer no negócio da costa da Guiné, se queixava de que os ingleses vendessem na Barbaria aos indígenas armamento e metais para a artilharia e grande quantidade de bíblias protestantes». José Capela, ob. cit., 3ª ed., p. 75.
3 Idem, pp. 75 e 81.
Também «Falsificação da História», cit., vol. II, pp. 8-9.
4 António Carreira – «Cabo Verde – Formação e Extinção de uma Sociedade Escravocrata (1460-1878)», cit., p. 57.
5 Depois trazidos para os navios negreiros de diferentes nacionalidades. Era comprada a escravistas portugueses uma parte muito grande dos escravos levados para a América.
6 Ver conceito em Luiz Luna – «Resistência do Índio à Dominação do Brasil», Editora Fora do Texto (Coimbra), 1ª ed. portuguesa, 1993, p. 37.
7 Idem, p. 45.
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da religiosidade, conciliavam o uso fervoroso do rosário, da confissão, dos sacramentais salvo-condutos em relação designadamente aos que agonizavam com o «oficio de mientras los demás» andar «robando e despojando las iglesias y atando indios, matando e despedazando niños». Em 3-12-1636, por exemplo, foi atacada por bandeirantes a possessão dos jesuítas, em que se encontrava o padre Montoya. Após duros combates, os Índios (que tinham sido levados por esse padre à defesa, com armas de fogo) foram «presos e degolados, ‘com espadas, machetes e alfanges’. Provavam o fio das armas ‘ao rachar as crianças em duas partes, abrir-lhes a cabeça e despedaçar-lhes os membros» 1 .
Ao narrar a práxis cruel dos bandeirantes contra os Índios, no Brasil, António Carreira diz, a dado passo, que, «em 1629, no Rio de Janeiro, um Prelado que tenta oporse à captura de escravos índios é assassinado» 2 . Oliveira Martins diz: «Os morticínios e as atrocidades cometidas não têm conta», não havendo «vislumbre de humanidade» 3
Como já referido, enorme era a percentagem dos escravos que morriam na travessia do oceano, devido à fome, violências de toda a ordem, «banzo», doenças, exaustão causada pelas intermináveis e impiedosas marchas no sertão a caminho do porto de embarque, compressão nos porões, insuficiência do ar que lhes advinha das escotilhas (eis simples pincelada exemplificativa: «… onde muitos morrem d’abafados em seu proprio mao cheiro e d’outros maos tratamentos. E já houve noite em que morreram em um só navio trinta, estando ainda no porto, por não se lhes abrir a escotilha com medo de fugirem, gritando eles debaixo, que lhes abrissem que morrião, sem receberem outra resposta que chamarem-lhes cães e outros nomes semelhantes. E em outro em que hião quinhentos de Cabo Verde para a Nova Hespanha em hua só noite amanhecerão mortos cento e vinte, por os terem abafados com receyo de se levantarem contra os que os levavão» 4). «… Iam algemados, perna direita de um à perna esquerda de outro e mãos, porigual, eo espaço inteiramenteocupado(cadadispunhade160x 40cms),nãopodendo o escravo fazer o mais pequeno movimento sem incomodar o vizinho » Os esclavagistas faziam aturados exercícios de imaginação e cálculo, no sentido de poderem arrumar, nos porões, o maior número de «peças». Quem aí se deslocasse tinha que caminhar sobre os corpos, em tal aperto eles iam… E, agudizando a situação descrita, havia as prateleiras sobrepostas, tão chegadas umas às outras que os escravos nelas arrumados «ficavam
1 Idem, pp. 89-90.
2 António Carreira – «Notas sobre o Tráfico Português de Escravos», cit., 1ª ed., p. 28.
3 Oliveira Martins – «O Brasil e as Colónias Portuguesas», 6ª edição, Lisboa – 1953, pp. 27-28.
4 Edmundo Correia Lopes – «A Escravatura (Subsídios para a sua História)», Agência Geral das Colónias, Lisboa – 1944, pp. 174175.
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impedidos de sentar-se sequer». Era aterrador o cenário dum porão prenhe de escravos: horrores indescritíveis, fedor empapado, aflitiva escassez de ar e luz, crua desnutrição, morte a esmo de vários entre os que agonizavam e os que gritavam de dor, de desespero, de loucura, ocorrendo, com frequência, um escravo «ao acordar, encontrar o seu companheiro de algemas morto».
«Aliás um testemunho presencial alega serem as condições nos barcos negreiros portugueses as piores de todas 1: ‘É lamentável ver como amontoam a esses pobres desgraçados metendo seiscentos e cinquenta e até setecentos escravos em cada barco; os homens de pé nos porões, atados; as mulheres nas entrepontes e as que levam as crianças, na câmara grande; as crianças na câmara do timoneiro que naquele clima quente produz um odor intolerável.» 2
Eram os escravos lançados vivos ao mar, em situações em que isso fosse achado conveniente pelos «senhores»: eliminação dos acometidos por grave moléstia, alijamento de «carga»em caso de ameaça grave de naufrágio (e também soldados portugueses, quais «coisas» vis, eram, em transes de naufrágios, após lançadas «sortes», atirados ao mar, conforme referido no ponto «18.2. O doloroso fadário dos soldados».
Como iam acorrentados nos porões, não lhes restou qualquer hipótese de se salvarem, em ocasiões, não raras, de naufrágio ou outros cataclismos naturais como, por exemplo: «O ciclone que varreu a ilha de Moçambique, em 7/2/1790, só ao esclavagista Joaquim do Rosário Monteiro inutilizou dois navios… com cerca de 360 escravos que estavam nos porões com ferros aos pés e morreram todos »
Tantosmorriamtambémquer naslongasepenosíssimasdeslocaçõespelossertões (não raro, ao longo de tanto tempo, privados de tudo, até de água, que só bebiam «quando venciam as distâncias dos charcos», tendo havido até esclavagistas que, nesse acossado trajeto pelo sertão, mandaram chicotear os acorrentados com o braço decepado a qualquer dos infelizes), quer nos «currais» ou «concentrações» (antes de chegados aos navios), bem como nos «lazaretos» e «armazéns térreos» (nos locais de «descarga» e nos locais de «carregação», onde todos – designadamente, é claro, estropiados, doentes, «cangalhos» e «refugo» – dormiam em «camas de chão») António Carreira 3 assinala
1 Mais que um autor deixa claro que, por exemplo, os Holandeses, relativamente aos Portugueses (estes, segundo Rodrigues Lapa, eram alcunhados pelas outras nações de «cafres da Europa») não tratavam tão mal os escravos (tendo em vista não só o transporte, mas o geral fadário dos mesmos). O escritor Pepetela, por exemplo, é bem claro: «Os Holandeses tratavam os escravos melhor que os Portugueses» – entrevista de Antónioda Conceição Tomás com o referido escritor, no suplemento nº 2852 do «Público», de3-1-1998, pp. 1-2.
2 Depoimento exarado em 1700 e recolhido por José Capela, ob. cit., 3ª ed., pp. 165-166.
3 António Carreira – «O Tráfico Português de Escravos», Junta de Investigações do Ultramar, Estudos de Antropologia Cultural – nº 12, Lisboa – 1979, pp. 46 e 44.
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que, «nos armazéns» (nos locais de «descarga» e nos de «carregação»), a taxa de mortalidade era, não raro, superior à verificada no trajeto oceânico
O já referido «banzo», ao longo da aflitiva existência dos escravos, a tantos ia matando.
«… O negro sofria o que não sofria o cão nem o macaco…», diz Oliveira Martins, e, noutro passo, considera: «Os cegos instintos do lucro apagavam todas as noções de humanidade mais elementar e fazia-se aos negros o que não é lícito fazer a nenhuma espécie de gado.» 1
Não será descabido referir que, no dizer de certos etnólogos, os Macondes (Moçambique), a pretexto de hábitos ancestrais, ardilosamente multiplicaram incisões na cara e outras distorções fisionómicas, na mira de que, causando repugnância aos portugueses, não fossem tão procurados como escravos.
Os membros do clero, em geral, mesmo os mais elevados da hierarquia, «tratavam»,negociavam, abertaeavidamente,emescravoscomoqualquernegreiro,eram «senhores de escravos». E, não raro, os missionários eram pagos pela sua atividade nas colónias com chorudas «concessões» de exportação de escravos. A Companhia de Jesus até «obteve o privilégio da exportação (de África) de umas centenas, em três navios ao ano, isentos de direitos». Frei Bento Domingues transcreve isto que «missionários jesuítas», comerciantes de escravos (em Angola, no século XVI), escreveram: «Não é escândalo nenhum em os padres de Angola pagarem as suas dívidas em escravos, porque, assim como na Europa, o dinheiro corrente é ouro e prata amoedada, e no Brasil o açúcar, assim o são em Angola e reinos vizinhos os escravos» E, por exemplo, o Bispo de S. Tomé,reivindicandoquemaisprodigamentesejasaciadaaavidezdoclero,diz: «Euestou muito desconfiado de se fazer cristandade não lhes dando (aos ‘missionários’) o trato e negócio de mercadorias…» No século XVIII, o bispo de Malaca, em face de tanto escândalo, vai, numa pastoral, sobre os eclesiásticos que se «serviam familiarmente com mulheres livres e cativas», determinando que «ninguém pague ao seu vigário legados e outros emolumentos, que lhes devem, em moças ou ‘bichas cativas».
Em 1798, o Bispo de Pernambuco e Elvas, «tentando apoiar a justiça da escravidão e do próprio comércio de escravos», recorre ao que «disseram os Apóstolos» e às «permissões dos Pontífices» aos «senhores Reis deste Reino de Portugal» e termina o seu rasgo com este escopo: «… Se a lei do vencedor que manda passar à espada os
1 Oliveira Martins, ob. cit., pp. 57, 58, 61.
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vencidos é justa e conforme à lei natural, muito mais o é aquela que lhes manda perdoar a vida ainda que seja à custa de servir por toda a vida, a quem quer que for, seja ou não na sua pátria…» 1
Não raro, aconteceu 2 que, nos portos de embarque, preferindo o suicídio, muitos escravos acharam jeito de se precipitarem no mar (arrastando os demais acorrentados no mesmo «libambo»), «sem esbracejamento de salvação, antes resolvidos a chegarem com o peso das cadeias mais depressa ao fundo, para mais depressa acabarem…» E, por similitude, aduza-se também este dado exemplificativo que José Capela 3 recolhe de Sá daBandeira(esteodescreveem «OTrabalhoRuralAfricanoeaAdministraçãoColonial», Lisboa – 1873) e que respeita a nativos moçambicanos que, a dada altura, são retirados do trabalho escravo a que os portugueses os compeliam em Quelimane e, a fim de serem transportados pelos navios negreiros, os «conduziram com gargalheiras de ferro às fozes dos rios», acontecendo que «200 a 300 destes negros haviam sido metidos em um barracão, para o dito fim, e que eles mesmos… por um ato de desesperação incendiaram o barracão e morreram queimados…».
Entre as muitíssimas causas que agigantavam a tragédia existencial, lá estavam também as enormes carências afetivas, a negação dos mais naturais e elementares anseios…
António Carreira 4 recolhe o seguinte de Geores Kay:
«Privados dos seus costumes religiosos ancestrais e impedidos de abraçar a religião dos seus senhores, os escravos perdiam inevitavelmente o sentido do espiritual e damoral…Eraextremamenteraroefetuar-senasplantaçõesumarealizaçãodecasamento entre escravos… Numa plantação, a população escrava contava cerca de seis vezes mais homens que mulheres. Desproporção ainda acrescida pelo facto de ‘dirigentes’ e dos ‘machos’ mais fortes se arrogarem a posse de meia dúzia de ‘fêmeas» (e, em várias situações,nãoreivindicavamos «senhores»oexclusivoacometimentosobre/contraelas?)
Os escravos, arrebanhados com todo o afã e com recurso a todos os meios, eram, porcapatazesprazenteirosnousodechicote,conduzidosacaminhodoportodeembarque, metidos no «libambo», pernoitando, como já se disse, em «concentrações» ou «currais», esmagados por enorme desespero.
1 António Carreira – «Notas sobre o Tráfico Português de Escravos», cit., 2ª ed., p. 31.
2 Até que os esclavagistas acabaram por tomar medidas de precaução.
3 José Capela, ob. cit., 3ª ed., p. 159.
4 António Carreira – «As CompanhiasPombalinasdeNavegação, ComércioeTráfico deEscravos entrea Costa Africana eo Nordeste Brasileiro», Imprensa Portuguesa, Porto – 1969, p. 92.
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Uma vez nos locais de embarque, eram coletivamente batizados, tendo-se já referido que, por exemplo, no Congo, o Bispo oficiante cobrava um cruzado «per capita».
Com as mãos atadas atrás das costas, eram marcados com ferro em brasa (marca de propriedade, em que, frequentemente, implícita a cruz).
No final da viagem, a somar aos mortos, tantos eram «cangalhos», tantos eram «refugo», tantos eram os estropiados. Sérios autores sobre escravatura referem-se, sem busca de efeitos literários, a uma limpeza final dos porões – antros de horror onde havia restos de seres humanos.
Lançados no mercado, vendidos, jamais viam os seus entes queridos, nos fadários, sob chicote, nas mais diversas paragens. Sempre que transacionados, lá se lhes impunha, com ferro em brasa, a marca de propriedade/sinete do respetivo «senhor».
O conjunto dos metidos em cada navio negreiro era designado por «carga», enfim, uma «carga» com um número determinado de «peças», sendo esta também uma designação genérica para o conjunto de «machos», «fêmeas» (ou «bichas»)
E consideravam os ditos «cristãos» que «Deus» abençoava este chorrilho de perversidades. E mais: segundo blasonavam, do esclavagismo poderia ascender-se, com gestos de excelsa generosidade, a atitudes com que altamente se cultuava e glorificava a «deus», como, porexemplo, estacontidanacartarégiade30/5/1718: «autorizouoresgate de duzentos índios para com o produto da venda auxiliar-se a construção de uma nova catedral no Maranhão» 1. E, não raro, por exemplo, na correspondência entre capitães de navios negreiros e armadores, se evoca, com frequência, o nome de «Deus»… até para abençoaremultiplicarosrendimentosdos «negócios»(«…oslucrosqueDeusforservido dar a esta negociação»; «… e que Deus queira juntar-bos sedo com boa fortuna») e, às vezes, lá se depara com o intento expresso de dar uma porção de dinheiro para «obras pias» 2 .
Num gesto de calculismo magico-religioso, que, simultânea e pretensiosamente, servia de anestésico para a consciência e de propulsor até à porta do «céu», o rei Pedro II, «em 1690 mandava rezar 2 000 missas pelas almas dos escravos mortos nas travessias marítimas…» 3
Neste enquadramento, acrescente-se: não apenas se «legitimava» a escravização dos índios e as ditas guerras que contra eles moviam os opressores (as ditas «guerras
1 Luiz Luna, ob. cit., p. 150.
2 António Carreira – «O Tráfico Português de Escravos», cit., pp. 91 e 113.
3 Edmundo Correia Lopes, ob. cit., p. 177.
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justas»), mas igualmente se «abençoava» toda essa atuação iníqua, que implicava o arrebanhamento dos mesmos em «aldeamentos idealizados e executados pelos jesuítas» («verdadeiros campos de concentração, onde os índios viviam policiados e perseguidos, aprendendo o catecismo e, como escravos, trabalhando em proveito da sociedade firmada entre Clero e Nobreza»).
Nesta tese, no ponto «19.13. Fazer Cristandade», se discorrerá sobre o historial da Companhia de Jesus, no Brasil, ou seja, sobre as suas teses e a sua azáfama no tocante à escravização, «coisificação» dos povos subjugados, designadamente os índios – em relação aos quais ela apregoava, abençoava e perpetrava as mais anticristãs, as mais execrandas atitudes, badaladas, porém, como alto «Serviço a Nosso Senhor».
«Era assim a colonização portuguesa. Mem de Sá assaltava, roubava, incendiava, obrigava pelo pavor da sua fama os índios a entregar-lhe os seus pertences, espalhava terror e pânico por todos os quadrantes e os padres da Companhia de Jesus aplaudiam, dando graças a Deus pelas monstruosidades praticadas contra aqueles que estavam confiados à sua assistência espiritual, guardiões que eram da salvação da sua alma. Era uma estranha catequese, toda ela à base de sangue e de saque. Da sociedade com Mem de Sá saíram, realmente, ‘úberes’ frutos 1 para a Companhia de Jesus » 2
De passagem, refira-se que, em certos livros do Antigo Testamento, se chega à execração de atribuir a Deus, como se segue, instruções, quanto a escravos, como sendo dadas, em «discurso direto», por Ele a «profetas»: tratamento desumano e bestial, admissão de castigos que, inclusive, podiam redundar em morte (desde que esta não ocorresse antes de decorridos três dias após o espancamento), expressa assunção de que os escravos eram «propriedade»ou «dinheiro»dos «senhores», circunstanciada admissão até da venda de filhos/filhas pelos pais, deliberação sobre o «valor estimativo» de pessoas em moedas da época, etc.3
Os Espanhóis, narra o Bispo Bartolomeu de Las Casas, exigiam dos Índios, sob ameaçadas maiores crueldades, que,com celeridade,lhesapresentassemum determinado número de nativos como escravos, «dando-lhes eles os filhos e as filhas, pois outros escravos não tinham» 4 ou, como se diz noutro passo, conforme a exigência dos algozes, «quem tinha dois filhos dava um e os que tinham três davam dois», não deixando Las
1 Ou seja, uma enormíssima fortuna.
2 Luiz Luna, ob. cit., p. 117.
3 Atente-se designadamente em: «Êxodo» (cap. 21, vers. 1 a 12 e 20 a 22); «Levítico» (1ª parte do cap. 27 e a partir dos vers. 44 do cap. 25), etc.
4 «Os índios comumente não têm escravos», como o refere o Bispo Bartolomeu de Las Casas.
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Casas de, a propósito, referir 1 que isto ocorria «com grandes alaridos e pranto do povo, pois parece que são as gentes que mais querem a seus filhos». Aponta Las Casas o caso duma Índia que, transida, com um bebé ao colo, clamava que não lhe levassem o marido, afirmando-o como garante do sustento de três filhos, que, com a sua falta, pereceriam de fome; o comandante tirou-lhe o bebé dos braços e «deu com a criança numas pedras e a matou» 2 .
«Crianças ainda de mama e de dois, três, quatro e cinco anos …» integravam o caudal de escravos. E, no caudal de «carregadores», havia, também acorrentadas, «mulheres paridas» e «não podendo elas levar as crianças de tenra idade, por via do trabalho e da fome, pelos caminhos as lançavam, onde muitíssimas pereceram» 3 .
Referindo que a escravatura foi pior que a «peste negra», que se considera ter tirado a vida a mais que um terço da população europeia, Basil Davidson diz: «Porque a Peste Negra apareceu e desapareceu num punhado de anos, enquanto o tráfego de escravos durou mais de quatro séculos. Contribuiu para a degenerescência do pensar e do agir, tanto de africanos como de europeus, ao criar atitudes enraizadas de desprezo pela vida humana que duraram gerações.» 4
19.3.1. Castigos aplicados a escravos
Em vários itens desta tese, se deixa bem claro como pelos Poderes era oprimido o povo europeu, como eram vilipendiados os soldados quer cá no país quer nas paragens do Mundo para as quais foram arrastados, como era imensamente trágico o fadário dos povos esmagados – e não há que, a partir destas evocações, imaginar a horrorosa situação dos escravos, pois uma imensa documentação no-la atesta.
António Carreira, num dos seus estudos sobre escravatura 5, após abordada a temática sobre instrumentos de «captura e contenção» (a corrente, a gonilha ou golilha 6 ,
1 Bartolomeu de Las Casas – «Brevíssima Relação da Destruição das Índias», cit., pp. 68-69.
2 Idem, ibidem, p. 152.
3 Idem, ibidem, p. 92.
Diz Bartolomeu de Las Casas (p. 68), ao descrever a enorme mortandade pela fome: «… e veio a suceder que uma mulher matou o filho para comê-lo, tal era a sua fome».
4 Basil Davidson, ob. cit., pp. 136-137.
5 António Carreira – «Notas sobre o Tráfico Português de escravos», cit., 1ª ed., pp. 58 e 85 a 89.
6 Algo avulsamente se diga sobre golilha («colar de ferro»): «Ficou conhecido, no Brasil, um tipo de colar de ferro do qual se destacavam três hastes subindo acima da cabeça, terminando cada haste por três pontas retorcidas, trazendo uma delas pequeno chocalho. Este aparelho destinava-se, em especial, aos escravos fujões e tinha duas finalidades: uma, denunciar o seu portador pelo bimbalhar do chocalho; outra, dificultar-lhe os movimentos no interior dos matos – os ganchos prendendo-se aos galhos e cipós se porventura para ali tornasse a fugir.»
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a gargalheira, o tronco, o «viramundo», as algemas, o mocho, o cepo e a peia), os de suplício (a máscara, o anjinho, o bacalhau e a palmatória) e os de aviltamento (o libambo, o ferro-para-marcar e as placas de ferro com inscrições aviltantes), versa, complementarmente, sobre os «castigos corporais» 1 – capítulo este para que remeto quem visar melhor esclarecimento do que o propiciado pelos dados aqui exarados.
Boxer 2 , versando sobre os castigos e asseverando que frequentemente se revestiam de «perversidade sádica», diz: «pois por pouco de nada chegam os senhores de engenho a lançar vivos nas fornalhas os seus escravos e a tirar-lhes por vários modos, bárbaros e inumanos, a vida (…) O castigo que se der ao escravo – esta era a sanção preconizada num Regimento do Feitor-Mor do engenho – não há de ser com pau nem atirar-lhe com tijolos, e quando o merecer, o mandará botar sobre um carro 3 e dar-se-lhe há com um açoite seu castigo, e depois de bem açoitado, o mandará picar com navalha ou faca que corte bem e dar-lhe-á com sal, sumo de limão e urina, e o meterá alguns dias na corrente, e sendo fêmea, será açoitada à guisa de bayona dentro em uma casa e com o mesmo açoite» 4 .
E, face a disposição legal (no Brasil) já de meados do século dezoito, quantos escravos (tanto «negros» como «índios»), apanhados depois de evadidos, incorreram, além de mais, na fereza de os «marcarem com ferro em brasa, ou com uma lanceta e abrirem-lhes com tirania o nome do suposto senhor no peito, e como muitas vezes as letras são grandes, é preciso escreverem-se duas regras, cujo tormento sofrem os miseráveis índios sem remédio humano» 5
«Em 1786, o Bispo Caetano Brandão dizia: ‘Tenho visto escravos aleijados dos pés, outros com as costas e lugares inferiores em retalhos, efeito de castigos, que custa a compreender que haja na humanidade monstros de crueza, que tal cheguem a praticar » 6
Eis um pouco do muito que nos transmite José Luciano Faria 7 : «Chicotear um homem até perder a vida não era um facto inusitado; certos escravos eram enterrados vivos; as mulheres grávidas eram obrigadas a trabalhar tão duramente que muitas vezes abortavam. Alguns dos castigos mais comuns eram simplesmente brutais… e não poucos
1 Diz António Carreira, a dado passo, que «torturas não ficavam a dever nada à Inquisição» («Notas sobre o Tráfico Português de Escravos», cit., 1ª ed., p. 69).
2 Sobre a variedade e a brutalidade de castigos aplicados a escravos, recomenda-se que se compulse para além de, nomeadamente, António Carreira, C. R. Boxer, Luís António de Oliveira Mendes, Luiz Luna, o ensaio «Castigos de Escravos», de Arthur Ramos, e o livro «Da palmatória ao Patíbulo (Castigos de escravos no Brasil)», de José Alípio Goulart.
3 Apense-se o reparo de que, no Minho, conforme o constatei na minha adolescência, um suíno a matar era estendido sobre um carro de bois e a este amarrado, antes de penetrado com faca.
4 António Carreira – «Notas Sobre o Tráfico Português de Escravos», cit., 1ª ed., p. 68.
5 Idem, ibidem, p. 66
6 Idem, ibidem, p. 67.
7 José Luciano Faria – «Presença Negra na América Latina», p. 59.
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1
eram sádicos, pois os amos presenciavam-nos deleitando-se com a dor que causavam. A certo escravo do norte cravaram-lhe as mãos a uma parede e, depois de permanecer todo o dia sob os raios abrasadores do sol, cortaram-lhe as orelhas e obrigaram-no a comê-las. Uma plantadora fez cortar a língua a todos os seus escravos e outra mulher fez morrer de fome a sua criada…»
Em 1574, o Dr. Alonso de Cárceres, homem «importante» na cidade de S. Domingos, escrevia: «Porque há muitos que tratam com grande crueldade os seus escravos, asfixiando-os com grande crueldade, untando-os com diferentes qualidades de resinas, assando-os em seguida, ou fazem outras crueldades de que morrem, pelo que os seus escravos andam tão castigados e amedrontados que se suicidam, atirando-se ao mar, ou fogem ou revoltam-se. E ao dizerem que mataram o seu escravo não se procede contra eles » 1
E não era episódio raro um «encomendero» (senhor de grande exploração concessionada) ordenar que comparecessem perante si os «encomendados» e ali mandasse decapitar «trinta ou quarenta», na presença dos demais, vociferando: «O mesmo tenho de vos fazer se me não servirdes muito bem ou se vos fordes sem minha licença» 2
Em «Sentenças da Inquisição de Coimbra…», cit., regista-se o caso do escravo António Pedraça, em Aldeia da Ponte, usualmente «sovado e açoutado», a quem o dono «já lhe pusera tições na boca e o obrigara certa vez a engolir uma panela cheia de excrementos…» 3
Enfim, supino o desprezo e imenso o rol dos tormentos: «o sumiço» nos «sumidouros»; o assar o ventre com brasas; corte de orelhas ou calcanhar de Aquiles; pimenta nos olhos; açoites e mais açoites; o lançamento em monturos, após falecimento; a negação de tratamentos clínicos (quer por parte de «senhores» quer por parte de «physicos»), e assim por diante, sendo fácil entender que tantos escravos se suicidassem.
Idem, p. 77.
2
Bispo Bartolomeu de Las Casas, ob. cit., p 143.
3
Elvira Azevedo Mea, ob. cit., p. LXXVI.
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19.3.2. Resistência ao abolicionismo
Sobreo assunto em epígrafe, para alémdoquesucintamenteaqui se explana, bem mais se expõe designadamente no ponto sobre «Abolicionismo e contrabando» de «Falsificação da História» 1 .
Quando a escravatura passou a ser progressivamente combatida e ilegalizada, mais ela aumentou e recrudesceu: um ainda mais frenético impulso, à medida que se tornavam incómodos os ventos antiescravistas, ficou a dever-se ao aumento da taxa de lucro por causa do «risco» e, por outro lado, a uma maior pressa em fazer fortuna.
Sejam assinalados, desde já, os seguintes marcos históricos: no Congresso de Viena, em 1815, estipula-se a «abolição gradual da escravatura»; no Ato Geral, de 26/2/1885, em que culminou a Conferência de Berlim (iniciada em 15/11/1884), vinculase a «repressão da escravatura»; no Ato Geral de 2/7/1890, em que culminou a Conferência de Bruxelas, repisa-se no «prosseguimento da repressão da escravatura».
Como já referido algures, no Congresso de Viena, os delegados ingleses defenderam a abolição imediatado tráficodeescravos, masdesignadamente os delegados portugueses contra esta veementemente se afirmaram, alegando serem insuportáveis as consequências económicas da mesma.
Portugal, contrariamente à história que muitos quiseram fazer passar, foi um dos países que mais resistiram à extinção do tráfico. Portugal recebeu (e a Espanha igualmente)da Inglaterra seiscentasmil libras, sob ocompromisso depôrcobroaoodioso tráfico, mas nada cumpriu.
O Decreto de Sá da Bandeira, de 1836, pura e simplesmente não se cumpriu e o mesmo ocorreu com outros diplomas congéneres, tendo a escravatura continuado pelos tempos fora, como fartamente documentado, por exemplo, no capítulo «Oposição e Contrabando» do já citado livro de José Capela.
Em finais do séc. XIX, a escravatura persistia ainda com todos os requintes de malvadez.
Foi preponderante opapel da Inglaterranaabolição daescravatura; e, naaplicação das respetivas medidas de foro internacional, os Ingleses procederam, designadamente, à implantação de tribunais/«comissões mistas» na costa africana e à cuidada efetuação de
1 Francisco de Azevedo Gomes, ob. cit., vol. II, pp. 89 e segs.
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2
vigilância e abordagens com navios patrulheiros. Como simples exemplo desta preocupação inglesa, refira-se que, por protocolo assinado em Londres, em 1/8/1850, Portugal permitiu que os navios de guerra ingleses, estacionados no Cabo, pudessem inspecionar toda a costa de Moçambique, procurando «barcos negreiros».
Muitos atropelos, neste domínio, foram cometidos por portugueses, designadamente por «autoridades» relevantes, vários casos tendo vindo a cair nos tribunais implantados pelos Ingleses.
Em 1913, FreiredeAndradeescrevia: «… Angola conserva aindaalguns vestígios deste terrível flagelo»; e o mesmo «acrescentava não ter ainda Portugal negado haver em Angola restos de escravatura. Havia pouco, o governador Manuel Coelho expulsara de Angola onze portugueses suspeitos de prática do tráfico de escravos» 1 .
José Maria Gaspar 2, depois de referir-se à escravatura e legislação abolicionista, diz, no tocante às colónias portuguesas, que, «em 1899, foi introduzido o trabalho obrigatório, ao lado do trabalho livre» e acrescenta que este dualismo existiu até 1962, ano em que é publicado o «Código do Trabalho Rural no Ultramar» (feito à pressa, após o início da guerrilha) 3 .
A encerrar este ponto, eis tirada (anatematizadora da essência da mensagem de Jesus de Nazaré) proferida em 1835 por Anna Steenkamp, protestante que residia na África do Sul: «O que nos irrita não é tanto a libertação dos nossos escravos, mas, sim, vê-los colocados ao mesmo nível que os cristãos, o que é contrário à lei divina e à diferença natural de origem e de fé, de maneira que uma tal mudança é intolerável para todo o cristão honesto. Eis porque nós preferimos partir, a fim de conservar a pureza da nossa fé e da nossa doutrina.» 4 19.3.3. Os «cules» (escravos chineses, no séc. XIX)
Paralelamente ao contrabando negreiro praticado, com a estreita conivência de autoridades, pelos portugueses, note-se que estes passaram a fazer, a partir dos meados
1 José Capela, ob. cit., p. 285.
Prof. José Maria Gaspar – «Problemática do Trabalho em África», Lisboa – 1965, p. 15
3 Em 1965-1967, eu vi mesmo, em Timor, Timorenses amarrados entre si pelo pescoço, alguns deles idosos, assim impelidos, a título de «castigo», a trabalho nas picadas (ver, por exemplo, p. 82 de «Uma ‘deusa’ no Inferno de Timor», cit.)
4 Paul Coquerel – «L’Afrique Du Sud – L’ Histoire Séparée», Gallimard, 1992, p. 31.
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do século dezanove e até 1873, o tráfico de chineses, os «cules», através de Macau (segundo um autor, só num período de dez anos, partiram para a América à volta de duzentos e cinquenta mil). Ludibriavam esses infelizes, que procuravam trabalho, prometiam-lhes, sob a capa duma correta emigração, a sua realização no continente americano. Só quando metidos nos porões é que eles reparavam que eram escravos, sem qualquer possibilidade de reagir, ali sob a mira dos canhões e a apertada vigilância de militares. Sujeitos a horrores similares aos dos escravos africanos, também a taxa de mortalidade na travessia era muito elevada. Não mais voltavam aos seus.
Bastante se disserta em «Falsificação da História» 1 sobre esta temática, sendo, além de tudo o mais, feitas referências a protestos de Eça de Queirós, cônsul em Havana, junto do Governo Português, bem como a umas interferências da China e do Japão.
19.3.4. Considerandos indispensáveis
Doutos aportes de historiadores e antropólogos foram recolhidos num texto (para que remeto quem queira conhecer-lhe o conteúdo) de «Falsificação da História» 2 , no âmbito dum sério, dum circunspecto cotejo entre a tradicional escravidão (designadamente a que se exercia em África 3 ) e o tráfico transoceânico de escravos a partir da expansão europeia. E tão mais pertinente é o referido cotejo quanto é por demais sabido haver, quanto à temática em causa, designadamente a nível duma contumaz pseudociência, escabrosas mentiras, ocultações, deturpações.
Exemplificando-se, aqui, apenas com o comportamento dos Macondes (Moçambique), fique o reparo de que nele bastante se revê do respetivo «statu quo» a nível de África: o Prof. Doutor Jorge Dias 4 diz, a dado passo: «Em algumas sociedades, como entre os Macondes de Moçambique, os escravos… ficavam a pertencer ao grupo que os tinha capturado, mas sem ocuparem um ‘status’ diferente do dos seus senhores. Eles tiravam disso simplesmente um motivo de orgulho e engrandeciam sua aldeia com mais um homem» 5 Quanto ao assunto em apreço, José Capela (ob. cit., p. 68) aduz de
1 Francisco de Azevedo Gomes, ob. cit., vol. II, pp. 74 e segs.
2 Idem, ibidem, vol. II, pp. 102 a 113.
3 Em alguns estudos sobre o tema, depara-se com a designação «escravidão doméstica».
4 Autor de «Os Macondes de Moçambique», Lisboa – !964.
5 Prof. Doutor Jorge Dias – lições policopiadas de «Instituições Nativas» («Antropologia Cultural»), cit., p. 131.
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«Os Macondes de Moçambique» (de Jorge Dias) que «o escravo é inteiramente assimilado pelo grupo», não tendo a escravidão «carácter infamante»
A avidez dos Portugueses, nos primeiros passos dos ditos «descobrimentos», recaiu, principalmente, sobre os escravos. Naqueles primórdios da arrancada pelos mares, os Portugueses acharam conveniente começar por engendrar com o rei do Congo um viperino «acordo». O rei Manuel I enviou Simão da Silva, em 1513, ao dito rei, encarregando-o de expor-lhe a «conveniência de deixar sair escravos do seu reino», mas, note-se a cavilação, «tal sugestão, todavia, devia ser apresentada ao soberano conguês como ideia de Simão da Silva e não como oriunda de el-rei», realçando-se, desde já, que o próprio Prof. Padre Silva Rego não pôde deixar de dizer que o rei do Congo não escondia antipatia pelo comércio de escravos e respetivos comerciantes 1 .
As simulações, as manobras iludentes dos Portugueses até levaram o rei conguês a admitir que vantagens mútuas poderiam advir do contacto entre os dois povos, mas logo viu o logro em que caíra; acerbamente verberou o dito «acordo», queixou-se, veementemente, da tirania dos Portugueses, da escravatura que faziam, queixou-se, enfim, daquelas vagas de perversos, designadamente membros do clero que, além das suas vilezas, prepotências, eram esclavagistas como os demais, comprando escravas bastantes para o seu escandaloso deboche. Ocorrera até, note-se, o seguinte: uns parentes do rei congolês, que embarcaram na mira de, conforme perfidamente garantido pelos maiorais portugueses, virem fazer aprendizagem em Portugal/Europa, foram reduzidos à escravidão – alguns foram deixados em Pernambuco e, quanto aos outros, conforme dolentementesequeixavaodito rei em mais uma das suas cartas (de1539) dirigida a João III, não havia notícia. Lastimava ele ainda, nas suas missivas, a degradação moral que, por força da atuação perversa dos intrusos, se ia desenvolvendo, como fermento, entre várias pessoas do seu reino 2 .
De caminho, refira-se que, «em 1614, os Chineses fizeram gravar em pedra, à entrada do Senado (em Macau), um édito a proibir», entre outras coisas, «a compra de escravos chineses» 3 .
Já foi transcrita atrás esta afirmação do Bispo Las Casas: «Os índios comumente não têm escravos»
Prof. Padre António Silva Rego – lições policopiadas de «História do Ultramar Português», cit., pp. 172 e 182.
2
José Capela, ob. cit., 3ª ed., pp. 102 a 104.
3
Prof. Padre A. Silva Rego – lições policopiadas de «História do Ultramar Português», cit., p. 455.
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19.4. Inquisição nos domínios coloniais
19.4.1. A Inquisição de Goa
Raul Rego, face ao hórrido historial da Inquisição de Goa (nesta região da Índia, se introduziu, como ele assinala, a «lei do crê como eu ou morres»), sublinha que ela «encheu as prisões e alimentou as fogueiras como nenhuma outra…» 1 , sendo as respetivas torpezas «sem par até nas restantes Inquisições do Reino», não se tendo ele quedado, pois, em referir que nela, como nas demais, era enorme o rebuscamento do que há de mais vil e cruel.
Ainda antes de aí implantado o Tribunal do Santo Ofício, foi «afogado» e depois «queimado», em auto-de-fé de 1543, o médico cristão-novo Jerónimo Dias. O Bispo armou-lhe uma cilada: fez abeirar-se dele quem o fizesse escorregar para certos ditos, tendo-o condenado.
Recorrendo à fonte («Monumenta Historica Societatis Iesu – Monumenta Xaveriana») também por mim manuseada, Raul Rego (note-se que dos passos da publicação deste, para aqui aduzidos, mencionarei, no texto, a respetiva página entre parênteses) alude às insistentes diligências de Francisco Xavier no sentido da introdução, sem demora, da Inquisição em Goa. Em carta por ele enviada, em 16 de maio de 1546, a João III, lê-se 2 :
«A segunda nesecydade que a Yndia tem pera serem bons christãos os que n’ela vivem hé que mande V. A. a samta Ynquizisão; porque há muitos que vivem a ley mozaica e seita mourisca, sem nenhum temor de Deos nem verguonha do mundo: e porque ysto(s) são muitos e espalhados por todas as fortalezas, hé neceçaria a samta Ynquizição e muitos pregadores» 3 .
1 Raul Rego – «O Último Regimento e o Regimento da Economia da Inquisição de Goa». Leitura e prefácio de Raul Rego. Série Documental. Biblioteca Nacional, Lisboa – 1983, p. 9.
2 P. Alexandro Valignano, S. J. – «Monumenta Historica Societatis Iesu»/«Monumenta Xaveriana» (cartas de «Sancti Francisci Xaverii»), 1899/1990, tomo I, pp. 421-422
3 Reparei que,emcartasdirigidasao rei, Francisco Xavier seassina«Servo inutil de Vossa Alteza».O mesmo fazia comoutras figuras destacadas. A João III diz ele, a dado passo: «E por derradeiro a experiemcia me tem ensynado que V. A. nam he poderoso na Imdia pera acrecentar a fé de Christo, e hé poderoso pera levar e posuir todas as riquezas temporais da Ímdia» –
G. Schurhammer, S. J, e I. Wicki, S. J. – «Monumenta Historica Societatis Iesu»/«Epistolae S. Francisci Xaverii» (15491552), Romae – 1996, tomo II, p. 61.
Ao rei João III, que, como se sabe, puxou a Inquisição para Portugal, glorifica-o Francisco Xavier (em carta de 20/1/1548) nestes termos: «… porque hé V. A. o principal e verdadeiro protector de toda a Companhia de Jesu asi em amor como em obras» – P. Alexandro Valignano, S. J., ob. cit., 1899/1900, tomo I, p. 450.
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«Antes de partir para a Índia, S. Francisco Xavier ocupara-se com Simão Rodrigues 1 das coisas da Inquisição, a pedido do inquisidor-geral, D. Henrique», diz Raul Rego 2, referindo este passo (constante de carta enviada, em 8/10/1540, a Inácio de Loiola e Petro Codacio por Simão Rodrigues, «suo et Xaverie nomine» – «em seu nome e de Xavier») que eu passo a transcrever nos exatos termos com que deparei na fonte «Monumenta Historica Societatis Iesu» 3: «… y um dia de los pasados vesti una dozena dellos con sanbenitos, y dos quemaran 4, con los quales nos mandó el Infante Imquisidor mayor que fuéssemos, y fuymos asta la morte» 5 .
«A História da Inquisição de Goa é uma série de misérias morais e ambições, de competências e ciumeiras entre o poder civil e o poder religioso, dos inquisidores a queixarem-se do vice-rei 6, do arcebispo, e deste e daquele contra os inquisidores. Há os casos mais diversos e a corrupção é frequente…» 7; e, logo a seguir, diz Raul Rego (ob. cit., p. 14) : «No século XVIII, as grandes figuras de inquisidores que avultam em Goa são a do padre António de Amaral Coutinho e a de Manuel Marques de Azevedo». O primeiro instava com o Rei, no sentido de proibir as línguas nativas, «porque, como não falam senão a língua da terra, vêm os botos e servidores e grous dos pagodes às ditas aldeias ocultamente e com os homens e mulheres deles (sic) dogmas da sua seita e os persuadem a ela…»(dejeitoque,diziaeleaorei, demuitasaldeias «os gançares seacham todos, uns presos e outros apresentados, e da mesma sorte suas mulheres e filhos…»)
Como ex-libris da Inquisição de Goa, emergiam, incomensuráveis, o jactante/arrogante poder, a crueza, uma descarada, desinibida vida de escândalos, quer a nível deconcubinatos queraníveldesórdidas locupletações enegociatas (e, nãobastando as inúmeras extorsões dos bens aos condenados, houve até quem tivesse «lojas públicas de fazendas para negócio» dentro do edifício inquisitorial).
Quanto a um desses tão sinistros inquisidores (padre Bartolomeu da Fonseca, antes deputado da Inquisição de Coimbra, que partiu para Goa, em 1571, «como
1 Traiçoeiro que denunciou (decorriam já muitos anos sobre a matéria de acusação) à Inquisição Damião de Góis, que com ele partilhara o quarto, em Pádua, enquanto estudantes. Damião de Góis acabou por ser assassinado (ante o seu esqueleto, verificou-se grave fratura de crânio), no cárcere da Inquisição.
2 Raul Rego, ob. cit., p. 10.
3 P. Alexandro Valignano, S. J., ob. cit., 1899/1900, tomo I, p. 227.
4 Entenda-se: e a dois queimaram (na «fogueira»)
5 De passagem, eis breve passo de uma transcrição aduzida por Francisco Rodrigues, ao discorrer sobre a «pastoral» dos Jesuítas nas prisões inquisitoriais portuguesas: «Tamanha a multidão e variedade de judeus, moiros, hereges, feiticeiros, que arrependidos de uma vida pecaminosa sofrem nas prisões a pena dos seus pecados». Francisco Rodrigues, S. J. – «História da Companhia de Jesus na Assistência de Portugal», Porto – 1931, tomo I, p. 688.
6 Pedro de Azevedo – «Explorações archivisticas – A inquisição de Gôa contra o Vice-Rei Mello de Castro», na «Revista de História» (da Sociedade Portuguesa de Estudos Históricos), 1913, 2º vol., pp. 175 a 179.
7 Sobre a corrupção, em geral, na «Índia Portuguesa», leia-se, por exemplo, George Davison Winius – «A Lenda Negra da Índia Portuguesa» («Um excelente Ensaio sobre Corrupção na Índia Portuguesa nos Séculos XVI e XVII»), trad. de Ana Barradas, Ed. Antígona, 1994
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inquisidor, cargo em que serviu sozinho»), diz Raul Rego (ob. cit., p. 13) que fez cárceres novos e «só num despacho final julgou trinta mata-Deus (expressão bem característica sua) aliados a pessoas ilustres e da governança», orgulhando-se do seu «zelo», a ponto de dizer, a dada altura: «Fiz três autos-de-fé para desempachar os cárceres». Em Portugal, viria a ser promovido ao Conselho Geral, após atuação na Inquisição de Lisboa e até na de Coimbra. «Deixou numerosos bens e morreu depois de 1620, ano em que faz o seu terceiro testamento »
E importa registar o seguinte: a tarraxa inquisitorial de Goa desabava sobre incautos europeus que, viajando por paragens da Índia, passavam em territórios aí subjugados pelos Portugueses 1. Um deles foi Pyrard de Laval (mais sensato tendo sido um companheiro holandês, protestante, tendo dito que «nunca iria entregar-se à mercê dos Portugueses»), autor de «Discours des Voyages des Français aux Indes Orientales», livro publicado em Paris, em 1611 2 .
«É de Pyrard de Laval a primeira descrição pública da Inquisição de Goa e ele a primeira vítima que dá testemunho contra os efeitos da Inquisição nas terras da Índia. O seu depoimento é realista: ‘Há pessoas que às vezes estão dois ou três anos presas sem saber porquê, e não são visitadas senão pelos oficiais do Tribunal; e nolugar em que estão nunca veem a mais ninguém… Ser-me-ia impossível dizer qual o número de pessoas que esta Inquisição faz morrer ordinariamente em Goa…»
«Sobre a prisão de Cochim, onde esteve, diz ele: ‘A prisão é o lugar mais sujo, imundo e infeto que se pode imaginar, porque os presos satisfazem aí todas as suas necessidades, uns em presença dos outros, em vasos que se despejam cada tarde; o que produz tal infeção e um ar tão fétido e sufocante que falta quase totalmente a respiração. E, além disso, à noite fecha-se a grade com o alçapão de cima, de sorte que o calor do país, junto ao daquele lugar, onde está encerrada tanta gente junta, gera um ar crasso e sufocante, ao qual é impossível resistir por muito tempo sem cair enfermo » «Depois do livro de Pyrard de Laval, outro volume aparece em Leida, em 1687, e é reeditado dezenas de vezes, não só em Francês, mas noutras línguas. Ele nos mostra a Inquisição por dentro e alimentará a campanha contra o Santo Ofício em todo o século XVIII. É a ‘Histoire de L’Inquisition de Goa’, do médico francês Charles Delon. Exercia a medicina em Damão, sendo preso em 24 de Agosto de 1673, e saiu no auto-de-fé de 12 de Janeiro de 1676, em Goa, condenado a cinco anos de galés, com proibição de voltar à
1 Raul
2
ob. cit., pp. 15-16.
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Rego,
«O livro de Pyrard de Laval teve várias reimpressões no século XVIII».
Índia. Vem cumprir a pena a Lisboa, e a bordo, sem grilhetas exerceu a profissão, com proveitodetripulantesepassageiros.Em Lisboa,édenovoalgemadoefoiparaodepósito de galerianos, até que o seu conterrâneo Dr. António Fabre, médico da rainha D. Maria Francisca Isabel de Saboia, intercedeu por ele, o afiançou em 400 escudos, e ele pôde seguir para França… As gravuras que acompanham algumas edições do livro de Dellon multiplicaram-se também e saíram novos livros, bem como os relatos dele e de outros condenados pelas Inquisições de Itália e da Espanha».
Os processos da Inquisição de Goa desapareceram 1 . «Mas o Dr. António Baião, baseando-se no reportório que, em 1622, o promotor e deputado da Inquisição de Goa João Delgado Figueira enviou ao inquisidor-geral e no Inventário de todos os processos completos ou incompletos, denúncias, apresentações, reportórios, cadernos, regimentos, livros e mais papéis de que o dito Secreto Cartório Arquivo se compunha, elaborado depois da extinção, em 26 de Outubro de 1774, na presença dos inquisidores Manuel António Ribeiro e José António Ribeiro da Mota, chega à conclusão de que, entre 1561 e 1774, houve na Inquisição de Goa nada menos de 16.172 processos» 2 .
19.4.2. Tentativa de implantação da Inquisição no Japão 3
«Em 1542, ou mais provavelmente em 1543, chegaram ao Japão os primeiros portugueses, conduzidos por pilotos chineses, sendo aí recebidos favoravelmente…» 4 Progressivamente, o Japão foi receando o pior dum contexto tornado cada vez mais complexo, na sequência da chegada daqueles a que designaram «bárbaros do sul» 5, os quais, afeitos a esmagar os povos com que iam deparando, vendo-se, aqui, perante um país já então relativamente poderoso, seguiram, quer a nível civil/militar quer a nível religioso, uma estratégia e tática diferentes, tentando disfarçar o seu espírito e as suas ambições.
1 E há menção de «quatro volumes do Índex de Livros Proibidos», na Inquisição de Goa, mas que desapareceram – Raul Rego, ob. cit., p. 19.
2 Idem, p. 16.
3 António Baião publicou umtexto sob o título «A Inquisição Portuguesano Japão»(conformereferência feita em Boletim, demeados do século vinte, da Academia Portuguesa de História). Debalde procurei esse texto em Bibliotecas Públicas, bem como junto de pesquisadores enfarinhados nesta temática. Persisti e acabei por chegar à fala com António Magalhães Baião, filho do ilustre autor. Agiu tão simpaticamente para comigo que logo procurou o que eu desejava e, em breve, enviava-me fotocópia do referido texto, com uma carta singularmente cortês, em que lamentava não ter sido anotada a fonte donde, há anos, aquele fora recortado. Enviou-me fotocópia de mais dois apontamentos de António Baião, em alguma medida afins.
4 Reader’s Digest, SA, Publicações Alfa – «Dicionário Enciclopédico da História de Portugal», 1990, vol. I, p. 352.
5 Aborda-se este assunto em «Falsificação da História», cit , vol II, p. 440 e segs.
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Posto isto, passe a transcrever-se, a partir de dado passo, o que António Baião 1 escreveu sob o título «A Inquisição Portuguesa no Japão»:
«… Mas a Inquisição de Goa, reputada, pelos seus rigores, a pior das Inquisições do orbe católico, estendia a sua área jurisdicional do Cabo da Boa Esperança até ao Extremo Oriente, realizava as suas ‘visitações’, como quem dissesse inspeções, por onde podia e assim tentou imiscuir-se na cristandade do Japão, de que são reflexo os seguintes documentos copiados ‘ipsis verbis’ da Biblioteca da Ajuda, 49-V-8, fl. 136: ‘Provisão do Senhor Bispo, Inquisidor Geral, para o Bispo do Japão ser Comissário do santo Ofício e, em sua ausência, o Padre, Reitor do Colégio.
O Bispo, D. Fernão Martins Mascarenhas, Inquisidor Geral em estes reinos e senhorios de Portugal, do Conselho de Estado de S. Mde, etc.
Fazemos saber aos que esta nossa provisão virem que, pela muita confiança que temos das letras e mais partes de D. Diogo Valente, Bispo do Japão, residente ora na cidade de Macao no reino da China, crendo dele que fará com todo o segredo, verdade e consideração tudo o que de nossa parte fôr cometido e encomendado, havemos por bem de o criar, instituir e fazer, como de feito, pela presente, ‘auctoritate apostolica’, o creamos, instituímos e fazemos a ele, e em sua ausência ao Reitor, que ora é, e pelo tempo em diante for, do Colégio da Companhia da dita cidade de Macáo, comissário do Santo Ofício da Inquisição, para que cada um deles sirva o dito cargo na dita cidade e onde mais fôr necessário e pertencer ao Santo Ofício da Inquisição e em o que, pelos inquisidores da cidade de Goa lhe fôr cometido e encomendado, conforme ao estilo e regimento do Santo Ofício. Notificamo-lo, assim, aos Inquisidores da cidade de Goa e partes da Índia, e bem assim a todas as mais justiças, assim eclesiásticas, como seculares e mais pessoas, para que lhes deixem servir o dito cargo e lhe não impidam o exercício dele e receberão primeiro juramento em forma, por que prometerão fazer tudo com o segredo, verdade e inteireza que se requer, do que se fará termo, que eles assinarão.
Dada em Lisboa sob nosos sinal e selo do Santo Ofício. Simão Lopes o subscrevi, em os 11 de Fevereiro de 1626 – O Bispo Inquisidor Geral’.
Até aqui, o Paço dos Estaus, agora o Paço do Sabaio:
1 Porque se prendem com a Inquisição a nível colonial, sejam referidos estoutros textos de Baião, cuja leitura se recomenda: «A Inquisição no Brasil – Extrato d’alguns livros de Denúncias», na «Revista de História» (da Sociedade Portuguesa de Estudos Históricos),1913,2º vol.,pp.188 a196,bemcomo «TentativadeestabelecimentodumaInquisiçãoprivativanoBrasil», na«Brotéria» («Revista Contemporânea de Cultura»), Lisboa – 1936, vol. XXII, pp. 477 a 482.
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‘Os Inquisidores apostólicos contra a herética pravidade e apostasia nesta cidade de Goa e mais partes do Estado da Índia, etc., pela mesma cometemos nossas vezes no Japão, ao muito Reverendo Padre, André Palmerio, visitador das provincias da Companhia de Jesus do Japão e China e deputado deste Santo Ofício, para que, estando no dito Japão, possa punir e castigar no fôro interior, como lhe parecer, sentenciar e absolver, no mesmo fôro aos japoens da terra por culpas que cometerem ou tiverem cometido contra a nossa fé e, não estando no dito Japão, tendo informação de pessoas particulares da sobredita calidade, poderá cometer, nos casos de que fôr informado, o mesmo poder a qualquer religioso que lhe parecer, havendo respeito á distancia do logar e á dificuldade que tem para poderem vir a este Santo Oficio.
E, sendo caso que, estando na China, venha alguma pessoa das sobreditas, a ela poderá exercitar o mesmo poder, como que estivera no Japão.
Dado em Gôa, sob nossos sinaes e sêlo do Santo Ofício, aos vinte e oito de Abril. Matheus Gomes Ferreira, secretário, a fez de 1626 anos. Francisco Borges de Sousa –João Delgado Figueira’.
À primeira vista parece haver conflito entre Goa e Lisboa, escolhendo, ao mesmo tempo, pessoas diferentes para a mesma função. Mas não houve perigo, pois, apesar da sua boa vontade, nem os Estaus nem o Sabaio chegaram a meter o bedelho no Império do Sol Nascente».
19.5. Morticínios – a enorme tragédia
Comece por dizer-se que, ante a factualidade referida em epígrafe, a coragem de denúncia por parte de homens – como, por exemplo, Gaspar Correia, Diogo do Couto, o Bispo Bartolomeu de Las Casas e vários outros – sobre eles fez recair ódios Gaspar Correia foi assassinado em Malaca «por ordem de Estêvão da Gama». Bartolomeu de Las Casas, por duas vezes, foi acusado de «alta traição e lesamajestade», tendo, por causa disso, comparecido em Espanha, a fim de depor em processos contra si instaurados; note-se que a primeira edição, em língua portuguesa, da «Brevíssima Relação da Destruição das Índias» (que, além de mais, se viu interdita pelo Santo Ofício de Saragoça, em 1660) só ocorreu em 1944, no Brasil. Os livros de Las Casas foram (e ainda são…) por consabidas falanges exorcizados, sendo vomitados os mais insolentes apodos e infâmia sobre o autor, que, não raro, foi vítima de denúncias,
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intrigas, obstruções, sabotagem, tentativas de suborno, etc. (na acabada de referir onda adversa, como o menciona Hans Enzensberger, lá estão também os «historiadores oficiais» – lacaios dos Poderes, da laia, por exemplo, do português João de Barros) 1 . Sobre Diogo do Couto (que se casou em Goa e aí viveu até morrer, em 1616), eis o quedizJoel Serrão: «Incansável trabalhador,apublicação das suas obras foi contrariada por uma sucessão de intrigas, desastres, perdas, roubos e furtos, que levaram o Prof. Rodrigues Lapa a escrever que ‘o singular destino dos livros de Diogo do Couto é das coisas mais extraordinárias da literatura portuguesa» 2. E o mesmo se diz na «Verbo –Enciclopédia Luso-Brasileira de Cultura» 3: «Pelo desassombro da narrativa e porque nela feria interesses das velhas famílias da Índia portuguesa, Diogo do Couto sofreu dissabores: a Década IV, por ato criminoso, ardeu na tipografia; as Décadas VII, VIII e IX foram roubadas, tendo o autor que refazer os manuscritos das duas primeiras; a XI perdeu-se por completo; e a XII ficou inacabada. No entanto, as Décadas conhecidas são título de sobejo para avaliar da seriedade do seu labor e do mérito historiográfico da obra.»
Na «Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira», lê-se: «Os incêndios, demoras e roubos não seriam coisas inesperadas para Couto, que, notando o facto de terem sido suprimidos por ordem régia os livros 9 e 10 da História de Castanheda, declarou que se tal acontecesse a um volume seu, logo outro apareceria a substituí-lo» 4; e assinala-se, além de mais, que as Décadas VIII e IX «foram-lhe roubadas de casa quando se achava doente» e que a XI «... levou sumiço depois de expedida» Refere-se, na mesma Enciclopédia 5 , que da «Década XII restam apenas 5 livros, que foram editados em 1645, em Paris, por Manuel Fernandes de Vila Real» – capitão e cônsul geral de Portugal em Paris, homem de reconhecido saber, autor de alguns livros (o qual veio a ser atirado para a fogueira do santo Ofício, em 1-12-1652, acontecendo que, no mesmo auto-de-fé, ocorrido em Lisboa, no Terreiro do Paço, houve mais quatro pessoas relaxadas em carne, duas em estátua e cinquenta e quatro condenadas a outras penas).
Para melhor esclarecimento sobre o que acaba de ser exposto, poderá ler-se um vasto texto exarado em «Falsificação da História» 6, onde se tecem designadamente
1 Hans Magnus Enzensberger – autor do prefácio intitulado «Las Casas ou uma Retrospetiva no Futuro» inserto na publicação «Brevíssima Relação da Destruição das Índias», cit., trad. de Júlio Henriques, Edições Antígona – 1990, pp. 8 a 30.
Sobre Las casas foi, designadamente, atirada a alegação de que um sermão seu originara a deserção de um batalhão (ob. cit., p. 28).
2 Joel Serrão (e outros), ob. cit., vol. I, p. 740.
3 «Couto (Diogo)», na «Verbo – Enciclopédia Luso-Brasileira de Cultura, cit., vol. 6, p. 235.
4 «Décadas», na «Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira», cit., vol. 8 (de 1998), p. 435.
5 «Couto (Diogo)», na «Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira», cit., vol. 7 (de 1998), p. 959.
6 Francisco de Azevedo Gomes, ob. cit., vol. I., pp. 412 a 415.
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interessantes considerações sobre «Soldado Prático» (de Diogo do Couto), a «Arte de Furtar» e, ainda, sobre razões de ordem psicossociológica e outras que induziriam no facto de sobre os Portugueses, sitos além-mar, não saltar tanto a fereza do Santo Ofício como no Reino 1 .
Há, sobre o assunto referido em epígrafe, acervos de documentos e de publicações – estudos sérios e úberes de informação. É, quanto a isto, denso e palpitantemente esclarecedor o que se narra ao longo de todo o livro «Civilizadores ou Bárbaros?» 2 e em vários pontos dos dois volumes de «Falsificação da História» 3 .
Muito precioso será para a Humanidade que cada vez mais mentes/consciências tenham noçãodo quesepassou (noção, enfim, doqueeraaquelequotidiano), interpretem, tirem conclusões.
Desde já se assinale que a História nos fala, à saciedade, de reiteradas atitudes (por parte, por exemplo, de Príncipes da Índia), em que gestos significativos acresciam a francas palavras, no sentido de demoverem os Portugueses de tão brutal comportamento e de os trazer a um relacionamento pacífico, não raro se enunciando consequentes resultados positivos dele advenientes, designadamente progresso.
Nesta tese se fará constar, quanto à factualidade em causa, aquilo que será o «quanto baste», em termos de profundidade, extensão, compreensão.
O Samorim pede, instantemente, a Vasco da Gama 4 que liberte os cinquenta Calecutianos que ele, para incutir terror àquele e respetivo reino, acabara de mandar abarbatar, de surpresa, enquanto pescavam em suas almadias, mas ele mandou enforcálos a todos e, após isso, cortar-lhes pernas e braços, metendo-se todos esses retalhos num barco que ordenou se puxasse até terra, junto do qual se «colocou uma carta dirigida ao Samorim, pela qual Gama declarava guerra a ferro e sangue».
Depois de começar por dizer que a Índia não pode «comemorar ao mesmo tempo 50 anos de liberdade e 500 de escravidão», Paulo Moura 5, ante o muito que vinha crepitando, sobre esta temática, na imprensa indiana, recolhe, além do mais, esta afirmação de Suresh Amonkar, presidente estadual do Barathia Janata Party, no diário «The Navhind Times»: «Onde quer que Vasco da Gama tenha ido, deixou um rasto de
1 Por exemplo, o renomado «physico»Garcia deOrta,«filho dumhebreu», no propósito, segundo sepensa,dearredar-seda Inquisição do Reino (sua família fora «justiçada pelo Santo Ofício, tal uma das suas irmãs, que morreu na fogueira»), também decidiu viver em Goa até ao seu falecimento (em 1568), acontecendo que, vários anos após este, ou seja, em 1580, a tarraxa inquisitorial cai-lhe sobre os restos mortais, «manda exumar os seus ossos e queima-os publicamente, lançando ao rio Mandovi as suas cinzas» (ob. cit., vol. I, p. 414).
2 Francisco de Azevedo Gomes – «Civilizadores ou Bárbaros?», cit., passim.
3 Francisco de Azevedo Gomes – «Falsificação da História», cit., designadamente no vol. I, cap. I, ponto 1 – pp. 28 a 135.
4 Francisco de Azevedo Gomes, ob. cit., vol. I, pp. 28-29.
5 Paulo Moura – «Gama era um conhecido pirata…», no «Público» de 17-8-1997, p. 14.
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1
sangue e cinzas. Era um conhecido pirata. Há provas históricas de que este marinheiro era um carniceiro para as pessoas, da forma mais bárbara. Levou, à força, pessoas do Malabári para Portugal (…) Prendeu pescadores e esquartejou-os (…) O propósito das celebrações é honrar os crimes de Vasco da Gama e dos governantes portugueses que se lhe seguiram…»
Ao discorrer sobre a biografia de Vasco da Gama publicada 1 pelo historiador indiano Sanjay Subrahmanyam, Paulo Moura 2 assinala: «Na biografia escrita por Subrahmanyam, profusamente documentada, embora de leitura sôfrega, Gama é cruel, ganancioso, desconfiado, paranoico e feio». E, um pouco adiante, anota, depois de alusão ao seu réprobo comportamento «durante todo o caminho marítimo para a Índia»: «Assassinou, roubou, destruiu com bombardeamentos toda a parte pobre de Calicute, prendeu dezenas de pescadores e enforcou-os nos mastros dos navios, depois partiu os corpos aos bocados, que meteu em cestos que lançou no mar na maré vasa, de forma a que viessem a ser recolhidos na praia pelos amigos e familiares, mandou chicotear mulheres na praça pública, traiu e abandonou companheiros de viagem…» 3
Um tanto antes das violências acabadas de apontar, ou seja, «quando Gama estava perto da costa das Índias, encontrou um grande navio de guerra bem equipado, pertencenteaosultãodoEgipto,vindodeCalecute,ecarregadodeumagrandequantidade de pimenta, gengibre, canela e outras mercadorias e dum grande número de peregrinos que iam a Meca. Os Árabes e Egípcios bateram-se, corajosamente, até ao dia seguinte, porque interessava ir-lhes à abordagem, uma vez que Gama não o queria afundar com os canhões sem o ter pilhado antes». Os ocupantes foram «passados ao fio da espada…» e, «depois de o haverem pilhado, incendiaram-no» 4 . Júlio Carrapato, quanto a esta ocorrência aduz que ela «teve lugar no dia 1 de Outubro de 1502» e que nela foram sacados «12 000 ducados em dinheiro e mais de 10 000 de fazenda»
As crueldades até aqui apontadas respeitam à segunda viagem de Vasco da Gama às Índias, com uma grande frota bem apetrechada de canhões, sendo de notar que, na primeira viagem, com objetivos calculistamente prospetivos, chegaram a Portugal apenas
2 No
«O outro
da Gama»,
no «Público», de 8-7-97, p. 6.
3 Pertinentemente, evoque-se a reportagem de Luís Miguel Queirós intitulada
4 Francisco de Azevedo Gomes – «Falsificação da História», cit., vol. I., p. 29.
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Subrahmanyam (Sanjay) – «The career and legend of Vasco da Gama», public. na Inglaterra pela Cambridge University Press, 1997
rescaldo da referida publicação de Sanjay Subrahmanyam, poderá atentar-se no que, por exemplo, Paulo Moura explana no texto
Vasco
publicado
«Congresso ‘Vasco da Gama e a Índia’ encerra hoje em Paris – Subrahmanyam critica historiadores portugueses», publicada no «Público» de 13-5-1998, p. 30.
55 homens («a maior parte deles em muito mau estado»), além, é claro, de vinte e quatro indianos que Gama agarrara para «serem testemunho do seu descobrimento».
O rei Manuel o «agraciou com uma boa renda, com o tratamento de Dom, com o cargo de almirante das Índias, e, mais tarde, o título de conde de Vidigueira…».
É bem patente a «frieza sanguinária, impassível e cruel», palavras de Oliveira Martins 1 , neste tropel de horrores perpetrados na referida segunda viagem de Gama à Índia, aos quais JúlioCarrapato 2 ,naesteiradeGasparCorreia, alude: «… posteriormente, mais de 800 mouros, capturados entre os mercadores do porto pelos batéis lusitanos, foram amontoados numa barcaça, a que se ateara fogo, com os pés atados e os dentes partidosàpaulada,paraquecomelesnãosedesenvencilhassemdascordasqueospeavam, porquanto as mãos, além de orelhas e narizes, lhes haviam previamente sido decepados. Noutro barco, em cima de um monte de arroz, seguia outro nativo vestido de frade, também completamente mutilado. Os membros decepados dos seus companheiros de infortúnio iam a seu lado e à volta do pescoço levava um letreiro, em que se sugeria ao Samudri-rajá que, com os órgãos cortados, fizesse caril…» 3 .
Na mesma toada, insiste Basil Davidson 4: «Treinados nas amargas rivalidades da Europa, caíram sobre estas civilizações tolerantes e pacíficas do Oceano Índico com uma ferocidade e violência que não tinham comparação com nada mais que por ali se tivesse visto havia já muitos séculos. ‘As crueldades’, escreve Whiteway, ‘não se confinavam à marinhagem rude, mas eram praticadas, deliberadamente, como parte da política de terror, por Vasco da Gama, Almeida e Albuquerque, para falar só dos mais altos exemplos. Gama torturou pescadores indefesos; Almeida mandou arrancar os olhos a um Nair, que viera a bordo sob promessa de que a sua vida não corria risco…; Albuquerque cortou os narizes das mulheres e as mãos dos homens que caíram em seu poder na costa arábica »
Albuquerque insistia imenso na sádica brincadeira das amputações referidas 5 (tendo-o feito até a soldados portugueses 6, como ocorreu, por exemplo em Goa, tendo um deles, Fernando Lopes, com vergonha de assim entrar em Portugal, optado, aquando do regresso, por ficar na ilha de Santa Helena), tendo feito isso, por exemplo, a muitos que se dirigiam por mar para Ormuz, cidade situada numa ilha, que ele tinha bloqueado
1 Idem, ibidem, vol. I, p. 31.
2 Júlio Carrapato – «Os Descobrimentos Portugueses e Espanhóis ou a Outra Versão de uma História Mal Contada», Ed. Sotavento, 1992, pp. 28-29.
3 Francisco de Azevedo Gomes – «Falsificação da História», ob. cit., vol. I, p. 31.
4 Idem, ibidem, vol. I, pp. 36-37.
5 A que, não raro, se acrescia fender uns dos pés ao meio.
6 Repise-se que sobre estes tinham os altos chefes «poder de vida ou morte».
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com seus navios, a fim de a exterminar pela sede e pela fome, mandando, depois, introduzi-los na dita urbe, exponenciando assim o terror sobre aquelas gentes.
E, antes do bloqueio de Ormuz, já ele perpetrava, a eito, matanças, saques, incêndios, naquelas costas; num curto período, já ele tinha saqueado, devastado e incendiado as cidades de Calajate, Curiate, Mascate e Orfazam, em que milhares de pessoas foram assassinadas. Nos portos, foram incendiados os navios ali ancorados.
Albuquerque, impedindo que Ormuz, cidade importante e com razoável potencial militar, se abastecesse de água e víveres, veio a saber que ela se socorria de alguns poços situadosnosarredores.Mandouatacar,denoite,os queosdefendiam,osquais,apanhados de surpresa, foram todos mortos, sendo na respetiva água alijados todos os cadáveres juntamente com os dos cavalos.
Esta «epopeia», em que os vice-reis porfiaram ser inexcedíveis, sempre foi urdida comamaiselevadacrueldade,rapina,traiçãoesordidez.Estáprofusamentedocumentado que os Portugueses cometeram, de forma sistemática, as mais refinadas violências, da mais diversa natureza, em todo o tempo e lugar, propendendo enormemente para as mais rebuscadas torturas. Mataram milhões de nativos nessas paragens que desde o Brasil se estendiam até aos confins da Insulíndia.
Saqueavam cidades epovoações, após o queas incendiavam; em certas zonas nem uma só cidade deixaram erguida, tudo tendo sido, desse modo, destruído, após a chacina e o saque. Isto ocorreu, designadamente, na costa oriental de África, onde havia uma civilização tão adiantada como a europeia de então, acontecendo que, conforme assinalado no douto estudo de Basil Davidson 1 , os homens da esquadra de Gama «ficaram espantados ao encontrar portos cheios de movimento, populosas cidades costeiras (…) E encontraram-se entre mareantes que conheciam os caminhos marítimos que levavam à Índia e ainda mais longe; que viajavam com mapas, bússolas e quadrantes tão bons como os seus ou melhores; cujo conhecimento do mundo era ainda melhor que o deles… Desembarcaram em cidades tão belas como qualquer das que então podiam ver naEuropa,com pouquíssimas exceções», enfim, cidades tãocivilizadas «como as cidades marítimas da Europa», havendo enseadas «apinhadas com navios oceânicos». «Observaram um comércio marítimo florescente…; e viram que tinham descoberto um mundo de comércio ainda maior, e talvez mais rico, que o que se praticava na Europa», acontecendo que os Portugueses «cortaram desapiedadamente as muitas e complexas
1 Basil Davidson – «Revelando a Velha África», cit., p. 194 e pp. 276-277.
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ligações comerciais que os séculos haviam estabelecido entre a miríade de portos e povos do Oriente; destruíram por completo a estrutura desse comércio , deixando atrás de si pouco mais que ruínas e devastações».
Os Portugueses mergulharam em tenebroso atraso povos com elevado nível civilizacional e em franca caminhada para mais elevadas etapas de progresso.
Em muitas cidades, eles a todos chacinaram, não poupando sequer as crianças e as mulheres grávidas, tendo isto acontecido, frequentemente, quando os habitantes, não se rendendo prontamente ou não se aquietando sob o jugo imposto, resistiam: em vez de dizer-se que tal aniquilamento aconteceu, por exemplo, em Mombaça, Diu (no seguimento do cerco de1546 1),Dabul…, épertinenteser-semais explícito,sublinhandose que tal ocorreu em tantas cidades e regiões!
Diz Basil Davidson: «Chegou até nós uma carta do rei de Mombaça ao rei de Melinde, escrita depois da desastrosa invasão. Ao voltar à cidade, toda queimada, depois da partida dos Portugueses, conta que as populações swahili e árabes de Mombaça foram encontrar nela ‘nem uma pessoa viva, homem ou mulher, velho ou novo, nem sequer uma criança por mais pequena que fosse: todos os que não tinham conseguido fugir a tempo tinham sido mortos ou queimados » 2
Tão supino era o horror que, para escaparem às sevícias do costume, muitos nativos se suicidavam, após feitos prisioneiros pelos portugueses ou mesmo quando na iminência de caírem nas mãos destes. Exemplifique-se: o vice-rei Lopes Sequeira sai, certa vez, de Ormuz com prisioneiros turcos, num navio de carga, onde havia uma provisão de pólvora (não raro, os portugueses encerravam prisioneiros nas sentinas dos navios). Os Turcos acharam meio de atear fogo à pólvora, perecendo com o navio. «O rei de Gilolo envenenou-se, a fim de não cair nas mãos dos portugueses, uma vez que Bernardim de Sousa (governador de Ternate) lhe tinha cercado o palácio». E documentos existentes, por exemplo, sobre Timor falam-nos, conforme se apontará mais adiante, de suicídios coletivos/autodestruição de Timorenses 3 (após tirarem a vida aos próprios filhos e mulheres). Vem a talho de foice dizer que o mesmo ocorria no Continente americano, conforme lancinantemente no-lo transmite o Bispo Bartolomeu de las Casas.
1 Gaspar Correia fala-nos de mulheres portuguesas que, na fortaleza de Diu, se aplicaram, com insolente e feroz histerismo, a molestar dois nativos acabados de cair nas mãos dos Portugueses: «… ao que as mulheres deixavam as panellas e os carpião nos rostros com as unhas e lhes arrancavam as barbas e os queriam comer com os dentes e depois de o capitão falar com elles os mandou matar, que os escravos os matarão às pedradas.»
2 Francisco de Azevedo Gomes – «Falsificação da História», cit., vol. I, pp. 16-17.
Júlio Carrapato – «Os Descobrimentos Portugueses e Espanhóis ou a outra Versão de uma História Mal Contada», cit., pp. 30-31.
3 Artur Teodoro de Matos – «Timor Português – 1515-1769», Instituto Histórico Infante D. Henrique, Lisboa – 1974, pp. 308-309.
Francisco de Azevedo Gomes – «Falsificação da História», cit., vol. I, p. 231
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1
Como breve exemplificação, refira-se que, no capítulo sobre Cuba, Las Casas 1, que aí esteve, diz, a dado passo, num testemunho acerca dum tirano: «… vendo-se todos eles morrer e perecer sem remédio, começaram alguns a fugir para os montes, outros, desesperados, a enforcar-se e enforcavam-se maridos e mulheres e consigo enforcavam os filhos. E por via das crueldades dum espanhol muito tirano (que conheci), enforcaramse assim mais de duzentos índios. Desta maneira pereceu infinita gente». E, umas páginas adiante (p. 96), refere que uma índia enferma, sentindo já perto os cães ferozes, enforcouse, após ter atado o filhito aos pés, com uma soga.
Enfim, não era raro, depois duma chacina, terem os portugueses matado três mil, quatro mil, seis mil (como aconteceu em Pam, por ação das tropas de Martim Afonso de Sousa), oito mil indivíduos (como aconteceu, por exemplo, num combate contra as tropas de Pati Onoux, senhor de Japara, na ilha de Java) e mais… 2 Sendo costume dos portugueses, conforme já aludido atrás, fazer descer soldados em chalupas para, a golpes de lança, matar os nativos que (designadamente no caso de desbaratada a respetiva frota pelos canhões) se atiravam ao mar para, a nado, alcançarem a costa, atentemos, quanto a isso, por exemplo, neste passo (respeitante a Afonso de Albuquerque) recolhido de Júlio Carrapato 3 :
«Arrasou Calaiate, cortou as orelhas e os narizes a todos os prisioneiros, soltandoos, depois, para que espalhassem aos quatro ventos a sua fama e afoiteza; em Orfacate, ‘reduziu tudo a cinzas’ e continuou a mutilar os que escapavam à chacina com um sopro de vida e iam engrossar as fileiras dos pregoeiros; e, em Mascate, incendiou os armazéns que estavam cheios de azeite e melaço, derrubou os portões da mesquita e deixou as ruas semeadas de cadáveres»; e eis o que nos transmite o autor sobre a tragédia de Ormuz: «Depois da formalidade do ultimato da praxe, Albuquerque, praticamente, nem esperou pelaresposta, rompeu de imediatofogo,afundando os navios das imediações eflagelando a zona portuária. ‘Estava como um lobo no meio de um rebanho de ovelhas. Não era uma batalha, era uma carnagem. Os fugidos nadavam num mar rubro de sangue perseguidos pelas almadias em que os soldados matavam neles às lançadas e cutiladas’. O horror e a manipulação de corpos sem vida atingiu tal expoente que, prossegue Oliveira Martins, ‘ainda oito dias depois do sanguinário caso, havia cadáveres boiando no mar, e os portugueses em lanchas ocupavam-se nessa particular espécie de pesca. A colheita era
p. 59.
2 Francisco de Azevedo Gomes – «Uma ‘deusa’ no Inferno de Timor» (Romance e História), cit., p. 255.
3 Júlio Carrapato, ob. cit., p. 33.
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Bartolomeu de Las Casas – «Brevíssima Relação da Destruição das Índias», cit.,
abundante, os cadáveres aos centos, os trajos ricos, e muitos os anéis, e alfinetes, as adagas e punhais tauxiados de ouro e prata com joias engastadas »
Hans Magnus Enzensberger 1 , sublinhando algo do âmbito da «fenomenologia da dominação colonialista» – uma temática sobre que se debruçou, por exemplo, o por ele referido Franz Fannon, autor de «Os Condenados da Terra (1961)» –, exara, descendo a transcrições, que «com os horrores obviamente inúteis», com «o despotismo terrorista dos conquistadores» se conectou a função psicológica de evidenciar esta divisão: dum lado está o oprimido, do outro está o opressor, o qual «demonstra» e «não dissimula o poder», trovejando implacável: «Aqui, o senhor sou eu» E, a dado passo do texto em apreço, aparecevincadoporHansEnzensbergeroseguinte: «Sobodomíniocolonialtoma valor ativo a frase: não é o assassino mas o assassinado o culpado. O nativo é, a priori, um criminoso em potência que é preciso vigiar, um traidor que ameaça a ordem do Estado…»
19.5.1. Contexto em que abalado o «statu quo» militar português, designadamente na India
Convém assinalar-se, desde já, que os Portugueses deparavam com povos que, em termos militares, não eram tão facilmente subjugáveis como os ameríndios. Para além do apetrechamento militar dos Portugueses, das suas chusmas de lascarins, da sua política de terror, do seu ignóbil recurso a estratagemas e traições, há ainda razões importantes que nos permitem compreender a relativamente fácil expansão da sua tirania sobre tantos povos. Estes, por exemplo, os Indianos e outros 2, além de pouco industriados na guerra e de não combaterem revestidos de armaduras de ferro como os Portugueses, bem longe se encontravam, sobretudo a princípio, de estar armados como estes, cujo empenho em destruir era tal que só o navio-almirante de Vasco da Gama possuía nada menos do que vinte canhões, numa altura em que não havia armas de fogo em grande profusão ou que delasnãodispunha amaioriadoGlobo.Esaliente-sequeos Portugueses, anteestespovos divididos numa profusão de reinos autónomos, não deixavam de recorrer a estratagemas,
1 Hans Magnus Enzensberger – autor do prefácio «Las Casas ou uma Retrospetiva no Futuro», cit., p. 17 e 19.
2 Não equiparáveis aos opressores em termos de sanha, de ódio, de recurso aos mais execráveis meios em ordem aos mais execráveis fins.
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a cavilações de qualquer jeito indutoras em dissensões para os enfraquecer, os tornar mais fácil presa sua.
Mas, conforme de seguida se explica, consideráveis fatores trouxeram alterações ao «statu quo», passando os opressores a ter incómodos de monta: a tal ponto que os Portugueses, dispersos por todo o mundo, passaram, tantas vezes, designadamente em pontos muito afastados (nomeadamente na Insulíndia) das suas mais importantes fortalezas, a muito ansiar que maiores e mais frequentes reforços lhes adviessem para esmagar, «castigar os cafres».
Durante quase um século, sem a concorrência 1 de outros europeus, é mais que sabidaaatuaçãodePortugueseseEspanhóis,fartamenteapetrechadosdecanhõesearmas de fogo, perante povos sem tal apetrechamento bélico. Para as gentes espalhadas por todo o Globo, foi esse, na história do colonialismo, o século mais trágico, todo ele eivado das maiores iniquidades.
Prossigamos, aduzindo os seguintes passos dos volumes manuscritos «Les Indes Portugaises et Hollandaises» 2: «Aquando da chegada dos Portugueses às Índias e no início do seu estabelecimento, tinha-lhes sido fácil fazer conquistas, em face da inexperiência dos Indianos…» E mais adiante: «… Por outro lado, os reis indianos, outrora divididos, reuniram-se por motivo de interesse comum, a fim de se poderem defender melhor contra estes estrangeiros, que eles do mesmo modo odiavam, e tinham mandadoaprender amuitos dos seus súbditos aciênciada guerratal como elasepraticava na Europa »
Acresce dizer-se que designadamente a Turquia e o Egipto passaram a enviar, em socorro da Índia, esquadras carregadas de combatentes 3 e apetrechadas com armas de fogo
Os Indianos, bem como outros povos daquelas paragens, tornaram-se mais aptos, com mais envergadura, em termos militares, apetrecharam-se, deram-se as mãos num mais vasto e revigorante sistema de alianças 4 .
Ante o que acaba de ser dito, os Portugueses passam a sentir grandes dificuldades
5
1 Esta, como se verá, trouxe para vários povos nativos alguma atenuação de sofrimento.
2 Francisco de Azevedo Gomes – «Civilizadores ou Bárbaros?», cit., pp. 203-204.
3 Segundo referências, até, inclusivamente, vários homens de Granada.
4 Como se referirá, chegou, por exemplo, a haver, na Insulíndia, na sequência de atrozes acontecimentos, uma global aliança contra os Portugueses, a qual contava até com a adesão dos Papuas.
5 Ante a referida evolução de ordem militar, ante o facto de ser agora de menos monta o que havia para piratear e saquear (sendo de notar, de caminho, que muitos graduados se locupletavam, «in loco», com boa parte do que à Coroa se destinava), ante os efeitos do vendaval da Reforma, os poderes político e religioso repensaram, cavilosamente, sobre a problemática. Neste enquadramento, em
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E, na sequência da Reforma, o «statu quo» militar português sentiu-se, como se verá, fortemente abalado face à irrupção de outros europeus 1, nas paragens coloniais; alterou-se o panorama em termos de «física social», a concorrência induziu em convenientes alinhamentos de forças entre povos locais e europeus recém-chegados contra Portugueses e Espanhóis: aos novos europeus muitos povos nativos pediram, oferecendo-lhes o seu apoio, que viessem escorraçar/substituir os Portugueses e Espanhóis, de tal forma estavam desesperados com a tirania, com a enormíssima tragédia que estes, com ódio e com canhões, sobre eles vinham desencadeando, nas várias décadas até aí decorridas.
Por exemplo, aquando da chegada dos Holandeses à Insulíndia, a estes imploraram esses povos que, com o seu apoio, substituíssem os Portugueses, razão por que, em tão pouco tempo, estes foram, aí, de todo o lado escorraçados; e há registo de que, por mais que uma vez, Timor fez a mesma imploração. Exemplificando-se, aluda-se à atitude dos Holandeses (sob o comando de Frederic Houtman), após rendição dos portugueses (que foram tratados com cavalheirismo), em Amboíno. Conforme assinalado em «Les Indes Portugaises et Hollandaises», no tratado firmado entre Frederic Houtman e os «notáveis» de Amboíno, diz-se que «com a ajuda de Deus, os Holandeses os tinham libertado da tirania portuguesa» e, entre as cláusulas, figuravam estas: «cada um viveria em liberdade na religião que julgasse, em consciência, ser a melhor, sem poder ser molestado por esse motivo»; «se algum holandês cometesse insolências no país, o governador castigá-lo-ia»; «os habitantes não seriam obrigados a trazer os seus cravosda-índia ao castelo» 2
Auxiliados pelos nativos, os Holandeses bem depressa substituíram os Portugueses por todo esse vasto mundo insular que hoje integra a Indonésia. Os Portugueses ficaram na posse apenas, para além da metade oriental de Timor, das Flores e Sólor 3, apesar dos nativos destas ilhas reiteradamente terem, conforme se acha bem documentado, pedido aos Holandeses que os aliviassem dos Portugueses 4 .
«Les Indes Portugaises et Hollandaises», regista-seter havidoponderações anível do Conselho dePortugal edesignadamentesealude à decisão do envio de Jesuítas, «mais adestrados para enfrentar as subtilezas dos brâmanes».
1 À laia de avulso apontamento acerca do nervosismo que assaltara os Portugueses, respigue-se tão só este parágrafo de um texto respeitante ao frenesim, nas possessões da Índia, do vice-rei «Martim Afonso de Castro, filho mais novo do Conde de Cascais»: «Ele tinha obrigado a embarcar tanto os nobres como os plebeus sem olhar à sua condição e qualidade e sem lhes dar tempo para se prepararam, correndo como um insensato, com um bastão na mão, as ruas de Goa e Cochim, para os obrigar a isso» – Francisco de Azevedo Gomes – «Civilizadores ou Bárbaros?», cit., pp. 209 a 211.
2 Francisco de Azevedo Gomes – «Civilizadores ou Bárbaros?», cit., pp. 237-238.
3 Veja-se, em Prof. A. Silva Rego, os moldes, incluindo o montante em florins recebido dos Holandeses pelos Portugueses, em que estes lhes entregaram Flores e Sólor. Prof. Padre A. Silva Rego – lições policopiadas de «História do Ultramar Português», cit., pp. 786 a 788.
4 Estes obstinadamente intentavam, das mais diversas formas – até ao som de trompa –, incutir nos nativos horror aos Holandeses.
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1
Enfim, durante várias décadas, fora relativamente fácil aos Portugueses arrasar tudo à passagem, mas, agora, em vez de desguarnecerem os pontos-chave (Goa, Macau, etc.), os comandos tratavam de reforçar-se, de resguardar-se aí, cada vez mais. Sabendose um tanto diminuídos e inseguros, não abrandaram o despotismo e a perversão e, tendosealiado à sanha um certodesespero, continuaram obstinadamente cruéis na «depuração», na «punição» dos povos que, algumas vezes com armas adquiridas de outros europeus, agitavam o «statu quo» ou tão só eram suspeitos de terem tais intenções.
19.5.2. Atuação na América
Eis palavras com que o Bispo Bartolomeu de Las Casas, da Ordem Dominicana, antecede a denúncia (no sentido desta também o acalentaram «pedidos de historiadores» de então) dos horrores perpetrados na América: «Peço fervorosamente a todos os homens que acreditem que este relato não foi publicado para servir nenhum desígnio pessoal nem nenhuns fins sinistros, nem com intenção de favorecer ou prejudicar qualquer nação, mas para benefício e vantagem de todos os verdadeiros cristãos e homens morais de todo o mundo»; havia que «mostrar ao mundo as enormidades que os Espanhóis cometeram na América, para sua eterna ignomínia» 1 E reiteradamente assevera, ante um quotidiano de monstruosidades tão rebuscadas, da mais diversa natureza e alargadas às mais diversas paragens:
«Não poderá bastar singularmente língua ou notícia ou indústria humana para referir os espantosos feitos que em distintas partes, nalgumas ao mesmo tempo e noutras em tempos vários, por aqueles adversários públicos e capitais inimigos da linhagem humana foram levados a cabo naquela imensa área… Porém alguma coisa de algumas partesdirei,comprotesto ejuramentodequenãopensoqueexplicareiumademilpartes » 2
«E sei por certa e infalível ciência que os índios tiveram sempre justíssima guerra contra os cristãos, e os cristãos nenhuma tiveram justa contra os índios, antes todas elas foram diabólicas e injustíssimas, e muito mais do que de tirano algum se pode dizer no
2
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Barry Lopez – reportagem «Colombo – A Herança Perdida», em «Público Magazine», de 11-10- 92, pp. 30 e 32.
Bartolomeu de Las Casas – «Brevíssima Relação da Destruição das Índias», cit., p. 72.
mundo.Eoutrotantoafirmodequantasfizeramemtodasas Índias»(p.54de «Brevíssima Relação da Destruição das Índias» – título este que passarei a referir pela sigla BRDI 1 )
Além de Las Casas tanto repisar na pertinência de recurso a legítima defesa por parte dos Índios, quanto a eles assinala, ele que com eles conviveu durante quarenta anos, mansidão, hospitalidade, generosidade, humildade, enquanto frequentemente arremessa contra os Espanhóis os piores predicados – «nefandos», «avarentíssimos tiranos», «filhos da perdição», «famosos carniceiros e derramadores de sangue humano» Segundo nos transmite a revista «América Latina», o próprio Colombo descreve os Tainos (habitantes das ilhas S. Salvador, Cuba e Haiti) como sendo «muito pacíficos’, sem nenhum conhecimento do mal. Não sabem o que é matar, nem prendem os seus inimigos; não têm armas…» 2
«… justíssima razão e as muitas razões cheias de toda a justiça que por lei natural, divina e humana têm os Índios de os fazer em pedaços, se para tanto tivessem eles forças e armas, expulsando-os de suas terras…» (BRDI, p. 94)
«… muitas e grandes terras naquelas partes vi com os meus próprios olhos, terras essas que em muito breves dias destruíram e despovoaram de todo.»
Las Casas, ao longo das páginas, densas de informação, da «Brevíssima Relação da Destruição das Índias», assinala a existência de centenas e centenas de léguas seguidas despovoadas, ermas, quando antes eram densamente habitadas. Assim, por exemplo, houve territórios, em que de imensas gentes apenas restavam onze indivíduos (BRDI, p. 44), cerca de duzentos (p. 56) ou até nem um só (o que ocorreu em muitas ilhas – p. 43) Sejam aduzidos ainda dois apontamentos análogos a tantos outros: «… Havendo na ilha Espanhola perto de três milhões de almas, que vimos, ali não há hoje de seus naturais duzentas pessoas» (p. 43); e, quanto à Nova Espanha (México): «Mataram os Espanhóis nos ditos doze anos, nas ditas quatrocentas e cinquenta léguas, à espada e à lança, e queimando vivos mulheres e crianças e moços e velhos, mais de quatro milhões de almas, enquanto durou (como é dito) aquilo a que eles chamam conquistas, sendo na verdade invasões violentas de cruéis tiranos, não só pela lei de Deus condenadas, mas por todas as leis humanas….» (p. 72)
É aqui oportuno dar a palavra não só a Hans Enzensberger (BRDI, p. 14 – ou seja, no prefácio):
1 B.R.D.I. ou BRDI = «Brevíssima Relação da Destruição das Índias». Repise-se: a partir de agora, frequentemente simplificarei a citação da referida publicação de Las Casas, apondo, no texto, a sigla BRDI e respetiva(s) página(s), ou até, quando tal bastar, só a(s) página(s).
2 Revista «América Latina» (boletim de setembro/1982), p. 8.
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«Em menos de um século, entre 1519 e 1605, a população do México Central terá passado de 25,3 milhões a 1 milhão, segundo o investigador Sánchez Albornoz. A dimensão do genocídio é globalmente mostrada pelos dados do antropólogo Darcy Ribeiro que, em estudo sobre a dimensão do genocídio, refere que, em 1492, a população de todo o continente seria de 70/80 milhões 1 e, em 1650, de 3,5 milhões.» E, na mesma página (BRDI, p. 14), assinala-se que dois cientistas norte-americanos investigaram as fases demográficas no antigo México e «chegaram à conclusão de que, nos trinta anos decorrentes entre a chegada de Colombo e o aparecimento da ‘Brevíssima Relação da Destruição das Índias’, a população do México Central diminuiu de vinte e cinco milhões para seis milhões de habitantes, aproximadamente».
Fernando Dacosta 2 transmite-nos que «os quarenta e quatro milhões de índios existentes na América do Sul, no século XVI, estavam, trezentos anos mais tarde, reduzidos a dezoito milhões».
O Tribunal Russel, em 1980, em Roterdão, assenta nesta conclusão: «genocídio e etnocídio de milhões de índios, no continente americano» 3 .
Rigoberta Menchu, a índia guatemalteca laureada com o prémio Nobel da Paz, em 1992, lembrou ao Mundo que, depois de Colombo ter chegado à América, «cinquenta milhões de seus antepassados foram mortos pelos europeus» 4 .
No Brasil, aquando da chegada dos ditos «cristãos», havia, segundo Historiadores e Antropólogos, entre seis milhões e dez milhões de Índios; segundo se regista em estudo de Fernando Dil 5, em 1953, «não existiriam mais de 150 000 índios no Brasil» 6
O Padre António Vieira (no Maranhão-Brasil), em carta dirigida a Afonso VI, dizia, depois de exprobrar tantas injustiças cometidas sobre os nativos e de verberar aqueles «eclesiásticos» que de «público e de secreto fazem cruel guerra a Jesus Cristo»: «Em espaço de quarenta anos se mataram e se destruíram nesta costa e sertões mais de dous milhões de índios…» 7
Fernando Dil 8, quanto «ao longo e permanente extermínio» dos Índios, no Brasil (até à atualidade), diz, após aludir a «graves crimes» de alguns funcionários do Serviço
1 Segundo a revista «Audácia» (dos missionários combonianos) nº 280, out./92, p. 14, este número seria um pouco mais elevado.
2 Fernando Dacosta – texto «O estranho achamento das Terras de Vera Cruz», no suplemento ao nº 691 de «O Jornal», de 20 a 26 de maio de 1988, p. 21.
3 Helena Mensurado – texto «Do arco e flecha ao Código Penal», em «O Primeiro de Janeiro», de 18-4-1989, p. 13
4 Rigoberta Menchu – texto «As minhas únicas armas são as palavras», no «Público», de 11-12- 1992, p. 17.
5 Fernando Dil – texto «Amazónia: Últimas Fronteiras», na Revista Mundial nº 1694 (26-11-1971), pp. 31 a 36.
6 De caminho, refira-se: acabou por não remanescer qualquer nativo na Tasmânia (aqui, no célere extermínio feito pelos Ingleses, até se estipulou um «prémio» monetário pelo abate de cada nativo), nas Canárias, na ilha Barbados…
7 Padre António Vieira – «Sermão de S.to António aos Peixes e Carta a D. Afonso VI», prefácio e notas de Rodrigues Lapa, 2ª ed., Lisboa – 1942, p. 67.
8 Francisco de Azevedo Gomes – «Falsificação da História», cit., vol. I, pp. 458 a 461.
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de Proteção ao Índio (entretanto extinto e substituído pela F.U.N.A.I.): «E se crimes contra os índios foram constatados entre os que eram escolhidos para defendê-los, como impedir as execuções em massa, como as de 1966 contra os ‘cintas largas’, levadas a cabo por bandos profissionais nas margens do Aripuana, em Mato Grosso?»
«Por ocasião da festa anual do Guarup, cerimónia que ‘reúne’ vivos e mortos das tribos…, aventureiros do ouro, diamante e borracha, que há muito planeavam a expulsão dos ‘cintas largas’ das suas terras, as quais pretendiam explorar, aproveitaram a oportunidade para os exterminar com bombas de dinamite, lançadas a partir de um pequeno avião alugado. Nunca foi possível avaliar o número de mortos. Sabe-se, no entanto, que outras expedições foram realizadas, uma das quais contada pelo ‘O Globo’, sob o título ‘O massacre do Paralelo Onze’, onde foram usadas, inclusive, metralhadoras, o que terminou por forçar a retirada – depois de muitas baixas – dos cintas largas (o depoimento de um dos participantes dessas matanças, Francisco Luís, está gravado na VI Inspetoria dos Índios, de Cuiabá) »
«Numa daquelas expedições, chegou-se ao requinte de pendurar uma jovem índia de cabeça para baixo e partir o seu corpo em dois, com um só golpe de foice – habilidade deum‘especialista’nogénero–,apóstê-lafeitoveramortedeumseufilhoaindacriança, com uma bala na cabeça». Quanto a este dantesco acontecimento, é apresentada uma fotografia na revista «Vida Mundial» nº 1694 (de 26-11-71): a pobre índia lá está pendurada, de pernas afastadas, a posição que acharam mais apropriada para a abrir de alto a baixo. Dois homens dão os últimos nós às cordas, notando-se-lhes um assaz plácido sorriso, numa antecipação do imenso prazer que, dentro de instantes, os acometeria, ao vê-la dividida ao meio, com um golpe a partir do sexo, que a infeliz tapa com uma das mãos.
Artur Queirós 1 diz, numa altura em que se comemoravam os 500 anos dos «Descobrimentos»:
«Na Praça de Armas de Cuzco, impera a catedral, com um altar à entrada, feito de ouro. O seu altar-mor é de prata maciça. Ao seu lado, ostentando pedras retiradas de um palácio inca, o Tribunal do Santo Ofício, onde foram condenados à fogueira milhares de filhos do sol… Quando Pizarro chegou ao Peru, a população índia atingia dez milhões de pessoas. Em breve, esse número caiu para um milhão e meio e os senhores de Espanha tiveram de importar escravos de África e da China. Cuzco é a cidade que viu o último
1
Artur Queirós – reportagem intitulada «Cuzco: a cidade dos insubmissos», na revista nº 2 do «Jornal de Notícias», de 24-12-1989, pp. 16-17.
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episódio (séc. XVIII) da insubmissão dos Índios» (de Tupac Amaru e o seu reino), ante tanta opressão e bestialidade, episódio este que levou os Espanhóis a cevarem-se com mais uma orgia de sadismo.
Barry Lopes 1 assinala: «Um dia, ante o testemunho de Las Casas, os espanhóis esquartejaram, decapitaram e violaram 3 000 pessoas. ‘As desumanidades e barbaridades cometidas à minha vista eram tais como nenhuma outra época poderá voltar a vê-las’, conta ele. Os Espanhóis cortaram as pernas às crianças que fugiam deles. Deitaram sebo a ferver sobre as pessoas. Faziam apostas para ver quem conseguia cortar uma pessoa a meio com um só golpe da sua espada. Acirravam cães 2 que ‘devoravam um índio como se fosse um porco, sem mais nem menos e num fechar de olhos’. Usaram bebés de colo como comida para cães. Era um ‘matadouro contínuo usado para diversão’, por homens que se sentiam desprezados, que imaginavam insultos à sua religião e se sentiam defraudados na sua busca de ouro e de prazer sexual.»
«Entravam pelas aldeias», narra o Bispo Las Casas, «não poupando crianças nem velhos, nem sequer mulheres prenhes a quem rasgavam o ventre e faziam em pedaços… Faziam apostas sobre quem de um só golpe havia de abrir ao meio um homem, ou lhe cortaria a cabeça com uma espadeirada ou lhe poria fora as entranhas. Tomavam pelas pernas as crianças de mama do seio das suas mães e atiravam com elas contra os penedos, de cabeça. Outros metiam-nas na água dos rios… ; a outras passavam-nas a fio de espada juntamente com as mães e com quantos diante deles se achassem. Armavam umas forcas extensas, que ajuntassem os pés dos condenados quase por terra, e de treze em treze, em honra e reverência do Nosso Redentor e dos doze apóstolos, pondo-lhes lenha e atiçando fogo, os queimavam, vivos. Outros atavam ou ligavam o corpo todo com palha seca; e pegando-lhes fogo, assim os queimavam» (…) «Duma vez vi eu que, tendo nas grades a queimarem-se 3 quatro ou cinco principais e senhores (e julgo que havia mais dois ou três pares de grades aonde queimavam outros), e porque soltavam grandes gritos e ao capitão metiam dó ou o impediam de dormir, mandou este que os estrangulassem; e o sargento, que era pior que o verdugo, que os queimava (sei como se chama e até conheci os seus parentes em Sevilha), não quis estrangulá-los, antes lhes pôs com as mãos paus nas bocas
1 Barry Lopez – reportagem «Colombo – A Herança Perdida», em «Público Magazine», de 11-10-1992., pp. 30-31.
2 Mastins: «… cães bravíssimos e ferocíssimos ensinados e amestrados para matar e despedaçar os índios» (BRDI, p. 143). Quanto ao historial do arrastamento de animais para fins bélicos (ancestral recurso a cavalos, cães, elefantes…), leia-se o que sob a epígrafe «Marinhas das Grandes Potências estão a treinar para a guerra golfinhos, focas e baleias» – no jornal «República», de 29-101973, p. 9
3 Os chefes/«notáveis» índios eram, comumente, mortos com «fogo brando», para maior sofrimento, diz Las Casas.
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para que não gritassem e atiçou-lhes o fogo, até que assaram lentamente como ele queria. Vi eu todas estas coisas acima ditas e muitíssimas mais… » (BRDI, pp. 47-48).
Era com toda a naturalidade, com timbre de costumeira «diversão», que os Espanhóis se afanavam a aplicar aos Índios a sua vasta, diversificada cartilha de sadismo: amputação de narizes, mãos, até orelhas e pés e, não raro, língua a inúmeros homens, mulheres e até crianças (BRDI, pp. 93, 132, 138, 139, 140…), bem como corte de rostos «desde nariz e lábios até à barba» (BRDI, p. 124) (a dado passo, comentando Las Casas as mais bárbaras amputações, com queos tiranos saciavam osadismo einfundiam oterror, diz que os infelizes amputados assim «levavam novas das obras e milagres que faziam aqueles pregadores…»); alinhamento de pessoas, deitadas de borco, com os braços estendidos por diante, sendo-lhes cortados com um alfange (faz-se menção, por exemplo, em BRDI, nas pp. 138-139, de que isto aconteceu a muitos índios, dos quais exigiam dissessem o nome do eventual «cacique» da aldeia, sucessor do que fora, pouco antes, torturadoemortopelosopressores 1 );amputaçãodemãoseexibição,parainculcarterror, de enfiadas com dezenas de pares delas (p. 149, etc.); submissão a estrapada e acanaveamento (BRDI, pp. 134, 136); um quotidiano de estraçalhamento de índios por cães carnívoros 2 aparecia, não raro, conjugado, quer com a existência, nos centros habitacionais, de talho (isso mesmo, talho) de carne de nativos (BRDI, p. 143) para sustento desses animais; e atente-se bem na ainda mais supina aberração de, frequentemente, serem alimentados com carne de índios (adrede abatidos) os «carregadores» e os que, na qualidade de lascarins, eram arrastados nessas campanhas devastadoras (segundo Las Casas, ob. cit., p. 88, os bocados melhor degustados seriam as mãos e os pés). Exemplifique-se com um simples apontamento (BRDI 3, p. 88): um tirano (na Guatemala), que arrastava muitos milhares de índios (na qualidade de lascarins), a fim de servirem de vanguarda/parapeito no confronto com os outros índios, não lhes dava o natural alimento, sustentando-se eles com carne de nativos (designadamente crianças), que eram abatidos, diariamente, na presença daquele (havendo açougue de carne humana no arraial).
Também o Franciscano Marcos de Nisa ergueu, exprobrador, a voz: «Outrossim afirmoqueeupróprio vianteosmeusolhososespanhóiscortaremmãos,narizeseorelhas a índios e índias, sem causa nem propósito, tão só porque lhes apeteceu fazê-lo, e em
1 Estes, saliente-se, tinham enorme e primacial empenho em aniquilar as chefias nativas.
2 «Acirravam cães que devoravam um índio como se fosse um porco, sem mais nem menos e num fechar de olhos». «Usaram bebés de colo como comida para cães» (BRDI, p. 97 e outras).
3 Ver, também, p. 154…
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tantos lugares e partes que bem longo seria recitá-lo. E vi que os espanhóis aos índios atiravam com os cães para que os despedaçassem (…) Assim também eu vi queimarem tantas casas etantos povoados queos nãopoderiacontar,tantos eles eram. Assim também é coisa verdadeira que apanhavam crianças de mama pelos braços e as atiravam arrojadiços quanto podiam, e outros desaforos e crueldades sem propósito, que me causavampavor,cominumeráveisoutrascoisasqueviequeseriambemlongasdecontar. Outrossim vi que chamavam caciques e ilustres índios para que viessem em paz e sem desconfiança, prometendo-lhes segurança, e, em chegando eles, logo os queimavam» (BRDI, pp 132-133). E o Bispo de Santa Marta, em carta de 20-5-1541, participa ao rei de Espanha (que ele designa por «cristianíssimo César» e até por «sagrado César») que, face a tantos horrores contra os nativos, a estes «coisa nenhuma lhes pode ser mais odiosa e aborrecível do que o nome de cristãos, aos quais em toda aquela terra em sua língua chamam iares 1, que quer dizer demónios, e sem dúvida têm eles razão, porque as obras que por cá obram não são de cristãos nem de homens que têm uso da razão, mas sim de demónios…». E, noutro passo, diz: «Tem Vossa Majestade por aqui mais servidores do quepensa, pois não há soldadodequantos poraqui estãoquenãoousedizer publicamente queseeleassaltaou rouba,ou destrói oumata, ou queimaos vassalos de VossaMajestade para que lhe deem ouro, é porque serve Vossa Majestade, com o pretexto de que disso reverte para Vossa Majestade seu quinhão. E pois por isso bem seria, cristianíssimo César…» (BRDI, pp. 102 a 104).
Como proprietários de tudo e de todos, os Espanhóis, habitualmente, transmitiam ordens a povoações após povoações, a povos após povos, no sentido de perante eles comparecerem em local marcado. Bem inteirados do que os Espanhóis lhes iriam fazer (ou de imediato ou em breve), povos havia que debandavam para locais afastados e recônditos; outros resolviam comparecer (às vezes até, num gesto de cortês submissão, lhes apareciam, sem que convocados, quando eles se lhes abeiravam das povoações), tímidos, humildes, generosos, ofertando, como era da sua tradição, presentes e mantimentos, nãofazendotransparecer repúdio antea cobiçalogo recaídasobremulheres – e tudo isto não era, muitas vezes, suficiente para adiar, por algum tempo, a matança,
1 Aduza-se uma pincelada de ordem antropológica: entre várias etnias, os intrusos/opressores europeus foram tidos por avantesmas do «outro mundo». Jean Cazeneuve diz: «Também, por vezes, os alienados e os estrangeiros são assimilados a mortos. É o caso, por exemplo, da Nova Caledónia, onde serecusa mesmoa considerar os Brancos como viventes.» Jean Cazeneuve – «Sociology du Rite», Presses Universitaires de France, Paris – 1971, p. 132. Neste contexto, aluda-se ainda a curiosas achegas exaradas em Roslyn Poignant – «Oceanic Mythology», 1967, pp. 38-39.
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referindoLasCasasque,demodogeral, eramlogoou,embreve,massacrados,queimados e se, às vezes, alguns eram escravizados, em breve sucumbiriam também.
«Duma vez», diz o Bispo Las Casas, «saíram a receber-nos com mantimentos e presentes a dez léguas dum grande povoado, e ali chegados nos deram grande quantidade de peixe, pão e outras viandas, com tudo o mais que puderam. Mas eis que de súbito dá o diabo nos cristãos e passam à faca em minha presença (sem motivo nem causa que tivessem)mais detrês mil almas que diante de nós estavam assentadas, homens, mulheres e crianças. Ali vi eu tão grandes crueldades que nunca os vivos tal viram nem pensaram ver» (BRDI, pp. 58-59).
Quanto aos que, em vez de comparecerem, se refugiavam algures, só iam adiando, por mais ou menos tempo, a pior das tragédias. Eram perseguidos pelos tiranos, que, na sua atuação de feroz aniquilamento, se faziam, habitualmente, acompanhar de mastins –cãesadestradosnatrucidação.Nem nosmais complicadosalcantisescapavamosinfelizes. Apanhados, sobre eles saciavam os tiranos a sua sede de rebuscadas ferezas. Refira-se, por exemplo, um dos casos narrados por Las Casas: o contingente espanhol cercou os desgraçados em alcantilados montes. Começaram a matança a eito, com espadas e lanças. Cansados os braços de tanta carne retalharem, resolveram empurrar, vivos, os milhares, que ainda havia a aniquilar, para profundo abismo. E Las Casas alude a nuvens de seres humanos pelos ares (nuvens, não raro, de umas tantas centenas, refere-o ele), esmigalhando-se nos penhascos. O comandante (a que Las Casas chama «inimigo de Deus», assim embalado nas costumeiras «horribilidades» sobre os nativos) mandou «que todos os índios e índias que os particulares haviam tomado vivos (porque cada qual naqueles danos costuma escolher alguns índios e índias e rapazes para o servirem 1 ) os metessem numa casa de palha (escolhidos e deixados à parte os que melhor lhe pareceram para o seu serviço) e lhes pegassem fogo; e assim os queimaram vivos, e seriam obra de quarenta ou cinquenta. Outros ainda mandou ele atirar aos cães, que os despedaçaram e comeram» (BRDI, pp. 139-140).
Para que resulte mais palpitante a noção de dor e morte em que foram afogadas todas as paragens do Novo Mundo, acresça-se ao breve apontamento que acaba de fazerse uma breve pincelada sobre o ocorrido, por exemplo, na região mexicana. O imperador Montezuma, secundado por todos os «senhores» dessa vasta região, deu instruções aos
1 Aos militares espanhóis (mesmo a soldados) era facultado, frequentemente, apropriarem-se (com o pendor seletivo imaginável) de alguns índios/índias para destes se «servirem», encoleirando-os com correntes de ferro ou prendendo-os com «sogas». E, quantas vezes, morriam, em breve, todos, de maus tratos e de míngua, apropriando-se eles, então, de outros.
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povos no sentido de não hostilizarem os espanhóis e de os receberem da maneira mais acolhedora. Em qualquer cidade de que estes se abeirassem, logo deparavam com emissários a recebê-los cortesmente, com uma enormidade de presentes valiosos. Mas tudo em vão: era enorme a avidez dos Espanhóis em aniquilar os povos, caindo ainda mais céleres e despóticos sobre os respetivos chefes/líderes. Montezuma e «senhores» (uns milhares) da vasta zona foram assassinados da maneira mais cruel (BRDI, pp. 76 e segs.). Na cidade de Cholula, com cerca de trinta mil habitantes 1, os Índios apareceram, com muitos presentes valiosos, a receber os Espanhóis. O comandante destes ordenou, com desígnios perversos, aos «principais» que lhe apresentassem cinco a seis mil «carregadores». Apresentados estes, trazendo cada qual alguns mantimentos metidos numa redinha 2 (a fome esperada era um simples aspeto do terrível fadário da morte), os espanhóis meteram-nos numacerca e atodos chacinaram com espadas e com lanças. Dois dias após, alguns índios, acobertados sob tantos cadáveres, irromperam, implorando compaixão, mas logo foram feitos em pedaços (BRDI, pp. 74-75). Assinala Las Casas que, no decurso desta matança, o capitão entoava estribilhos, com delirante regozijo (BRDI, pp. 75-76).
Não fique por aludir-se a um registo que o Bispo Las Casas 3 inclui no capítulo «Da Província e Reino da Guatimala»: mais que sabida era a atitude dos espanhóis ante os índios que, perante eles, iam comparecendo, hospitaleiros, generosos, prostrados, antecipando-se em dizer-lhes que «se servissem deles e de suas mulheres e de seus filhos, que em suas casas os achariam; e ali os podiam matar ou deles fazer o que quisessem; e isto disseram e ofereceram e fizeram os índios muitas vezes (…) Vendo os índios que com tanta humildade, oferendas, paciência e sofrimento não podiam quebrantar corações tão desumanos e bestiais e que tão sem aparência nem pretexto de razão, e tão contra ela, os faziam em pedaços, vendo pois que assim como assim haviam de morrer», ocuparamseaarmadilhar,com «fojos»bemcamufladosepejadosdeespetos,determinadosacessos Decidiram, então, os Espanhóis que, nas suas constantes arremetidas e consequentes chacinas, reservar-se-iam alguns índios (homens, mulheres e crianças) para atulhar os ditos «fojos», aí perecendo em morte lenta, após atirados sobre as estacas.
1 Pouco após, ocorria a matança de uma cidade ainda mais populosa do que a de Cholula – a cidade de Tepeaca, «aonde mataram à espadeirada infinita gente, com grandes particularidades de crueldade» (BRDI, p. 76).
2 Isto leva-nos a evocar o «bocay», os escassos mantimentos de que os Timorenses se muniam (tinham que alimentar-se à sua custa), quando arrastados, em turbamulta (os «arraiais»), para servirem de muralha ofensiva e defensiva nas investidas perpetradas pelos Portugueses. Artur Teodoro de Matos, ob. cit., p. 389.
3 Bartolomeu de Las Casas, ob. cit., pp. 84-85.
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Tão só acaba de aduzir-se uma breve amostra exemplificativa do conteúdo do referido livro de Las Casas, onde circunstanciadamente são descritas variadíssimas selvajarias, onde se aponta e execra o vasto e rebuscado repertório de iniquidades contra os Índios.
O Bispo Las Casas denunciou as execrações dos Espanhóis e dos Portugueses 1; foi equiparável o quotidiano de ambos os países nessa dita «epopeia» – sobre esta tendo sido persistente a fluência de documentos pontifícios a avalizar, a corroborar tão supina iniquidade e, mais ainda, documentos a veicularem incitamentos, bênçãos e absolvições sobre os agentes desse tropel das mais diversas e enormes violências.
Sobreas cavilações, os perversos interesses,acrueldade,aníveldoclero, noNovo Mundo, leia-se, por exemplo, o já referido posfácio, da autoria de Fernando Alvarez-Uria (sobretudoapartirdap.179deBRDI).Deumacartado «tirano»LopedeAguirredirigida ao Rei transcreva-se este passo:
«É tão grande a dissolução dos frades nestas partes que por certo convém que sobre eles caia a tua ira e o teu castigo, pois já não há nenhum que se não presuma de menos que de governador. Escuta, Rei, não creias no que te disserem, pois as lágrimas que aí verterem diante da tua real pessoa são para virem para aqui mandarem. Se queres conhecer a vida que por cá eles têm, é a de se entenderem em mercancias, de buscarem e adquirir bens temporais, vender os Sacramentos da Igreja por preço; inimigos dos pobres, incaritativos, ambiciosos, glutões e soberbos; de maneira que, por mínimo que seja, um frade pretende mandar e governar todas estas terras. Põe remédio, Rei e Senhor (…) Os frades a nenhum índio pobre querem absolver nem pregar, e estão aposentados nas melhores repartições do Peru, e a vida que levam é áspera e perigosa porque cada qual deles tem por penitência em sua cozinha uma dezena de moças, e não muito velhas, e outros tantos rapazes que para eles vão pescar, depois de matar perdizes e trazer fruta, toda a repartição tem que fazer com eles (…) te juro eu, Rei e Senhor, que se não pões remédio nas maldades desta terra, do céu te há de vir açoite; e isto to digo eu por avisarte da verdade, posto que eu nem meus companheiros queremos nem esperamos de ti misericórdia.» 2
1 Quanto a estes, ver Bartolomé de Las Casas – «Brevíssima Relação da Destruição de África»; estudo preliminar, edição e notas de Isacio Pérez Fernández; trad. de Júlio Henriques; Edições Antígona, Lisboa – 1996
2 Alvarez-Uria discorre sobre a constatação de que, no Novo Mundo, por força de consabidas circunstâncias, assiste aos chefões das hostes embrenhadas na dita «conquista» uma ascendência, um vanguardismo que deixa o clero agastado, pois que este cronicamente afeito a gozar de protagonismo, de supremacia (à qual, decorrido algum tempo, a clerezia ascenderia, também aí). Ver «Falsificação da História», cit., vol. I, pp. 454 a 457.
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Foi assaz excelente, foi deveras proveitoso que o Bispo Las Casas tivesse denunciado os supinos horrores, tivesse deixado à Humanidade o que ele exarou. Jesus de Nazaré diz aos discípulos: «O Mundo não vos odeia; a mim, porém, odeia-me porque dele testifico que as suas obras são más» 1. Não foi Las Casas contido (não será difícil saber o lamentável porquê…) na denúncia das supinas iniquidades cometidas pela pirâmide clerical? Com a interrogação acabada de fazer não se está arredar o facto de que ele fez várias denúncias sobre réprobas atuações clericais – designadamente aqui se transcrevendo a seguinte diatribe de Las Casas: «E visto alegar o bispo das Canárias que depois de cristãos os faziam escravos e tal era nocivo, bem pouca luz tinha este bispo não sentindo e não sabendo ser iníquo, perverso, tirânico e abominável em toda a lei e razão, e ainda maior e mais inexplicável pecado, fazê-los escravos antes de se converterem, porque com isso infamavam o nome de Cristo e punham a religião cristã a feder e a causar aversão, necessariamente erguendo obstáculos às conversões; de maneira que outra razão não tinham, nem causa nem justiça, para lhes invadirem com violência suas terras e matálos com guerras cruéis, subjuga-los e cativá-los, que não fosse por eles serem infiéis, e isto era contrário à fé e a toda a lei natural e de razão, contrário à justiça e à caridade, assim se cometendo grandes e gravíssimos pecados mortais e nascendo a obrigação da restituição, fizessem tais coisas franceses ou portugueses ou castelhanos…» 2 .
19.5.3.
Resenha sobre a Insulíndia
Ante o calvário do povo da Insulíndia, importa, desde já, sublinhar importantes considerações tais como: a insularidade, a multiplicidade de etnias (e com os matizes de ordemetnológicaimbricam-sematizesdeordemhistórica),porumlado,e,poroutrolado, a constatação de que ainda hoje persiste em muitas mentes o mito urdido pelos Portugueses de que estes povos viviam em grande primitivismo. Decorria, é óbvio, da insularidade que estes povos ficavam relativamente mais à mercê da vaga da devastadora violência dos Portugueses, pois que mais limitada a sua possibilidade de fugirem para outras paragens 3 .
1 João, cap. 7, vers. 7.
2 Bartolomé de Las Casas – «Brevíssima Relação da Destruição de África», cit., p. 274.
3 Inteirei-me, em Timor, de que os pequenos barcos de pesca («beirus»/corcoras) eram muito escassos, pois que bastante apertada a respetiva concessão de licenças (havendo escrutínio pidesco), tal a precaução contra a permeabilidade com outras ilhas. Onde estive, na zona costeira do leste carregada ao «mar-mulher» («tai-tupuru»), muito poucos havia para além do do Roque, descendente de um lascarim moçambicano (da etnia landim).
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«Malaca era, então, a cidade mais célebre de todo o Oriente pelo comércio…; as suas casas eram magníficas, opovodocee civilizado,alínguadopaís, considerada amais bela do Oriente, era comum a todas as Índias, como o Francês e o Latim na Europa; uma grande ponte ligava as duas partes da cidade, separadas por uma ribeira; o povo parecia, pelos seus vestuários, viver na abundância; a cidade dependera outrora de Siam…» 1 Esta cidade não era rodeada de muralhas («cidade aberta»).
Malaca era abordada por navios de muitíssimas paragens Sequeira (com uma frota de cinco navios), quando lá chegou, encontrou, no porto, quatro navios chineses entre vários de outros países. Pouco após, Albuquerque, com uma frota de 19 navios, avançasobre Malacae aí depara com navios deváriasparagens, designadamentechineses.
Castanheda assegura: «… ganha Malaca, se desfez quase todo o trato de especiarias dos Mouros do Mar Roxo, porque esta era a principal parte de que as levavam e não de Calecute.» 2
A História nos aponta que era razoável o nível civilizacional das Molucas, das Ilhas de Banda. As ilhas de Banda eram o grande mercado de noz-moscada, cravo-daÍndia e «macis», aí se encontrando comerciantes de diversas e remotas origens. Assim, os Bandaneses «muito longe estavam de ser tão selvagens como os autores portugueses os descreveram». A propósito do que acaba de ser dito, aduza-se esta achega recolhida da descrição da viagem de Fernão Magalhães: depois de ter tocado em Mindanau e Sanguin (1521), a frota de Fernão de Magalhães, na altura chefiada por João Carvalho (por Magalhães ter sido morto na ilha de Mata ou Mauta), iria ser levada às Molucas por um piloto chinês. Acrescente-se que Marco António Pigafetta, que fizera parte da viagem, nos dá conta, por exemplo, da presença duma embarcação de Luzon (ilha das Filipinas) em Timor, quando lá chegou o capitão Sebastião del Cano (1522) 3
1 Francisco de Azevedo Gomes – «Civilizadores ou Bárbaros?», cit., pp. 105-106.
2 Francisco de Azevedo Gomes – «Falsificação da História», cit., vol. I, pp. 65 e 71.
3 O etnólogo Ruy Cinatti diz: «Pigaffeta, cronista de Fernão Magalhães e autor da primeira notícia circunstanciada sobre Timor em língua europeia, refere-se ao junco de Luzon que encontrou em 1522 num dos portos da ilha ‘para fazer o comércio do sândalo’. Esta referêncianãosópormenorizaanaturezadasrelaçõesentãoexistentesentreTimoreasFilipinascomorefereahipótesedeumcontacto mais íntimo, efetuado possivelmente em data anterior à relatada. De facto, não parece exagero aproximar os terraços amuralhados dos Kemak de outros que, em maior escala, revestem os vales e as montanhas da região de Baguio, na ilha de Luzon. A sugestão, aliás confirmada por outros aspetos da colonização de determinadas áreas de Timor por gente filipina do grupo Igorot, é mais do que possível. Os Bunak, por exemplo, contam que os seus antepassados abordaram Luzon antes de terem subido aos montes de Timor, meta definitiva da sua longa caminhada.» – Ruy Cinatti – «Brevíssimo Tratado da Província de Timor» (separata da «Revista Shell» nº 346), 1963, p. 10.
Eu soube, em conversa com Ruy Cinatti, que, segundo aventam alguns etnólogos, a Insulíndia éhabitada por povos que seguiram dois trajetosdistintos:unsterãodescidodas Filipinas, outrosterãopassadodoextremo sul docontinenteasiático,possivelmentedeMalaca, à fiada de ilhas que se dispõe em arco até à Nova Guiné. Acrescente-se: um etnólogo americano, que havia defendido uma dissertação sobre as Filipinas, ficou muito surpreendido ao descobrir que no extremo leste de Timor (entre os Fataluku, Macassai, Makalere…) havia engenhosas habitações, construídas com ancestrais preocupações de arte e magia, bem esguias sobre quatro troncos arbóreos, similares às de algumas etnias daquele arquipélago, declarou Ruy Cinatti.
Neste contexto, é pertinente evocar as publicações referidas em Francisco de Azevedo Gomes – «Os Fataluku» (tese de licenciatura), 1972, p. 40.
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Segundo Antropólogos e Historiadores, foi da Ásia Meridional que advieram os povos da Insulíndia 1
A nível comportamental, como algo se aludirá, era relativamente significativo entre esses povos um certo equilíbrio na coexistência, um certo pendor para alianças.
Em várias paragens desse mundo insular, depara-se com o ancestral costume, numavinculaçãodeexogamia,dodito «conúbiocirculante»: aunião/aliançadeunstantos clãs, de cada um destes ancestralmente passando ao que se lhe segue («dadores de mulheres»/«recebedores de mulheres»), numa dinâmica circular, mulheres em casamento. Refira-se ainda quanto à cultura espiritual de povos da Insulíndia, a vinculação/solenização de «pactos de sangue» e até, designadamente a nível das ilhas Trobriand, o costume do «kula» 2 .
Foi esse vasto mundo insular inundado pelos incontáveis flagelos que perfaziam a «epopeia» dos Portugueses. E a vincar a identidade destes, também aí era vulgaríssima designadamente esta faceta da sua política de terror: sulcavam nesses mares, irrompiam entre esses insulares, engalanando os navios com grandes fiadas de cabeças (humanas) que fartamente iam decepando 3 .
Como sempre, para facilitar a tarefa de esmagamento desses povos, os Portugueses fomentaram divisões entre eles, manipularam crapulosos lacaios, praticaram as mais vis traições, desenraizaram socialmente as gentes, esfacelaram os respetivos sistemas organizacionais. Por exemplo, eis um dos pontos do seu programa para desaguisar Tidore e Ternate, reinos com longo historial de amizade: profusamente iam propalando, ao som de trompa, que dariam um rico pano por cada cabeça de Tidoreano que lhes fosse trazida por Ternatanos. E muitas cabeças foram cortadas 4 .
Sobre a História da Insulíndia muito nos transmite o autor (que, como já se disse, primou no recurso a fontes) de «Les Indes Portugaises et Hollandaises», estudo de que são provenientes os seguintes excertos 5 :
«Os Portugueses tratavam os Amboinianos como povos conquistados: eles raptavam nos caminhos e mesmo nas casas as raparigas que achavam do seu agrado,
1 Em «Peoples and Cultures of the Pacific», obra editada por Andrew Vayda, em 1968, diz-se, no «Ensaio Preparatório», pág. IX, acerca destes povos: «Este pequeno setor de espécies humanas, no seu mundo insular, tem sido e, de facto, continua a ser de especial interesse e significado no estudo humano.»
2 Francisco de Azevedo Gomes – «Os Fataluku» (tese de licenciatura), 1972, pp. 99 e 115 a 120.
Ver Felix Keesing – «Antropologia Cultural», Editora Fundo de Cultura, trad. José Veiga e Waltensir Dutra, 1961, pp. 241 e segs. Também o Prof. Doutor Jorge Dias, nas suas lições, se debruça sobre o «kula» e as «alianças de sangue». Prof. Doutor Jorge Dias –lições de «Instituições Nativas» («Antropologia Cultural»), cit., pp. 127 e segs
Ver também Bronislaw Malinowski – «Moeurs et Coutumes des Mélanésiens», 1933.
3 Francisco de Azevedo Gomes – «Civilizadores ou Bárbaros?», cit., pp. 173-174.
4 Francisco de Azevedo Gomes – «Falsificação da História», cit., vol. I, pp. 97-98.
5 Francisco de Azevedo Gomes – «Civilizadores ou Bárbaros?», cit., pp. 231-232 e, ainda, p. 218.
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obrigavam-nas a satisfazer a sua volúpia e, depois de vários terem abusado delas, as reenviavam.Eles chegavammesmoaocúmulodatiraniade,semprequequeriamdivertirse com a mulher dum Amboiniano, colocarem as suas armas diante da porta para dar a conhecer ao marido que não podia entrar em sua casa, o que ele não ousava fazer sob pena de perder a vida. Quando eles entravam nas casas, apoderavam-se, sem pedir, do que achassem do seu agrado, tal como o melhor peixe, que os habitantes acabavam de pescar, dizendo-lhes: Tida patout orang itam matam ikan, jang baik daanbezar bagini hania; ikan cablinio sampei pada die orang. Ou seja: não convém que os negros comam tão bons peixes; o cablinio (peixe muito apetecido) é demasiado bom para eles. Se eles os seguiam, lamuriando-se, eles atiravam-lhes, algumas vezes, uma pequena moeda, dizendo-lhes: anda katsjor ou peji anding! O que quer dizer: vai-te embora, cão!»
«… não havia qualquer justiça, os Portugueses pilhavam impunemente os insulares e os que deles ousassem queixar-se eram mortos ou condenados a pesadas punições.»
Nesse cenário, o que há de mais rocambolesco ocorria: Entre Brito, Governador das Molucas, e Garcia Henriques (nomeado este por Albuquerque para substituir aquele no dito cargo), há desentendimentos em Ternate. Quando Brito, após ter entregue a fortaleza a Henriques, se preparava para partir, «recebeu nos seus navios todos os soldados que o queriam acompanhar, quer tivessem acabado o seu tempo ou não. Brito atraiu tantos deles (estes, na sua maioria, tinham arrecadado algumas especiarias) que Henriques logo viu que a fortaleza ficaria despovoada e ele ficaria quase só. Henriques mandou um protesto a Brito, que zombou dele. Isso levou-o a mandar tirar o leme e as velas ao principal navio, mas Brito e os seus homens retomaram-nos pela força, ameaçando Henriques de lhe racharem a cabeça» 1 Tendo o rei de Tidore caído gravemente doente, pediu a Henriques que lhe enviasse um médico experimentado. Henriques enviou-lhe um que o envenenou por sua ordem. Henriques ataca e incendeia a cidade de Tidore, «embora os Tidoreanos não se tivessem defendido», pois que o ataque foi inesperado, traiçoeiro. Os Espanhóis, tendo voltado, neste entrementes, às Molucas, são recebidos com afirmação de amizade pelos insulares, tal era a ânsia destes em afastar o horror português 2 .
Os Espanhóis ergueram dois baluartes de pedra em Tidore e reafirmaram que as Molucas cabiam nos seus limites. Os Portugueses atacam-nos, mas são repelidos.
1 Idem, ibidem, p. 183.
2 Idem, ibidem, p. 191.
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1
Meneses chega a Ternate com a comissão de governador e manda «publicar a proibição aos insulares» de chegarem a entendimento com os Espanhóis.
Meneses prende Henriques, após uma disputa, mas depois põe-no em liberdade («os homens de Henriques ameaçaram Meneses de que se ele não o libertasse iriam entregar-se aos Espanhóis») «e, durante algum tempo, viveram juntos como amigos, mas oshomensdeHenriques, receandoqueMenesesos retivessenasMolucasparaoajudarem a defender-se contra os Espanhóis, resolveram malquistá-los novamente» Para isso, «deitaram veneno em alguns poços onde os Ternatanos iam buscar água e ocupavam alguns a violar mulheres e raparigas de Ternate» e atacaram e mataram umas pessoas inermes, dizendo que isso fora «feito por ordem de Meneses». Por fim, «segredaram a Henriques que Meneses encarregara um homem de o assassinar. É, então, armada uma cilada a Meneses, após terem-no aconselhado a enviar a maior parte dos seus soldados a Bachiam». Henriques e os seus prenderam-no, «ataram-lhe o corpo com uma corrente de ferro e puseram-no numa masmorra. O seu pajem, que se tinha esquivado, subiu ao alto da torre e tocou a rebate, mas os conjurados, tendo acorrido aí, deitaram-no da torre abaixo, tal como a um criado de Meneses, que estava doente» 1 .
E Meneses só foi libertado quando os seus amigos conseguiram a intromissão dos Espanhóis nesse sentido.
Juntamente com António Brito, nome relevante ligado à comissão de proceder às primeiras investidas contra as ilhas de Banda, os demais chefões que se lhe seguiram no esmagamento dessas paragens cometeram as maiores selvajarias (a acrescer ao já mencionado corte e exibicionismo de cabeças): designadamente, mantinham presos na fortaleza os príncipes locais 2 , ainda crianças ou jovens, simulando tê-los sob sua custódia/vigilância até à idade de, sob sua alçada, ocuparem a realeza, mas, após total amarfanhamento, os iam ora matando ora manietando, sob rédea apertada, como seu vil joguete.
Aqui fique como exemplo este episódio: Tristão de Ataíde mandou ir buscar Hair 3 para a tal aparente regência (de Ternate), após vaga esta por prisão de seu irmão mais velho Taberidji 4 , morto no navio que seguia a rota de Goa, em que o meteram 5. Quando
Idem, ibidem, pp. 193-194.
2 E de nada valiam os pedidos dos pais no sentido de os libertarem (ob. cit., p. 216).
3 Era «filho de Baiang Ullak (falecido rei de Ternate) e duma mãe javanesa». Hair viria a ser morto, por apunhalamento, pelos Portugueses. Francisco de Azevedo Gomes – «Civilizadores ou Bárbaros?», cit., pp. 217 a 224.
4 A Deyal, seu irmão, os Portugueses mataram-no por envenenamento, quando «se aproximava da idade» de ocupar a dita regência.
5 Note-se: os Portugueses conservaram o corpo de Taberidji (pelo qual os nativos nutriam simpatia), salgando-o. Teriam os Portugueses em vista colher um qualquer dividendo com o salgamento do cadáver? Diga-se, de caminho, que, na minha tese «Os Fataluku», ante a constatação deque sobre não raros maiorais timorenses incidira um ritual de mumificação, aludi à teoria difusionista designada pan-egípcia, segundo a qual «todas as culturas constituiriam imitações, enriquecimentos ou degenerescências da cultura e
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os soldados foram buscar Hair, a mãe dele «recusou entregá-lo, receando que isso lhe custasse a vida, e segurava-o, abraçando-o. Mas eles arrancaram-lho furiosamente e, para se livrarem dos seus gritos, atiraram-na por uma das janelas da sua casa, o que lhe custou a vida. Esta ação enorme foi olhada com horror, tanto pelos Ternatanos como pelos povos vizinhos, e agitou-lhes nos espíritos todas as outras tiranias. Lamentavam-se entre si do triste estado a que estavam reduzidos pela insolência dos Portugueses…» 1
Como lúdica trivialidade, eis que se matava até alguém que, com as mãos atadas atrás das costas, era, na praia, entregue à arremetida de cães ferozes 2; eis que até, como o fez o governador de Colombo, se procedia à chacina de agregado populacional, enquanto este, de noite, dormia 3 .
Transcreva-se ainda o seguinte 4 : «Ataíde tinha enviado Pinto para acabar de descobrir Mindanau e as ilhas vizinhas, onde foi bem recebido. Tendo parado, no regresso, na ilha de Sarangani, o rei desta ilha usou para com ele de toda a honestidade e concluiu uma aliança com ele, que foi confirmada com a bebida dum pouco de sangue, numa expressão de juramento, segundo o costume do país. Então os insulares não olhavam já os Portugueses senão como amigos e vieram descontraidamente aos navios, mas logo que Pinto atraiu muitos e viu que a presa valia a pena, obrigou-os a descer ao porão para os levar e vender como escravos.»
Tão abomináveis atuações «levaram todos os povos da vizinhança a unir-se para exterminar os Portugueses… Eles conseguiram mesmo a adesão dos régulos das ilhas Papuas. Os Ternatanos, que tinham prometido começar as hostilidades, e sempre confiavam na proibição de levar víveres à fortaleza, renovaram-na e prometeram aos aliados que, se isso não tivesse pronto efeito, eles mesmos arrancariam todos os cravosda-Índia e árvores de fruta e abandonariam a ilha, a fim de que os Portugueses nada encontrassem nela para comer ou para ganhar e fossem obrigados a abandoná-la também. Depois que este acordo foi concluído, os Ternatanos enviaram todos os seus móveis e haveres para lugar seguro, a fim de que os Portugueses nada encontrassem para pilhar, e abandonaram todos, numa manhã, a cidade de Ternate… Retiraram-se para outros portos da ilha afastados da fortaleza, mas os Portugueses, tendo-se dirigido aí para os desalojar, eles fugiram para montanhas inacessíveis, de onde faziam incursões sobre os que iam
civilizaçãoegípcia»(vide«Difusionismo»,in «Verbo– EnciclopédiaLuso-BrasileiradeCultura/EdiçãoSéculoXXI»,EditorialVerbo – Lisboa, 1999, vol. 9, p. 309»). Francisco de Azevedo Gomes – «Os Fataluku», cit., pp. 127-128.
1 Francisco de Azevedo Gomes – «Civilizadores ou Bárbaros?», cit., pp. 218-219.
2 Idem, ibidem, p. 215.
3 Idem, ibidem, p. 160.
4 Idem, ibidem, pp. 219 a 221.
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buscar água e madeira, mesmo para os inteirar de que era sua intenção jamais regressar à cidade de Ternate. Um dia, em que ventava extraordinariamente, foram aí atear fogo, que consumiu, com as suas próprias casas, alguns edifícios bastante consideráveis que os Portugueses tinham mandado construir para seu uso. Ao mesmo tempo, os seus aliados atacaram os Portugueses em todos os lugares onde se tinham estabelecido. Entre outros, Mamoie, na costa de Moro (da ilha Gilolo, cujo rei se havia suicidado para não cair nas mãos dos Portugueses que lhe haviam cercado o palácio), onde mataram um bom número.»
A fome caiu sobre a fortaleza de Ternate e ia matando os portugueses, que, por várias vezes, caíram em emboscadas, quando saíam da fortaleza à cata de víveres. Estamos, pois, perante uma atuação em moldes de guerrilha.
Aos Portugueses exasperava-os o facto de por ali irromperem outros europeus, designadamente Espanhóis e Holandeses. Os Holandeses, quase sempre ajudados pelos países locais, acabaram «por expulsar os Portugueses de todas as ilhas Molucas e países circunvizinhos, exceto uma pequena fortaleza que lhes restou em Sólor». Aconteceu que os próprios habitantes de Sólor pediram, em 1654, auxílio aos Holandeses contra os Portugueses, o mesmo tendo feito Timor, por mais que uma vez, conforme disso há registo 1 .
Os Portugueses acabariam por ficar apenas em Timor (metade oriental), pois o governador José Lopes de Lima vendeu (em dinheiro, foram 200 000 florins…), em meados do século dezanove, as Flores e Sólor aos Holandeses 2
Os Portugueses obrigavam os nativos a hostilizar os Holandeses (e há registo de terem assassinado um compatriota por com estes ter dialogado), publicitavam, por todo lado, que eram «gente sem leira nem beira», «espiões» e malfeitores da pior espécie; e igualmente há registos 3 da sua atuação cruel para com Holandeses a que conseguiram (designadamente à traição) deitar a mão 4
1 Idem, ibidem, pp. 211 (e 208).
2 Prof. A. Silva Rego – lições policopiadas de «História do Ultramar Português», cit., pp. 787-788.
3 Francisco de Azevedo Gomes – «Civilizadores ou Bárbaros?», cit., pp. 206-207.
4 Eis um simples exemplo: «Os Portugueses apoderaram-se de uma chalupa holandesa em frente de Macau, com 20 homens. Enforcaram 18 e enviaram os outros dois para Goa» («Civilizadores ou Bárbaros?», cit., p. 207)
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19.5.4. Considerandos antropológicos e históricos
À luz da História e da Antropologia Cultural, há, a níveis que iremos abordar, um cotejo a fazer entre essa Europa opressora e a generalidade dos povos que por ela foram esmagados.
Quanto a este assunto, remetendo para vários autores mencionados em «Falsificação da História» 1 , passo a apresentar, aqui, alguns dados elucidativos, um tanto circunscritos ao mundo subjugado pelos Portugueses.
Comece por dizer-se que aqueles que vilipendiaram a África teimaram em transmitir e vincar para a posteridade, quanto a ela, uma versão crassamente distorcida e não apenas quanto a esta factualidade em que mais uma vez se repisa: na África oriental, havia uma civilização que, não menos avançada que a da Europa de então, rumava para mais elevados níveis. Como caracterizar a afirmação, ainda hoje tão em voga até em meios académicos, de que a Expansão Europeia foi a grande alavanca que levantou esse vasto Mundo dum atraso quase simiesco, além de tudo o mais se fazendo tábua rasa, designadamente da milenar civilização indiana e do referido «statu quo»civilizacional da costa oriental de África?
Na mesma de linha de Historiadores e Antropólogos, alguns dos quais por ele referidos 2, Basil Davidson (ob. cit.) fundamentadamente sublinha, como já se aludiu, significativas diferenças entre a África e a Europa, em termos de crueldade, desumanidade (ao invés de mitos infames engendrados e difundidos pelos opressores), sendo fértil na apresentação de dados que levam a reconhecer, em termos comparativos, maior hospitalidade e cavalheirismo no mundo africano.
A África, desde os primórdios da referida Expansão Europeia, bem inteirada ficou de que, nos invasores europeus, eram ingentemente elevados os níveis de prepotência, crueldade, injustiça e ganância – e se estes eram os atributos da estrutura de força ali presente, fácil era inferir que o eram também quer dos respetivos poderes que a mandatavam quer de vertentes (designadamente a do ordenamento jurídico) que destes emanavam.
É elucidativo um evento transmitido pelo Prof. A. Silva Rego 3: o rei do Congo, ante tanto rigor a que estava sujeita a própria soldadesca portuguesa, perguntou a Baltazar
1 Francisco de Azevedo Gomes – «Falsificação da História», cit., vol. I, pp. 239 e segs.
2 Designadamente Whiteway e Evans Pritchard.
3 Prof. A. Silva Rego – lições policopiadas de «História do Ultramar Português», cit., p. 185.
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de Castro: «em Portugal, que pena se aplica a quem põe os pés no chão?» E transcrevase este passo de Luiz Luna 1 : «Costa Lobo dá lastimável impressão da sociedade portuguesa no século XV. Não foi notável o seu progresso no século seguinte. As suas leis eram as mais cruéis da época. O furto, mesmo de valor insignificante punia-se com a pena de morte. Havia crimes, como a falsificação da moeda, que eram punidos com a tortura do fogo. Apesar disso, a criminalidade no país alcançava índice jamais atingido em outra qualquer parte do mundo. Ninguém se preocupava com o sofrimento alheio. A palavra solidariedade era estrangeira no vocabulário luso. A miséria grassava no Reino inteiro, poupando somente a minoria privilegiada, a corte e os áulicos do rei, que beneficiavam com a desgraça do povo. A população não chegava a três milhões de almas, exploradas impiedosamente pelas classes dominantes». Quem será capaz de conceber penas mais horripilantes, penas mais rebuscadamente entretecidas com sádicos cambiantes do que aquelas que aparecem descritas, por exemplo, no extenso capítulo VII (intitulado «A Pena Nos Estados Feudais e Absolutistas Europeus») da tese apresentada pelo catedrático Ruy da Costa Antunes 2?
Basil Davidson 3 recolheu esta descrição de Whiteway, ao assinalar que a guerra entre os Indianos era bem diferente da «determinação sangrenta» dos Portugueses: «Toda a luta se processava durante o dia, quando o sol já ia alto; os dois exércitos rivais acampavam em frente um do outro e dormiam em paz… Ao rufar do tambor, cada exército se afastava para o seu lado para formar a sua linha de combate. Era de boa nota ser-se o primeiro a rufar o tambor, mas não se consentia qualquer ataque antes do lado oposto ter rufado o seu »
E, noutro lado, o mesmo historiador diz-nos, a propósito, quanto à África, esse continente que os colonialistas viriam insolentemente a mitificar como «terra de tormentos selvagens, de escuridão mental e moral, infantil e perversa no seu comportamento»: «A guerra africana, como a indiana, era conduzida de forma a destruir o menor número possível de vidas, não o maior…»
«Considere-se, por exemplo, como era conduzida a guerra entre os Azande, um povo numeroso da África Central, que os europeus muitas vezes consideraram como tendo uma tendência sangrenta para o morticínio e para a conquista. A descrição é de Evans Pritchard, um daqueles europeus que ultimamente tanto têm feito para equilibrar
1 Luiz Luna – «Resistência do Índio à Dominação do Brasil», Editora Fora do Texto (Coimbra), 1ª ed. portuguesa, 1993, pp. 90-91.
2 Ruy da Costa Antunes – «Problemática da Pena». Recife – 1958.
3 Basil Davidson – «Revelando a Velha África», cit., p. 197.
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com mais justiça o julgamento dos factos: ‘uma vez que a finalidade era obrigar o inimigo a retirar, de forma a poder reivindicar a vitória com um mínimo de baixas próprias, evitava-se, geralmente, fazer o cerco completo (kenge aboro), pois se o inimigo fosse incapaz de retirar, ao ver que não havia saída, decidia-se a vender a vida o mais caro possível. Por isso, os Azande deixavam uma brecha na retaguarda. Além disso, havia ainda uma convenção tácita, segundo a qual o combate começava por volta das 4 horas da tarde, de forma que aqueles que viam que as coisas lhes estavam a correr mal se pudessem retirar a coberto da noite.»
O que sobre o assunto em apreço ressalta da correlação feita entre a Europa e a África,ressalta,também, demodo geral, dacorrelação entreaEuropaeasoutrasparagens subjugadas 1.Reportando, quanto aisto,parapublicações já referidas 2,aqui deixo apenas alguns dados elucidativos:
Na Insulíndia, muitas tribos havia que, em caso de iminente confronto bélico, advertiam (até com recurso a trompa) os oponentes quanto às armas e homens de que dispunham.
Nos exércitos da Índia, soldados havia que deixavam a linha de batalha para virem buscar o soldo que estava em atraso.
Vários príncipes das «Índias» chegaram, condoídos, a interceder por soldados portugueses no sentido de não aplicação de penas cruéis pelos respetivos chefes.
Um príncipe indiano houve que particularmente se distinguiu em tudo fazer no sentido de convencer os Portugueses quanto ao ideal da Paz, mas como todos os esforços foram sempre em vão, ele optou por deixar o poder e internar-se num convento budista Chegou-se ao ponto de, nesse país perpassado pelo ideário de Buda, enviar-se, em magnânima e implorante missão de paz, um brâmane até Gama, tendo-o este enforcado 3
Na Índia, civilização milenar, deparava-se com muitos resultados benéficos da difusão do budismo. Na China de então, eram reais os resultados da difusão do confucianismo. A nível da Europa, era supina a traição, a afronta à mensagem de Jesus de Nazaré. Nada é pior do que a iníqua e calculista manipulação/perversão do ótimo. Refira-se, de caminho, que havia, por exemplo, em Cranganor, indivíduos dum ramo cristão oriental («cristãos de S. Tomé») e não consta que eles fossem, de forma
1 Nesta tese se regista o que, por exemplo, o Bispo Bartolomeu de Las Casas, que viveu durante quarenta anos entre os Índios, quanto a estes testifica e quanto denuncia a sumamente iníqua atuação dos Espanhóis e dos Portugueses.
2 Designadamente «Falsificação da História», cit., vol. I, pp. 241-242.
3 Francisco de Azevedo Gomes – «Falsificação da História», cit., vol. I., p. 43.
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alguma, hostilizados, apesar de constituírem uma insignificante minoria, nessas paragens 1
«Em 1505, o Sultão do Egipto enviara Julius Maurus, Geral dos Monges do Monte Sinai, ao Papa». A este foram entregues cartas do Sultão capazes de agitar o mais duro coração em peito de fera, tais eram as injustiças, as desumanidades de que ele participava.
Lembrava-lhe o Sultão que «ele jamais fizera qualquer mal aos cristãos e muito menos aos Portugueses».
«O Papa, tendo recebido estas cartas, enviou pelo próprio Maurus cópia delas aos reis de Espanha e Portugal, pedindo-lhes para lhe darem conhecimento do que eles julgassem ‘pertinente’ que ele lhe respondesse. Este último respondeu que deixava à prudência de Sua Santidade dar a resposta que julgasse conveniente. Que esta era uma guerra de religião. Que seria de desejar que o Papa pudesse unir todos os cristãos para eliminar o Maometismo, no que ele estava resolvido a esforçar-se. Que, assim, os seus generais jamais deixariam de lhe fazer guerra nas Índias e por toda a parte. Que ele garantia que os seus generais penetrariam em Meca e aí extinguiriam a memória do falso profeta…» 2
O que logo e prioritariamente se lhe apresentou como pertinente foi agitar, com bajulação, perante o Papa, o negro e ensanguentado estandarte da guerra de religião, «guerra santa» (à rapina, ao saque, ao sadismo, ao deboche, não havia que aludir). Consabidamente, os interesses papais identificavam-se, na generalidade, com os interesses dos Reis. E o Papa delirava com a perspetiva de alargar o seu poderio sobre o Mundo.
«… Extinguiriam a memória do falso profeta» – mas, afinal, eles massacravam todos os demais povos, fosse qual fosse a sua religião.
O Papa foi pelo rei incentivado a congregar todos os «cristãos» na luta contra os Maometanos. Mas é por demais sabido que, quando outros povos europeus (na sequência da Reforma) se entranharam no «império português», os Portugueses hostilizaram-nos com toda a sanha, acusaram-nos de usurpadores dos seus «direitos» e perturbadores da sua missão de «fazer cristandade» 3 .
Idem, ibidem, vol. I, p. 43.
2 Idem, ibidem, vol. I, pp. 314-315.
3 Mais adiante se exarará algo sobre «Direito de Padroado».
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O que o rei de Portugal quereria era que vários exércitos europeus fossem aniquilar o Egipto, a Turquia, a Arábia, a China, etc. e regressassem, depois, à origem para que os Portugueses, aliviados duma vez para sempre de concorrentes e resistentes, pudessem, exclusivamente eles, cevar-se no sangue dos oprimidos, enquanto iam vendendo as especiarias à Europa a preços três vezes mais elevados – o que aconteceu –do que aquele que pelas mesmas era cobrado enquanto o seu fornecimento esteve assegurado pelas articulações comerciais árabes, que os invasores completamente desbarataram.
19.5.5. Matanças coloniais no século vinte; o caso, em 1912, de Manufahi
(Timor)
Fique aqui uma pincelada sobre algo ocorrido em Timor, em 1912, e na guerra colonial.
Em termos de crueldade, de sadismo, de festivos estendais de despojos humanos, que diferença se poderá descortinar entre a investida, no século vinte, em Timor, contra o reino de Manufahi e as sanguinárias arremetidas, em que, desde o fundo dos séculos, os Portugueses vinham insistindo?
Aluda-se a alguns registos do livro «Timor-1912» (publicado em 1939) de Jaime do Inso, homem manifestamente afeto ao colonialismo, que tomou parte na devastação referida em epígrafe como 2º tenente da canhoneira «Pátria»:
Referindo-se «aos acampamentos de Maubisse, todos eles enfeitados com cabeças cortadas», acrescenta que «já às vezes se tornava insuportável o cheiro dos cadáveres em decomposição, quer dos que ficavam mortos no campo, quer dos que iam morrendo dentro das tranqueiras». «Em Ate-Sabi», descreve ele, «chegaram a deixar-se morrer de fome, nas cavernas, mais de cem homens que não quiseram render-se…» e, após mencionar que, só no final dum assalto, trouxeram para o governador «um presente de trezentas cabeças» 1 , eis como narra a matança após a tomada do último reduto – o monte Leulaco (onde os cercados, tal como usualmente acontecia, viram vedados pelos sitiantes todos os acessos à água):
«Os nossos caíram-lhes em cima e fizeram enorme mortandade. Os mais ágeis, valentes ou felizes conseguiram fugir, mas muitos caíram, deixando o campo semeado de
1 Jaime do Inso – «Timor – 1912». 1939, p. 89.
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cadáveres, uns três mil, vazados pelas descargas, pelas metralhadoras… Durou dois dias a chacina e, por fim, os lascarins já abandonavam os vencidos, dizendo: ‘já doem os braços, senhor, já não pode cortar mais cabeças!’. Ao fugir, muitas mulheres iam ‘seguindo o seu caminho sem maior precipitação; aqui e ali iam caindo uma, outra e mais outra, alcançadas pelas balas, e as restantes, com uma estoica indiferença, limitavam-se a afastar-seumpoucoparanãopisaremos corposdascompanheirasinanimadas» 1 (ob.cit., p. 197).
«Toda a família daquele famoso régulo foi decapitada no próprio solar, incluindo a mãe…» (p. 198).
Ao regressar-se da campanha, o governador era «esperado» fora de Díli «pela quase totalidade do reduzido elemento europeu ali residente» (p. 199).
Entrava-se em Díli com cabeças de desgraçados: «E durante alguns dias acamparam as forças no pântano, junto à estrada de Lahane, mostrando fora das tendas os tétricos despojos dos vencidos» (p. 200)
Após rendido por uma força de lascarins moçambicanos (landins), o contingente de marinheiros que tomou parte na expedição contra estas gentes é, no seu regresso, em Baucau, apoteoticamente recebido por um missionário, que ensaiava, em movimentos festivo-militares, crianças timorenses, algumas com menos de seis anos. O tenente que comandavaoditocontingente,entusiasmado,pôsumsargentoaensinaràmiudagem «uns princípios de recruta…» (pp. 180 a 183).
Antes deprosseguir-se,refira-seque,apardaguerradeManufahi, houveconflitos no reino de Ambeno e em alguns pontos do leste da ilha, nesse mesmo ano de 1912, e Jaimedo Inso, referindoalgumas causas detais agitações, alude àduratarraxasobre esses seres ainda «tão próximos do estado selvagem» em termos de contribuições e obrigações exigidas e de proibições impostas, assim como ao «mau tratamento que alguns comandantes de posto – sargentos, cabos e até soldados – infligiam aos indígenas como se afirmava ter sucedido quando se quis recrutar gente nova para a guerra», bem como a atitudes de «política local» que o autor recusa explicitar, pois, segundo ele, «até repugna citar».
1 Noâmbitodaatitudedos«senhoresdomundo»paracomasdespiciendas«fêmeas»,evoque-setambém,porexemplo,estaocorrência narrada por Francis Mazière: no séc. XIX (1811), no navio americano «Pindos», ancorado junto à ilha de Páscoa, o segundo-tenente Waden, em gesto corroborado pela generalidade dos marinheiros, «empunha uma espingarda e começa a atirar para o grupo das desgraçadas» jovens nativas, que nadavam para terra, pois perto desta, após trazidas para bordo e sobre elas chafurdar sexualmente a marinhagem, foram «forçadas a lançarem-seà água». FrancisMazière – «Fantástica Ilha dePáscoa»(trad. deMaria Luísa Trigueiros), Bertrand, 1965, 3ª ed., p. 39.
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Em Timor, foi-me dado conhecimento do destaque que, no detonar desta guerra de Manufahi, teve a seguinte faísca: a violação da predileta do régulo Boaventura por maioral da Administração portuguesa 1. E, no seguimento do que se vem exarando, acrescente-se: Celestino da Silva, governador de Timor (o qual, na mira de vigiar mais facilmente os Timorenses, ordenou que muitas povoações fossem transplantadas para a berma das picadas e cercanias dos postos administrativos, o que constitui grave atentado designadamente em termos antropológicos), dirigia, em 1896, ao rei Carlos a seguinte asseveração 2 : «Não deve haver receio de afirmar que a maior parte das guerras deste distrito têm tido como causa primária os abusos, as prepotências, a rapacidade…» 3 Prossiga-se, recolhendo algo mais de Jaime do Inso, que faz rasgados elogios do colonialismo e que, repisando em inalteráveis e tão vincadas caracterizações dos Timorenses exaradas durante séculos pelos opressores que os espezinhavam, assevera serem traidores, não tendo os Portugueses qualquer confiança neles, a ponto do Governadorselhesreferircomoa «umexplosivocomqueseandassenasmãos»(segundo o autor, os ensinamentos da História da «colónia» apontam nesse sentido – p. 145). Eis porque eram distribuídas «Remingtons» sem cursores nas alças (p. 83) aos «moradores» pelos Portugueses arrastados para a guerra Para esta campanha, além de insulares (Timorenses e «Chinas»), os Portugueses arrastaram também lascarins de Moçambique (os landins) e das possessões indianas (os «maharatas). E, além dos insulares mais ou menos militarmente agrupados, também levavam outros mais ou menos em turbamulta –os «arraiais», com «lanças de bambu» ou coisa similar. Note-se: ao falar de uma progressão militar, o autor diz que atrás «iam os europeus e as nossas praças cavalgando» (p. 161).
Prossigamos: Jaime do Inso assim descreve o arrastamento de prisioneiros para as masmorras de Díli: «… levas de prisioneiros, esqueléticos, mirrados, quase que a largarem a vida, mal podendo arrastar o peso das algemas. Fazia impressão contemplar aqueles bandos de desgraçados que se amontoavam aos centos, na cadeia, onde chegavam a morrer quinze por dia. Eram prisioneiros de guerra. De quatrocentos e cinquenta, pouco mais restava de metade, e Malai Macário, que fazia parte integrante da cadeia, dizia que morriam com
1 Francisco de Azevedo Gomes – «Uma ‘deusa’ no Inferno de Timor», cit., p. 21.
2 Luís Filipe F. R. Thomaz – «Timor – Autópsia de uma Tragédia», 1977, p. 131.
3 Cincoanosantesdo meu desembarqueem Timor, ocorrera o rechaço sangrentoda revolta deViquequede1959 (envolvendo também Uatolari e Uatocarbau).
De passagem, aluda-se à estimativa de que na «guerra de Manufahi e nas várias revoltas de 1894-1901, 1907-1908 e 1910-1913», ocorreu a morte de cerca de noventa mil indivíduos – cômputo a que nos conduz a leitura de Geoffry C. Gunn – «Timor Loro Sae: 500 anos», ed. Livros do Oriente, 1999.
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indigestão de arroz» (pp. 37-38). Estava-se no início da arrancada para Manufahi. Referindo que o carcereiro Macário, no começo da guerra, estava em Ermera, sem armas, a dormir, enquanto lhe «passavam os vapores do álcool», rejubila com as «cargas de cavalo marinho» com que ele começava a fustigar esses prisioneiros mal eles chegavam à masmorra» (pp. 38-39).
Tendovisitadoas masmorras deBatugadé 1 (que, segundo ele,foram, «em tempos, um nome trágico de Timor e temido lugar de desterro), Jaime do Inso relata: «Visitámos o presídio, de má fama, pelo terror espalhado pela história das suas prisões. Para ali eram enviados os presos que mereciam maior castigo, e entre outras histórias sombrias que corriam, acerca do famoso presídio timorense, contava-se que, em tempos idos, sucedia haver um ou outro preso que, por motivos que as histórias não rezam, nem mesmo ali convinha conservar, e, nesse caso, a escolta que o conduzia recebia a seguinte recomendação: ‘este preso foge’! E, assim, o preso ‘fugia’ e não chegava ao seu destino, apresentando a escolta apenas a sua cabeça, como prova do zelo com que cumpria o serviço do Governo…» (p. 79). E dá ainda conta de prisões quase subterrâneas, sob uma espécie debaluartes, nos vértices das muralhas. Entrarali causavapesadelos; nem ar, nem luz, apenas um chão húmido, sobre o qual um homem não podia estar de pé. Prisioneiro que ali entrasse, informaram-nos, durava semanas…» (p. 80). Note-se: eu estive designadamente ante as do forte de Loré.
Quanto à guerra colonial, o que se aponta em «Falsificação da História» 2 permite uma ideia sobre o que foi possível perpetrar-se. Há abundante informação exarada, por exemplo, sobre o aniquilamento de várias povoações em Moçambique. E, quando uns Padres ergueram, denunciantes, a voz, em 1972, acerca, designadamente, dos massacres de Wiriamu, Mucumbura, Chawola e Jwuau («já após o 25 de Abril de 1974, o missionário holandês José Martens assegurará que ocorreram ‘centenas de Wiriamu em Moçambique’ e aponta a região de Inhaminga, na província de Sofala, como palco de sucessivos massacres» 3 perpetrados sobre «pessoas que recusaram o aldeamento forçado»), o que eles padeceram designadamente por parte da Igreja, conluiada com o
1 Uns anos mais tarde, passou a haver, para Timorenses pelos opressores achados inconvenientes, um encerro mais sinistro do que o Tarrafal: ou seja, o Ataúro, o «ilhéu damortelenta». Acerca do quedecruel seabatia sobreos infelizes atiradospara o Ataúro, poderá, por exemplo, ler-se Francisco de Azevedo Gomes – «Uma ‘deusa’ no Inferno de Timor» (Romance e História), cit., pp. 55, 50, 51, 83, 9, 10 e passim.
2 Francisco de Azevedo Gomes – «Falsificação da História», cit., vol. I, pp. 330 a 361.
3 De caminho, diga-se terem sido abordados em «Falsificação da História», cit., vol. I, pp. 352-353, os «quatro grandes massacres» perpetrados pelos Portugueses – Batepá, Pidjiguiti, Mueda e Baixa do Cassangue –, aos quais se seguiram os consabidos movimentos independentistas/guerra colonial em África.
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Estado, conforme ancestral historial. Capelão em Angola, o Padre Mourão, que objurga a atitude dos «nossos Bispos» e refere a «generosidade dos negros», aí «assistiu aos primeiros grandes massacres… ‘Mais detrintamil pretos foram executados nos primeiros meses… Conheci um oficial que tinha à sua conta mais de quinhentos assassínios. Foi condecorado no 10 de Junho (…) A coragem do exército ‘limitava-se a pegar em pretos das sanzalas e a atirá-los para valas… » 1
«O Julgamento dos Padres do Macúti» 2 , livro de que são coautores quatro indivíduos (sendo eles, julgo, os advogados de defesa), consiste na divulgação do julgamento (com seus depoimentos, etc.) ocorrido no Tribunal Militar de Lourenço Marques. Se quisesse fazer citações deste livro, por onde haveria eu de começar se nele narrados tantos massacres horripilantes de tantos inocentes, na guerra colonial: homens, mulheres e crianças? Estripados, queimados vivos, metralhados, sendo, em muitos casos, previamente despidas as mulheres. Crianças, muitas crianças de tenra idade mortas. São registados os nomes de algumas delas… Quanto ao massacre de Mucumbura, por exemplo (p. 113), relata-se, entre outros horrores, o encerramento, à força, de várias pessoas numa palhota, seguidamente incendiada e metralhada. Eis algumas das vítimas: «Ester, de 10 anos; Margreta, de oito anos; Maria, de seis anos; Tafira, de um mês; Cufa, de treze anos; Maza, de doze anos; Verónica, de oito anos; Rosa, de seis anos; Rebeca, de quatro anos; Maria, de sete meses; Jessai, casada, de vinte anos; Rorosi, de dois anos…» – eis parte do depoimento duma freira, coincidente com depoimento de outras pessoas, por exemplo, com o de outra freira (p. 123) que acrescenta ainda alguns nomes, designadamente o de Helena, mulher casada e mãe de várias das crianças. Tantos massacres e tão horripilantes torturas. «… Espancaram as vítimas, obrigaram-nas a abrir covas e, dentro delas, mataram-nas à machadada e paulada» (p. 119). Esquartejaram homens na presença das esposas e filhos (p. 120, por exemplo). De um deles um Padre veio a encontrar apenas a cabeça: «Mais tarde, o padre da Missão de Estima, Renato, encontrou a cabeça de Damião e deu-lhe sepultura». Leia-se o livro e medite-se. E, para bem da Humanidade, também para sempre haja memória da vaga de aniquilamento (conjugado com o que há de mais horroroso) no surto independentista, no Norte de Angola, perpetrada por turbamultas compelidas designadamente por Holden Roberto (UPA - FNLA); e para sempre persista a memória de propalados horrores
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Fernando Dacosta – «Colóquio ‘A guerra colonial e o 25 de Abril – O pecado mortal da Igreja», no «Público», de 11.4.95, p. 19.
João Afonso dos Santos, Carlos Adrião Rodrigues, António Pereira Leite, William Gérard Pott – «O Julgamento dos Padres do Macúti», Porto – 1973.
cometidos por consabidos maiorais ora deste ora daquele «movimento de libertação»; e igualmente não se esqueça a Humanidade dos transes em que, após retirada dos opressores colonialistas, os que tomaram as rédeas do poder – do poder, repita-se! –monstruosamente assassinaram tantos dos seus compatriotas.
19.5.6. Apêndice: umlampejo sobre a guerra colonial portuguesa 1 – apresentado no final desta tese (ponto 21)
19.5.7. Os despojos humanos: do vilipêndio ao prazer lúdico
Arvorar despojos humanos é cultuar a antítese da pessoa humana. Quem tal perpetra está a jactantemente adorar/cultuar a sua própria indignidade, monstruosidade.
Na abordagem deste fenómeno, fale-se de linhas de força, quer dissimuladas quer explícitas, que induzem em tão enormes patamares de insensibilidade, fale-se em instituições, em instruções, em compulsões, mas não fique por observar-se o seguinte: com a repetição de atos tão cruéis vai-se esvaindo a natural dor, repulsa ou inquietação que acomete a consciência do indivíduo que tal faz pela primeira vez. E, em breve, eis o crasso embotamento.
Quer despojos humanos para imprimir terror quer despojos humanos para serem apreciados como troféus e gratificantes recordações, eis duas facetas duma mesma tétrica realidade que perpassa a História.
Nos nossos dias, eis como tais atitudes foram, por exemplo, profusas na guerra colonial: há órgãos humanos que alguns ciosamente conservaram em frascos; há fotos de caveiras espetadas ora nos sertões ora junto às picadas. Houve cabeças/despojos humanos ostentados em exibicionistas passeatas de turbamultas, em ruas de povoações.
Ao longo desta tese, profusamente se alude a despojos humanos: navios sulcando com fiadas de cabeças humanas em grande evidência (havendo frequente reposição de «stocks»); troféus humanos cinicamente enviados, como presente, aos que se encontravam sitiados; cabeças jogadas em cursos de água que as levariam até às posições defensivas dos nativos; troféus (designadamente orelhas de chimarrões) conservados
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1 Transcrição de um item de «Falsificação da História», cit., vol. I.
pelos opressores europeus. E, junto às muralhas das fortalezas, exibidas levas e levas de militares nativos enforcados
Como ficou referido noutro ponto, o Padre Baltazar Afonso refere a arrecadação massiva de narizes nas chacinas em Angola (619 foram trazidos de uma delas, refere ele, triunfalista). E, ao versar sobre expedições contra os «chimarrões», Artur Ramos diz, a dado passo: «Bartolomeu Bueno apresentou como troféu da campanha ‘três mil e novecentos pares de orelhas » 1 E, note-se: «ao contrário do que muitas vezes se pensa, não foram os Índios quem principiou a prática do escalpamento: o ato de escalpar data do século XVII e começou por ser cometido pelos primeiros colonos idos da Inglaterra para o Novo Continente…» 2
Quanto às Cruzadas (nas quais eram pelos Papas embrulhadas em profusão de indulgências as multidões que partiam para essa «guerra santa»), eis, por exemplo, o que nos narra Jean Guillebaud 3 , a dado passo da abordagem sobre «atrocidades incontáveis, horríveis, inimagináveis…», na 1ª Cruzada, perpetradas pelo «Exército de Nosso Senhor»: «Em Niceia, os Francos inauguram um procedimento que foi empregue posteriormente: corta-se a cabeça dos inimigos capturados, que, ‘com a ajuda de uma funda’…, é lançada por cima das muralhas para desmoralizar os sitiados. Além disso…, os Francos ‘escolheram mil outras cabeças de turcos, que foram metidas em sacos, colocadas em carroças, transportadas até ao porto de Civetot e, de lá, enviadas para o imperador de Constantinopla…» 4 19.5.8. «Guerras justas» – a iníqua «legitimação»
Pelos poderes europeus foram os povos subjugados «coisificados», a pessoa humana foi não só negada, mas ativamente violentada, nos mais diversos aspetos.
1 Artur Ramos – texto «Levantamento de escravos negros no Brasil», na revista «Cultura» nº 19, jan.-fev./1959, p. 11.
2 Veja-se o que, a propósito, de tão cruel se narra em «Falsificação da História», cit., vol. I, p. 465. Leia-se apontamento intitulado «Escalpes: os brancos é que ensinaram os índios», no «Jornal de Notícias» de 30-6-1985, p. 31 Note-se que o próprio Karl Marx aduz dados históricos quanto ao que acaba de ser dito.
3 Jean-Claude Guillebaud – texto «O Ocidente ao encontro dos bárbaros», no «Diário de Notícias» de 13.8.1993.
4 Respeita à 1ª Cruzada este apontamento da «Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira»: «Os Cruzados entregaram-se então a uma carnificina indiscriminada, a que não escaparam nem os anos nem o sexo. Homens e mulheres foram trucidados nos lugares santos. Os dirigentes, nas notícias que enviavam, escreviam exultantemente: ‘No pórtico de Salomão e no templo, o sangue dos Sarracenos chegava aos joelhos dos cavalos» – vide «Cruzada», in «Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira», cit., vol. 8 (de 1998), p. 172.
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1
Do mesmo modo, com o mesmo alcance, com a mesma desfaçatez, com que a Igreja Católica «legitimou a escravatura», «legitimou»também essas «guerras justas», as chacinas de inocentes e inermes nativos, as mais diversas e inauditas violências e extorsões.
O poder secular, conforme já dito algures, carecia do aval da todo-poderosa Igreja Católica para algo deste vulto. Por exemplo, após a sanguinária subjugação de Ormuz, o rei de Portugal abordou o clero quanto à «sacra» ratificação da respetiva posse, como o regista Castanheda: «e este contrato mostrou el-rei de Portugal a doutores teólogos que lhe dissessem se o reino de Ormuz era seu e, dizendo-lhe que sim, o teve dali em diante por seu» 1. E assim diz o palaciano João de Barros: «pode vir a acontecer com o andar do tempo que algumas pessoas de outros reinos e nações, movidas por inveja 2 , malícia ou ambição, tomem ousio de abordar àquelas paragens e nas províncias daquele modo adquiridas e em seus portos, ilhas e mares, navegar, comerciar e pescar contra a dita proibição sem licença e sem pagamento do dito tributo. E aqui poderiam seguir-se, com grande ofensa de Deus e perigo das almas, muitos ódios, rancores, dissensões, guerras e escândalos entre os que estas coisas ousassem e os ditos, o Rei e o Infante, que de modo nenhum sofreriam que assim os escarnecessem » 3 E, noutro passo, assim «justifica os direitosdeel-reiD.Manuelaousodetítulode‘senhordaconquistaecomérciodaEtiópia, Arábia, Pérsia e Índia… O qual título não tomou sem causa ou acaso, mas com muita aução, justiça e prudência, porque, com a vinda de D. Vasco da Gama e principalmente de Pedralvares Cabral, em efeito per eles tomou posse de tudo o que tinha descoberto, e pelos Sumos Pontífices lhe era concedido e dado. A qual doação se fundou em muitas e grandes despesas que neste reino eram feitas, e no sangue e vidas de tanta gente português como neste descobrimento per ferro, per água, doenças e outros mil géneros de trabalhos e perigos pereceram.» 4
Através dos tempos, sempre houve vozes que se ergueram a denunciar as crueldades e afrontas contra a pessoa humana.
Frei António Montesinos, em 1511, em Santo Domingo, na Espanhola, invetivou injustiças, matanças, etc., atingindo, designadamente, os «encomenderos», os quais, juntamente com as autoridades, se abespinharam contra o dito frade 5 .
Prof. A. Silva Rego – lições policopiadas de «História do Ultramar Português», cit., p. 269.
2 Inveja, note-se, quanto à posse sobre pessoas e bens.
3 Adriano Vasco Rodrigues – «História Geral da Civilização», cit., 6ª ed., vol. II, p. 53
4 Marcello Caetano – «Portugal e o Direito Colonial Internacional», cit., p. 32.
5 Prof. A. Silva Rego – lições policopiadas de «História da Colonização Moderna», cit., vol. II, pp. 16-17.
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No historial das denúncias, emparceiraram com Montesinos outros indivíduos, como é sabido
Sendo significativo o alarido causado (na sequência de celeumas em que vozes exprobradoras se erguiam), o poderoso cardeal Cisneros («regente do reino») manda, como já se disse atrás, uma missão de frades Jerónimos à América, a aquilatar do «statu quo», transmitindo-nos o Prof. A. Silva Rego que, às tantas, «… não se sabe bem como, em 1517, chegaram à triste e incompreensível conclusão de que os Índios eram incapazes de liberdade, pois careciam de razão». O teólogo espanhol Padre José Acosta, jesuíta, professor em Salamanca, em livro impresso em 1589, chegava à desfaçatez de afirmar que, na América do Sul, «muitos dos seus habitantes deveriam comparar-se antes a crocodilos e outros animais ferozes do que a homens» 1 ; não menos ficou conhecido outro teólogo espanhol, Ginés de Sepúlveda, para quem os nativos estavam condenados «por natureza à escravidão».
Isto que acaba de dizer-se sintoniza perfeitamente com a doutrina vigente consagrada pelos Poderes e que o teólogo Frei Francisco Vitória veio a sintetizar nestes títulos 2, no seu livro «De Indis Insulanis Relectio Prior»:
1. O imperador da Espanha é o senhor do mundo.
2. O Papa é o soberano, mesmo temporal, do mundo inteiro. Como tal, pode distribuir aos príncipes cristãos as terras dos infiéis, pagãos, etc.
3. As terras dos infiéis são «primi capientis», isto é, do primeiro que delas se apoderar.
4. Na hipótese de os infiéis se recusarem a receber a lei de Cristo, pode agir-se contra eles. Se é lícito obrigá-los a obedecer a seus senhores temporais, «a fortiori» será permitido forçá-los a obedecer a Deus.
5. Os indígenas pecam gravemente contra a Lei Natural. Basta este motivo para sancionar a ação espanhola contra eles.
6. O imperador de Espanha, após haver proposto a civilização europeia aos bárbaros, tem o direito de a impor.
7. Deus, cujos desígnios são secretos, confiou aos Espanhóis a obra da colonização dos bárbaros.
2 Idem, ibidem, pp. 98 e segs.
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Prof. A. Silva Rego – «Lições de Missionologia», cit. pp. 103, 102.
1
Segundo o Prof. Padre A. Silva Rego (este, bem ciente de que era essa mesma a toada doutrinária quanto ao Império português, exara que «foram os Portugueses os escolhidos pela Providência para percorrerem essa via» 1, isto é, ocaminhomarítimo para a milenar civilização indiana), «o oitavo título, que Vitória não ousa apresentar abertamente, diz: ‘Os infiéis e bárbaros são quase privados do uso de razão, sem poderem constituirumaverdadeira sociedadepormeiodeleis convenientes. Porconseguinte,basta isto para permitir a ocupação de suas terras por um poder civilizado» 2 (teologia e política apresentam as terras desse mundo como «res nullius» – «coisa de ninguém»).
Em substância, são coincidentes os títulos acabados de mencionar e os princípios inscritos no dito «requerimento» saído da Junta de Valladolid, em 1513 3 .
Fale-se no dito «requerimento» e na cruel troça em que ele consistia: cercadas (a cerca de meia milha), durante a noite, as povoações pelos contingentes aniquiladores, passaram estes a usar «proclamar» (ou até, segundo o Bispo Las Casas, a «ler entre si») esta intimação sumamente farsante e cínica (isto é, o «requerimiento»): «Índios desta povoação, tornamo-vos assim presente que só existe um Deus, um Papa e um rei de Castela, que é o senhor destas terras. Venham imediatamente submeter-se-lhe, etc. Se não o fizerem, fiquem sabendoquevos faremos guerra 4 evos mataremos e escravizaremos…’ ‘Porvoltadasquatrohorasdamadrugada,assaltavamapovoação,lançavam fogoàs casas, queimavammulheresecriançasvivas,matavamquantosqueriame,porfim,apoderavamse do ouro que se encontrava nas casas.» Também é de Las Casas este excerto: «E ao romper da alva, estando os inocentes dormindo com as suas mulheres e filhos, atiravamse ao povoado, lançando fogo às casas, que comumente eram de palha, e queimavam vivos os filhos e as mulheres e muitos dos demais, antes de acordarem.» E, conforme o assinala Las Casas, os que logo fossem prostrar-se ante os Espanhóis, desde que ouvida essa intimação, iam ser vítimas de igual tragédia (ou logo ou a curto prazo, depois de padecimentos enormes, eram, na generalidade, mortos, enfim, sujeitavam-se ao que ele refere em «Brevíssima Relação da Destruição das Índias», cit., pp. 62, 171, etc.).
O «requerimento» foi o corolário engendrado para colmatar o requisito, note-se, de «justa causa»; o requisito que precedia este era o da «autoridade do príncipe por cujo mandato se há de fazer a guerra», tendo essa autoridade sido conferida ao monarca
Prof. A. Silva Rego – lições policopiadas
2 Idem, ibidem, vol. I, p. 16.
3 Idem, ibidem, vol. II, p. 18.
4 As tais «guerras justas».
I, p. 147
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de «História da Colonização Moderna», cit., vol.
espanhol pelas bulas papais de doação do continente 1. O Prof. Padre Silva Rego 2 , logo após evocar que Tomás de Aquino sublinhara «justos títulos a sancionarem a guerra», discorre sobre «Justos Títulos» (falando em «Direito», em teólogos, em «Cristianismo», em bulas legitimadoras, designadamente a «bula de doação de Alexandre VI», etc.).
O Bispo Las Casas assevera que aos Índios os Espanhóis «davam-lhes menor importância e poupavam-nos menos que os animais – e digo a verdade, porque a isto assisti permanentemente –, não só menos que os animais (Deus permitisse que os não tivessem tratado pior que animais!) mas menos ainda que o excremento nas ruas (…) Os grandes e inexplicáveis pecados (contra os índios) são os maiores desde o pecado cometido na morte do Filho de Deus» 3 .
Em carta (Las Casas, como já se disse, algo transcreve dela), enviada ao Rei de Espanha, em 20/5/1541, o Bispo de Santa Marta diz que aos índios «coisa nenhuma lhes pode ser mais odiosa nem aborrecível do que o nome de cristãos, aos quais em toda a sua terra em sua língua chamam iares, que quer dizer demónios…», vindo a talho de foice aduzir isto de Las Casas: dum chefe índio, prestes a ser queimado vivo, abeirou-se um frade e, com a pressa reclamada pelo momento, aludiu-lhe à hipótese de obtenção de «salvo-conduto» para se livrar do «inferno» O índio fez ver ao frade que se o «céu» era para os «cristãos» ele não desejava ir para lá, pois jamais queria voltar a encontrá-los. Eis o hino que reforçava o ideal de libertação nos escravos fugitivos da ilha de S. Domingos, os quais, sob o comando do escravo Jean Jacques Dessalines, conseguiram a vitória, em 1/1/1804, proclamando a independência do Haiti 4 : «O bom Deus que fez o sol /que nos ilumina lá do alto, /que agita o mar, /que faz rugir a tempestade, /escutai-me vós, o bom Deus /está oculto entre as nuvens. /De lá ele nos contempla e vê /Tudo o que fazem os brancos. /O Deus do branco ordena o crime, /o nosso solicita boas ações. /Porém, esse Deus que é bom, o nosso, /ordena-nos a vingança. /Ele vai conduzir os nossos braços /e dar-nos resistência. /Destruamos a imagem do Deus dos brancos /que tem sede das nossas lágrimas; /escutemos em nós próprios /o apelo da liberdade!»
1 Fernando Alvarez-Uria – no posfácio («Conquistadores e Confessores»), inserto na edição Antígona (Lisboa –1990) da «Brevíssima Relação da Destruição das Índias», de Frei Bartolomeu de Las Casas, na p. 177.
2 Prof. António Silva Rego – lições policopiadas de «História da Colonização Moderna», cit., vol. II, pp. 22-23.
3 Bartolomeu de Las Casas, ob. cit., p. 17 (prefácio).
4 José Luciano Faria, ob. cit., pp. 60-61.
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19.6. Pirataria, saque, roubos, a insaciável ganância
Numa linha de conduta que já havia sido evidenciada, por exemplo, nas Cruzadas, usou-se, na Expansão pelo Mundo, todo o engenho, todo o embuste, toda a violência, em prol da espoliação e acumulação de fortuna. Os Povos eram extorquidos de tudo sem dó nem piedade.
Comece-se por uma breve síntese: No princípio dos ditos «Descobrimentos», a avidez dos Portugueses recaiu, principalmente, sobre os escravos, como já se referiu Pouco após, porém, estavam ao alcance dos Portugueses fontes de fortuna mais prodigiosas que o negócio de escravos: a rapina de ouro e prata em territórios onde havia jazidas de minérios (a aristocracia de Portugal já há muito sonhava com o ouro do Ofir e já ouvira falar dos minérios do reino do Monomotapa) e, sobretudo, o valioso saque das cidades, logo na costa oriental da África, bem como a pirataria sobre os navios que sulcavam o Índico em todas as direções, desde há tantos séculos.
Transcreva-se o seguinte de Diogo do Couto: «Tinhão tantas vezes persuadido a ElRey Dom Sebastião a que mandasse conquistar as riquíssimas Minas do Reino de Manomotapa, que se moveo a fazello, e pera esta jornada, e Conquista escolheo ElRey Francisco Barreto que tinha sido Governador da India, e que então era General das galez do Reino…» 1
Chegados ao reino do Monomotapa, eis que as mais ímpias crueldades se conjugaram com a voragem de minérios
Mais tarde, em 1667, em relatório de Manuel Barreto, eram apontadas as razões da magra obtenção de ouro, aí, no sudeste africano (reino do Monomotapa): os naturais, emvezdeabrirem minas àprocuradeouro,preferiam «deixá-loficarnaterra,poisrevelar a sua presença só serviria para atrair sobre eles a rapacidade» e as maiores violências por parte dos Portugueses e, além disso, os «encozes» (chefes locais) perdiam em proveito daqueles os seus domínios, quando nestes se descobria minério; por outro lado, faltava a mão-de-obra nativa, pois os «cafres» eram sujeitos pelos opressores a tão inauditas desumanidades que «fugiam para outras terras onde os Portugueses ainda não tivessem chegado» 2
1 Diogo do Couto – «Décadasda Ásia», tomo III («quecontém as Décadas VII, VIII e IX offerecidas ao
…
– Lisboa Occidental, na Officina de Domingos Gonsalves, MDCCXXXVI, p. 535.
2 Basil Davidson, ob. cit., p. 316.
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Senhor Manoel Nunes Vianna
por Domingos Gonsalves»)
A partir desse ponto da costa africana, os Portugueses deparavam com fortuna aos montes.Erasóafugentar,matar,espoliarosdonos, carregá-lanosnaviosetrazê-la:enfim, a fortuna das grandes cidades que margeavam o Índico e os ricos carregamentos dos navios que, em todas as direções, sulcavam os mares. Saques e piratagens, eis, então, a principal preocupação. Os reis de Portugal, que se reservavam o direito a um quinto do que fosse pilhado nos navios, saqueado nas cidades e reinos, usurpado, davam instruções claras às frotas que partiam: «cruzar» 1 os mares ou passagens marítimas mais frequentadas, com o duplo objetivo execrando de piratear os navios e destruir todas as articulações dum comércio bem organizado 2, farejar os locais onde mais abundassem riquezas, fazer guerra e anular todos os pontos de resistência, submeter tudo e todos.
Era enorme a azáfama com que se atiravam a pilhagens ou saques, acontecendo que, frequentemente, a parte que cabia ao rei (o quinto do que se declarava) podia, frequentemente, atingir os cem mil, duzentos mil ducados e até mais. Os militares portugueses recebiam, de acordo com a sua graduação, uma porção do saque, o que nos é dito, por exemplo, neste excerto respeitante ao saque da cidade de Porca: «… onde encontraram tantas riquezas que o soldado menos categorizado teve 800 a 900 ducados como porção do saque; houve-os que tiveram até 8 000. Sampaio teve 200 000 por sua porção e outros capitães portugueses tiveram na devida proporção. Eles incendiaram, em seguida, a cidade e arruinaram o país…» 3
De tal ordem era a avidez, que bem nos elucidam registos históricos de que os fugitivos de algumas cidades vencidas apareceram, de surpresa, a atacar os Portugueses, no momento em que todos andavam dispersos no saque, já carregados de valores que não queriam largar, tendo sido, assim, possível, em alguns dos casos, derrotá-los 4 .
Era esta a obra, sem esmorecimento, frota após frota.
Um registo acerca do saque na cidade de Brava, na costa oriental de África, dános conta de que «alguns soldados cortaram os dedos ou mãos às mulheres para se apoderarem mais prontamente dos anéis e braceletes…», tendo acontecido que «… dezanove portugueses se afogaram por terem carregado tanto a sua chalupa com o saque que ela se afundou»– saque este perpetrado, no trajeto para a Índia, pela frota comandada por Tristão da Cunha e Albuquerque, a qual, com igual brutalidade, fez o mesmo em
1 Andar de um lado para outro, com particular atenção a linhas de passagem de navios, na ânsia frenética e assassina de piratear e de, fincados na consagração dos oceanos como «mare nostrum», anular/aniquilar quaisquer intrusos, assim como manter sob mira pontos costeiros em que achada não garantida a total aquietação dos nativos.
2 Era já de séculos esse comércio que frutuosamente articulava no Índico uma miríade de portos, mas veio a ser implacavelmente destruído (quantas das vezes, sendo logo liquidadas as tripulações por enforcamento nas velas/mastros).
3 Francisco de Azevedo Gomes – «Falsificação da História», cit., vol. I, p. 139.
4 Idem, ibidem, vol. I, p. 143.
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muitas outras cidades, tudo saqueando, vorazmente, após a chacina. No final, depois do incêndio, apenas cinzas.
Tenha-se noção da enorme percentagem de naus que, no regresso a Portugal, se afundaram, mormente por excesso de carga. É vasta a documentação sobre esta temática. Compulse-se, por exemplo, Diogo do Couto, Gaspar Correia, Basil Davidson.
Quanto a naufrágios, em «Doutrinas Económicas em Portugal (Séc. XVI a XVIII)», de Armando de Castro, é aduzido de Duarte de Gomes Sólis (1561-1630), que nos deixou alguns estudos económico-políticos, o elucidativo apontamento (respeitante às viagens comerciais entre Lisboa-Goa-Lisboa) de «que no triénio de 1590-1592, partiram para a Índia dezassete naus, dois galeões e uma caravela, mas que só voltaram as duas naus menos importantes; que, entre 1606 e 1608, de trinta e três embarcações só regressaram três; e que, mais tarde, de cinquenta e cinco naus só se salvaram as cinco menosimportantes»– isto porrazões em que enormemente preponderavaa «sobrecarga», por ganância, seguida de outras, tais como «recrutamento dos marinheiros pela força», «péssimaconstrução»demuitasdasembarcações, «tripulaçõessempreparaçãosuficiente, sobretudo quanto a pilotos e artilheiros», etc. 1 . E, em «Curso de História da Civilização Portuguesa» 2, lê-se: «Eram tão frequentes os naufrágios por excesso de carga que só no curto prazo de 20 anos (1582-1602) foram a pique 38 navios da carreira da Índia, como se vê num dos relatos da célebre História Trágico-Marítima (compilações de Gomes de Brito, vol. V), em que lamentosamente se declara: uma das causas ‘que bota a perder as naus e o Reino, e a Índia e tudo, é a dos que navegam nesta carreira, em sobrecarregarem as naus’ por ‘cobiça insaciável»
Frazão de Vasconcelos aponta que Afonso de Albuquerque, reunindo os capitães, quis saber deles «se he bem que tomando Malaca façamos nella fortaleza ou nom ou se bastará roubarmos Malaca e nos tornarmos à Índia» 3. Foi horrível o massacre em Malaca e ingente o saque feito. «Os soldados de Albuquerque enriqueceram com ele. Embora eles muito longe tenham andado duma declaração exata do ouro e dinheiro saqueado, o quinto pertencente ao rei de Portugal sobre o que foi declarado foi de 200 000 escudos…»
Apoderaram-se ainda de grande quantidade de canhões 4
1 Armando de Castro – «Doutrinas Económicas em Portugal (Sécs. XVI a XVIII)», Ministério da Educação e Cultura, Oficinas Gráficas Bertrand – 1978, pp. 57-58.
2 António Martins Afonso – «Curso de História da Civilização Portuguesa», Porto Editora, 1966, 6ª ed., p. 177.
3 Frazão de Vasconcelos – «Timor (Subsídios Históricos)», Lisboa – 1937, p. 9.
4 Francisco de Azevedo Gomes – «Falsificação da História», cit., vol. I, p. 73.
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«Perdeu-se o mais rico tesouro do mundo, que nunca se viu desde a descoberta da índia’, escreveu Afonso de Albuquerque nos seus comentários ao naufrágio de que se salvou, sendo recolhido na nau ‘Trindade’, que seguia na armada.»
«O cronista Gaspar Correia, em ‘Lendas da Índia’, refere que a ‘Flor do Mar’ levava 200 mil cruzados em ouro para serem entregues a D. Manuel e 400 000 cruzados de Afonso de Albuquerque.» A «nau capitânia», «Flor do Mar», em que seguia Albuquerque e a maior parte do que fora roubado e até o trono em ouro do sultão de Malaca, após embate num rochedo, afundou-se junto à localidade de Aru, na costa de Sumatra. Nela seguiam, também, «jovens rapazes e raparigas que iam ser oferecidos aos reis de Portugal, para além duma tripulação de mais de 400 homens e mulheres» (há registo de que, na nau, seguiam «jovens bordadeiras»para oferecer à rainha). Juntamente com a dita nau, afundou-se um junco, também com tesouros e que, além dum «elevado número de Malabares», levava «um grupo de 60 escravos que iam ser oferecidos a D. Manuel» 1
Em 1988, tal nau foi descoberta no fundo do mar. «Segundo a imprensa malaia, o tesouro deverá ser dividido por três partes: a Indonésia, o grupo que descobriu os restos da nau e o país de origem » E diz, incrivelmente, o Padre Pintado (que há já décadas permanecia na Malásia): «A grande questão reside no facto de interpretar o que é o país de origem. Será Portugal, a quem a nau pertenceu, ou Malaca, de onde partiu para a sua última viagem?» 2
Diz Basil Davidson 3: «Em 1545, S. Francisco Xavier escreveria acerca dos Portugueses que iam para a Índia que lhe parecia haver ali uma força irresistível que empurrava os homens irremediavelmente para o abismo; que havia ali, além das seduções do lucro e da facilidade das ocasiões de saque, algo que aguçara os seus apetites do lucro, porque ali o tinham provado e ali encontravam uma torrente de baixos exemplos e de costumes maldosos para os arrastar. Acrescenta que a roubalheira 4 era tão pública e corrente que a sua prática já não chegava para enegrecer o carácter de ninguém e mal se podia dizer que fosse considerada crime…»
1 Idem, ibidem, pp. 75-76.
2 Gonçalo César de Sá – texto intitulado «Nau de Albuquerque no fundo com tesouro», em «O Primeiro de Janeiro», de 7.6.1988, p. 13.
3 Basil Davidson, ob. cit., p. 197.
4 Ter consciência do Mal elementar implica ter consciência do Bem elementar e vice-versa. Francisco Xavier, recorde-se, não deixou de ser conivente com esta supina monstruosidade: a extorsão (congraçada com a tortura, a morte e tudo o que há de mais iníquo) exercida pela Inquisição, sendo tão ingente horror cumulado com o supino gravame de se lhe ter conferido uma cobertura legal pejada de tons eminentemente «sacros».
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OProf.PadreA. SilvaRego, «historiadorcolonialista»(expressãodeJoséCapela), usando o termo fugidio «presas» (às ocultas das declaradas ficava o enorme montante abarbatado por tantos «in loco») diz: «Uma das principais fontes de receita, no princípio da presença portuguesa na Índia, eram as presas. Pode afirmar-se que Afonso de Albuquerque se manteve, durante algum tempo, quase que com o seu produto apenas.» 1 Chegava-se ao ponto de os próprios portugueses se piratearem uns aos outros: a caminho de Socotorá, o capitão Pantoie «apoderou-se dum navio de Cambaia, no qual se encontrava o príncipe Álea, primo do rei desse país. À sua chegada a Socotorá, encontrou aí Eduardo de Leme que tirou este navio e respetiva carga a Pantoie, sob pretexto de que este se apoderara dele num mar onde ele tinha ordem de cruzar.» 2
Ocorria também que «os capitães davam algumas vezes comissões a particulares para irem em corso sobre os inimigos». Um tal António Falier obteve de Pereira, governador de Goa, «contrato com ele e alguns outros para ir em corso sobre os Mouros, prometendo-lhe parte do proveito. Logo que teve esta comissão, partiu e atacou todos os navios que encontrou, sem se importar se tinham passaportes (passados pelos Portugueses)… Ele roubava tudo e algemava as equipagens até constranger os governadores das pequenas cidades da costa a resgatá-las. Depois de ter enriquecido, mediante uma infinidade de crimes, para fugir ao compromisso de dar a Pereira a parte combinada do proveito e evitar qualquer investigação, solicitou as graças do vice-rei, tendo-as obtido à força de presentes.» 3
Aoscomerciantes das margens do Índico,designadamenteÁrabes, fazia-os tremer a simples ideia de fazerem-se ao mar Era o fim dum comércio que, com os séculos, se tinha tornado grandiosamente articulado, profuso, recriador de cultura e civilização. Os seus tentáculos chegavam até às remotas ilhas de Banda, Sunda e outras ainda mais longínquas. No seguimento do que acaba de dizer-se, é pertinente aduzir-se a observação feita em «Les Indes Portugaises et Hollandaises» 4 de que, «desde que cessou o tráfico dos Sarracenos, cessou o tráfico de especiarias pela via do Egipto, o que tornou os Portugueses senhores de fixar para elas o preço que queriam», acontecendo que, na Europa, este, como já se disse, «duplicou e triplicou até».
Acercando-sedascidades,dosaglomeradospopulacionais,osPortugueses,ávidos de saque e de sadismo, chacinavam, saqueavam e incendiavam. Oferecer-lhes resistência
1 Prof. Padre A. Silva Rego – lições policopiadas de «História do Ultramar Português», cit., p. 325.
2 Francisco de Azevedo Gomes – «Civilizadores ou Bárbaros?», cit., p. 116.
3 Idem, ibidem, pp. 167-168.
4 Idem, ibidem, pp. 45-46.
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era fazer-lhes subir o ódio ao rubro. Em muitos casos, como já referido, não poupavam a vida a ninguém, designadamente às crianças. Só as cidades, os reinos, que se abeirassem deles, com prontidão, carregados de presentes, de víveres, tudo lhes franqueando, prontificando-se ao pagamento de tributo e simulando total submissão à tirania portuguesa, poderiam, em alguns casos, afastar, por momentos apenas, os pontos mais atrozes do programa de violências. Por momentos, pois, em breve, os Portugueses, apresentando ou não pretexto, os tratavam a ferro e fogo. Aliás, quem lhes não conhecia o intento traiçoeiro de, deste modo, ocupar nas cidades as posições mais estratégicas e seguras para, a partir delas, melhor consumarem os seus maléficos intentos… Vejamos: nestes casos em que os reinos se vergavam ao seu domínio de terror, os Portugueses obrigavam-nos aaceitarcínicos «tratadosdepaz»/condiçõesde «paz»: aconstruçãoduma fortaleza – praça forte do despotismo português, donde partiriam sobre as vítimas – e o pagamento dum pesado tributo eram condições que sempre impunham. E quase nunca faltavam estoutras: aentregade reféns (note-se) como caução documprimento dotratado, a oferta de certa quantidade de especiarias, o abastecimento gratuito de víveres, a terminante obrigação de aí proibirem o comércio a outros povos, designadamente aos Árabes (e, mais tarde, também aos europeus que por ali apareceram).
E, depois dos saques e das matanças, não raro os Portugueses impunham também esta condição para a tal «paz» 1: o pagamento dos custos da guerra por eles (Portugueses) acabada de fazer.
E não raro aconteceu que, depois de incendiadas as cidades, quando, na medida do possível, reconstruídas pelos que se haviam escapulido, os Portugueses aí voltavam à matança e ao ateamento de fogo.
Cidades havia que, à chegada dos Portugueses, já estavam completamente abandonadas, tendo os habitantes fugido a tempo do flagelo.
Houve, na Índia, quem tivesse conseguido dos Portugueses concessão de passaporte, a fim de, no mar, escapar-lhes à pirataria, à crueldade. Por exemplo, Lourenço de Brito, comandante da fortaleza de Cananor, passou passaporte a um conhecido comerciantedestacidade.Poucoapós,surgiu-lhenomarocapitãoGonçalvesVascoGoes O comerciante exibiu o passaporte. Ele respondeu-lhe que era falso e pilhou o navio, «após o que cometeu a desumanidade de fazer coser nas velas 2 aqueles que o ocupavam
1 No tocante aos ditos «tratados de paz», diga-se ainda: aconteceu até, por vezes, que impunham a povos, por eles cercados, também a condição de lhes pagarem os custos com o armamento e sustento da força militar que ali estava para lhes fazer a guerra.
2 Prática frequente.
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1
e rebentar o navio com os canhões até que afundou» 1 . As lamentações que, em Cananor, subiram bem alto por aqueles infelizes nada beliscaram a insensibilidade portuguesa.
Persistindo oSamorim em acenaraos Portugueses com os benefícios dapaz, agora que tão violentada a Índia pelas hostes de Albuquerque e de seu irmão Francisco, acabam estes por o submeterem a um dito «tratado de paz», com um consabido calculismo que não se resumia às prepotentes e nefandas condições impostas (uma delas: entregar uma certa quantidade de pimenta em Cranganor). «Diogo Fernão Correal, boticário dos Portugueses, tendo sabido que um navio de Calecute, carregado de pimenta do Samorim, partira para Cranganor, foi secretamente atacá-lo. Os Calecutianos tiveram por bem dizer que a paz estava concluída e jurada e que eles transportavam esta pimenta para Cranganor para a entregar aos Portugueses, conforme o tratado. Os Portugueses, sem escutarem as suas razões, quiseram fazê-los prisioneiros e levar o navio; os Naires, tendo tentado defender-se, seis deles foram mortos, vários outros feridos e o navio tomado.» Naubeadarim, com significativo pendor para o pacifismo, «teve por bem apontar junto de Francisco de Albuquerque a atrocidade deste crime e pedir justiça para um tal atentado. Albuquerque, ou porque teve parte do saque ou porque não quis vergar-se… nem devolveu a pimenta nem castigou Correal » 2
Não valia de nada a estes comerciantes a formação de comboios navais e outras precauções defensivas, na mira de melhor resistirem aos Portugueses: estes, com mais ou menos dificuldades, com seus canhões, apoderavam-se dos navios, passavam os ocupantes a fio de espada, retinham-nos como escravos ou metiam-nos no fundo do mar, após a pilhagem.
Após abarbatada a carga, uns após outros, os navios comerciais e militares eram destruídos, afundados ou, o que mais frequentemente acontecia, incendiados 3. Quer nos portos quer no mar. Há menção de que, no mar, ao persegui-los, se usava, quando tal se achasse conveniente, atirar sobre eles «fogo de artifício»
Porumaquestãodeconveniênciacontextual,designadamenteporquesesentissem com pouco poderio militar no momento, alguns graduados portugueses mandaram, simplesmente, arrancar os esporões e o leme aos navios árabes ancorados: por exemplo, João Homem «mandou retirar as velas e lemes»de todos os navios (trinta e quatro) árabes que estavam no porto de Coulam; o vice-rei Henrique de Meneses apareceu em frente de
Francisco de Azevedo Gomes – «Civilizadores ou Bárbaros?», cit., pp. 77-78.
2 Idem, ibidem, p. 60.
3 Por vezes, os Portugueses retinham em seu proveito um ou outro navio, quando dispunham de equipagem para o efeito.
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Cananor e exigiu ao rei a «entrega de todos os navios mouros que estavam no porto, com a respetiva artilharia», tendo acabado por obter dele que fossem cortados os esporões, fossem cortados os remos e lhe fosse entregue a artilharia 1 .
Logo no reinado de Manuel I, que navio daquelas paragens ousava fazer-se ao mar? Enfim, esse «Mare nostrum»(«nosso mar») de que os usurpadores, com ferro, fogo e um imenso rol de supinas iniquidades, se tornaram exclusivos senhores. Tão só aqui se relembrem estas palavras de Castanheda (já referidas no ponto 19.5.3, quanto à subjugação de Malaca, em 1511): «… ganha Malaca, se desfez quase todo o trato de especiarias dos Mouros do Mar Roxo, porque esta era a principal parte de que as levavam e não de Calecute.» 2
E, ao fim de quase um século, os Portugueses podiam ver por todo o lado o resultado da sua obra: cinzas, ruínas, morte, desespero, obscurantismo, miséria.
Pouco havendo, agora, de considerável para saquear ou piratear, os Portugueses voltam, de novo, a elevar ao topo da sua escala de avidez os escravos.
Ao longo de vários séculos, foi particularmente horrendo e gigantesco o tráfico oceânico de escravos entre a África e a América, o qual, como já se referiu, foi iniciado pelos Portugueses.
A quem, com curiosidade científica, tiver lido, nesta tese, designadamente este ponto sobre pirataria/saque e o ponto sobre morticínios, não deixo de recomendar que, de seguida, leia (repiso: leia circunspectamente) tudo o que se expõe, em «Falsificação da História», no ponto «Breve alusão à mensagem de Fernão Mendes Pinto» («Peregrinação») 3 (e recomenda-se que, em conexão com o que de mui douto aí se aduz deAntónioJoséSaraiva, seatentenoquedeArmando Cortesãoseapresentaem «História da Expansão Portuguesa no Mundo» 4).
Em Portugueses e Espanhóis, tão infrene como a avidez de sangue era a avidez de riquezas.
E, tal como fartamente atestado pelo Bispo Las Casas – na sua «Brevíssima Relação da Destruição das Índias» (cit.) –, bem como por vários outros, os Espanhóis
1 Idem, ibidem, pp. 179-180.
2 Francisco de Azevedo Gomes – «Falsificação da História», cit., vol. I, pp. 65 e 71.
3 Francisco de Azevedo Gomes – «Falsificação da História», cit., vol. I, pp. 415 a 427.
4 Hernâni Cidade, António Baião e Manuel Múrias – «História da Expansão Portuguesa no Mundo», Editorial Ática, 1939, vol. II, pp.
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afanavam-se em exigir aos nativos, com ameaças terríficas, que lhes trouxessem até o que nem tinham, designadamente uma porção de ouro ou de prata, com celeridade
Respigue-se, de caminho, de Las Casas apenas este registo bem esclarecedor como imensos outros: o «virtuoso», «obediente» e «pacífico» rei índio Guarionex, que já se tinha desfeito em prodigalidades para com os Espanhóis, veio a propor, a fim destes não exigirem mais ouro (pois para seus súbditos já tinha sido um inimaginável calvário a consecução do que até então tinham entregue), que os povos seus subordinados cultivariam, em proveito de Espanha, uma enorme «lavra que chegasse desde Isabela, que foi a primeira povoação dos cristãos, até à cidade de São Domingo, que são cinquenta léguas bem puxadas…» 1. Proposta feita em vão: Las Casas regista (ob. cit., p. 50) o fim trágico que veio a ter o proponente, a sua mulher («violando-a um capitão…») e o seu povo
Eis um simples episódio (a que também se alude noutro ponto desta tese) respigado de entre a imensidão dos que preenchiam o quotidiano: Numa cilada urdida com requintes de traição e em que membros do clero tinham papel de relevo, os Espanhóis deitaram a mão ao Imperador dos Incas, Atahualpa. No momento em que um frade, conforme previsto, lhe fazia a cínica oferta da Bíblia. Obteve dos Espanhóis a promessa de que seria posto em liberdade, logo que fosse entregue o «resgate de 52.000 marcos de prata e 1.326.500 pesos de ouro» – montante este que «os Índios pagaram com uma pontualidade calvinista. Desta ingente soma cobrou o rei cerca de 400.000 pesos» 2 Uma vez recebida esta fortuna, logo com supina crueza o mataram
O que faziam os Espanhóis, na azáfama de saquear cidades e povoações, era o mesmo que faziam, conforme já descrito, os Portugueses: monstruosidades da mesma natureza e grandeza.
Quanto ao vertente assunto, da vasta tipologia de procedimentos dos Espanhóis contra os índios apenas a estes se aluda: prendiam inúmeros índios e asseveravam-lhes que só mediante a entrega dum determinado quantitativo em ouro «per capita»é que cada um poderia conseguir a sua libertação, mas, quantas vezes, após entrega de tal montante, voltavam a ser presos no povoado, para darem novo quantitativo; e um capitão exigiu ouro a todos os índios de uma comunidade e cada um, que lho ia entregando, recebia uma
1 Bartolomeu de Las Casas, ob. cit., pp. 49-50.
2 «BrevíssimaRelaçãodaDestruiçãodas Índias», cit.,p. 176 (ou seja,no posfácio).Segundo ditonapág. 130 deob.cit.,atésesuperou o montante que se reclamara.
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cédula nominal comprovativa, asseverando o fulano que «haveria de atirar aos cães»todo o que não tivesse cédula, o que implicou a fuga e morte de muitos 1 Chegavam os índios, na tentativa desesperada de evitar o pior, a tomar atitudes como esta: «… vinham os índios a dois e dois fazendo sinais em como desejavam a paz em toda aquela terra, e perguntando-lhes o que queriam, se ouro ou mulheres ou comida, e que lhos dariam, e que assim os não matassem…» 2 Neste contexto, aduza-se, aleatoriamente, ainda este passo de Las Casas: «Entrando eles numa aldeia (da Flórida) aonde os receberam com alegria e lhes deram de comer até fartar e mais de seiscentos índios se prestaram a servi-los como azémolas para suas cargas e serviço de seus cavalos, tendo o tirano de lá saído, volta ao povoado um capitão parente do tirano-mor para ali tudo roubar estando eles com sossego, e matou a golpes de lança o senhor e rei da terra e fez outras crueldades... Num outro povoado…, passaram a fio de espada pequenos e grandes, crianças e velhos, súbditos e senhores, a ninguém poupando.» 3
19.7. Acometimentos sexuais
Ante o desbragado deboche e a indescritível violência sexual em que o «empreendimento» das «conquistas»/«dilatação da Fé» afogou a imensidão das gentes espezinhadas, ressalta o porquê, face a isto, da condescendência da Igreja, ela que, conforme bem documentado nesta tese, tanto formatava os católicos no encratismo, gnosticismo e montanismo 4 À Igreja fascinava-a a «epopeia» de alargar-lhe o domínio 5 sobre todo esse mundo, o domínio sobre pessoas encaradas como «coisas», mais propriamente, encaradas como despiciendo «gado» naturalmente sujeito a toda a espécie deviolênciasearremetidas,designadamente asdeordemsexual:enfim, essevastomundo foi também encarado como um vasto leito de fartura lúbrica sobre o qual, com toda a naturalidade, com um enorme à vontade, se atirariam os invasores, se atiraria enorme
1 Bartolomeu de Las Casas, ob. cit., p. 154.
Como avulso exemplo, refira-seque, no caso apontadopelo Bispo Las Casas naspp.118-119, estavampresos, numa espéciedecurral, inúmeros índios, velhos e novos, onde iam morrendo uns após outros, de fome e de sede.
2 Idem, ibidem, p. 155 (ver também p. 156).
3 Idem, ibidem, pp. 123-124.
4 É claro que, na Europa, ao arrepio do puritanismo apregoado pelo clero, o deboche e os torpores sexuais campeavam entre os eclesiásticos, designadamente a nível das mais altas esferas.
Os que não têm em si o Amor, os que não se movem no universo do Amor, geralmente fazem do sexo, exatamente, um universo, assumindo uma destas atitudes aparentemente opostas: uns exploram-no, afanosamente, na ânsia de dele colherem o que ele não pode dar, outros atribuem-lhe uma repelência e perniciosidade (há quem chame a isto «fenómeno de exaltação sexual»), muito embora, em segredo e no íntimo, a maioria destes o adorem como o apetite por excelência – uma espécie de antítese em que os dois aspetos contendentes, a doutrina e a prática, mutuamente se abraçam num requinte de sordidez e incongruência.
5 Domínio que se dizia pertencer a um «deus» anuente aos argumentos de seus «medianeiros».
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percentagem do clero. Não era com toda a naturalidade, não era com a mais descarada avidez que os membros do clero negociavam em escravos/escravas, ocorrendo até, não raro, que «bichas captivas» foram recebidas como emolumentos devidos pelos atos «sacros»?
O comportamento dos Portugueses era tão cruel e sórdido que, desde logo, os povos se compenetraram de que não bastava, na tentativa de conter-lhes os ímpetos de destruição 1, ofertar-lhes os mais valiosos presentes e adiantar-lhes o pagamento do tributo, havendo, também, que, para o efeito, cevar-lhes o baixo-ventre 2, pondo-lhes à disposição as mais belas raparigas, designadamente as próprias filhas 3 Conforme profusamente documentado, eis a práxis em todas essas paragens do Globo, lá até aos confins da Insulíndia: crapulosos acometimentos, descontraídas violações de donzelas e mulheres casadas, com o gravame de, frequentemente, tratar-se de um tropel de vários a sucessivamente acometerem sobre cada uma das vítimas.
Na escravatura, em que com naturalidade envolvidos membros do clero, era muito mais elevado, como já referido, o preço das «fêmeas»/«bichas cativas» mais novas, ou seja, as de «peito erguido».
Por força do «jus proprietatis» (direito de propriedade), era usual uma escrava de dez ou menos anos já não estar virgem.
Pablo Larraneta 4, citando Juan Eslava, diz, a dado passo: «Não havia melhor presente entre compadres do que uma escrava donzela, pois bem se vê que o seu dono a desflorará mal faça doze anos »
Do imenso acervo de dados existentes sobre o negócio negreiro, respigue-se este de entre tantos registos similares atinentes a clérigos: o Padre José Luís de Bastos, em Pernambuco, em 1819, comprou «sete negras e uma cria» e, além de outros escravos, «duas molecas» (escravas jovens) 5. De caminho, repise-se ainda num ou noutro simples apontamento quanto ao comportamento a nível de «missionários»: o rei do Congo, ao queixar-se amarga e insistentemente das enormes violências, abusos e escândalos que tinham vindo esmagar as suas gentes, reiterada e dolentemente expõe as iniquidades do clero 6; o Bispo de Goa invetiva o recebimento de «bichas cativas»em pagamento de atos
1 Como referido algures, eis o que era expectável: o que não se perpetrasse logo, seria feito a curto prazo.
2 E ficou bem documentada a derivação dos instintos, em muitos indivíduos, para investidas pedófilas, designadamente sobre crianças masculinas (abyssus abyssum invocat – abismo chama abismo…).
3 Igual procedimento ocorrianoNovo Mundo,conformeprofusamenteexarado,designadamentepelo BispoBartolomeu deLas Casas.
4 Pablo Larrañeta – «La Loca Historia del Sexo em Espanha», na revista «Tiempo» nº 493, de 14-10-1991, p. 18.
5 António Carreira – «O Tráfico Português de Escravos», cit., p. 60.
6 Houve «estreita conexão rapidamente estabelecida entre o missionário e o esclavagista» – José Capela, ob. cit., p. 72.
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«sacros»; o Padre Baltazar verbera o deboche dos clérigos com nativas, designadamente escravas
Luiz Luna 1 refere-se, com frequência, ao quotidiano de violências e aberrações sexuais dos colonizadores no Brasil. Eis um dos seus registos quanto ao acometimento sexual sobre as índias: «As mulheres, depois do serviço, fossem ‘casadas, solteras ou gentiles–comoinformaopadreMontoya–eldueñolasencerrabaconsigoenunaposento, com quien pasaba las noches al modo que un cabron en un curral de cabras »
Cabe referir, neste contexto, que, conforme designadamente o refere José Capela, as ilhas de Cabo Verde e S. Tomé, «viveiros de gado humano destinado a embarque», eram «depósito e centro de reprodução» (quantos mais escravos fossem «gerados» mais «peças» havia para venda 2), acontecendo que «a maior receita da coroa naquelas ilhas e em Angola era o imposto sobre escravos embarcados, 4 mil réis por cabeça…» 3. Em consonância com o que acaba de dizer-se, está, por exemplo, este expressivo registo do Bispo Las Casas 4 : um indivíduo «gabou-se» perante um religioso, «dizendo que trabalhava quanto podia para emprenhar muitas mulheres índias, a fim de que, vendendoas emprenhadas como escravas, por elas lhe dessem maior preço em dinheiro».
Em 1518, Simão de Andrade parte com uma frota para a China. «Apoderou-se na China de alguns lugares que fortificou, após o que pilhou o país, apoderando-se de bens e raptando filhas dos Chineses, que, cansados das suas extorsões, o atacaram, mataram uma parte dos seus homens e fizeram muitos Portugueses prisioneiros.» 5 Se eles agiam deste modo para com a China, país relativamente forte, fácil será perceber o que eles faziam num mundo completamente por eles esmagado.
Fernão Mendes Pinto 6 narra como oCapitão António Farialançaas garras a umas «lantéas» (embarcações) que rumavam com uma noiva e seus muitos acompanhantes, muito festivamente (com tocatas, «ao costume da China»), ao encontro (que teria lugar ali na «ponta de Tilaumera»), conforme acerto prévio dos nubentes e parentela, das embarcações em que chegariam o noivo e seu séquito. «Quis a nossa boa fortuna» – eis a perversa expressão que usa Mendes Pinto quanto à referida oportunidade que se lhes deparou (segundo ele, o lugar do evento passou a designar-se por «o da noiva»). A noiva (a «levávamos connosco», diz, a dado passo, Mendes Pinto), filha de um indivíduo de
1 Luiz Luna – «Resistência do Índio à Dominação do Brasil», cit., p. 93. Ver também pp. 47, 57, 58, 129, 136 e passim.
2 As infelizes eram encaradas como bestas de trabalho e como bestas com que sexualmente se chafurdava, do que advinha «gado» para venda.
3 José Capela, ob. cit., pp. 117-118.
4 Bartolomeu de Las Casas, ob. cit., p. 97.
5 Francisco de Azevedo Gomes – «Falsificação da História», cit., vol. I, p. 148.
6 Fernão Mendes Pinto – «Peregrinação e Outras Obras», 2ª ed., Livraria Sá da Costa, Lisboa – 1981, vol. I, pp. 175 a 180.
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elevado estatuto socioeconómico, reunia encantos e os «dous moços pequenos, seus irmãos», eram «mui alvos e bem-assombrados». Em suma, foram saqueadas as «lantéas», raptada a noiva e seus dois irmãos, bem como «vinte marinheiros que nos foram muito bons para a equipação dos juncos, de que algum tanto vínhamos faltos».
Havia haréns de escravas, de «cativas», que os chefões tinham ao seu dispor. Muito rejubilavam os comandantes portugueses quando se apoderavam dos haréns dos príncipes.
Afonso de Albuquerque, depois de mandar executar muitos goeses e de ter mandadodecapitarcento ecinquentaprisoneiros,nãolargouoharém dopríncipeZabaim, apesar de tão atabalhoada a sua fuga de Goa, ante o avanço decidido das tropas comandadas por Pultecam, e manteve-o sequestrado, ali ao seu dispor, dizendo que o queria trazer para a rainha Maria. E, ciumento, ameaçou os capitães que lhe rondavam algumas das mais belas raparigas.
Jorge de Albuquerque apoderou-se do harém de Cunal, rei de Pacem. E tantos outros casos.
Não raro, espoliavam, imediatamente, das joias essas mulheres (como aconteceu ao harém do régulo de Porca, que caiu na posse do capitão Sampaio) e, depois, quando delas enfastiados, exigiam pela sua libertação um pesado resgate.
Era intenso, com avidez/«gulodice», o tráfico (para vários destinos) das «alvas» chinesas – as designadas «muitsai»–, de indianas, de malaias e de Timorenses, conforme designadamente narrado pelo Padre Manuel Teixeira 1
De caminho, diga-se que, entre os colonizadores portugueses, em Macau, muitos houve que não usavam dispensar lânguidas melodias tocadas por artista autóctone no instrumento musical «pipa», enquanto eles mantinham relações sexuais com chinesas 2
«De Macau exportavam-se para Manila, Malaca e Goa escravos japoneses e chineses; as escravas chinesas eram conhecidas pelo nome de muitsai» (Padre Manuel Teixeira, ob. cit., p. 11).
«Relatando os labores apostólicos dos Jesuítas em Macau em 1652, o Padre Francisco de Sousa escreve: ‘Embarcaram para a Índia mais de quatrocentas escravas de preço; e na última nau que partiu para Malaca, embarcaram ainda duzentas» (ob. cit., p. 11).
1 PadreManuelTeixeira – «OComérciodeEscravosemMacau», ImprensaNacional, separatadoBoletimdoInstitutoLuísdeCamões, 1976, pp. 9 a 12.
2 Francisco de Azevedo Gomes – «Uma ‘deusa’ no Inferno de Timor» (Romance e História), cit., p. 248.
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«Couto refere-se ao desaforo dos mercadores que vão de Macau para Malaca e Goa, ‘carregados de moças alvas, e fermosas, com que estão muitos anos amancebados» (ob. cit., p. 12).
Conforme o referido autor bem o documenta, muitos eram os escravos na posse de religiosos, sendo designadamente abundantes nos conventos de freiras.
De caminho, diga-se: o Padre Manuel Teixeira (ob. cit., p. 5) refere que, segundo «Descrição de Macau», de António Bocarro, havia, em 1635, em Macau oitocentos e cinquenta Portugueses, todos possuindo muitos «escravos darmas de que os mais e milhores são cafres e outras nações» 1
O Juiz Pinto Osório, nos fins do séc. XIX, além de denunciar 2, em Macau, graves violências contra «infelizes presos da raça chinesa», invetiva também casos de «sedução de donzelas pelo beatério e agentes das corporações congreganistas» 3
Na origem dum sangrento recontro na ilha de Zebut, estaria a «frequentação das mulheres daqueles insulares» pelos homens da frota de Fernão de Magalhães (este foi morto naquelas paragens, na ilha de Mauta, numa situação em que um tanto afastado dos seus navios e respetivos canhões).
Sendo sabido que «abismo chama abismo», refira-se, à laia de parêntese, o seguinte: um condenado português, João Machado, levado por Cabral para o desterro em Melinde, acabou por daqui passar-se às «Índias», onde Zabaio (pai de Zabaim) o alcandorou ao posto de capitão. Este acaba por ser acolhido entre os Portugueses, após em prol destes prestar serviço de espião. «Não ousando ou não podendo levar os dois filhos que tivera duma sarracena de Goa, resolveu sufocá-los durante a noite», após o que se introduziu naquela cidade, sendo que «a sua chegada deu prazer aos Portugueses» 4 .
Em nossos dias, em Timor, não me passaram despercebidos casos de transmissão de mulheres 5 por indivíduos (na altura de regresso a Portugal), a troco de dinheiro. Mulheres das quais, não raro, tinham filhos que para ali ficavam a atestar a dita «multirracialidade lusíada».
1 Num confronto, em Macau, em 24.6.1622, entre Portugueses e Holandeses, aqueles atiraram contra estes os escravos/lascarins, aos quais tinham previamente «embebedado com vinho e ópio» para agirem mais acalorados. Os Holandeses foram, na sua maioria, barbaramente mortos. Resguardados, conforme referido pelo autor, «muito poucos Portugueses» foram vistos na contenda (Padre Manuel Teixeira, ob. cit., pp. 6 e segs.).
2 O que redundou em perseguições contra o mesmo e seus colaboradores, tendo havido punições e até um desterro.
3 António Ferreira – «Elogio crítico e biográfico do Conselheiro Augusto Carlos Cardoso Pinto Osório», (proferido, em 12-5-1920, no Instituto Histórico do Minho), Companhia Portuguesa Editora, 1920, p. 20.
4 Francisco de Azevedo Gomes – «Civilizadores ou Bárbaros?», cit., pp. 124-125.
5 Aluda-se, de caminho, ao que se refere, nas pp. 153 e 154 de vol. I de «Falsificação da História», cit., quanto a cedências sexuais, nas colónias, no nosso tempo, em situações de fome, extrema penúria.
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Se queremos conhecer o passado comecemos por olhar, em muitos aspetos, profundamente, para o presente.
Também em Timor, uns tantos anos antes de eu lá chegar, esteve Paulo Braga (faleceu em 1960), autor de «Timor, País de Sol e Volúpia» 1, o qual imergiu em «volúpia» com uma menina de «dezasseis anos» (denominando-a Heliana)… Timor, onde mulheres apetitosas «vivem para o amor de quem as quer» (ob. cit., p. 7). «Heliana era bem selvagem» 2 (p. 24).
Heliana «foi como as senhoras brancas, pois teve uma casa e criados, um senhor branco enãoiatrabalharnasplantações,nem criavafilhosnojangal»(p.24)–eeleinsiste e dá relevo poético ao facto de Heliana, por estar sob seu domínio(ou seja, por ser «nona» 3 de europeu 4), não ser obrigada pelo sistema colonial ao «trabalho nas plantações» (p. 22). «Heliana não sentirá a tristeza de ver destruídos os seus sonhos pelos senhores do feudalismo comercial da Colónia» (p. 45).
«Para Heliana, um navio diz sempre que num navio chegou o amante e noutro o amante partirá para longe, um dia!» (p. 42).
Das garras de um para as de outro europeu, eis o que, a dado passo, Paulo Braga prevê quanto a Heliana: «E quando o ritmo acabar, voltará à selva, terá outra vez um nome indígena e será recenseada para o trabalho nas plantações» (p. 22). E diz ele, um pouco antes, ao reportar-se à altura em que lançou a rede a Heliana: «Heliana também tinha um nome indígena e também marchou para uma plantação 5. O nome de Heliana só o teve quando abandonou a selva…» (p. 21).
A Camões, personalidade bem distinta da de, por exemplo, Gaspar Correia, não lhe ocorreram quaisquer engulhos ao pintalgar (no canto IX) a caça às mulheres com aqueles matizes de enlace natural e poético?
Palpitantemente, o Bispo Las Casas narra violências sexuais 6 conjugadas, num vórtice, com violências de diversa natureza, transmitindo-nos, por exemplo, que uns espanhóis, depois de matarem muitos índios, numa aldeia, arrebataram cerca de oitenta donzelas. Os índios, designadamente pais e maridos das moças, foram-lhes no encalço, tão resolvidos a morrer quão destroçados estavam com esta atitude tão chocantemente
1 Paulo Braga – «Timor, País de Sol e de Volúpia», Cadernos Coloniais (nº 42), Editorial Cosmos – 1939.
2 Acerca dos Timorenses diz (p. 20): «São selvagens do Império».
3 Corruptela de «senhora», que vem do fundo dos tempos, em paragens das cercanias.
4 Quando estive à frente do pelotão sediado no Moro/Lautém, uma jovem e, algum tempo depois, uma outra vieram até mim, qualquer delas se me oferecendo como «nona» (no que eu não embalei). Uma delas, novita, com a mãe ali perto e a par de tudo, tinha sido «nona» do alferes meu antecessor.
5 A dado passo do livro, é referido que um «missionário» «quis fazer dela sua amante».
6 Tal como o comportamento dos Portugueses era o dos Espanhóis.
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atentatória das mais elementares Harmonias a que se chega por intuição. Os espanhóis, que não se achavam em número bastante para enfrentar folgadamente estes tão determinados índios, mataram todas as jovens índias e escapuliram-se 1 .
«Tomandoum maucristão»,diz Las Casas, noutropasso, «pelaforçaumadonzela, para com ela pecar, arremeteu sua mãe, para lha tirar; saca ele então de punhal ou espada e corta uma mão àquela mulher; e à donzela, porque não quis consentir, matou-a ele às punhaladas » 2
«NailhaEspanhola,quefoi aprimeira,como dissemos, aondepenetraram cristãos e começaram os estragos e perdições desta gente e que primeiramente destruíram e despovoaram, começando os cristãos a tomar as mulheres e os filhos aos índios para deles se servirem e usarem mal…» E, logo a seguir, na mesma página, Las Casas diz que «alguns escondiam suas comidas, outrossuas mulheres eseus filhos, eoutros fugiampara os montes», anotando que um «capitão cristão violou pela força a própria esposa»do «rei, senhor de toda a ilha» 3
Eis apontamento de Las Casas 4 sobre a conduta dum comandante na Guatemala: «Oh quantos órfãos não deixou, quantos filhos não roubou, quantas mulheres deixou sem seus maridos, de quantos adultérios e estupros e violências não foi causa…» (e o mesmo contribuiu para «execráveis abominações» e «gravíssimos pecados» dos «desgraçados cristãos») E, um pouco antes, diz: «Descasava e roubava os casados, tomando-lhes as mulheres e as filhas e dava-as aos mareantes e soldados.» 5
Pablo Larrañeta 6, citando Ricardo Herren, autor de «La conquista erótica de Las Índias», menciona os «quinhentos filhos…»de Francisco Aguirre (e Ricardo Herren acha que «mais atividade sexual» do que o referido assolador do Chile a terá tido Fernando Cortês – «promíscuo bastante perverso»). Esta mecânica de acometimentos sexuais (iníqua tríade de volúpia, violência e desprezo) era uma das azáfamas do quotidiano dos Espanhóis, desde os magnates aos mais raizeiros («um soldado de Palos teve, em três anos, trinta filhos de índias mexicanas»).
1 Bartolomeu de Las Casas – «Brevíssima Relação da Destruição das Índias», cit., pp. 64-65.
Estafugafaz-melembrar,emcertoscambiantes,oincidente(emquenãochegouahaverdanosfísicos)quedescrevoem «Uma ‘deusa’ no Inferno de Timor», cit., p. 178.
2 Bartolomeu de Las Casas, ob. cit., p. 92.
3 Idem, ibidem, p. 46.
4 Idem, ibidem, pp. 88-89.
5 Note-se, de caminho, que, conforme se citará adiante, «ordenou Fernando o Católico o envio de mulheres escravas, vagantes e prostitutas para as Índias…» – enfim, remessa para acasalamento.
6 Pablo Larrañetta, ob. cit., pp. 18 a 20.
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É claro que com as violências sexuais se imbricavam violências da mais diversa ordem contra as mulheres, designadamente a compulsão ao trabalho escravo até à exaustão e à morte, conforme passa a assinalar-se.
«Em três ou quatro meses», diz o Bispo Las Casas, «estando eu presente, morreram de fome, por lhes levarem os pais e as mães para as minas, mais de sete mil crianças. Quantasespantosas coisasali vi.»Etantos os similares testemunhos respeitantes às mais diversas paragens, como, por exemplo (ob. cit., pp. 59-60), o de ter havido «um oficial deEl-Rei aquem foram dados departilhastrezentos índios e,aocabodetrês meses, tinha feito morrer nos trabalhos das minas duzentos e setenta, só lhe restando trinta, um décimo. Deram-lhe depois outros tantos e até mais e também os matou, e quantos lhe davam, quantos matava, até que morreu ele e lhe levou o Demónio a alma.» Nas suas intermináveis andanças, movidos pelas mais nefandas motivações, os Espanhóis impeliam grandes contingentes de Índios – os acorrentados «carregadores» –a carregar-lhes as bagagens (cargas, não raro, de quase três arrobas…) com tudo o que iam roubando (sendo também, frequentemente, obrigados a transportar peças de artilharia, madeira para construção de navios, etc. 1). Os «carregadores», homens e mulheres, acorrentados uns aos outros pelo pescoço, lá seguiam em tão longas e penosas marchas, desesperados, acossados, famintos, não raro deslocados de baixa altitude para mui frígidos locais de grande altitude, cientes de terem que padecer esta horrível tortura (atente-se, em ob. cit., p. 67, na evocação/registo de lancinantes lamúrias desses infelizes) até lhes sobrevir a morte, o que, em breve, acontecia… Frequentemente, caíam exaustos e os Espanhóis, vociferando insultos, agrediam-nos, a ponto, não raro, «que lhes quebram os dentes com os pomos das espadas para que se ergam e andem sem repouso» e, quando já mui debilitados ou quase moribundos, cortavam-lhes a cabeça «pela coleira» (ob. cit., pp. 67, 123, etc.), ou seja, conforme Las casas o refere várias vezes, decapitavam-nos assim argolados ao libambo, saltando a cabeça e desprendendo-se o corpo, à vista dos demais, além de mais para terror destes, pelos quais se repartia a carga dos abatidos.
Também «mulheres prenhes» e «mulheres paridas» lá seguiam acorrentadas e «não podendo elas levar as crianças de tenra idade, por via do trabalho e da fome, pelos caminhos as lançavam, onde muitíssimas pereceram» (ob. cit., p. 92).
Alguns «carregadores», «in extremis», rogavam que os matassem logo, pondolhes cobro a tais tormentos (p. 105).
1 Refira-setambém estatãousual prática (pp.54-55, ob.cit.)dosnababos:«… fazendo-seos cristãostransportar em liteiras,chamadas hamacas, que são redes, às costas dos índios, pois sempre usaram deles como se fossem bestas de carga.»
224
1
Estes números são elucidativos: «… de quatro mil índios não voltaram seis vivos a suas casas, pois todos deixaram mortos pelos caminhos…» (p. 67); de «quinze ou vinte mil homens… não tornaram duzentos, pois todos por lá morreram» (p. 91); «… sacaram mais de seis mil índios e índias, e de todos eles não voltaram à terra vinte homens, porque todos morreram…»(p. 151); «… e logo os puseram em cadeias, em que todos morreram» (p. 156).
Tão dantesca como o mais dantesco horror imaginado por Dante era, como já se disse, a práxis quotidiana de abater nativos (designadamente crianças) para ser servida carne humana às chusmas de «carregadores»e aos mastins e para, com o mesmo objetivo, serem abastecidos «talhos» (ver, por ex., p. 88).
19.7.1.
Exportação de mulheres
Visando-se reforçar o domínio sobre os povos, implementar um tampão humano que persistisse em resistir à ânsia de libertação dos nativos, não apenas foram tomadas reiteradamentemedidasdecompulsivaexportaçãodemeninas/mulheresportuguesaspara paragens coloniais; pois, para estas – recorde-se a suma crueza – foram até forçadas a partir remessas de crianças judias e ciganas «mandadas separar de seus pais»
António Galvão (chegou a Ternate em 1536) levou mulheres para as Molucas 1 . João Furtado de Mendonça, que foi governador de Angola, desde 1595 a 1602, ao partir para Luanda, levou 12 raparigas (raparigas «erradas») enviadas pela Casa Pia das Convertidas 2 (fundada em Lisboa, em 1587 – também chamada «Casa da Piedade das Penitentes ou Recolhimento da Natividade ou, ainda, Santa Maria Madalena») Para Moçambique eram enviadas, entre outras, as órfãs da Índia 3 .
Em 1633, define-se em Lisboa um projeto com «o fim de povoar de Portugueses a costa oriental africana, sobretudo nas vizinhanças das minas de prata». Entre as medidas figurava esta: «A Casa Pia de Lisboa encarregar-se-ia de enviar as raparigas necessárias para os casamentos dos Portugueses estabelecidos nas supracitadas províncias» (Rios de Cuama e Monomotapa) 4 .
Prof. A. Silva Rego – lições policopiadas de «História do Ultramar Português», cit., p. 276.
2 Idem, ibidem, pp. 384-385.
3 Idem, ibidem, pp. 569.
4 Idem, ibidem, pp. 424-425.
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Para a Zambézia, designadamente entre 1677 e 1681, foi «enviada… muita gente, tanto homens como mulheres, para os célebres Rios de Sena ou Rios de Cuama», acontecendo que o «clima não favorecia muito esta colonização» 1 .
O vice-rei João de Castro «colonizou a Índia com órfãs de el-rei levadas de Portugal» 2 .
Alexandre Lobato (ob. cit., vol. II, p. 259) refere a existência de «órfãs e novas convertidas», em Inhambane (reduzidas a uma situação de párias).
«… E Afonso de Albuquerque pediu ao Rei que enviasse rapidamente mulheres do Reino para a Índia, a fim de que os Portugueses não procurassem as de cá (indianas), que ‘são mais conversáveis.» 3
O rei João II mandou bastantes Judeus para a África do Norte, sobretudo para Arzila e Tânger. «Quanto a várias crianças, mandou-as para a ilha de S. Tomé… O fim de el-rei era povoar a ilha» 4 .
«Em 1497,recebeu S. TomémuitosmoçosjudeusqueD.Manuel mandaraseparar de seus pais. Por esta altura, intensificou-se ainda o povoamento de S. Tomé com o envio de bastantes degredados 5, aos quais se deu uma escrava a cada um.» 6
A Casa Pia das Convertidas (e não só) estaria sempre cheia de raparigas «erradas»… Além demais, nãoserádescabido considerar-seque, porum lado, os homens eram arrastados, uns após outros, aos milhares e milhares, para o jogo da morte, e, por outro lado, os «senhores» empenhavam-se em «tirar partido» (são, a propósito, expressivos alguns literatos da época) do desalento psíquico, moral e económico das mulheres e filhas do povo. E, com o que acaba de dizer-se, concatene-se o seguinte: a Inquisição, eliminando tantos pais (aos quais, conforme já dito, eram extorquidos os haveres), designadamente ia empolando a multidão de míseros órfãos.
1 Prof. A. Silva Rego – lições policopiadas de «História da Colonização Moderna», cit., vol. I, p. 233. No sentido da dita «colonização», eram implementadas, em 1761, em Moçambique, as designadas «Instruções», estipulando, além de mais, aperto de compulsões sobre os nativos e mais «rígida disciplina militar, pois muitos deles (soldados) iam para lá das cadeias do reino». «Os crimes mais graves, condenados com a pena última em Portugal, deviam sê-lo igualmente em Moçambique, e ordenavase que a sentença devia ser executada no mesmo dia em que proferida.» Prof. A. Silva Rego – lições policopiadas de «História do Ultramar Português», cit., p. 570.
2 António Martins Afonso – «Curso de História da Civilização Portuguesa», cit., 1966, 5ª ed., p. 171.
3 Camilo Azevedo e Paulo Varela Gomes – «O Mundo de Cá» (Série documental), na «Público Magazine» nº 289, de 26.11.95, p. 52. Refira-se, de caminho, que havia, então, esta notória diferença entre as mulheres europeias e as indianas: estas não tinham sido como aquelas esmagadas pela praga do gnosticismo, encratismo, montanismo, etc. E transcreva-se ainda este passo do estudo acabado de citar: «Para os padres jesuítas e franciscanos, que tomaram conta da vida cultural de Goa a partir dos meados do século XVI, tratouse de uma verdadeira guerra contra as mulheres de cá (indianas). Na cabeça deles, confundia-se tudo: o hábito dos indianos tomarem banho e brincarem com a água, a maneira de vestir das mulheres da Índia, o luxo da arquitetura e… o corpo das mulheres – tudo eram sinais do demónio. O jesuíta Henrique Henriques chegou a pedir aos superiores que o autorizassem a utilizar o ‘bangue’, ou o haxixe. Tinha ouvido dizer que a droga adormecia o corpo e evitava as tentações carnais…» (ob. cit., p. 52).
4 Prof. A. Silva Rego – lições policopiadas de «História do Ultramar Português», cit., p. 136
5 Muitos degredados eram despachados para diversas paragens do Império.
6 Idem, ibidem, p. 565.
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«A 23 de Fevereiro de 1512, ordenou Fernando o Católico o envio de mulheres e escravas, vagantes e prostitutas para as Índias, pois a escassez de mulheres favorecia a proliferação de casamentos entre espanhóis e índias, as quais ‘estavam muito longe de ser criaturas racionais.» 1
Em Portugal, também muitos ciganos foram atirados para paragens coloniais. Sobre eles caíam (em muitos países europeus) ferozes perseguições, frequentes ordens de expulsão, legislação segregacionista e rechaçadora Em 1579, o cardeal Henrique (com 14 anos, eraprior,com 22 anos, eraarcebispo deBraga, com 27anos, era Inquisidor Geral de Portugal e do respetivo mundo subjugado), então rei 2 (após falecimento do rei Sebastião), publica um alvará em que «manda que se façam pregões em todos os lugares públicos para que os ciganos saiam do Reino dentro de trinta dias… e, acabados os 30 dias,qualquercigano que forencontrado sejalogo preso eaçoitadopublicamentenolugar onde for achado e degredado para sempre para as galés…» 3 .
19.7.2. O «cristianismo histórico» «versus» mulher, na Europa
Espero que se encare como razoável eu começar com esta chamada de atenção: cabe-me dizer que muita da informação abarcada neste item consta do ponto 3.5. (em que se desce a minuciosas citações) do cap. I de «Falsificação da História», cit., vol. I. Será minha preocupação não omitir, aqui, no entanto, aquelas citações tidas como cruciais. Logo a partir dos primórdios, no interior dos círculos cristãos – como a História no-lo atesta e, designadamente, isso se infere, por exemplo, da leitura de «História Eclesiástica» de Eusébio de Cesareia 4, nascido por volta do ano 270 –, passou a atentarse contra a Mensagem de Jesus de Nazaré, além do mais, sobre ela se abrindo as comportas das águas pútridas do encratismo, gnosticismo, maniqueísmo, montanismo 5 E tais escorrências, por força de doutrinação e de imposições, vieram – e isto se entende
1 Fernando Alvarez-Uria – no posfácio de «Brevíssima Relação da Destruição das Índias», cit., p. 167.
2 O Cardeal Henrique, o ferino Inquisidor-Geral, quando rei (tinha o cognomede «Casto»), já velho decrépito, pediu ao papa Gregório XIII «dispensa de votos para poder casar» (tinha em vista a rainha-mãe de França), alegando necessidade de engendrar descendente que lhe sucedesse na realeza. A Inquisição, a que ele presidia, note-se, cruamente punia, por causa de discretos enamoramentos, aqueles lhanos clérigos e freiras caídos em desgraça ante uma casta clerical, no seio da qual designadamente a hipocrisia e o deboche tanto campeavam.
3 Olímpio Nunes – «O Povo Cigano». Coleção «O Homem na História» – nº 2, Porto – 1981, pp. 67 a 80, bem como 90 a 93.
4 Eusébio de Cesareia – «História Eclesiástica». Tradução de Wolfgang Fisher, Editora Novo Século Lda, São Paulo – 2002.
5 Sobre tais conceitos é particularmente elucidativa a informação que do Doutor Silva Campinho se aduz para o referido ponto de «Falsificação da História». Doutor Alberto Silva Campinho – «A lei do Celibato Eclesiástico», ed. Bezerra, Braga - 2000, pp. 55 a 67. Sobre esta temática também se debruça, por exemplo, John M. Allegro em «O Mito Cristão e os Manuscritos do Mar Morto», Publicações Europa-América (trad. de Maria Luísa Ferreira da Costa), 1979, caps. VII, VIII, IX.
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sem que exigidas complicadas elucubrações à luz das Ciências Sociais e Humanas – a afetar gravemente toda a Humanidade, pois bem sabemos que a Europa inundou todo o Mundo.
No dizer de «S. Clemente de Alexandria», a mulher «devia corar só ante a ideia desermulher»; namesmatoada, «S.TomásdeAquino»dizque «ela,enquantoindivíduo, é um ser medíocre e defeituoso»; «S. Jerónimo» (tradutor da Vulgata), encratita situado por L. Godfroy «entre os adversários mais declarados do casamento», assevera que também «é adúltero aquele que ama com demasiado ardor a sua esposa» e afirma que «casar-se para ter filhos e apoios é o cúmulo da tolice» 1; «João Crisóstomo afirma que o ‘casamento teve origem no pecado e na morte’ e que o seu fim é apaziguar a concupiscência que emana do pecado»; e em Cirilo de Alexandria, Atanásio, Eusébio de Cesareia, Leão Magno, Teodoreto, «S. Epifánio», bem como em tantos outros, encontrase o denominador comum de «considerar-se o casamento consequência do pecado» 2 .
Tertuliano, seguidor do montanismo, «seita cristã do século II, «vê em todo o casamentoumpecado»e,nassegundasnúpcias(apósviuvez),a«devassidão»(e,segundo referência do Prof. Padre A. Silva Rego, Montano, que se «converteu ao cristianismo por volta do ano 170», «proibiu as segundas núpcias» 3 ); quanto a Gregório de Nisse, leia-se o que dele recolhe o Doutor Silva Campinho no capítulo «Padre da Igreja viu a natural transmissão da vida como coisas de brutos e seres sem inteligência» 4
Em publicações sobre esta temática, vinca-se ainda que «Santos» de renome exararam até que, por força de laivos de pecaminosidade da relação sexual conjugal, em não raros recém-nascidos podiam refletir-se afetações diabólicas Face a isto, acho pertinente um breve enfoque sobre o que se segue: o estigma incidente sobre os filhos de mães solteiras (não raro, se usou a expressão «filhos do pecado») evoca-nos a recente dantesca notícia sobre «restos» de cerca de oitocentas crianças nascidas em pleno século vinte (com «idades entre 35 semanas e três anos»), encontrados em «vala comum» no «Lar das Irmãs do Bom Socorro», em Tuam (Irlanda), conforme divulgado, com
1 Dele se extrate o seguinte: «Porque gritas e protestas? É o vaso da eleição que assim fala: a mulher distingue-se da virgem. Vê qual é a felicidade daquela que perdeu o nome do seu sexo. A virgem deixa de se chamar mulher… Pensas que se podia pôr na mesma categoria aquela que se entrega noite e dia à oração e ao jejum e a que, ao chegar o marido, compõe o rosto, abranda o andar e lhe faz perversas carícias? A primeira quer parecer insignificante e destrói a sua beleza natural. A segunda, ao contrário, pinta-se diante do espelho e injuria o Criador por querer ser mais bela do que na realidade é.» E eis o que diz, ao referir-se a segundas núpcias (após viuvez): «Aprendeste com o próprio casamento os inconvenientes que ele pode apresentar. Foi para ti como a carne de codorniz de que te fartaste até à náusea. Pela tua garganta passou o fel mais amargo; vomitaste a comida azeda e estragada. Conseguiste curar o estômago inflamado. Porque queres tomar de novo o que te fez mal? Será fazer como o cão que torna a comer o seu vómito, como o porco lavado que chafurda na lama.»
2 A este parágrafo integra-o informação recolhida do já referido Doutor Silva Campinho.
3 Prof. A. Silva Rego – «Lições de Missionologia», cit., p. 34.
4 Silva Campinho, no «Correio do Minho, de 4.7.82.
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cambiantes deveras chocantes, por vários meios de comunicação social. Esse «lar católico» (encerrado em 1961), gerido por freiras, conforme referido, por exemplo, no «Correio da Manhã» de 4 de março de 2017, «recebia mulheres solteiras para fazerem o parto. As mães podiam viver no lar, mas separadas dos filhos, que eram criados pelas freiras até serem adotados. A vala comum foi descoberta pela comissão criada em 2014 para investigar o destino de centenas de menores. O alerta para o caso foi dado por Catherine Corless, historiadora de Tuam, que encontrou certificados de óbito de 800 crianças, mas só dois registos de funeral»… Cometia pecado a esposa se sentisse prazer na relação sexual com seu marido.
E, entre tantas outras prescrições (que induziam em minucioso interrogatório no confessionário), assinale-se, por exemplo, esta: «Peccant conjuges inter se circa actum conjugalem – Devet servari modus sive situs; imo ut non servetur debitum vas, sed copulam habetur in vaso praespostero. Si fiat a postero, a latere, stando, sedendo, vel si vir sit sucumbus» («Pecam os cônjuges entre si quanto ao ato conjugal – no qual deve ser observado o modo e a posição – se não é usado o vaso devido 1 , mas se a cópula é tida no vaso traseiro 2; e ainda se o posicionamento para a cópula é por trás, de lado, de pé, sentado ou se o homem fica por baixo») 3
Das mais íntimas vivências assim com das mais loucas fantasias sexuais era obrigatório fazer o padre, no confessionário, profunda devassa, recorrendo a chocantes questionários urdidos pelos bastiões da Teologia vigente. Fique uma pálida ideia da gama de aspetos expressamente indagados através de questionários eclesiasticamente aprovados, referindo-se tão só que, numa das muitas perguntas, inquiria-se do homem se, «como muitos costumam fazer», introduziu o seu «membro viril no orifício duma tábua perfurada ou qualquer outro lugar com o mesmo fim, de modo a que pela sua agitação e prazer», ejaculou; e, numa das muitas perguntas dirigidas à mulher, inquiria-se se ela, «deitando-se por baixo dum jumento», imaginara «cópula carnal» com o animal 4 Encarado o casamento como uma consequência do pecado, face à concupiscência/fealdade das relações sexuais entre marido e esposa, aconselhava-se aos cônjugesaascéticapurificadoradeasnãoterem. Num manual catequético 5 doséc.XVIII, dá-se o exemplo dum indivíduo que crepitava de santidade 6 exatamente porque, tendo
1 Vagina.
2 Ânus.
3 Ex-Padre Chiniquy – «O Padre, a Mulher e o Confessionário», 3ª ed. portuguesa [sem data] da tradução de J. Soares da 24ª ed. inglesa, prefácio do ex-pároco A. Dias Vidal, p. 244.
4 Idem, pp. 246 e 247.
5 Que possuo.
6 Aí se afirma que até afugentava demónios que ao exorcista resistiam.
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casado, mantivera-se «casto e não tinha feito offensa a sua mulher», ou seja, não se relacionava sexualmente com ela.
Por Pablo Larrañetta 1 é recolhido de Juan Eslava («História secreta del sexo en España») este passo dum requerimento de divórcio que remonta ao Império Romano (tempo de Antonino Pio): «Tudo nos corria bem até que minha esposa se converteu ao cristianismo. Gozávamos dos prazeres do amor, mas agora não faz mais que falar-me do castigo eterno e as coisas andam mal. Por isso, solicito o divórcio » Enfim, diabolizando-se a mulher – desgraçada desta por ter sexo e, afinal de contas, a ele se resumir –, diabolizava-se o casamento. Proscrevendo-se o Amor, degradava-se a cópula conjugal ao ponto de mais não ser que um ato rítmico-sensitivo 2 , para cúmulo emporcalhado com os ditos teosofismos. Orígenes foi ao ponto de se castrar (ao rol de atitudes extremas, como a referida, agregue-se, além de mais, a alusão feita, em Pablo Larrañeta 3 , ao «cinto de castidade» – aparelho que, fechado à chave, impedia o acesso aos genitais da mulher, durante temporada de ausência do consorte 4 ) E, de caminho, veja-se, em Pablo Larrañeta, o que ele recolhe sobre o «direito de pernada» ou «jus primae noctis» (ao qual também alude Jorge Dias 5 ), ou seja, o direito dos senhores feudais («senhores de pendão e caldeira») ficarem a «primeira noite» com as filhas, que iam casando, dos respetivos servos da gleba.
Citando, designadamente, o já referido Juan Eslava, Pablo Larraneta coloca-nos perante moldes e circunstâncias de enorme deboche a nível do clero, «mas pregavam aos casados coisas impossíveis: nas leis eclesiásticas, exigiam abstenção sexual nos quarenta dias do Advento, oito dias do Pentecostes, domingos e festas de guarda, Quaresma e dias de jejum, até deixar ‘tranquila’ a esposa uns oito meses do ano».
SilvaCampinho,ao referir-se, adado passo, aposições teológicas doséc.XIIIque sustentavam não poder «o ato conjugal praticar-se sem pecado, pelo menos venial», não deixou de assinalar os motivos em que aquelas assentavam a «proibição das relações conjugais em quase todos os dias da semana: à quinta-feira, em memória da prisão de Nosso Senhor; à sexta-feira, em comemoração da sua morte; ao sábado, em honra da
1 Pablo Larrañetta, ob. cit., p. 16.
2 Expressão que, em lições sobre Antropologia Cultural, chegou a ser empregue ao versar-se sobre aspetos do comportamento sexual de etnias (Jorge Dias situa exemplos designadamente na ilha de Nauru e na Nova Guiné), em que praticada a designada «poliginia sucessiva»: os moços casam com as mulheres que não as mais novas (tomadas estas por homens mais velhos) e, quando já mais entrados na idade, vêm a coabitar com mais novas. Prof. Doutor Jorge Dias – lições policopiadas de «Instituições Nativas» («Antropologia Cultural»), cit., p. 77.
3 Pablo Larrañetta, ob. cit., pp. 12 a 22.
4 Face a outras culturas, entre os ditos «cristãos» não era, então, relativamente inferior designadamente a higiene corporal?
5 Prof. Doutor Jorge Dias – lições policopiadas de «Instituições Nativas» («Antropologia Cultural»), cit., p. 163.
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Santíssima Virgem; ao domingo, dia da ressurreição; à segunda-feira, dia consagrado aos defuntos; e ainda certos dias de festa »
Como explanado nesta tese, era desbragado o deboche aos vários níveis da pirâmide clerical. E a confissão auricular – tão contestada designadamente por «São João Crisóstomo», por Nestório, etc… – era plano inclinado para as frequentíssimas «solicitações» por parte dos clérigos às confessadas e, igualmente, mui frequentes «solicitações» dirigidas a homens 1. De caminho, não fique por referir-se que «A Idade Média denominava a homossexualidade de ‘vício dos clérigos».
A mulher era menos que coisa – pois que coisa é inimputável e ela, vistas bem as coisas, carregava a culpa/estigma de ter o sexo que tem.
Várias páginas foram precisas (no já referido ponto de «Falsificação da História», cit.) para apresentar, resumidamente, a vasta gama das tão iníquas como sórdidas atitudes contra a mulher, contra a pessoa humana, contra o que há de mais palpitante a nível do Direito Natural e da Mensagem de Jesus de Nazaré.
E veio a desembocar-se neste clímax: Com Gregório VII (1073-1085), o «pontífice-rei», recrudesce-se uma violência já enorme. São declarados «nulos todos os casamentos contraídos pelos clérigos dequalquer grau». «O papa trata como ‘prostitutas todas as mulheres de clérigos, mesmo que unidas em válido e lícito matrimónio cristão» – excerto este que consta de um texto do Doutor A. Silva Campinho com o esclarecedor título «Mulheres de clérigos eram ‘prostitutas’ que os príncipes podiam tomar como escravas» («Correio do Minho», 29.8.1982). Ele exige cega obediência e exerce repressão feroz e sanguinária. Há um seu «exército» que o secunda: uma turbamulta de monges que, por sua vez, arrebanham populares fanatizados e dos mais baixos instintos, sanguissedentos, e começa a caça: «Os Padres casados são assaltados, suas casas saqueadas, muitos são massacrados e outros mutilados » Faz-se «caça às mulheres dos padres: muitas delas e suas filhas foram violadas e mortas» (C.M. 2 , 29.8.82). E, por decreto do «papa-ditador», «os príncipes poderão fazer das ‘mulheres dos padres’ suas escravas» (C.M., 29.8.82).
Designadamente muitos padres alemães proclamaram as posições papais como heréticas e manifestaram-se preocupados com a adulteração da mensagem cristã.
1 Atente-se, por exemplo, em processos inquisitoriais insertos no rol que, em «História da Inquisição em Portugal», cit., se estende da pág. 146 até à 279.
2 C.M. – iniciais de «Correio do Minho». O estudo do Doutor Silva Campinho foi publicado, durante longo período, no referido jornal. Posteriormente, o dito autor publicou o livro atrás referido.
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É veemente e lancinante todo o texto duma carta dos padres de Cambral dirigida aos da província de Reims. Visa-se conjugação de esforços para assunção de legítima defesa face a tais inimigos. Num grito de revolta e num alerta, exara-se, nessa carta, que a Roma «não lhe basta depor sua majestade real, excomungar metropolitas, expulsar bispos…», indo ao ponto de, além de tantos atropelos, impor o celibato, ao arrepio do cristianismo e da Natureza. E, a dado passo de tal protesto, diz-se: «Temos conhecimento do que se passa em certas regiões da Itália: a religião desapareceu e o medo do casamento tem conduzido a práticas monstruosas.» E o apelo aos padres de Reims começa assim: «Se tendes coração e se sois homens deveis desprezar estas ordens» (C.M., 29.8.82).
Uma referência avulsa: em Espanha, aconteceu que «mais de mil clérigos se transferiram para a Barbaria», fugindo à misoginia severamente imposta pelo Cardeal Cisneros (que, por duas vezes, foi regente do Reino) 1
A degradação lá vai continuando, imensa. «O concubinato público substitui o casamento proibido» (C.M., 5.9.82). Ergue-se a voz de alguns príncipes, de alguns altos membros do clero, no sentido da abolição do celibato.
Nicolau Clemengis, reitor da Academia de Paris, que fez um «tratado sobre a corrupção na Igreja» (1313), diz: «Os leigos estão de tal modo convencidos da incontinência dos clérigos que, na maior parte das paróquias, recusam todo o padre que não tenha concubina, no que veem uma espécie de segurança para as próprias esposas e filhas, todavia, mesmo assim, não estão fora de perigo» (C.M., 5.9.82). Entre outros, Erasmo, Catarina de Sena, Brígida da Suécia denunciam tão escandalosa chafurdice sexual que inunda «desde a mais remota casa paroquial até à corte pontifícia» (C.M., 5.9.82)e grassanos conventos–segundoaúltimapersonagem acabadadereferir, «alguns conventos de religiosas pareciam mais lupanares que claustros» e a alguns clérigos apelida de «medianeiros do diabo».
Daniel Rops escreveu: «Se em Roma os bastardos dos papas enchiam os passeios das ruas, como impedir os simples párocos de ter mulheres?»; «muito significativo também é o facto narrado pelo mesmo escritor-historiador de que, em 1414, por ocasião da celebração do XVI Concílio Ecuménico, setecentas prostitutas se foram instalar em Constança, local dessa assembleia de bispos…» (C.M., 5.9.82).
«Trento aprende as lições da história e institucionaliza a deformação da personalidade do jovem 2 candidato a ‘padre’, como meio de fazer ‘eunucos’… Trento
1 Fernando Alvarez-Uria, no posfácio de «Brevíssima Relação da Destruição das Índias», cit., p. 170.
2 O que tanto propicia frustrações, situações mórbidas, etc.
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1
cria os seminários» (C.M., 12.9.82). De tal «deformação da personalidade», do desnaturamento, de recalcamentos a nível do clero advieram graves repercussões, graves efeitos psicossociais – o que é de fácil compreensão face a imbricações, explicações, nexos explanados em ramos das Ciências Sociais e Humanas – sobre as gentes, afinal sobre o Mundo, que a Europa subjugou; essa «deformação da personalidade», a par de outros fatores analisados nesta tese, também contribuiu para a desgraça dos povos. «Abyssus abyssum invocat»; vitimização de uns induz em vitimização de outros.
Não fique por encaixar aqui o seguinte: quanto aos candidatos a clérigos, já no IV Concílio de Toledo (633) se «tornou obrigatório o seu internato para evitar os perigos a queajuventudeestáexposta» 1…Eacrescente-se:seminários,numfigurino maisremoto, «já existiam nos princípios do século VI: estabeleciam-se ordinariamente numa casa que era dependência da igreja ou da habitação episcopal. Nele se recolhiam os jovens impúberes ou adolescentes, oferecidos por seus pais à Igreja, e ali eram educados e instruídos sob a direção de um prefeito ou preposto (praepositus)… Os alunos aprendiam ali, em quatro anos, as ciências eclesiásticas e também as artes e disciplinas liberais. A disciplina era muito rigorosa» 2
E mui importa transcrever, neste contexto, a «Regra Santíssima» (a nº 59) da «Ordem de S. Bento»: «Se alguma pessoa nobre oferecer seu filho a Deus no Mosteiro, se o menino fôr de menor idade, seus pais façam petição ou escrito, que acima dissemos e metam a mão do Menino na pala do Altar, e assim o ofereçam. Mas de suas cousas, ou promettam na mesma petição com juramento, que nunca por si, nem por terceira pessoa, nem de qualquer outro modo lhe darão nada, nem ocasião de ter alguma cousa. Ou se isto não quizerem fazer e quizerem dar ao Mosteiro alguma esmola para seu merecimento, façam doação por escrito das cousas que querem dar ao Mosteiro, reservando para si, se assim quiserem, o uso dos fructos, e de tal maneira se faça tudo, que não fique ao Menino ocasião alguma, pela qual, enganado, se possa perder (o que Deus não permita), como por experiência temos visto. Da mesma maneira façam aos pobres. E os que totalmente não
2
I, 1967, p. 45.
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Padre Avelino de Jesus da Costa – «Arquidiocese de Braga – Síntese da sua História», Lisboa – 1984, vol. III, p. 162.
FortunatodeAlmeida – «HistóriadaIgrejaemPortugal»,novaediçãoprep.edirigidaporDamiãoPeres,PortucalenseEditora/Porto, vol.
tiverem nada, só façam a petição, e com uma offerta offereçam seu filho diante de testemunhas» 1
Ao correr da pena, refira-se que, em ordem ao celibato imposto, as correspondentes medidas se firmaram (para clérigos e seminaristas) nas congregações religiosas; exemplifique-se com estas disposições respeitantes à Congregação que frequentei (mútua relação fraterna liga seus membros e ex-seminaristas): «Os membros comportem-se quanto ao hábito, gesto, procedimento, linguagem e outras coisas, de maneira que nada transpire que não seja grave, moderado e cheio de religião: evitem, portanto, a demasiada familiaridade com os estranhos e também entre si 2; com as pessoas do outro sexo sejam ainda mais prudentes. Não sejam assíduos na mesma casa, principalmente quando pessoas do outro sexo ali moram ou se reúnem, principalmente a horas tardias; e meditem, muitas vezes, nestas palavras dos Padres: a conversação com mulheres seja rara, breve, austera e quase fugidia; pois, como diz S. Jerónimo, os religiosos não são mais sapientes que Salomão, nem mais santos que David, nem mais fortes que Sansão; se amam o perigo, nele perecem. Com pessoas do outro sexo não haja nenhumafamiliaridade; tudo com elas,quanto for possível, sejatratadonoSanto Tribunal (confessionário) ou em lugar onde possam ser vistos.» 3
19.8. A tragédia da fome entre os nativos
Há considerações que se impõem, antes de abordarmos o assunto referido em epígrafe.
Ante uma escalpelização multidisciplinar, sábia, do «statu quo» que se impôs à Humanidade, não constitui qualquer surpresa que a fulminem tragédias enormes (Inquisição, guerras, genocídios, matanças, escravatura, etc.), que a flagelem gravíssimos problemas sociais (a opressão cruel, a fome, o racismo, a apropriação por parte duma exígua minoria daquilo que constitui o indispensável «espaço vital» 4 dos povos, etc.).
1 «Regra Santissima do Principe dos Patriarcas S. Bento, Pai de Todos os Monges. Reimpressa por uma Sua Devota Filha». Porto, Typ. de D. Antonio Moldes, 1873, p. 256 e segs.
2 Quanto a aspetos inter-relacionais, note-se, recomendava-se a seguinte ponderação: «Nunquam duo, semper tres» («Nunca dois, sempre três»).
3 «Regulae et Constitutiones Congregationis Sancti Spiritus». Parisiis – in Domo Primaria, 1957, pp. 16-17.
4 Dados estatísticos reveladores sobre a concentração da propriedade rural são-nos, por exemplo, apresentados pelo Prof. Doutor Henrique Manzanares Abecasis, ob. cit., pp. 178 e segs.
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O relatório (no fim do século vinte 1) do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento vinca que 1,3 mil milhões de pessoas «vivem com menos de um dólar por dia’ 2, sendo, ‘anualmente, de 780 mil milhões de dólares as despesas militares» 3 . Atente-se ainda nas seguintes despesas anuais (em dólares dos EUA) também referidas no relatório: 105 mil milhões em bebidas alcoólicas, na Europa; 50 mil milhões em cigarros, na Europa; 35 mil milhões em negócios de entretenimento, no Japão; 12 mil milhões em perfumes, na Europa e EUA; 8 mil milhões em cosméticos, nos EUA; 11 mil milhões em gelados, na Europa; 400 mil milhões em narcóticos (de passagem, diga-se que, segundo tratadistas renomados, uma mui grande percentagem de crimes desapareceria numa sociedade bem enveredada pelo trilho da justiça social, do personalismo). E do acervo de elucidativos dados estatísticos não fique por transcreverse o seguinte: «as 225 pessoas mais ricas do mundo detêm um rendimento anual igual ao de 47 por cento dos países pobres».
E é indispensável acrescentar-se o seguinte: conforme nos transmite Henrique Manzanares Abecasis 4, o planeta, em termos agrícolas, pode alimentar cinquenta biliões de pessoas, desde que verificadas condições, circunstâncias, que ele exara 5 .
Não apenas atinente ao que acaba de expor-se, mas também ao exposto em outros itens, pergunte-se: será que tanta injustiça social (uma imensidão de pessoas numa situação de dez, cem vezes abaixo dum digno padrão socioeconómico de vida, enquanto uma camada de indivíduos está cem, mil e até milhões de vezes acima desse mesmo nível); tanta mentira e sufocamento moral e espiritual; tanta desumanidade, destruição, racismo, ódio; tão sanguissedento propósito de guerra, tão execranda mania de força e avidez de poderio e posse, tão despersonalizante alinhamento militar – enfim, tantos e tantos sonhos cruelmente negados, interrompidos ou destruídos,logo najuventude,tantos milhões de homens arrastados para longe dos seus, a caminho do aviltamento, da destruição própria e alheia, por obra de uns tantos que detestam a liberdade, a vida, a alegria de viver de multidões; será, enfim, que tudo isto que fica dito e que hoje aflige a
1 Não me quedo pela referência de que achei mais esclarecedora, em virtude dos diversos matizes focados, a informação estatística deste Relatório de 1998 do que a de dados congéneres recentes de que disponho, pois mais importante é salientar que não houve, até hoje, pronunciadas alterações no «statu quo» mundial. Jornal «Público», de 10-9-1998, pp. 20-21.
2 Neste Mundo, em cada dia que passa, vários milhares de crianças morrem à fome.
3 Em média, na atualidade, à engrenagem geral deum Estadonão se tem destinado à volta de cinquentapor cento do respetivo Produto Interno Bruto?
4 Prof. Doutor Henrique Manzanares Abecasis, ob. cit., pp. 77-78.
5 Vem a propósito recordar que o crescimento demográfico não ocorre em progressão geométrica como teorizava Malthus. Na curva representativa do referido crescimento, a seguir a uma fase de célere e grande ascensão, segue-se a fase de tendência para a horizontalidade, ou seja, de natural travagem. Acerca de «evolução das populações», será enriquecedor ler-se algo sobre a teoria logística, a teoria periódica e a teoria cíclica, em Prof. Doutor Óscar Soares Barata – «Introdução à Demografia», cit., pp. 436 a 450.
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Humanidade só daqui a muitos anos é que vai ser encarado como fruto da «luz da época» (continuando, porém, engenhosamente, tudo na mesma)?
A dado passo, evoque-se, José Viriato Capela 1 lamenta que a «História» se resuma em «História de nobres e para nobres»e se tenha omitido a «gesta do povo miúdo, da ‘canalha» – além de outros aleijões da «História», também omissões, sim, designadamente o olvido do negro historial da fome que atormentou os súbditos dos Poderes, desde o fundo dos tempos, e que continua a afligir a Humanidade.
Nas ilhas de Cabo Verde, que eram desabitadas, tendo os Portugueses feito delas «viveiro», «depósito e centro de reprodução» de escravaria 2, além de, simultaneamente, com mão-de-obra escrava, explorarem, em seu proveito, o inóspito chão, a falta de chuva carregava gravemente as tonalidades dum «statu quo» já de si dantesco. Sobre o historial da fome, sobre essas tão recorrentes pragas de dor e morte que foram flagelando as gentes do arquipélago, bastante nos transmite, por exemplo, António Carreira 3 .
Em Cabo verde, foram, ao longo dos séculos, de uma recorrência por demais profusa e atroz, os períodos (tantas vezes, de vários anos consecutivos) de secas e consequentes fomes e mortandade. Não raro, a população que sucumbiu chegou, em certas ilhas, a um montante de 25% e 30% da existente, tudo isto perante a cínica crueza ou total indiferença dos dominadores que oprimiam as gentes. Refira-se, de caminho: um governador menos insensível foi demitido pelo Governo de Lisboa, no século dezanove – crise de 1824/1826 –, por ter usado, após convocada a Junta da Fazenda, a receita da urzela – receita que pertencia à Coroa – para minoração da calamidade, acontecendo que ele próprio deixou exarado na ata de sessão este vaticínio: «vou lavrar o decreto da minha demissão».
Ante farto acervo de documentos e conforme profusamente exarado por autores como António Carreira, Orlando Ribeiro, Sena Barcelos, Dr. Custódio Correia e Matos, Feliciano de Castilho, etc., evidencia-se, quanto a Cabo verde, um lancinante historial, um tétrico quotidiano: campos, praias e caminhos juncados de cadáveres; ingestão, por parte de indivíduos famintos, de cadáveres humanos, além de carne de cão, gato, répteis, etc.; assaltos, assassínios (por exemplo, uma mulher, Madalena Sanches, perfaz um total de seis assassínios «para se alimentar», acabando ela por morrer, pouco depois, à fome,
1 José Viriato Capela – «Tensões sociais na Região de Entre-Douro-e-Minho», em «O Distrito de Braga», vol. III da 2ª Série, Administração Distrital de Braga – 1978, p. 31.
2 Na «Cidade Velha» (ilha de Santiago), como seculares e zelosas esculcas do caudal negreiro, lá continuam, em posição sobranceira sobre o local de acostagem, o imenso edifício da Sé e o Convento dos Franciscanos.
3 António Carreira – «Cabo Verde – Formação e Extinção de uma Sociedade Escravocrata», cit., pp. 190 a 204
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na cadeia) e várias outras atitudes de desespero; famintos abatendo animais a que conseguiam lançar mão e chupando-lhes, de imediato, todo o sangue (acontecendo até que os donos mantinham o gado escondido, durante o dia, levando-o ao parco pasto, de noite); mulheres impelidas a cedências sexuais, a troco de algo que pudesse ser tragado por elas e/ou pelos seus; pragas de moscas (é assaz tocante esta imagem transmitida por um autor: «em uma estrada foi achada uma moça morta, com um ramo na mão, por cansar de abanar com ele as moscas que a perseguiam, por ir mal coberta, até que caiu no chão e ali acabaram de lhe chupar quanto sangue tinha»); doenças diversas (muitas delas advenientes de carências alimentares), epidemias; mortandade e devastação de toda a espécie de animais; prepotente e ímpio aproveitamento das situações dantescas pelos gananciosos e ímpios opressores; insensibilidade e crueldade de abastados senhores e das autoridades eclesiásticas, civis e militares… 1
Em pleno século vinte, continuaram supliciadas as gentes de Cabo Verde por períodos de seca e de fome atrozes. Estive, na Cidade da Praia, perante lápide (aposta em pedestal)em queevocadas as vítimas dafomede 1947-1948everberada ainsensibilidade das autoridades coloniais.
Eis algo respigado do geógrafo Orlando Ribeiro 2:
«… a gente de Cabo Verde conhece a ‘fome total’ com o emagrecimento até ficar pele e osso, que ainda permite uma esperança de recuperação, a que sucedem a caquexia e o inchaço (edema da fome), que prenuncia a morte.»
«… a fome acarreta outros males: a degradação moral, a revolta, as psicoses. No Fogo, depois de uns dias sem alimento, uma mãe, a quem secara o leite, deu a morte ao filho de um mês, talvez para o poupar a um sofrimento mais prolongado que acabaria por trazer-lhe o mesmo destino.»
«… e as prepotências da Companhia do Grã-Pará e Maranhão, que possuía o monopólio da importação dos géneros e escravos e se valia da miséria geral para impor preços exorbitantes, determinando a escassez de cereais…»
«… e morrem à porta dos armazéns e estabelecimentos comerciais, resignados e sem um grito de revolta.»
1 Sobre a fome em Cabo Verde, algo mais se aponta em: Francisco de Azevedo Gomes – «Uma ‘deusa’ no Inferno de Timor», cit., pp. 261-262.
2 Orlando Ribeiro – «A Ilha do Fogo e as suas erupções», Junta de Investigações do Ultramar, 2ª ed., 1920, pp. 198 a 203.
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Alexandre Lobato 1 aduz expressivos documentos sobreagrandefome,mormente no ano de 1791, que assolou paragens de Moçambique («… dando origem a grandes mortandades»), de tal modo que o comandante da guarnição de Lourenço Marques, Costa Soares, veio a dissuadir militares que «pensaram, uns meter-se ao mato a caminho de Inhambane, outros seguir na lancha da fortaleza para Tafel Bay (praça dos Holandeses no Cabo da Boa Esperança)»; «lascarins» e outros nativos procuravam, famintos, nas praias, «restos de baleias que os ingleses pescavam; considerava-se feliz o que encontrava um pedaço de carne podre» (ob. cit., p. 108).
Alexandre Lobato, discorrendo acerca dum ataque dos Franceses à Fortaleza de L. Marques, diz: «… vendo já a desembarcarem», diz Costa Soares, «os nossos inimigos em grande número, a que nós não podiamos rezistir 2, muito principalmente por lhe nos terem retirado os nossos auxiliares (Negros do Paiz) que logo que virão a dezembarcar os Francezes os forão procurar para os ajudarem contra nós, isto quando nós os tinhamos comprado para nos Servirem, contra eles’ (…) ‘Alguns soldados portugueses fugiram para o inimigo e outros foram com eles» 3 (pp. 138-139). Segundo o referido autor, Costa Soares, em carta de 1-6-1792, «conta que os oficiais comiam uma vez por dia e os soldados recebiam, cada, meia panja por mês… Os negros secavam e pilavam ‘troncos de palmeiras bravas’ de que também se alimentavam os escravos dos europeus» (p. 109).
«Na mesma altura, o governador de Inhambane soube, por patamares (estafetas nativos que levavam correio) que mandara a L. Marques em Outubro, que a seca e a fome eram maiores ali que em Inhambane. Já se fazia o rancho apenas uma vez por dia, a reserva de mantimentos ficaria esgotada em meados de Novembro e, se demorasse o navio de viagem, a guarnição estava condenada a padecer miseravelmente» (pp. 109 a 111)
Muitos lascarins e soldados portugueses desertavam, na ânsia de sobreviverem.
A fome adensava o que já de sinistro caracterizava aquele «statu quo», tendo, por exemplo, o comandante Nogueira de Andrade referido haver destacados em L. Marques «70 homens que em poucos meses a doença reduz a 25» (p. 51). A propósito do que acaba de dizer-se, refira-se que, em 1571, Francisco Barreto, que movia guerra ao reino do Monomotapa, porque os homens por ele comandados iam massivamente morrendo (em breve, apenas «180 homens restavam dos mil ou pouco mais» com que partira) – o
1 Alexandre Lobato – «História do Presídio de Lourenço Marques», 1787-1799», Lisboa – 1949, vol. II, pp. 108 a 111.
2 Durante sete dias se resguardaram no sertão, «mortos de fome e de mil mizerias» (p. 139).
3 Com o evoluir das circunstâncias, entre os «lascarins» passaram a figurar escravos adquiridos para fins bélicos.
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que ficava a dever-se quer ao habitual fadário de «cães de guerras» para que insensivelmente arrastados quer a «epidemias e doenças» sobre eles sobrevindas –, «deixa-se convencer», segundo textualmente no-lo transmite o Prof. A. Silva Rego, «que são os mouros os culpados de tal mortandade e ordena a execução de parte da população muçulmana» da Vila de Sena 1 . Neste enquadramento, aqui fica um simples exemplo quanto a outras paragens: em Lautém – Timor (colónia onde permaneci de 1965 a 1967), tendo desaparecido um garotito que, com fome, se metera no mato em busca de tubérculos, veio a ser encontrado morto, já com as nádegas comidas pelos cães 2. Nessa circunscrição, o Padre Júlio Azimonti, Salesiano, falou-me de funerais, a que ele procedeu, de pessoas novas, vítimas de graves carências alimentares. E, de caminho, diga-se que, na missão do Fuiloro, de que ele era membro, ocorreu, por essa altura, que os trabalhadores que amanhavam os vastos milharais da mesma imploraram que o muito magro salário lhes fosse pago em milho. Recomenda-se a leitura do «Diário» 3 do Bispo Sebastião Soares de Resende, nosso contemporâneo, que esteve bastantes anos em Moçambique: trata-se de situações/acontecimentos por ele vistos, presenciados, confirmados, sobre violências físicas enormes, mortes, fome, escravização, negação completa da dignidade humana. Eis um só apontamento: «16-2-1958 Recebi M., Chefe do Posto de Ancuase, que me narrou coisas horríveis do Niassa português. O Administrador G., com a sua política algodoeira deixou morrer à fome muitos indígenas. Um empregado da algodoeira fez um relatório e disse nele que já não se justificava a sua presença naquele lugar porque já não havia pretos e osquerestavamestavamacaminhodamorte.Isto passa-sehojequandoomundocombate o colonialismo. Mas teimamos em ser colonialistas e dos piores em muitas coisas » 4 19.9. O distanciamento social, a «glória», a presunção idolátrica
Os poderes consubstanciam um enorme distanciamento social entre os do topo e osdabasedapirâmidehierárquica/súbditos.Equantomaisenorme/extremadoforopoder,
1 Prof. A. Silva Rego – lições policopiadas de «História do Ultramar Português», cit., p. 315.
2 Sobre a fome, leia-se, designadamente, o que de chocante exaro em «Uma ‘deusa’ no Inferno de Timor», cit., em várias páginas, designadamente na pp. 82-83, 129 a 131, 134 e passim.
3 Dele são recolhidos vários extratos por José Capela, ob. cit., 3ª ed., pp. 12 a 21.
4 Idem, p. 20.
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maior é o distanciamento entre os ditos níveis. Um distanciamento que confere aos poderosos uma aura sacra (reafirmada designadamente no trato protocolar) e remete os súbditos para a situação nesta tese devidamente caracterizada.
A discussão e questionamento desse distanciamento, o estudo das razões por que apaticamente encarado por muitos ou até religiosamente aceite por tantos, é algo pertinente e imperioso, havendo, para tal, que recorrer-se à História e à Ciência Política e, sem dúvida, à Psicologia, à Psicologia Social…
No mundo subjugado, a soldadesca europeia ocupava uma posição bem sobranceira em relação aos povos nativos, e designadamente em relação aos lascarins e aos carregadores. E os escravos eram o lastro do lastro.
Lá no distante topo da pirâmide, estavam os chefões ali destacados, mui ciosos da glorificação, do enaltecimento em vida e póstumo, para além do soleníssimo acolhimento aquando da receção em Lisboa.
Os poderosos (eclesiásticos, militares e civis) reclamavam que se lhes prestasse uma espécie de culto idolátrico.
Atente-se, por exemplo, num regimento de 1790 enviado designadamente ao governador de Inhambane (Moçambique), na parte que respeita ao «cerimonial dos governadores subalternos»: «Constando-me que alguns Governadores Capitães mores das Capitanias Subalternas deste Estado tem arrogado a si huma authoridade que lhes não compete, de aceitarem, e quererem que se lhes dê o tratamento de Senhoria, assim de palavra, como por escrito; despacharem no alto das petições, e firmarem o seu despacho com rubricas, e mandarem que se lhes faça a continência militar de Armas aprezentadas, batendo-se-lhes a marcha como aos Governadores e Capitães Generaes do Estado, e não contentes com tudo isto, passarem a pertender nas Igrejas assento distincto de Cadeira de espaldar, tamborete, Coxins, e alcatifa na Capella mór, repique de Sinos na entrada, e sahida das Igrejas, e que os Parochos os venhão esperar a porta da Igreja para lhes dar agoa benta quando chegão, e acompanha-los na sahida; ductos na Oblata das Missas Solenes; Evangelho a beijar, e paz pellos Ministros do Altar; e ultimamente serem recebidos debaixo de Palio a primeira vez que vão a Igreja, tudo na forma que se pratica com os Governadores e Capitães Generaes sem differença alguma…» 1
Do imenso acervo de documentos (sobre o colonialismo exercido pelos ditos «cristãos») que compulsei durante sucessivas décadas, eu poderia aduzir várias citações
1 Alexandre
ob. cit., vol. II, pp. 273-274.
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Lobato,
comprovativas de uma espécie de culto idolátrico reclamado aos nativos por parte de indivíduos que se ufanavam de estarem algo empoleirados na hierarquia. Não virá muito ao arrepio do que fica dito aludir a uma linguagem idolátrica que os Timorenses ainda em nossos tempos usavam para com os chefes «malai» (brancos, senhores): em Tetun, por exemplo, juntavam o adjetivo «futar» (sagrado) à designação de partes do corpo ou até de objetos de uso pessoal dessas «entidades» – «sagrada cabeça», «sagradas mãos», «sagrados olhos», «sagrada roupa», etc.
A tal distanciamento social é diretamente proporcional o à vontade de maltratar e espezinhar o próprio povo e, quantas vezes, outros povos e escravos… À sacralização do topo corresponde a insignificância da base da pirâmide.
Tanto a nível do setor militar e administrativo como do clerical, a aristocracia consagrava os horrores perpetrados sobre as gentes como sendo altos «serviços a Deus e a Sua Majestade». Sobre os arautos dessa enorme tragédia, os Papas, em bulas após bulas, emanavam bênçãos, vívidos incitamentos, indulgências, absolvições
Os reis situavam-se nas alturas celestiais (reis «pela graça de Deus»), um tanto abaixo dos Papas, narcisando-se em títulos prolixos: «Rei de Portugal e dos Algarves daquémedalém-marem África,senhordaGuinéedaconquistadaEtiópia,Arábia,Pérsia e ÍndiaesenhoriodeMalaca edoreino esenhorio deGoae doreino e senhoriodeOrmuz, etc.» 1
De caminho, acrescente-se que, por exemplo, em registo alusivo ao pontificado de Alexandre VI, se alude à «corte principesca do Vaticano, que não diferia em nada das outras cortes europeias: o mesmo luxo, os mesmos divertimentos, refeições regadas com vinhos generosos, danças, comédias, bobos e jograis, etc.» 2
Acabado de chegar à Índia, Fernando Coutinho, após libertar Afonso de Albuquerque, que tinha sido preso por Francisco de Almeida, combina com aquele ir atacar o Samorim, fazendo, no entanto, questão de ser-lhe reservada a dianteira –entendida esta, é claro, como uma posição à frente da de Albuquerque, mas resguardadamente atrás das muralhas de «lascarins» e soldados portugueses.
Quando Coutinho chegou a casa do rei, já Albuquerque a tinha saqueado e incendiado. Aquele, zangado por este ter faltado ao compromisso, vai, num gesto de
1 Albuquerque, que instituiu em Goa um faustoso palacianismo, fazendo rodear o trono da vice-realeza duma Corte Real imponente, terá matutado, segundo ouvi dizer um já falecido professor de História, no «glorioso» feito de mudar o curso ao rio Nilo para, assim, aniquilar o Egito. Quanto mais brutais fossem as façanhas mais elevado seria o galardão.
2 Adriano Vasco Rodrigues, ob. cit., 6ª ed., vol. II, p. 309.
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desforra, com um grande contingente de Portugueses, atacar Calecute. Uma vez tomado o palácio do rei, os Portugueses debandaram para a pilhagem. Os Calecutianos deixaramnos carregar bem com o saque e, nesta altura, saltaram sobre eles, matando bastantes, entre eles o próprio Coutinho. Explicite-se que os Portugueses, além de terem matado na cidade 1.130 Calecutianos, queimaram 570 que encerraram no palácio do rei, ao qual chegaram fogo depois do saque, com este se tendo Coutinho ocupado duas horas 1 . Afonso de Albuquerque, após isto, na ânsia de recuperar Goa, pede a Mendonça de Vasconcelos, acabado de chegar às Índias, que o ajude, dizendo-lhe que, com os seus quatro navios apenas (destinados pelo rei Manuel a Malaca), não poderia atirar-se a «feitos» de vulto, mas que, se nesse projeto o ajudasse, ele lhe daria depois «forças» para se abalançar a uma grande façanha.
Mendonça aceita a proposta… Matam 3 000 pessoas em Goa, muitas das quais em fuga, e incendeiam alguns bairros periféricos para «castigo» dos habitantes; e, de seguida, Mendonça pede a Albuquerque, conforme prometido, navios e homens para se ir apoderar de Malaca. Mas Albuquerque contraria-lhe o intento. Mendonça decide partir para Malaca, não obstante tê-lo Albuquerque avisado de que não deixaria de reprimir severamente tal atitude. Mendonça fez largar os navios de noite. Albuquerque mandou persegui-lo, com ordem de, em última análise, afundar-lhe os navios. Há disparos, há mortes, sendo Mendonça forçado a regressar. Albuquerque procede a alguns enforcamentos e desterros. Como habitualmente, os que eram drasticamente punidos eram subalternos que cumpriam ordens e, igualmente, o eram se as não cumprissem 2
Porque incomportável levar por diante assunto tão vasto, encerre-se com este exemplo e comentários que com ele se conectam:
Duarte Pacheco foi agraciado e «privilegiado» com um lugar mesmo ao lado do rei, numa procissão em Lisboa, seguida de «Te Deum», no Mosteiro dos Jerónimos. Era a celebração das sangrentas «vitórias» alcançadas sobre o Samorim (19 000 homens mortos terá havido do lado deste, no conjunto das operações militares).
Velhas desinteligências entre o rei de Cochim e o rei de Calecute, acrescidas da consabida atuação cruel dos Portugueses 3 , perfizeram o contexto em que Trimumpara, rei de Cochim, veio a enredar-se num dito «acordo» que aqueles, atento o seu próprio
1 Francisco de Azevedo Gomes – «Falsificação da História», cit., vol. I, p. 219.
2 Idem, ibidem, pp. 219-220.
3 Lê-se em «Les Indes Portugaises et Hollandaises» (vide: Francisco de Azevedo Gomes – «Civilizadores ou Bárbaros?», cit., p. 69): «Viu-se o terror que os Portugueses tinham causado aos príncipes indianos, que, muitas vezes, tratados com muita injustiça, eram obrigados a submeter-se por falta de capacidade para defender-se».
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proveito, acharam conveniente começar por urdir. A partir de Cochim, Duarte Pacheco fez incursões imensamente cruéis sobre domínios do rei de Calecute, designadamente sobre a estratégica ilha de Repelin, onde ia «matando todos os Calecutianos que encontrava» 1 . Acercando-se o exército de Calecute de Cochim, Pacheco incumbiu os Cochinesesdatarefaletal deimpedirqueosCalecutianosatravessassemosvausdeacesso ao referido reino. Os Portugueses, resguardados nos navios, afanavam-se no canhoneio. Pacheco fez propalar nos domínios de Cochim que «faria morrer da mais cruel morte aqueles que fossem apanhados a retirar-se… Colocou por todo o lado sentinelas que impediam a saída do país », mas muitos Cochineses conseguiram debandar tendo ido engrossar as fileiras do rei de Calecute.
Num dos combates, navios portugueses encalharam, durante algum tempo, em baixios perto dum vau. Os Calecutianos cercaram-nos, tendo estado iminente a luta com armas brancas. Pacheco, que se divertia a fazer campear a morte entre os outros, mas que prezava muito a sua própria vida, «depois de ter dado graças a Deus por o ter tirado dum perigo tão evidente», teimava que um príncipe de Cochim devia ser executado (disto o tendo conseguido livrar o respetivo rei), alegando não cumprimento cabal das ordens que lhe dera no sentido das letais arremetidas nos vaus contra os Calecutianos. Respigue-se, a propósito, este excerto de «Les Indes Portugaises et Hollandaises»: «Veja-se também que Pacheco não se batia senão de longe, com canhões e arcabuzes, para impedir a travessia dos vaus, difíceis em si mesmos, julgando-se perdido, logo que iminente a necessidade de bater-se com armas brancas contra os Naires, que imediatamente teriam vencido os Portugueses pelo seu número e destreza » Neste enquadramento, o autor dos acabados de referir volumes manuscritos caracteriza o «statu quo»militar daqueles povos com a expressão «infância das guerras indianas», havendo, porém, passos de progresso no sentido dum maior potencial, mencionando ele, a dado passo, que «os dois Milaneses, que tinham abandonado os Portugueses, para se entregarem ao Samorim… fundiram alguns canhões e, como engenheiros, prepararam alguns outros engenhos de guerra…» 2 .
1 Francisco de Azevedo Gomes – «Civilizadores ou Bárbaros?», cit., pp. 65 e segs.
2 Idem, ibidem, p. 64.
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19.10. A ambição pelo poder
O rocambolesco, ignominioso diferendo que passa a expor-se consta de «Falsificação da História» 1 .
Saqueando, pirateando e recolhendo valiosos presentes – tudo isso vindo a perder, em naufrágio, perto de Lisboa – era o que andava fazendo o vice-rei Eduardo de Meneses, quando, para o render, Vasco da Gama chega à Índia, na sua terceira viagem (26 anos após a primeira). Este aqui chega minado por doença fatal, em breve o privando a morte de tudo o que tinha usurpado, designadamente a farta pilhagem («60 000 ducados em dinheiro e 200 000 em mercadorias») acabada de fazer sobre um navio proveniente de Aden, apanhado já perto da Índia.
Movido por sentimentos contra Meneses, Gama ordena aos comandantes das fortalezas que o proíbam de pôr pé em terra, na sua viagem de regresso a Cochim. Lê-se em «Les Indes Portugaises et Hollandaises» que «Gama não pôs pé em terra em Chaul nem permitiu a alguém que o fizesse, nem mesmo aos doentes…» e ordenou ao respetivo governador que, quanto a Meneses, «não lhe permitisse pôr pé em terra e não lhe fornecesse víveres senão para quatro dias». De Chaul passa a Goa, onde o governador Francisco Pereira cometia sobre os habitantes as maiores injustiças e não pagava muitas e vultosas dívidas pessoais.
Meneses, impedido de descer em Chaul e em Goa, fervilha de cólera, move-se, sub-repticiamente, aliciando tropas que, logo que a morte, iminente, leve Gama, o reconduzam no governo, chegando até a mandar seu irmão Luís de Meneses a Cochim com esse fim.
Antes de morrer (em Cochim), Gama reúne o conselho de oficiais e ordena que obedeçam ao capitão Sampaio até serem abertas as cartas do rei, que regulavam a sucessão, e que o novo vice-rei chegasse a Cochim. Morre. Nas cartas, o nomeado é Henrique de Meneses, governador de Goa, que disto é informado.
«Entretanto, em Cochim, 4 000 Portugueses estavam divididos em dois partidos: um a favor de Eduardo e Luís de Meneses, outro a favor de Estêvão, filho de Vasco da Gama.»
Sampaio vai ganhando tempo, mandando vários navios piratear para diferentes mares, o que aborreceu, pois que sem o seu aval, Henrique de Meneses. Este pouco durou
1 Francisco de Azevedo Gomes, ob. cit., vol. I, pp. 286 e segs.
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(morre em 1526), tendo sido, na igreja de Cananor, abertas «as cartas de sucessão, em presença de Afonso Mexia, procurador do rei, e de João Sore, Auditor Geral» Era nomeado vice-rei Pedro Mascarenhas, governador de Malaca, mas estava-se na má monção, não se podendo ir avisá-lo, nessa altura.
«Talvez porque Sore e Mexia tivessem algum conhecimento de que o seu amigo Lopes Vaz de S. Pelágio, comumente chamado Sampaio, era nomeado vice-rei, nas segundas cartas de sucessão, propuseram que fossem abertas e que o vice-rei não o fosse senão por interinato. Alguns oficiais opuseram-se a tal, dizendo que, quando ele se visse vice-rei, recusaria entregar o governo a Mascarenhas »
Para serenar estes, houve dois juramentos e duas atas públicas.
À socapa, Sampaio e Mexia tinham, de imediato, escrito para Lisboa a mover influências junto de importantes amigos e do rei, tendo, então, este dado aos seus oficiais nas Índias a faculdade de decidirem entre Sampaio e Mascarenhas, com a preocupação de elegerem o que «julgassem mais útil para o seu serviço».
Mexia e Sampaio, designadamente com intrigas, colhem, descaradamente, apoiantes, aqui e ali, apesar de «os partidários de Mascarenhas sustentarem publicamente que isso contrariava os dois juramentos». Sampaio, «para dar repouso à consciência, conseguiu um Padre, chamado João Daro, que fez um sermão para provar que Sampaio era o verdadeiro vice-rei, exortando-o a castigar os que não lhe obedecessem». Com esta exortação, Sampaio exilou alguns partidários de Mascarenhas, tendo estes, no exílio, conseguido partidários para Mascarenhas, os quais reclamavam uma conclusiva assembleia geral. Isto induziu Sampaio nesta encenação: encontrando-se um domingo na missa 1, levantou-se, na altura em que o Padre erguia a hóstia, e gritou em alta voz: «Eu juro pelo corpo de Jesus Cristo, que está entre as mãos do Padre, que vou dar batalha aos Turcos e impedi-los de vir às Índias. Eu ordeno a todos os Portugueses, exceto aos que devem guardar a fortaleza, que me sigam sob pena de punição exemplar.» O Conselho de Goa, porém, veio a desaconselhar tal cometimento, sem que chegados reforços de Portugal.
Há dissidentes importantes que aparecem por Malaca a bajular Mascarenhas, o qual,acolitadocomtaisreforços, comelessemeteu,enquantonãochegavaaboamonção, em sucessivas piratarias e devastações.
1 De passagem, recordei-me do episódio (ocorrido no Novo Mundo) referido em «Falsificação da História, cit., vol. I, p. 220: a anuência no sentido dehaver missa antes de dois chefões espanhóis, extremamente desavindos entre si (por, afinal de contas, questões de poder/ganância), lançarem um contra o outro as suas tropas (havendo até militares com parentes nas fileiras adversas).
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«Mascarenhas, tendo chegado a Coulam, foi, aí, não obstante as proibições de Sampaio, reconhecido vice-rei», mas, em Cochim, onde chegou em fevereiro de 1527, Mexia, com seus homens dispostos na praia, impedia-lhe a descida. Mascarenhas pousa e manda seus homens pousar as armas e ensaia descer, mas sobre eles há uma carga que os leva a retroceder, sendo ele e vários subordinados feridos.
Prosseguem as cenas rocambolescas.
«À sua chegadaaGoa,Mascarenhas foipreso porSilveira,sem quesedefendesse, e conduzido, como tal, com algemas nos pés, à fortaleza de Cananor. Os seus homens foram também conduzidos prisioneiros a Cochim »
«Murmurava-se muito em Goa deste procedimento. Partidários de Mascarenhas foram fazer as suas queixas ao guardião dos Franciscanos e exortaram-no a interferir, a fim de que o assunto fosse sujeito à decisão dos juízes. Este monge disse que lhes daria a solução no domingo seguinte. Como Sampaio o tinha aliciado, ele fez, nesse dia, na sua presença, uma exortação para que ele fosse reconhecido como vice-rei, proferindo injúrias contra os partidários de Mascarenhas. O fim do seu sermão foi que, se alguém o acusasse de mentira, ele pedia a Deus que o condenasse ao inferno e lhe tirasse a palavra seele diziadiferentementedoquepensava,jurando porDeus, que ele tivera entreas mãos, de manhã, que dizia a verdade. Requereu, em seguida, da parte do Vigário Geral, ali presente, que todos os que se opusessem por obras ou palavras ao governo de Sampaio fossem excomungados e condenados a pagar dez marcos de prata à Igreja e não pudessem ser absolvidos senão pelo Bispo do Funchal »
«Tudo isto tinha sido combinado e, após um sermão tão persuasivo, Pedro de Far, governador, pediu as cartas de sucessão a Sampaio, beijou-as, pô-las sobre a cabeça, perguntando a todos os presentes se não eram da sua opinião; a maior parte deles fê-lo, mas os recalcitrantes, que não receavam a excomunhão do monge, recusaram-se, entre outros, Vasco e Jorge de Leme, que foram presos…»
Novos cambiantes se somam aos anteriores nesta enorme combustão. Há desobediências, agressões, realinhamentos frequentes dos dados deste xadrez, há interesseiras bajulações, traições. Até que Sampaio «mandou publicar ao som de trompa que aqueles que, de futuro, nomeassem Mascarenhas vice-rei seriam enforcados imediatamente».
Silveira, que pediu e viu recusado por Sampaio um apetecido poleiro, alia-se a Mascarenhas, manda um notário acompanhado pelo capitão Macedo a Sampaio, no intento de sujeitar-se a contenda a júri de juízes. Sampaio agride o notário, põe o capitão
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1
«no fundo duma enxovia». Com Pedro de Far, vai «prender todos os que se lhe opunham. Silveira, receando que o acusassem de ser causa de efusão de sangue, preferiu deixar-se prender…»
Ao vórtice de acontecimentos somou-se esta atitude de Meneses: libertou Mascarenhas e «fê-lo declarar vice-rei, na igreja de Cananor, onde vários do seu partido acorreram».
Ante um cenário explosivo, em Goa, em que desfasados os navios de Sampaio dos de Mascarenhas, «estando os Portugueses prontos a matarem-se uns aos outros», veio a acordar-se num julgamento, se bem que com dificuldade, insistindo-se, designadamente, do lado de Mascarenhas, que do júri constituído deveria ser excluído o monge João Dalvim, mas Mexia conseguiu induzir, ardilosamente, na manutenção dele e na junção do monge Biage da Silva. O júri, reunido, mandou sair «pela força» Sousa, Governador de Chaul, baluarte da causa de Mascarenhas, «sabendo ele, então, que Mexia e Miranda o ludibriaram», tendo-se decidido que «Sampaio era o vice-rei». Em Portugal, viria a ser dada razão a Mascarenhas.
19.11. Dialética até a nível das rígidas estruturas militares
As próprias rígidas estruturas militares não são imunes, como de seguida se exemplifica, ao jogo dialético que perpassa a História.
É Alexandre Lobato 1 que nos descreve o acontecimento seguidamente exposto, que é tão esclarecedor acerca de diversos aspetos.
No final do séc. XVIII, rebenta uma contenda em Lourenço Marques (Moçambique) que muito nos revela sobre o «statu quo», sobre os dados entretecedores do quotidiano desse universo colonial. Em 23 de abril de 1790, o comandante da fortaleza Tenente Silva Pacheco, ante a «tropa formada», dá ordem de prisão ao Governador Pedro Testevim (Tenente) e este riposta dando ordem de prisão àquele. Acaba por ser preso Testevim. E as queixas contra este formuladas por Pacheco são enviadas para o CapitãoGeneral, na ilha de Moçambique, a este tendo escrito, antes, «diversas cartas, queixandose dos procedimentos de Pedro Testevim» (e constara que «Pacheco fora para Lourenço
ob. cit., vol. II, pp. 60 a 107.
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Alexandre Lobato,
Marques a fim de sindicar atos de governadores sidos e vigiar Testevim») (ob. cit., p. 79). Pacheco constitui Junta Governativa, nela integrando o capelão.
A seguir, Pacheco dá voz de prisão ao tenente Avelino Pereira 1; Lobato regista algo do cadastro deste: tinha enveredado (aliás, ao sabor da onda corrente) por «várias atividades irregulares» (pp. 42-43), tendo acabado «condenado em conselho de guerra» e despromovido para soldado, «mas depressa chegou a capitão». A própria soldadesca era surripiada (além de molestada pela grande fome que então grassava nessas paragens, conformepungentementeseevocaem Lobato)porTestevimeporAvelinoe,paracúmulo, trazida sob a frequente ameaça de «roda de pao». Era a ganância (em que também embalado Giraldo Rosa, «tenente de mar»). Duas das grandes fontes de receita eram, aí, escravos e marfim.
Os soldados, conforme a correlação de forças, faziam preponderar a sua submissão ora mais para esta ora mais para aquela das duas fações em luta, pois, segundo eles diziam, se assim não fosse, «logo andava o pao».
Passado algum tempo, Testevim sente ser-lhe favorável a correlação de forças e prende Pacheco. O capelão ainda manifestou o seu desagrado, proferindo excomunhões.
Por ordem do Capitão-General, parte de Moçambique (ilha) o Capitão Vasconcelos e Sá para L. Marques (e daqui, após a devassa, seguiria para governador de Inhambane 2 ).
Um julgamento pejado de atropelos desaba sobre Pacheco 3 e seus apoiantes na revolta 4
Lobato, não se quedando em dizer que ao «leitor da Devassa dos acontecimentos…nãoescaparãoasnumerosasirregularidadesdesteprocessomonstruoso em que se atropelaram todas as regras da boa justiça» (pp. 76-77), desce a uma análise das mesmas.
O Governador-Geral enviesava contra Pacheco e favorecia Testevim. Pacheco, reclamando contra atropelos do conselho de guerra, diz, além de mais, que «Vasconcelos e Sá era seu inimigo pessoal… Alegou que o inquiridor exerceu coação sobre as
1 Este(em cuja casa,também não lhefaltavam negras, algumas das quais oferecidaspor régulos) desempenhara o cargo degovernador interino da fortaleza de Lourenço Marques, era apaniguado de Testevim e como este tinha uma avidez sem freio.
2 A investidura pressupunha juramento sobre o Evangelho.
3 Pacheco começa por ter como advogado o Doutor Tomás António Gonzaga, autor de «Marília», que havia sido degredado do Brasil paraMoçambiqueporenvolvimentona conspiraçãodoTiradentes,mas,por«doença»doditoadvogado,passaodefensoraserManuel Galvão da Silva. E, «por doença»deste, passaa sê-lo o ex-degredado Nascimento Nunes (o qual, alegando a esbatida responsabilidade de Pacheco, num quadro de problemas psíquicos, para ele pede misericórdia da Rainha) (pp. 103-104).
4 Aquando da revolta em L. Marques, aqui estava, apoiando-a, o degredado Manuel Vitoriano Pereira, «que exercera o importante cargo de sargento-mor da praça de Inhambane. Preso como os demais, ao ser despachado para a ilha de Moçambique, como o refere Lobato, deixou em L. Marques os «bichos» (escravos muito jovens), dele se anotando que «na capital estava bem relacionado com o bispo» (pp. 287-288).
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testemunhas por meio de gritos, descomposturas, prisões e ferros. Também acontecera que a devassa depois de conclusa fora copiada com alterações favoráveis ao governador e os soldados obrigados a assinar a cópia. Segundo Pacheco, o governador intimidou os soldados durante a devassa e encobriu as faltas de fazendas…» (p.103). E note-se: Pacheco «protesta contra a constituição do conselho de guerra porque oficiais não graduados estão a servir de outras patentes e entre eles figura Avelino Pereira» (que, entretanto, seria promovido a capitão), ou seja «era juiz em causa própria», pois fora por ele preso e lhe «tirou devassa», pela qual devia responder (pp. 103-104).
Após exautoração ante formatura militar, degredo e longa prisão (no conselho de guerra, o voto mais duro proveio do nível dos capitães, ou seja, no sentido do enforcamento), Pacheco, uma vez em Portugal, logo procurou que se lhe fizesse justiça, tendo vindo designadamente a verificar ter desaparecido a devassa respeitante a Avelino Pereira, não se encontrando «na Secretaria do Governo nem em parte alguma» (p. 43).
Há um aspeto colateral que não deve ser olvidado: no navio em que seguiu Vasconcelos e Sá para L. Marques, partiu também um contingente militar comandado pelo capitão CostaSoares queiria guarnecer afortalezarespetiva,na qual já antesestivera, até que rechaçado por uma força francesa incomparavelmente superior, o que o levou a escapulir-se para o mato, atitude que redundou em prisão de vários militares na capital 1 , sendo, então, governador Diogo de Sousa. O capitão Costa Soares diz, a dado passo de uma exposição: «a nossa retirada foi tão tarde que se os Franceses nos quisessem agarrar (ao que se ofereceram para os conduzir os mesmos negros) o fariam se não fosse o temor de se meterem ao mato», ocorrendo que no sertão andaram sete dias («mortos de fome, e de mil mizerias»)… Nas ruínas da fortaleza, onde nem há «onde dormir», diz Costa Soares, em exposição dirigida ao Capitão-General, não «haver nada que comer nem fazendas para comprar mantimentos» (sustentando-se a guarnição de «frutas e ervas de matos»)eterminacomesteapelo: «pedimosaV.Exaquenãonosdesamparecomsocorro de algua providencia senão morremos em poder destes negros infiéis…» (pp. 136 e 139).
Rendido Diogo de Sousa por Meneses da Costa, os oficiais da guarnição em causa enviam da prisão (na capital) uma petição a este («sem data nem assinaturas»), apontando as circunstâncias que ditaram a sua retirada e oferecendo-se «para qualquer serviço de
1 Um procedimento idêntico ao de Salazar, que não teve o prazer de ver o derramamento «heroico» de sangue dos portugueses que ocupavam, na Índia, os territórios recuperados por Nehru… E complemente-se isto com o que há de mais insólito: ainda em 1973, havia, em Portugal, «eleição de deputados pelo Estado da Índia» (entre indivíduos desses territórios advenientes), como no-lo atesta, por exemplo, o aviso oficial «A.N.P. – Eleição de Deputados pelo Estado da Índia», no «Jornal de Notícias», de 27-10-1973, p. 2. Note-se, de passagem, o seguinte: foi «degolado na praça pública de Goa, por ordem ida de Lisboa», Jorge de Castro, sob a acusação de tibieza na capitulação (ante exército sitiante), em 1571, da fortaleza de Chale, da qual era governador. Prof. A. Silva Rego – lições policopiadas de «História do Ultramar Português», cit., p. 322.
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guerra, porque, presos havia seis meses, tudo tinham perdido e estavam quase nus» ou, em alternativa, sugeriam a sua ida «para aquelle Porto a fabricar-mos com os nossos braços nova Feitoria e nela rezistir-mos de novo a qualquer ataque enquanto nos durarem as vidas»(p. 139). Anuindo, note-se o que diz Meneses ao Ministro: «Tinha que proceder assim, porque se fosse levar a lei a rigor, todos os dias havia conselhos de guerra com justiçados à pena capital, e extinguir-se-ia a pouca tropa existente; e também se tirasse empregos, postos e ofícios, os serviços públicos não poderiam funcionar. Pedia portanto a aprovação de Sua Majestade para as medidas que ia tomar.» 1 Acerca de Testevim, que continuou como governador de L. Marques e que, mais tarde, já capitão, «comandou o forte de S. Lourenço na ilha de Moçambique, e foi várias vezes eleito para o Senado da Câmara da vila capital»(p. 58), diz-nos A. Lobato que «não se emendou e, pelo contrário, cresceu em desmandos. Disso o acusam os oficiais destacados em 1790 para render os revoltosos», ocorrendo que o Capitão Costa Soares, em carta (de 5.6.1792) por si enviada a Silva Pacheco, diz «não poder inteiramente aturar as suas ensevilidades», afirma que «os oficiais deixaram de ir a sua casa, ‘senão em obrigação de serviço’, por ter o hábito de ‘andar falando sempre por tras de hum e de outro e nuca na prezença» e aponta-lhe o empenho em evitar que os outros oficiais fizessem negócio, «para elle somente o poder fazer a sua satisfação» (pp. 108 e 110).
São impressionantes as descrições de Lobato sobre o darwinismo feroz entre senhores poderosos, entre altas patentes militares, sobre o jogo, por vezes, sedicioso, na luta por riquezas e fausto, sobre o embalo despudorado no roubo, na fraude, na corrupção…2
19.12. A contextura do além-mar e os respetivos efeitos comportamentais e sociológicos sobre os ocupantes europeus
Quanto ao assunto referido em epígrafe, já significativamente se discorreu em vários itens.
Peculiares vicissitudes e condicionalismos, em terras de além-mar, refletiam-se em algumas consequências comportamentais e, designadamente, em certas manobras e
1 Referia o General Meneses da Costa que a Costa Soares falecera, aí, a esposa entre muitos tormentos (p. 141).
2 Havia «oficiais indiscutivelmente plebeus ou de origem humilde», diz Lobato, o que deduzia até da forma com que grafadas as respetivas «assinaturas».
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em certas flutuações nas relações entre poder secular e poder religioso ou entre titulares dos mesmos.
Nesteenquadramento, tanto haviaadiscorrersobreconluios como sobre acirrados diferendos (designadamente entre Bispos e Governadores), em que os contendores trocavam entre si graves acusações.
Também Teodoro de Matos nos traz, quanto a isto, achegas: António Guerreiro, governador de Timor e Sólor, em carta que escreveu ora ao vice-rei da Índia ora ao rei Pedro II, elogia o «padre comissário do Santo Ofício Fr. Manoel de S. António», realçando o seu «serviço a Deos» e a «V. Majestade», pedindo ao rei que o encarregue do bispado de Malaca. O dito frei Manoel, também em carta de 1702, dirigida a Pedro II, enaltece o dito governador: «pois afirmo a V. Majestade que não vi homemmais constantenos trabalhos da guerra… ezello grande ao serviço de Deos e de V. Majestade…» 1
Frei Manoel de S. António tinha refreado uns nativos e ajudado a combater outros que, cansados das brutalidades dos Portugueses, queriam impedir o desembarque de Guerreiro e suas tropas nessas ilhas. Entre estes opositores estavam o régulo Domingos da Costa, de quem o dito frei diz, em altura em que era já bispo de Malaca: «negro mais fedorento no aspeto e em sy que se pode considerar» 2 .
Diga-se, de caminho, que o Governador de Timor António Guerreiro, em carta dirigida ao vice-rei da Índia, acusa Frei António das Angústias de estar articulado com os «levantados de Inaymute» e, apontando-o como dissoluto e «mero contratador», apontalhe a «ambição com que tira a pelle aos pobres timores por lhes vender athe os sacramentos que lhe administra» 3. Religiosos, enfim, que além de exigirem aos nativos elevados pagamentos epesadas «vestoriasecomedorias»,semetiam,nãoraro,com sanha e avidez, em lutas armadas cruéis contra eles e dispunham, em muitos casos, de contingentes armados. Tinham os nativos numa tal situação que estes, para cair-lhes em graça ou afastar maior desgraça, eram levados a ir ao encontro dos seus apetites, presenteando-os com riquezas e até com «moças» 4 .
O referido régulo Domingos da Costa, em carta endereçada, em 1703, ao rei Pedro II, queixa-se de que o governador António Guerreiro, logo à chegada àquelas paragens,
1 Artur Teodoro de Matos – «Timor Português – 1515-1769», cit., pp.228, 240 e 331.
2 Idem, p. 115.
3 Idem, pp. 253-254.
4 Na sua obra, Artur Teodoro de Matos (p. 113) regista que António Hornay, régulo poderoso, de ascendência holandesa, que andava arredio do domínio português em Timor, estando no leito da morte, em 1693, Frei António da Madre de Deus o convencera a deixar a sua fortuna à Fazenda Real. O próprio Frei veio a ser incumbido de receber o rico espólio, onde não faltava uma boa quantidade de ouro.
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sem fundamento, «com duzentos tiros de artelharia arazou toda a povoação de Sollor…» e que, em Timor, logo «mandou por fogo nua povoação dos sabos», os quais (sendo, segundo ele, gente «jndomita») por este motivo «se amothinarão… todos assy gentios como christãos». Mas, impotentes, acabaram por matar os próprios filhos e mulheres. Ou seja, o desespero levou-os à autodestruição 1, o que ocorreu em várias paragens coloniais (designadamente o Bispo Las Casas, conforme já atrás ficou dito, disso nos dá conta). De caminho, algo se aduza do Prof. Doutor Jorge Dias 2: assinalando que, muitas vezes, «houve suicídios coletivos, etc.», ele, adada altura, descendoa exemplificação,após falar dos ameríndios, refere, a coberto de George Peter Murdock, que «entre os tasmânios, o desespero foi tão grande que as mulheres provocavam abortos por processos brutais e praticavam o infanticídio, certamente para que os filhos não viessem a sofrer o que eles estavam a sofrer».
Na carta acima referida, o régulo Domingos da Costa queixa-se dos «muitos fiscos» e «sem rezõens» do governador António de Mesquita Pimentel e lamenta que ele tenha matado por afogamento homens importantes de Timor: «… mandou dar fundo no mar a Pedro Hornay… sem tirar devassa de suas culpas; e outros dous capitães famozos sem haver cauza algua; mandou saquiar a todos os reis e régulos e outras insollencias que escuzo relatar…» E informa que o mesmo governador para se ver livre dele, Domingos da Costa, o tinha «enviado a pellejar com os mouros» para que ele «lá acabasse» 3
Oarcebispo deGoa, «não esquecido de ressentimentos antigos»(nodizerde Artur Teodoro de Matos), faz acusações contra o bispo de Malaca Manoel de Santo António e propõe: «… he justo mande V. Mge por carta estranhar ao Bispo ser amotinador e perturbador não só dos Relligiosos, mas tambem do Governo secular.» 4
E, em 1713, o vice-rei da Índia escrevia a respeito deste Bispo: «Esquece-se o Bispo de Malaca das suas obrigaçoens de Prelado, querendo só exercitar as de General e Político, tentação em que caem muitos Relligiozos » 5
Eis, a coberto de Artur Teodoro de Matos, mais algumas pertinentes achegas: «Note-se, contudo, que a pertinência das acusações contra os dominicanos incidia principalmente no seu pouco zelo pelo espiritual, pois não ‘empregavão o fervor da sua diligencia no comercio das almas, mas em se utilizare com mercancias temporaes…’; nos
Assim fizeram, por exemplo, os Zelotes cercados pelos Romanos.
2 Prof. Doutor Jorge Dias – lições policopiadas de «Antropologia Cultural», Associação Académica do I.S.C.S.P. (Univ. Técnica de Lisboa), 1967, pp. 203-204
3 Artur Teodoro de Matos, ob. cit., pp. 308-309.
4 Idem, p. 60.
5 Frazão de Vasconcelos, ob. cit., p. 29, em nota.
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excessos de benesses em sândalo e cera que reclamavam e depois transacionavam e nas exigências desmedidas para realizarem certos atos de culto como, por exemplo, os funerais, chegando ao extremo de ‘deixar o corpo três dias a apodrecer sem lhe quererem dar o enterro’ até que os parentes, pedindo esmolas ou empenhando algum filho, lhes pagassem o ofício. Finalmente também se aludia ao mau exemplo que davam alguns destes religiosos, vivendo com concubinas que por vezes lhes eram oferecidas.» E, além de mais, Teodoro de Matos diz que, numa carta, de 1634, dirigida ao vice-rei da Índia, o rei Filipe III insurge-se contra a «relaxação dos religiosos de S. Domingos», tendo o vicerei deixado, quanto a estes, o registo de que «vivem mais de suas conveniências», chegando a sua insolência ao ponto de expulsarem o capitão da fortaleza de Sólor, que fora provido pelo monarca 1 . Quanto ao vigário-geral dos dominicanos, diz uma fonte do tempo, «mais olhava para o que lhe haviam de mandar os frades nomeados para aquela missão tão apetecida, do que para as consequências de tantos danos» (ob. cit., p. 60).
Em 1718, o vice-rei da Índia ordena ao governador de Sólor e Timor que não impeça e dê ajuda ao Bispo de Malaca para prender «algum ou alguns soldados ainda que sejam portugueses, por delitos pertencentes à Igreja ou jurisdição do dito bispo…»; nesse mesmo ano, por este ter preso um militar, há um desaguisado com o governador, que acaba por ele excomungado e «todos aqueles que obedecessem às suas ordens quando forem irreverentes para a autoridade eclesiástica» 2 .
Já desde 1719, o Bispo de Malaca Frei Manoel de S. António exercia o cargo de GovernadordeSóloreTimor,quando, em 1722,ésubstituído nessasfunções porAntónio de Albuquerque Coelho. Entre os dois vem a atear-se uma acirrada contenda acabando o governador por meter o Bispo num barco e expulsá-lo para Macau… Neste vórtice de crispações entre o governador e o Bispo, este imputa àquele (fazendo também duras queixas contra outros governadores dessas ilhas) barbaridades sobre uns timorenses que, olhados como feitos com os Holandeses, de imediato ou após submetidos ahorrorosos «tratos», foram trucidados, alguns desta rebuscada forma: atados nas bocas dos canhões, mortos pelos pelouros e feitos em «quartos» que se expunham para infundir-se terror. Além de mais, dizia o Bispo: «quando quizesse mandar matar a algu home, me avizasse para fazer eu diligencia a que se não perdesse sua alma »
1 Artur Teodoro de Matos, ob. cit., pp. 58 a 61.
2 Idem, p. 122.
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No sentido da sua expulsão, o Bispo alega que foram também grandes as pressões dos frades de Timor (… «lobos que se chamão missionarios»): «… e a incitassão destes frades, que se chamão missionarios nestas ilhas por eu me oppor aos seus grandes vicios e escandalos que dão ao povo» 1 .
19.13. «Fazer cristandade»
Alvarez-Uria 2 diz: «NaAmérica,a autoridadedo príncipeestavalegitimada pelas bulas pontifícias», tendo o papa 3 , além da doação desse continente, dado ao rei («domador de gentes bárbaras») muitas prerrogativas e direitos. E, é claro, todos esses «favores papais não foram feitos sem contrapartida». Segundo o refere Alvarez-Uria, há, por exemplo, num livro de Manuel Giménez Fernández, «importante informação»quanto às grandes contrapartidas concedidas pelo rei ao papa.
E mais uma vez se repise que a Igreja, os Papas não esmoreciam no frenético derramamento de incitamentos, de bênçãos e perdões («perdoança de todos os pecados…» 4) sobre os que, nessas paragens do Mundo, andassem mobilizados em prol da tão sacrossanta «epopeia».
Já foi referido o acontecimento que passa a enfocar-se e que aparece narrado nos manuscritos «Les Indes Portugaises et Hollandaises», nestes termos: «Vimos nos capítulos precedentes a quantidade de navios tomados aos Árabes e Indianos ou metidos no fundo… Com essa captura e destruição de navios, o comércio do Egipto, Ormuz e Aden definhava inteiramente. Em 1505, o Sultão do Egipto enviara Julius Maurus, Geral dos Monges do Monte Sinai, ao Papa, para lhe fazer ver que ele jamais fizera qualquer mal aos cristãos e muito menos aos Portugueses; e que, assim, ele olhava como uma injustiça gritante que eles lhe tivessem arrebatado muitos dos seus navios sem motivo (…)», devendo o Papa «fazer cessar a guerra que os reis de Espanha e de Portugal faziam aos Maometanos». Foi plenamente perversa e cínica a reação do Papa e dos ditos reis. «No regresso de Maurus, Campson ou Canazao el Gauri, Sultão do Egipto, viu bem que era preciso usar de meios que não as palavras (…) Os reis de Calecute, Meca, Aden,
1 Idem, pp. 361 a 366.
2 Fernando Alvarez-Uria – no posfácio de «Brevíssima Relação da Destruição das Índias», cit., p. 177 (e pp. 171 e 173)
3 «Que recebeu de Deus ‘todo o mundo do seu reino e senhorio» – apodixe esta que sagra a «doação» da América ao rei (p. 171).
4 Imenso é o acervo de documentos a atestar a vaga de incitamentos, absolvições, bênçãos… Quedo-me, aqui, por referir que em algo são esclarecedoras, por exemplo, as páginas 313-314 da já citada obra «História dos Papas – Luzes e Sombras», de Heitor Morais da Silva, S. J.
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Ormuz e Cambaia ou Guserate, que tinham sofrido muito com as frequentes capturas dos seus navios, fizeram um tratado com ele, pelo qual prometeram ajudar-se mutuamente para expulsar os Portugueses das Índias.» 1
Entre «Senhores» e escravos – tratados estes como «coisas» com menos jus a piedade do que alimárias – não havia mistura, nos atos de culto: estes ora a uns ora a outros se destinavam; ou, na igreja, espaços diferentes havia definidos. Se esta era a regra aqui, como admitiriam os ditos «cristãos» estar lado a lado com eles, no «céu»? Não há subjacentes efeitos literários na pergunta que, logicamente, daí ressalta: os ditos «cristãos» não olhariam o seu «deus» como induzido, como vergado às maquinações, perversões por eles urdidas? Bastaria conceder aos escravos a perspetiva sobre um altar lateral (não o altar-mor), onde adrede colocada uma qualquer imagem de cor negra (isto é apontado, por exemplo, em S. Salvador da Baía/Brasil, pelo guia ao ror de turistas que visitam a Igreja de S. Francisco – igreja esta, note-se, pejada de ouro e de babilónicos requintes).
Não fique por dizer-se que, nesse mundo subjugado, às pessoas inquestionavelmente arroladas como católicas era, note-se, posto que pertencentes a esse lastro esmagado, vedado o acesso a alguns «sacramentos», mesmo às de paragens, cujo elevado nível civilizacional jamais podia ser apagado na História 2 . E o processo de «cristianizar» os escravos quase se resumia a esse coletivo batismo, de que já se falou. Em «Les Indes Portugaises et Hollandaises», lê-se: «Os Portugueses batizavam e declaravam cristãos os nativos que aprendiam a fazer o sinal da cruz e a dizer o Pai-Nosso e o Credo» 3 E Oliveira Martins 4 diz: «Os negros do Congo tinham-se ‘convertido’ em massa; o rei, a corte, os súbditos, eram todos cristãos, porque assim chamavam os padres aos que recebiam o batismo e adoravam os novos fetiches com a mesma fé com que tinham adorado os antigos.»
Já algures foi referido que os «senhores», para não terem o encargo de alimentar os seus escravos, reservavam-lhes os domingos e «dias santos» para trabalharem «de sua conta», «de forma a angariarem o sustento próprio». Asseguravam nesses dias a subsistência para toda a semana 5
1 Francisco de Azevedo Gomes – «Civilizadores ou Bárbaros?», cit., pp. 84 a 87.
2 Francisco de Azevedo Gomes – «Falsificação da História», cit., vol. I, pp. 263-264.
Veja-se, de caminho, notas do Prof. A. Silva Rego, em «Lições de Missionologia», cit., p. 103.
3 Francisco de Azevedo Gomes – «Civilizadores ou Bárbaros?», cit., p. 35.
4 Oliveira Martins, ob. cit., p. 24.
5 António Carreira – «Cabo Verde – Formação e Extinção de uma Sociedade Escravocrata (1460-1878)», cit., pp. 383 a 385.
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No Brasil, os Jesuítas, nas suas vastas circunscrições territoriais, possuíam uma multidãodeescravos levadosdeÁfrica.Ecruamenteescravizavammultidõesemultidões de Índios, sob o eufemismo de os trazerem à «Fé», pondo esse «gado» ao serviço do seu fausto/poder económico e político – a tal ponto que chegaram a superintender, designadamente numa vasta zona, que hoje constitui o Paraguai, tendo havido envolvimento detropas portuguesas eespanholaspara subjugar essedomínio,a apelidada «RepúblicajesuíticadoParaguai». «Propagou-seentão»,dizAntónioCarreira, «todauma teoria de que não era pecado, antes necessária e benéfica, a sujeição do africano à escravidão, até porque possuía especiais qualidades e também robustez física para árduos trabalhos. Desde que batizado e integrado no seio da Igreja, não havia mal nenhum em fazer dele escravo, podia desse modo conquistar a redenção!» Foi o desplante ao ponto de denominar-se a captura, arrebanhamento de escravos (africanos, índios, etc.) com o termo «resgate» («resgate de escravos», «resgatar escravos»…), acontecendo que a semântica desse vocábulo pretende incutir a ideia de «redenção», de retirada do paganismoe colocação no limiardocatolicismo(«resgatá-los das crenças próprias e fazêlos ingressar, pelo batismo, no grémio da Igreja», explica António Carreira), assim se revigorando, além de mais, os enquadramentos doutrinários, apologéticos, das ditas «guerras justas», reconhecendo-se aos Portugueses «prerrogativas especiais não só de escravizar os que entendessem como também de matá-los, mesmo fora de combate» 1
Na vanguarda dos que pugnaram no dito sentido, estão indivíduos hoje badalados como ícones da missionação do Brasil. E até o Padre Vieira, numa atitude crua e classista (congraçada com os poderes religioso e secular), ensaiou justificar a escravatura com razões económicas e até teológicas; lê-se em Luna 2: «Lúcio de Azevedo… afirma que a tese de Nóbrega seria, mais tarde, defendida pelo Padre António Vieira, que declarou: ‘quanto mais larga fosse a porta dos cativeiros lícitos (sic) tanto mais escravos entravam na Igreja e se poriam a caminho da salvação!» Estoutra afirmação de Vieira destoa da acabada de mencionar: «… entre todas as injustiças nenhuas clamam tanto ao céu como as que tiram a liberdade aos que naceram livres e as que não pagam o suor aos que trabalham…» (em carta dirigida ao rei Afonso VI, ele fala de eclesiásticos «que de público e de secreto fazem cruel guerra a Jesus Cristo») 3 .
1 António Carreira – «Notas sobre o Tráfico Português de Escravos», cit., 2ª ed., pp. 29 a 31.
2 Luiz Luna, ob. cit., pp. 107-108.
3 Frei Bento Domingues – texto «Escravos felizes», no «Público», de 24-5-1992, p. 31.
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Oliveira Martins 1 refere que Nóbrega e Anchieta, os fundadores das missões do Brasil, cooperavam com os capitães nas guerras contra os indígenas» («os índios mais por medo que por amor se hão de remir»).
Diz Fernando Correiade Oliveira: «Erapreciso usara força,defendiaoutro jesuíta, José de Anchieta (1534-1597), pois…‘para esta gente não há melhor sermão que a espada e o ferrete.» 2
Conforme expressão do jesuíta Garcia Simões, «a conversão daqueles bárbaros não se alcançaria por amor e só sujeitos pelas armas» 3 .
Transcreva-se de Luiz Luna 4 o seguinte: «Como os demais ‘obreiros’ da Companhia de Jesus, o padre José Aspilcueta era favorável à exploração económica do índio e isso o confessa ele também na carta, ao manifestar-se favorável à tese defendida por Nóbrega, Anchieta, Luís Grã, António Blasques, Francisco Pires e muitos outros, da sujeição dos naturais, a pretexto da conversãoaocatolicismo.Naverdade,foramosjesuítas,comNóbregaeAnchietaàfrente, os principais colaboradores da Coroa portuguesa na obra criminosa da escravização dos índios brasileiros (...) O índio, capturado nas chamadas ‘guerras justas’ (invenção de Nóbrega), era entregue ao poder eclesiástico para este tirar proveito da sua exploração, embenefíciodacoletividadelusa.Eraoaldeamento,idealizadoeexecutado pelosjesuítas, verdadeiro campo de concentração, onde os índios viviam policiados e perseguidos, aprendendo o catecismo e, como escravos, trabalhando em proveito da sociedade firmada entre clero e nobreza. Do sucesso dessa sociedade, fala o padre António Pires, em carta de 12 de Outubro de 1558, datada da Bahia, onde administrava um desses campos de concentração: ‘… daí o governador adiante com o seu bom zelo e Nosso Senhor tirarem mui úberes frutos. Continuou a castigar os delinquentes (índios que resistiam à escravidão) com mui prudência e temperança, de maneira que edificasse e não destruísse.»
Prosseguindo-se a coberto de Luiz Luna, eis tirada jubilosa do jesuíta António Blasques arespeito datarefasanguináriado governadorMem deSá: «Começouacastigar a alguns (índios rebeldes à sujeição), começa a pô-los em julgo de modo que se leva outra maneira de proceder que até agora não se teve, que é por temor e sujeição; e pelas mostras que se dá no princípio, conhecemos o fruto que adiante se seguirá, porque com isto todos
1 Oliveira Martins – «O Brasil e as Colónias Portuguesas», cit., p. 24.
2 Fernando Correia de Oliveira – texto «Os jesuítas e o Império Português» – suplemento (p. 2) do «Público» de 19-4-97.
3 José Capela, ob. cit., p. 76.
4 Luiz Luna, ob. cit., p. 115.
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1
temem e todos obedecem e se fazem adeptos para receber a Fé» (ob. cit., pp. 115-116). E seguem-se tiradas dos jesuítas Francisco Pires e António Blasques onde é assinalado como «serviço de Nosso Senhor» este chorrilho de crimes (por exemplo, «chegou o Sr. Governador de Ilhéus com muita vitória, glória a nosso Senhor, porque matando muitos negros e queimando muitas aldeias e cobrando muitas coisas que os índios tinham em seu poder, que eles mesmos traziam e vinham com muita instância pedir paz…» (ob. cit., p. 116). E o padre Blasques, em 10-9-1558, comunicava ao superior da Companhia de Jesus que o Governador, numa atitude de elogiada solidariedade com as aspirações clericais, ordenara que fossem queimadas as casas daqueles nativos que não se passassem, céleres, das suas povoações para a «povoação onde os Padres doutrinavam» (ob. cit., p. 116).
Enãopodem serescamoteados designadamente os próprios escritos jesuíticos que apontam a necessidade de engrossar o respetivo rebanho de escravos africanos 1
O Padre Baltazar Barreira, em carta escrita da Serra Leoa, em 1604, dizia acerca dum Padre que não fazia comércio de escravos: «este padre sim e não outros que cá vieram, os quais assim tratavam em escravos e mais coisas como os outros Portugueses. E não errava nisto, porque os sacerdotes, que vieram a estas partes, nunca fizeram nelas ofíciodesacerdotes,nem disserammissa,nemseocuparam emoutracoisasenãocomprar e vender.» 2
E eis asserção de António Carreira: «Nos séculos XVI, XVII e mesmo XVIII, tanto em Cabo Verde como em Angola, os padres negociavam abertamente em escravos como quaisquer negreiros »
Ante o que Oliveira Martins (transcrevendo, designadamente, frases, com conteúdo esclavagista, da autoria dum bispo de S. Tomé), José Capela, António Carreira, Luiz Lunaeimensos outros compulsaram doenormeacervodedados sobre aescravatura, só se pode ficar horrorizado ante o envolvimento ávido, jubiloso e até incitador do clero na mesma.
Designadamente o rei do Congo e seus sucessores juntavam as suas lamúrias às do povo ante as violências, rapinas e imoralidades de toda a ordem, também dos membros do clero, esclavagistas como os demais e que se atolavam no «escândalo» do deboche com nativas e com as escravas que compravam. A tal ponto que, a nível do rei e gentes
Na ótica esclavagista, o escravo negro era um «produto» muito mais cotado do que o escravo ameríndio: este era mais rebelde e menos resistente ao trabalho violento e aos maus tratos – dizem-no vários autores, enquanto outros, atentos à vertente antropológica, acrescentam que o índio também se ressentia muito da violência de sair do nomadismo para o «trabalho sedentário».
2 António Carreira – «Cabo Verde – Formação e Extinção de uma Sociedade Escravocrata (1460-1878)», cit., p. 438.
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do Congo, houve, como já o referi noutro ponto, uma «estreita conexão rapidamente estabelecida entre o missionário e o esclavagista», no dizer de José Capela 1
Jáalgoda «Monumenta HistoricaSocietatis Iesu»setranscreveu, nestatese,sobre matéria que muito se conecta com o que se exara neste ponto, mas ainda para aqui avulsamente aduziremos dessa obra tão só os dois apontamentos que se seguem e que designadamente nos falam da bruteza e insolência com que os dominadores tratavam os vencidos: Francisco Xavier, em carta de 26/1/1549 dirigida a João III (carta em que ele começa por referir o Padre Frey Joam de Vila do Comde como magoado com tantas injustiças/violências presenciadas) queixa-se do «mao tratamento que se faz aos que sam cristãos convertidos a nossa samta fé», designadamente perpetrado por «Capitães e Feitores» 2 .Notexto respeitanteàidade Francisco Xavier àilhadeMoro,lê-se: Llegando el Padre Maestro Francisco á las islas del Moro halló aquella gente tan bestial, que huya de él como si no fueran hombres, y detúuose com ellos cerca de três messes, procurando, quanto podia, amansarlos y hazerlos familiares y reducirlos á mejor vida y á aprender la doctrina; y aunque halló aquella gente tan incapaz y brutal…» 3
Houve vaias, num Congresso em Fátima, para o teólogo Joseph Comblin 4 por ter proclamado, além de mais, o seguinte:
«A história deixou-nos uma teologia da guerra. Durante dezasseis séculos, pelo menos, a teoria da guerra justa serviu para encobrir e silenciar o evangelho da Paz…» 5
Transcreva-se de José Capela o seguinte passo: «Ainda agora os bispos portugueses, na sua pastoral coletiva de 16 de Julho de 1974, falam do período da história nacional superior a cinco séculos ‘iniciado pela epopeia marítima’. E referem o papel da Igreja: ‘Ninguém desconhece como viveu de perto a gesta marítima, empenhada a fundo numa atividade missionária e civilizadora que, a despeito de todas as sombras que lhe possam apontar, ficou a ser uma das suas mais belas realizações.» 6
Silva Cunha, Ministro do Ultramar até 25 de abril de 1974, diz: «Começámos a nossa expansão colonial sob o signo da ideia de que a colonização era uma missão – a missão de evangelizar, a missão de cristianizar, que o mesmo é que dizer a missão de
1 José Capela, ob. cit., 3ª ed., p. 72.
2 G. Schurhammer, S. J, e I. Wicki, S. J. – «Monumenta Historica Societatis Iesu»/«Epistolae S. Francisci Xaverii» (1549-1552), Romae – 1996, tomo II, p. 60.
3 P. Alexandro Valignano – «Monumenta Historica Societatis Iesu»/«Monumenta Xaveriana», cit., tomo I, p. 76.
4 O qual «foi sucessivamente expulso pelos respetivos governos militares do Brasil, em 1972, e do Chile, em 1980».
5 Manuel Vilas Boas – artigo «O teólogo mal amado», na revista «O Jornal Ilustrado», suplemento nº 901 de «O Jornal», de 29/5 a 4/6 de 1992, p. 3.
Ao correr da pena, aluda-se ainda, no tocante a proclamações de Joseph Comblin, a um artigo deste na revista «Além-Mar» (dos Combonianos) nº 398, de out./92, pp. 31 a 34, bem como ao texto «Os três desastres do Evangelho» publicado por António Marujo no «Público» de 10/5/1992, p. 33.
6 José Capela, ob. cit., 3ª ed., p. 171.
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civilizar, dado que, na época, não se concebia a civilização fora do Cristianismo.» E acrescenta: «… a justificação moral do direito de colonizar encontra-se na ação desenvolvida em benefício destas populações que, através da ação colonial, têm sido libertasdosflagelosqueasafligiameestãosendotrazidasateoresdevidasucessivamente mais elevados.» 1
E mais enfático ainda é o Prof. Padre A. Silva Rego: «A política indígena portuguesa foi sempre norteada mais ou menos pelo Cristianismo. Os indígenas 2 mereceram-nos sempre atenções especiais, igualando-nos a eles, ou melhor, elevando-os até nós… As missões e a educação foram sempre parte integrante do nosso sistema colonial. Praticámos a assimilação sempre com o mesmo entusiasmo…» 3 E o mesmo enaltece a «íntima colaboração entre o Estado e a Igreja – sociedades perfeitas ambas, a ambas compete a integração do Ultramar na grande Pátria Lusitana» e reafirma serem «manifestas as duas vontades de atingir o mesmo fim. O Estado tem as suas razões específicas, mas estas em nada contrariam as da Igreja. Completam-se, integram-se, unificam-se até» 4 . E veja-se com que fervor o mesmo autor fala, em «Lições de Missionologia», na lide «da Igreja e do Estado» em «transformar o Ultramar português em verdadeira cristandade e lusitanidade» 5
Não se passe adiante sem aduzir algo, por exemplo, da historiadora Maria da Conceição Neto 6 :
«Ao contrário do que pretendia a propaganda sobre a ‘assimilação’ e o ‘Portugal multirracial’ , a raça era um fator de discriminação na colónia do século XX. Legalmente refletido no ‘estatuto do indigenato’ que excluía da plena cidadania portuguesa a maioria esmagadora dos negros e muitos mestiços.»
«O imposto indígena, o trabalho forçado, a impossibilidade de matricular os filhos nas escolas secundárias ou de tirar a carta de condução, são uma pálida amostra do que o estatuto do ‘indígena’ significava no dia-a-dia »
«As barreiras impostas pela colonização portuguesa à ascensão social dos colonizados são indiscutíveis: em 1950, menos de um por cento da população não branca estava oficialmente na categoria de ‘civilizada’ (e em 1960 ainda não chegavam a 100
1 Silva Cunha – «O Sistema Português de Política Indígena», Lisboa – 1952, pp. 11-12.
2 A própria designação «indígena» tresanda a colonialismo.
3 Prof. A. Silva Rego – lições policopiadas de «História da Colonização Moderna», cit., vol. I, p. 262.
4 Prof. A. Silva Rego – «Lições de Missionologia», cit., p. 252.
5 Idem, ibidem, p. 343.
6 Maria da Conceição Neto – «O curso sinuoso da História para compreender melhor Angola», no «Correio do Minho», de 16 e 17/10/1993, p. 14.
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000), para a qual se exigia uma série de requisitos culturais e económicos (que não eram exigidos aos brancos) »
«As condições agudizam-se nos anos 50, justificando o radicalismo nacionalista…» 1
Logo de seguida, a historiadora em apreço versa sobre o ensino, «setor decisivo para o potencial de desenvolvimento de qualquer país», escrevendo, a dado passo: «… uma colonização que ergueu todo o tipo de barreiras à escolarização da maioria (até aos anos sessenta confiada oficialmente às missões católicas e tolerada nas missões protestantes) e era dificultada mesmo a existência de escolas de formação média e superior para a minoria ‘civilizada’. Os mais de oitenta por cento de analfabetos em vésperas da independência e as datas tardias da criação dos liceus, institutos e Universidades em Angola falam por si »
Luís Filipe F. R. Thomaz (sobrinho do Almirante Américo Thomaz, que foi Presidente da República) refere, quanto a Timor, que o analfabetismo, aí, «anda pelos noventa e dois por cento», assinala que o rendimento «per capita» é dos mais baixos do Globo e assegura que Timor «é um dos territórios mais subdesenvolvidos do mundo» 2 .
E Mário Carrascalão, entrevistado por Mário Robalo 3, refere que, em 1972, um médico militar afirmara que setenta por cento dos Timorenses eram tuberculosos 4 .
De caminho, não fique por dizer-se que, em Moçambique, «era de noventa e três por cento, à data da independência», a taxa de analfabetismo 5 .
Quanto ao vasto mundo das colónias, em conexão com a narrativa sobre morticínios e etnocídios, há que sublinhar-se que a perversa atuação dos europeus provocou nos povos uma considerável degradação (e para esta, designadamente a nível moral, foi também empurrada uma imensidão de filhos do povo europeu), um estraçalhamento do ser e do agir/identidade sociocultural, um enorme rechaço contra a «consciência coletiva», um supino «desenraizamento social» 6
O que teria acontecido a quem tivesse, então, a coragem de sugerir para esse vasto mundo, à mercê da tirânica, da iníqua «Respublica Christiana», um arremedo do ancestral «Direito das Gentes» («Jus Gentium») romano, mesmo que nele tão só estipulado um
1 E a guerra colonial (iniciada em 1961) «forçou a mão do colonizador, levando à abolição do ‘indigenato» e a outras medidas.
2 Luís Filipe F. R. Thomaz – «Timor – Autópsia de uma Tragédia», 1977, p. 52.
3 Mário Robalo, na revista «Expresso», de 19.10.1991, p. 22-R.
4 Era, sim, deveras pungente este flagelo em Timor… E dizer não é sinónimo de provar, mas por mais que uma vez aí me foi dito haver povoações em que todos os moradores eram tuberculosos.
5 João Garcia – reportagem «Moçambique meteu socialismo na gaveta», in suplemento do nº 691 de «O Jornal», de 20 a 26/5/1988, p. 93.
6 E não propiciou o colonialismo europeu que uns tantos desses infortunados povos viessem, após a descolonização, a ser calcados por concidadãos insensíveis e cruéis como os déspotas alienígenas?
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travão em relação a simplesmente um ou dois dos inumeráveis tipos de crueldades, iniquidades, quotidianamente cometidos?
Não estão nem nunca estarão sob bons presságios quer os indivíduos quer as sociedades que não se arrependem dos horrores que cometeram. E mais escabroso do que escamotear estes é enaltecê-los. E o clímax de toda esta progressão de iniquidades atingeo a práxis de tudo acobertar, capear com o nome de «Deus».
À laia de parêntese, refira-se: António José Saraiva 1 emprega sublimes adjetivos para, de forma condensada, caracterizar a justiça na China, face à descrição que dela faz Fernão Mendes Pinto.
Ao longo desta tese, razoavelmente se fazendo a abordagem das abomináveis manifestaçõeseconsequênciasdotranspersonalismo,seriagraveomissãonãoacrescentar ao que se versa sobre morticínios, extorsões, violências e injustiças de toda a ordem, algo sobre um historial de supina traição, em que pactuantes os poderes religioso e político, quanto a isto se deixando aqui tão só os seguintes exemplos: o plano para aniquilamento, em Cuba, dos chimarrões, a emboscada a que atraíram Atahualpa, no Peru, a cilada, com repensados cambiantes seráficos, em que fizeram cair os Albigenses de Tolosa.
Em Cuba, os escravos fugitivos (chimarrões 2), auxiliados pelos seus semelhantes do Haiti, preocupavam seriamente os tiranos brancos, quando, em 1816, chegava o novo governador civil e militar: o brigadeiro Eusébio Escudero. Este, incapaz de os dominar, apesar de ter mobilizado todas as forças para o efeito, combinou com o arcebispo de Santiago de Cuba uma armadilha. O cura Luís Manfugás foi o principal executante do plano, tendo sido enviado para cativar os vários chefes chimarrões com promessas, viperinos sermões e simulação de dignidade e pureza de intenções. Entretanto, o capitão Luís Fromesta, à frente de tropa armada, tinha-se ido emboscar, por ordem de Escudero. Eis passos da informação de Manfugás endereçada, em 1819, a Escudero: «Em cumprimento do que V. S. se dignou ordenar, em ofício de 28 de Junho último, bem como das imperiosas recomendações do meu ilustríssimo Prelado e pelo grande interesse do serviço do rei e da tranquilidade pública…»
1 António José Saraiva – prefácio de «Peregrinação e Outras Obras» (de Fernão Mendes Pinto), 2ª ed., Livraria Sá da Costa, Lisboa –1981, Vol. I, p. XVII.
2 Escravos que fugiam às barbaridades dos brancos (em Cabo Verde, por exemplo, eram designados «fugiões» ou «fujões»), organizando-se, depois, à volta de líderes, em defesa da liberdade.
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«… pensei que afim de ganhartempo para as providênciasde V.S.eradamáxima importância retirar-me, deixando-os com a esperança de que eu iria negociar a favor deles…»
«… com a maior submissão, receberam a minha bênção e escolhidos os mais ladinos e espertos escutaram com agrado as minhas exortações e as promessas do Governo…, receberam as duas cartas de garantia com notável júbilo e convenceram-se, embora com bastante trabalho, que os chamava com a doce voz do Pastor para os tornar felizes, compadecido como estava o Governo das suas misérias…»
«Devo ainda fazer observar a V. S. que o negro capitão Coba pediu-me que administrasse o Santo Sacramento do Batismo a uma pequena criança e a um adulto, o que fiz, celebrando o Santo Sacrifício da Missa nos dias 25 e 27; ouvi em confissão uma negra que voluntariamente o quis fazer e a outros que a isso se dispuseram…»
Os chefes Coba e Feliciano foram surpreendidos pelas tropas emboscadas de Fromesta; Coba, «não se querendo entregar, suicidou-se, precipitando-se no rio Quiriján. Fromesta levou o cadáver para Baracoa e exibiu a sua cabeça dentro de uma gaiola…» «Gallo, o outro grande dirigente rebelde, foi avisado a tempo das sinistras maquinações do governador e do arcebispo e pôs-se em guarda » 1
Conforme já referimos, no Peru, Atahualpa, imperador dos Incas, foi vítima dum estratagema similar: foi atraído com seráficas e «piedosas falas» a uma emboscada, tendo a tropa escondida irrompido a prendê-lo, no momento em que, conforme de antemão combinado, um frade dominicano lhe entregava uma Bíblia.
O Prof. A. Silva Rego 2 recolhe de Framis um passo do que aconteceu: «Levava o Frade numa mão o crucifixo e, na outra, a Bíblia… Pronunciou uma alocução. O intérprete está a seu lado… Disse que havia um vigário de Deus no mundo, que era o Papa de Roma. Este grande senhor, em nome de Deus mesmo, dispunha de toda a terra de idólatras e gentios, e assim a tinha dado ao rei de Castela, que era o mais poderoso dos reis e, como propriedade justa de tal rei castelhano, ao inca cabia-lhe a obrigação de fazer-se seguidamente vassalo de tão grande soberano. Além disso, era dever de toda a humana criatura nascida, mesmo que tivesse sido educada na idolatria, e ainda mais por esta razão, fazer-se cristão e crente de Deus trino e uno, o que era inefável mistério que ele não podia explicar de momento, mas que tinha que crer imediatamente
1 José Luciano Faria, ob. cit. pp. 109 a 119.
2 Prof. A. Silva Rego – lições policopiadas de «História da Colonização Moderna», cit., vol. II, pp. 12-13
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quem o ouvisse, sob pena de heresia e blasfémia. Enfim, ele, como ministro de Deus mesmo, requeria ao monarca bárbaro para que seguidamente abdicasse dos seus cultos idolátricos e se constituísse em humilde e submisso vassalo do rei de Castela. Todas aquelas verdades da única e verdadeira religião estavam escritas naquele livro, a Bíblia, que tinha na mão, e o intimava para que, reconhecendo tal livro, abraçasse a fé e prometesse obediência a Castela.»
Após tantos martírios e perfídia, Atahualpa foi barbaramente assassinado, não obstante ter-lhe Pizarro prometido a liberdade, caso ele, para regalo dos magnates espanhóis, enchesse uma sala de ouro e outra de prata, o que ele conseguiu. «Carlos V recebeu também a parte que à Coroa competia.»
Na cidade de Tolosa, como os Albigenses iam resistindo com valentia (a mesma demonstrada pelos Albigenses de várias outras cidades que acabaram massacradas) às hordas sanguinárias dos católicos, combinaram estas recorrer a repensada traição. O Bispo local – Folque de Tolosa – esmerou-se no engodo: «revestido dos hábitos pontificais, invocandoo sacrossanto nomedeDeus,eservindo-sedaautoridadedaoração, fez valer todos estes poderosíssimos talismãs para atrair os crédulos Tolosanos à presença dos legados e de Simão de Montfort, que os deviam receber com clemência, mas que à medida que chegavam os faziam prender aleivosamente», tendo os sitiantes aproveitado o momento asado para irromper pelas portas abertas da cidade e nesta «começam a exercer o mais frenético saque, a mais impudente violação e a mais bárbara matança. Não obstante tudo isto, os esforços dos Tolosanos sobre-excedem a atrocidade fementida dos seus adversários…» 1
19.13.1.
Os ditos «milagres»
Em carta dirigida a Pedro II, o Governador António Guerreiro, aclamando as chacinas contra os Timorenses como «vitórias», relaciona estas com «prodigiosos milagres» e fala até em «pão do céu» para explicar que, tendo os Portugueses passado fome, «mais nos alimentávamos por mistério». E diz já ter «distruido» esses «traydores»
2 1
José Lourenço D. de Mendonça e António Joaquim Moreira, ob. cit., pp. 38-39.
2 Artur Teodoro de Matos, ob. cit., p. 323.
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Ao mesmo tempo (princípios do século XVIII), quanto a esse «statu quo»(de cujo quotidiano iníquo nos fala a História), a que reporta tais milagres, ele verbera religiosos dominicanos que «vivião libidinozamente com escândalo publico… tão esquesitos das suas obrigaçoins que habitavão publicamente com muitas concubinas sem repararem no manifesto escandalo que davão ao povo, e decadência, e abatimento a que chegava pellas suas acçoins immudestas a reputação do seu habito, ariscandose, antes perdendosse totalmente a missão nos que vião a relaxação da vida, e custumes dos ditos religiozos, que so o erão de nome, sem que de nenhuma sorte o pudessem ser no procedimento, trabalhando por outra parte por adquerir cabedais comforme inçasiavel de riquezas » E, em pastoral de 1752 (cinquenta anos volvidos sobre o depoimento acabado de expor), o bispo, como já se disse, fala de eclesiásticos que se «serviam»de mulheres, determinando «que ninguém pague ao seu vigário legados ou outros emolumentos que lhe devem, em moças ou bichas cativas».
Frei Manoel de Santo António, quando ainda simples frade em Timor, em carta dirigida a Pedro II, diz ter feito conversões massivas: «Para esta dita ilha vim Senhor há perto de cinco annos… a bondade divina me conceddeo que com a minha vinda se convertessem o reino todo de Luca, de Viqueque, de Bibiluta, de Dailor e de Vaicoro…»
E fala ainda da sua ação noutras áreas. E até diz que não tem batizado muita gente «por falta de tempo». Em Lifau diz ele ter batizado «por bondade do Senhor» perto de mil almas «no prazo de dous meses» 1 . «Não há talvez países no mundo onde os missionários se envaideçam de ter feito tantos milagres como no Congo, Angola e Matamba. Nenhum Português, sob pena de Inquisição, ousaria duvidar disso, mas os outros europeus não lhes dão, com razão, qualquer fé» – lê-se em «Les Indes Portugaises el Hollandaises» 2 ; e, nesta mesma fonte, comenta-se, a propósito do alarde sobre numerosas «conversões» que os Portugueses diziam ter conseguido nas ilhas Celebes, muitas delas em «três dias»: «Eu não me divertirei a citar os lugares nem o número destes pretensos convertidos; acrescentarei somente que ele (o jesuíta Mascarenhas) deveria ter começado pelos governadores e soldados portugueses que viviam como ateus, não tendo temor de Deus nem boa fé, pilhando impunemente os nativos e tratando-os da maneira mais cruel.» 3
1 Idem, pp. 227-228.
2 Francisco de Azevedo Gomes – «Civilizadores ou Bárbaros?», cit., p. 35.
3 Idem, ibidem, p. 224.
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Em «Breve Relação do que obraram os religiosos de S. Domingos nas ilhas de Timor e Sólor» (1784), assinada pelo Vigário-Geral Frei Nicolau de Souza, fala-se em «milagres» operados «cada dia» e em «relíquias» que os povos mantêm «de corpos athe o prezente incorruptos», diz-se terem os Dominicanos chegado «pessoalmente a meterem se nos conflictos para animarem os soldados, pelejando todos contra os inimigos da fé e do rey…»; dá-se testemunho de que «se tem visto claramente auxiliarnos a mão excelsa e divina»; afirma-se que os Dominicanos foram não só os «primeiros pregadores», mas também os «primeiros conquistadores, trabalhando ao mesmo tempo para Deos e para o rey» (a este se chamando «S. Maj de Fidelissima»); considera-se que os Holandeses são «o inimigo capital de todo o christianismo» e assegura-se que para não «degenerar esta relação em coronica» é que não se apontam tantos «sucessos e prodigios», «que alem da fama se conservam escriptos com todas as circunstancias de credito» 1
E designadamente na «Monumenta Historica Societatis Iesu» aparecem apontamentos deste teor e chegam a ser feitas pormenorizadas descrições de alguns «milagres»… Refiro tão só, em pé-de-página, duas passagens 2 .
19.13.2. Catecismos coloniais 3
Nos próprios catecismos e livros religiosos (aluda-se, por exemplo, ao «Terceiro Catecismo», de Lima, e a «Doutrina», 1548, dos dominicanos da Nova Espanha) se vincava o mordaz achincalhamento dos ameríndios e da sua cultura, sendo eles estigmatizados como criançolas nas mãos do diabo («o diabo está rindo e zombando de vós, que como crianças sem senso vos traz enganados e com tais criancices e embustes…») e caracterizados como inteiramente brutos («sempre andastes sem tino, e sem juizo, e turbados»), a ponto, conforme o refere Polo de Ondegardo, na sua «Instrucción contra las cerimonias y ritos que usan los indios conforme al tiempo de su infidelidade», de terem uma bestial «dificuldade em crerem em mistérios tão simples como o da Santíssima Trindade, da Paixão e Morte de Jesus Cristo, da Virgindade de Maria, da presença real de Cristo no Santíssimo Sacramento e da Ressurreição Geral») 4;
1 Artur Teodoro de Matos, ob. cit., pp. 441 a 443.
2 P. Alexandro Valignano – «Monumenta Historica Societatis Iesu»/«Monumenta Xaveriana», cit., tomo I, pp. 78-79 e 228.
3 Fernando Alvarez-Uria – no posfácio de «Brevíssima Relação da Destruição das Índias», cit., p. 196.
Ver também Francisco de Azevedo Gomes – «Falsificação da História», cit., vol. I, p. 258.
4 Fernando Alvarez-Uria, cit., p. 196.
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pelo que, além de mais, também as poções catequéticas lhe eram ministradas com porrada – Fernando Alvarez-Uria, quanto ao «uso do látego e o emprego doutras formas de violência 1 por parte dos religiosos», remete o leitor para uma obra de Pedro Borges («Métodos Missionales en la Cristianización de América») e outra de Inga Credinnen («Disciplining the Indians: Franciscan Ideology and Missionary Violence in Sixteenth Century Yucatan») 2 . Diga-se, de caminho: No tocante à textura de odientos «enunciados», coerções, flagícios, mitos e diatribes contra os povos ditos «infiéis», lá figuram, entre muitos «mentores»/«teólogos», renomados ditos «santos», exemplificando-se, aqui, tão somente com Tomás de Aquino 3 (1224-1274) – autor da «Summa Theologica» e «Summa Contra Gentiles» («Suma contra os Gentios») – e Raimundo Lulo (1225-1315). Tomás de Aquino (das suas tiradas ditas filosófico-teológicas divergia, por exemplo, o inglês Duns Escoto, seu contemporâneo), além do epíteto de «Mestre Dominicano», «Doutor Angélico», «Doutor daIgreja», «PadroeiroUniversaldasEscolasCatólicas»(assimproclamadoporLeãoXIII, em 1880), veio a ser canonizado por João XXII, em 1323 – papa este que veio a ser declarado herege mormente por uma fação de Franciscanos, que, tendo colaborado na eleição de outro papa, acabaram rechaçados juntamente com poderosos aliados, muitos tendo sido queimados na fogueira.
Aduza-seestanota:asanhasobreareferidafaçãodefranciscanostraz-nosàmente, por exemplo, o enorme rechaço sobre a Ordem dos Templários – que dispunha de «riqueza invejável» e grande poder –, a qual foi extinta no início do séc. XIV. Registe-se que, por exemplo, na França, em 18/3/1314, foram para a fogueira vinte e seis líderes templários (entre eles, o mestre Jacques de Molay), após um longo período em que foram submetidos às consabidas torturas frequentes (não raro, letais) que ora culminavam ora acompanhavam os hórridos interrogatórios, nos dantescos antros inquisitoriais.
1 Idem, p. 197.
2 De caminho, recorde-se que o papa Gregório I, «O Grande», que ocupou o trono papal desde o ano 590, que «era neto do papa anterior, Félix IV, e homem de famílias nobres e poderosas», usava «chicote» para «castigar os jovens», a quem ensinava canto (canto gregoriano) – ver «Personagens da História», Círculo de Leitores, 1989, p. 20.
3 A ele se faz menção, no ponto19.5.8. desta tese, no tocante aos «justos títulos a sancionarem a guerra».
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19.13.3.
O «Direito de Padroado»
O direito de «Padroado» 1 que Portugal obteve do Vaticano consistia no exclusivo da missionação nos seus vastíssimos domínios, desta maneira afastando a hipótese de misturas, de intrusões que perturbassem a soberania sobre o Império. Com a criação,porém,na «SantaSé»(em1622)da «SagradaCongregaçãodePropagandaFide», entre esta e o Padroado português, ou seja, entre Roma e Portugal houve muitos dissídios. Portugal sentia-se perturbado na sua soberania sobre o Império, quando a «Sagrada Congregação» nomeava alguns padres ou até um ou outro bispo para regiões sobre as quais, até então, só o Padroado, enfim, só Lisboa podia pôr e dispor. No mínimo, Portugal reclamava que os bispos ou vigários apostólicos enviados pela «Santa Sé» «in partibus infidelium»ficassem sob a alçada dos bispos portugueses das respetivas dioceses. Houve conflitos frequentes e respeitantes a diversas localidades, tantas vezes turbulentos, odiososeaté,emquantos casos,assazgrotescos,queenvolviamPortugaleoutrospoderes (seculares e religiosos), que punham padres e bispos portugueses contra padres e bispos estrangeiros, que alinhavam ditos «fiéis» ora por esta ora por aquela fação.
Portugal viria a conseguir que o Vaticano, com a Concordata e o Acordo Missionário de 7/5/1940, colmatasse esse «statu quo», ao mesmo tempo que proclamava os mais elevados encómios à missionação portuguesa 2
19.13.4. A encíclica «Saeculo Exeunte Octavo»
Reconhecendo o princípio de que factos são factos e de que, quanto aos mesmos, «unum est veritas», aduzamos algumas tiradas da encíclica «Saeculo exeunte octavo» (junho de 1940) 3 :
«Donde veio a Portugal a força para abraçar no seu domínio tantas plagas de África e da Ásia, e estendê-lo ainda às terras longínquas da América? Donde, senão daquela ardente fé do Povo Lusitano, cantada pelo seu maior poeta, e da sabedoria cristã dos seus governantes, que fizeram de Portugal um dócil e precioso instrumento nas mãos da Providência, para a realização de obras tão grandiosas e benéficas?
1 Prof. A. Silva Rego – «Lições de Missioniologia», cit., p. 175.
2 Idem, ibidem, pp. 153 e segs. Ver também pp. 447 e segs.
3 Idem, ibidem, pp. 431 e segs.
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De facto, enquanto os Albuquerques, os Castros e outros varões igualmente assinalados, conscientes da própria responsabilidade, governam com retidão e prudência as diversas colónias portuguesas, e prestam auxílio e proteção aos virtuosos missionários que grandes monarcas, como D. João III, se empenham em mandar àqueles países, então
Portugal impõe-se à admiração do mundo inteiro pela potência do seu império e pela sua gigantesca obra civilizadora.
(…)
Como esta 1 , todas as empresas seguintes tiveram igualmente por fim principal a propagação da Fé, daquela fé que animara ‘a Cruzada do Ocidente’ e as ordens militares na épica luta contra o domínio dos Mouros.
Nas caravelas que, arvorando o níveo pendão, rubricado com a cruz de Cristo, levaram os intrépidos descobridores lusíadas às praias ocidentais da África e das ilhas adjacentes, navegaram tambémos missionários, ‘paraatraírem as nações bárbaras aojugo de Cristo’, como se exprimia o grande pioneiro da expansão colonial e missionária portuguesa, o Infante D. Henrique-o-Navegador.
(…)
É uma glória de Portugal o ter sempre associado à fortuna da Metrópole os povos das terras ultramarinas, procurando elevá-los ao mesmo nível de civilização cristã…»
E, enfim, muitas outras tiradas encomiásticas, destacando-se ainda a figura de Vascoda Gama(«príncipedos descobridores portugueses») e recordando-se quePortugal e a Espanha começaram a trazer para a Igreja imensas regiões desconhecidas, «quando uma série de funestos acontecimentos 2 arrancava grande parte da Europa do grémio da Igreja, que com tanta sabedoria e carinho materno a tinha educado»
Como já se disse atrás, os bispos portugueses, em pastoral coletiva, em julho de 1974, enaltecem a «atividade missionária e civilizadora»
Na encíclica «Saeculo Exeunte Octavo», com o enaltecimento da expansão dita «cristã», aparece aditada, pois que na mesma senda epopeica da «propagação da Fé», a evocação das Cruzadas. Segue-se um breve apontamento sobre estas (tendo-se já, quanto à I Cruzada, aludido, no ponto 19.5.7., aos estendais de cabeças decepadas):
1 A tomada de Ceuta. 2 A Reforma.
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«Alguns cruzados não esperaram pela Terra Santa para hostilizarem os ‘inimigos de Cristo’ (os Judeus)… e, a partir de 1096, começaram a guerrear as comunidades judaicas(quesedesignavampor‘judiarias’)deMetz,Trèves,Mogúncia, Colónia,Worms e Spier. Massacres, pilhagens e deportações, as atrocidades multiplicaram-se, ao longo do Danúbio como em Ratisbona, naquele dia infame de 28 de Junho de 1096. Estas barbaridades prosseguiram em Jerusalém, de onde os judeus foram, na sua maioria, expulsos » 1
Na 4ª Cruzada (da iniciativa de Inocêncio III), por exemplo, em vez de apontar-se paraoobjetivoquesetinhatraçado, arremeteu-se,commatanças esaques,sobreparagens aquemais conveio arribar – eláseconsumou,porexemplo,nasequênciadas devastações e pilhagens em Zara, em 1202, a horrível tragédia em Constantinopla (1204), com ferro, fogo e rapina. E escusado será dizê-lo: Constantinopla era o grande centro dos «cristãos ortodoxos» 2. Os sibaritas do poder eclesiástico, após a 4ª Cruzada, em mais uma das costumeiras e repensadas maquinações obscurantistas, hipócritas, cruéis, lançando-se nas asas do esoterismo mágico-religioso – qual abanão para acordar o seu «deus dos exércitos» –, engendraram (Primavera de 1212) um batalhão de crianças («Batalhão Sagrado») 3 e perpassaram as almas embrutecidas com a mensagem de que só «inocentes» libertariam o «Santo Sepulcro»/Palestina.
Os Papas e os seus proeminentes acólitos, repimpados nos seus palácios, não se demoviam de, sob fartura de bênçãos e indulgências, enviar multidões para aquele frenesim de matar e de morrer, não obstante estarem bem inteirados da enorme dificuldade em neutralizar os islamitas. Gorado tal objetivo, viu-se a catolicidade impelida a acomodar-se à atitude das peregrinações aos «Lugares Santos». O jesuíta Prof. A. Silva Rego diz: «O Cristianismo acomodou-se, embora contrafeito, à ideia de conviver quase com o islamismo. Os Lugares Santos, em poder dos Muçulmanos, eram visitados habitualmente »
Na 5ª Cruzada (Inocêncio III/Honório III), lá vai, também, Francisco de Assis. Este, filho de gente nobre e rica, que começou por ser um boémio, após grave doença, assume outro «modus vivendi»: funda uma Ordem Mendicante 4 e, para protetor desta, escolheu o então Cardeal de Óstia, que veio a ser o Papa Gregório IX (e por este logo
1 Torcato Sepúlveda – texto «Cruzadas», no «Público Magazine» nº 289, de 26.11.95, pp. 24 e 26.
2 Não fique por dizer-se que muitas falanges de cruzados, à passagem por Lisboa, emparceiravam com as falanges portuguesas na chacina,no saque,nas violações, nosflagíciosdetodaaordemcontra osMourosqueremanesciam em Portugal. Francisco deAzevedo Gomes – «Falsificação da História», cit., vol. II, pp. 193 a 196.
3 Vide «Cruzadas», in «Verbo – Enciclopédia Luso-Brasileira de Cultura», cit , vol. 6 (de 1967), p. 502.
4 Por essa altura, Pedro Valdo também vendeu tudo o que tinha e distribuiu o dinheiro pelos pobres: muitos foram os Valdenses queimados na fogueira pela Inquisição.
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1
«canonizado»). Este Gregório IX (a cujo rasto maléfico se alude noutro passo) logo impeliu à 6ª Cruzada.
Não fique por dizer-se que essa odiosa campanha contra os Mouros sobre eles continuou designadamente em África. Algo se refere, em «Falsificação da História» 1 , sobre o ocorrido quer na costa africana (violências da mais diversa ordem, destruição que não poupava crianças e mulheres, rapina…) quer na Península Ibérica, deixando eu aqui apenas um lampejo exemplificativo, respeitante ao historial do rei Sancho I:
Ele e uns cruzados acabados de acostar a Lisboa vão sobre Alvor, sendo os habitantes desta fortaleza passados ao fio da espada «sem curar de sexo nem de idade». Ato contínuo, e contando com o reforço de mais um contingente de cruzados acabados de acostar a Lisboa 2, atacam Silves. Esta era «uma das cidades mais populosas, mais ricas e mais fortemente muradas do ocidente peninsular: Silves, capital de província, empório comercial que alguns consideravam superior a Lisboa e importante centro de cultura literária » Depois de uma resistência estoica, dá-se a rendição dos sitiados. «Desprezadas as mais solenes promessas de rendição», muitos habitantes, apesar de desfalecidos pela fome extrema, foram pelos cruzados «postos a tormento para confessarem onde havia que saquear…» Estava-se perante uma «população moribunda que mal podia mover-se, caminhando muitos só de rastos. Nas ruas jazia grande número de pessoas, algumas já mortas, sendo intolerável o cheiro de cadáveres de homens e animais» A cidade de Silves foi «vencida não pela força das armas, mas pela fome e pela sede – ‘as mulheres e as crianças comiam terra húmida». Torcato Sepúlveda, a coberto de Oliveira Martins, transmite-nos: «O combate durou uma eternidade. Quando Sancho pretendeu arrastá-los (os cruzados) para outras praças algarvias, recusaram, partiram, haviam-se cevado: ‘Não queriam arriscar os lucros, e estavam túrgidos de gozo. Só ambicionavam tornar à pátria, para contar os seus feitos, e depor aos pés das louras e ingénuas donzelas do Norte, de suas noivas e de suas filhas, os colares, os brincos, as manilhas de ouro arrendado, que tinham roubado nos leitos, com a honra e a vida, às filhas de Mafoma.» 3
Ob. cit., vol. I, pp. 223-224; vol. II, pp. 194 a 196.
2 De passagem, não deixe de assinalar-se a alusão feita em «Falsificação da História», cit., vol. II, p. 196, e vol. I, p. 283, a um «bispo moçárabe» (entre os mouros, note-se, havia tolerância religiosa até para com os Judeus) que, ante tanta violência (e ele mesmo viria a ser morto pelos cruzados), «terá vindo às ameias pedir aos ‘libertadores’ para se irem embora».
3 Torcato Sepúlveda – texto «Cruzadas», cit., p. 21.
Ver também: «Silves», in «Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira», cit., vol. XXIX, p. 16.
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19.14. As festivas comemorações (500 anos sobre o evento de Cristóvão Colombo e o de Vasco da Gama)
Em palcos sumptuosos, que custaram fortunas, foi a atuação de que se tem vindo a falar celebrada pelos poderes político e religioso, ou seja, «pelos herdeiros de hoje daquelesquehácincoséculosimpuseramasformasdedominaçãoeespoliação…»,enfim, herdeiros que, de formas «mais sofisticadas, mas não menos dolorosas» (usando «métodos igualmente ignóbeis ou injustificáveis», diz o autor no período seguinte), investem contra «os interesses fundamentais de todos os povos e do próprio futuro da Humanidade» 1 . Enfim, quinhentos anos sobre o início da dita «epopeia» portuguesa (chegada à Índia, em 1498, e, em 1500, chegada ao Brasil) e sobre o início da dita «epopeia» espanhola (chegada de Colombo à América, em 1492) – «epopeias» que os tais «herdeiros» seculares e religiosos tanto enaltecem.
Importará, desde já, assinalar este rasgo contrastante que nos é transmitido pelo «Público», de 6 de Dezembro de 2016 (p. 31): «Na Holanda, por exemplo, este passado colonial é apresentado com frequência como algo que o país deve lamentar, um episódio vergonhoso que precisa de ser mais explorado. É uma questão de reconhecimento que está ligada a uma política de pedir desculpa, publicamente». E repise-se que do mundo da Insulíndia subjugado por Portugal veio a Holanda a apoderar-se, com relativa facilidade, porque os nativos lhe ofereceram o seu apoio, na ânsia de afastarem o jugo português. E Timor, por mais que uma vez, instou com a Holanda, no mesmo sentido.
A diplomacia de Portugal tentou, note-se, envolver, nas ditas comemorações, os próprios países que foram espezinhados, seviciados, designadamente a Índia.
A coberto da revista «Expresso» 2, diga-se que o Adido Cultural angolano em Lisboa, a propósito das «comemorações dos Descobrimentos», salientou o «quadro de males e chagas que continuam a persistir nos países que foram colonizados» e asseverou: «Ninguém nos deve perguntar se gostámos da colonização». Na mesma página da mesma revista, Paulo Varela Gomes, o autor do texto, numa fugaz alusão à atuação dos Portugueses sobre a vastidão dos povos nativos, refere massacres, fala no «persistente racismo que caracterizou todas as empresas coloniais» e menciona que «o padre Fernão Castrim, no séc. XVII, foi um dos ‘Las Casas’ portugueses». E acrescenta: «Quando em Dezembrodoanopassado,reuniuemSevilhaum Congresso Indigenistalatino-americano
1 João Mendes – texto «Quem sentar no banco dos réus?», no «Público», de 20-11-1992, p. 7.
2 Paulo Varela Gomes – texto «A culpa dos complexos», na revista «Expresso», de 16-4-1988, p. 56-R.
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convocado e organizado pela comissão espanhola das comemorações, um dos pontos das atas afirmou taxativamente que 1992 ‘não deve ser motivo de celebrações, nem de exaltação do projeto europeu. A maior parte dos problemas da América resultou da colonização europeia.»
Segundo nos transmite Paulo Varela Gomes, o historiador espanhol Manuel Ballesteros proferiu «uma violenta denúncia do ‘genocídio’ das populações americanas, iniciado no passado e continuado até hoje» e asseverou: «não houve encontro de dois mundos na América: o que houve foi uma catástrofe para as culturas ameríndias…» Bem conscientes da realidade exposta, vários movimentos empenhados na campanha «500 anos de agressão, 500 anos de resistência, pela emancipação dos povos» envolveram-se no projeto de erguer, na Espanha, em Puerto Real, um monumento megalítico «às vítimas das invasões europeias desde 1492» («símbolo anti V Centenário»).
Muitos foram – designadamente historiadores, intelectuais, clérigos… – os que levaram ao rubro a campanha de execração da iníqua «epopeia» e respetiva soleníssima comemoração. E, quanto à atitude de descendentes de Índios, não fique de aduzir-se, por exemplo, o seguinte: no ano 2 000, os meios de comunicação social profusamente nos deram conta da investida violenta contra os Índios que, pacificamente, se manifestavam, em dissonância com a comemoração oficial, no Brasil, da chegada, aí, há 500 anos, de Cabral.
Na sequência de toda essa altíssona exprobração, a Igreja Católica proferiu «pedido de perdão» – que leitura fazer deste, formulado no contexto das próprias celebrações triunfalistas, glorificantes? Vamos aqui apenas dar o devido destaque a algo do que ocorreu em S. Domingos, um país entre vários outros em que manifestações de repúdio foram marcando contraponto em relação às festivas comemorações: nestas, neste pobre país, se gastaram do erário público «dezenas de milhões de dólares», tendo-se ido ao ponto, inclusivamente, de erigir um enorme monumento a Colombo (cuja construção «obrigou à demolição de um bairro pobre») 1; junto a este, o Papa, numa missa integrada no programa da celebração da «descoberta» e da «missionação», proferiu uma alocução em que aludiu (na sequência de todas as referidas movimentações e manifestações adversas, que já vinham de trás) a «erros cometidos», mas destes ilibou a Igreja Católica, enjeitando responsabilidades, conforme se segue: «Desde o início da evangelização, a Igreja Católica defendeu os índios com todas as suas forças, protegendo os valores da sua
1 Ver, por exemplo, o «Comércio do Porto», de 25-9-92 («Índios preparam ativa campanha anti Colombo»), o «Jornal de Notícias», de 12-10-92 (p.16) e revista «Além-Mar» nº 398, cit., p. 27.
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cultura e promovendo os valores humanos, quando comparada com frequentes e inescrupulosos abusos dos colonizadores» 1 «Nas alocuções do fim-de-semana, o SumoPontífice fizera o elogio de Colombo e da evangelização, embora lamentando as violências históricas cometidas…» 2 . E, segundo o «Diário do Minho» 3, o Papa, além de mais, afirmou «… que se levou a cabo uma válida, fecunda e admirável obra evangelizadora que constitui uma espécie de tribunal de acusação para os responsáveis pelos abusos» – atitude esta, note-se, em perfeita sintonia com a verbosidade rebuscadamente laudatória com que, no próprio século vinte, os Papas, a Cúria Romana, a hierarquia clerical, prosseguiam em encarar a dita «epopeia», a «evangelização», designadamente em documentos pontifícios, por exemplo, a Encíclica «Saeculo Exeunte Octavo» e, no tocante a Portugal, também nos documentos diplomáticos Concordata e Acordo Missionário de 7 de maio de 1940 4
Convém referir que, segundo mencionado num jornal, Colombo chegou a ter «o seu nome num processo de beatificação» 5
Jeffrey Sheban 6 diz que «celebrar Colombo é o mesmo que dizer que Hitler era um grande homem. Chamaram Holocausto ao holocausto. Porque não admitem que o que Colombo fez foi um genocídio?»
«O Círculo Franz Fanon, organização presidida pelo advogado independentista Manuel Manville(daMartinica),organizade10 a12deDezembroum ‘processo público’ de Cristóvão Colombo. ‘O dia 12 de Outubro de 1492 iniciou para a América Latina e as Caraíbas uma era de dor, de sofrimento, de lágrimas e de sangue, que continua e que está na origem do genocídio africano’, diz o manifesto tornado público pelo círculo. Será encenadoum ‘tribunal dahistória,composto depersonalidades vindasdetrês continentes, parajulgaroprimeirocrimecontra ahumanidade’ – entre elasRigobertaMenchu,prémio Nobel da Paz 1992.» 7
Num Texto de Barry Lopez 8, lê-se, a dado passo: «O que sucedeu… foram os atosdecriminosos–assassínios,violações,roubos,raptos,vandalismo,abusodemenores, atos de crueldade, torturas e humilhação» e, noutro passo, execra-se «um direito imperial conferido por Deus, sancionado pelo Estado e imposto pelos militares; a certeza de uma
«Público», de 14-10-92 – «Papa quer sínodo pan-americano», p. 18.
2 «Público», de 13-10-92 – «Evocação da primeira missa no Novo Mundo», p. 21.
3 «Diário do Minho», de 14-10-92, p. 20
4 Quanto a isto, atente-se, designadamente, no que se explana em «Falsificação da História», cit., vol. I, da p. 183 à 337 e, ainda, da p. 325 à 328.
5 Fernando da Silva – «Cinco Séculos de Enganos a Comemorar um Equívoco», no «Jornal de Notícias», de 12-10-92, p. 16.
6 Jeffrey Sheban – texto «O Mito de Colombo», no «Público», de 12-10-92, p. 8.
7 Texto «Colombo», no «Público», de 7-10-1993, p. 26
8 Barry Lopez – texto «Colombo – A Herança Perdida», em «Público Magazine», de 11.10.1992, pp. 30 e segs.
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superioridade inquestionada sobre o povo residente, baseada não em qualquer moralidade mas em conceitos de raça e de hegemonia cultural » E nada menos objetivo e chocante do que o que acaba de transcrever-se é o que se plasma na reportagem «Monumento às vítimasdasinvasõeseuropeiasdesde1492»– «Ooutroladoda‘descoberta’ deColombo» 1 .
Eis passo do posfácio (p.16) de «Brevíssima Relação da Destruição das Índias», cit.: «outroramo denegóciosque Las Casas mencionasó sedesenvolveuapós osucessivo despovoamento das regiões: era o tráfico de escravos (negócio negreiro). Depois de terem assassinado e torturado até à morte milhões de índios, os colonizadores verificaram admirados (e até com certa pena) que lhes faltavam trabalhadores (mão-de-obra)». E, no posfácio da mesma obra (p. 182), alude-se a tirada 2 de Aristóteles acerca do «saber»tirar proveito dos escravos.
Evocou-se, no início deste ponto, a manifestação de arrependimento por parte da Holanda e, de seguida, faremos alusão a atitudes recentes de outros países.
Os meios de comunicação social (em maio e junho de 2021) propalaram que, logo após Emmanuel Macron ter admitido as «responsabilidades da França no genocídio de 1994 em Ruanda», a Alemanha «pediu perdão» à Namíbia (e entregou 1,1 bilião de euros para ajudar a reconstrução desse País») pelo que de horrendo aí perpetrou: «roubos e estupros» e tantas outras enormes execrações levaram as gentes a um desespero tal que deste emergiu, aí, alguma agitação… Entre 1904 e 1908 (ou seja, já no século vinte), eis o genocídio Enfim, os homens (que não conseguiram escapar) da etnia dos hereros, da dos namas e da dos damaras foram assassinados e as mulheres e filhos menores foram acantonados no deserto para, enfim, aí sucumbirem de sede. Houve, na Alemanha, vozes a proferir que tais atitudes não eram «cristãs», mas logo contestadas, reafirmando-se que aqueles seres eram «sub-humanos». Sejam aduzidos estes dois reparos: nos locais em que tinham sido acantonados no deserto as mulheres e filhotes, muitos fossos de vinte e tal metros de profundidade haviam sido escavados por gente desfalecida em busca de um eventual surto de água nas profundidades (nestas sendo encontradas vários cadáveres). E, note-se, várias caveiras iam sendo remetidas para a Alemanha, em ordem a que certos estudos sobre elas fossem efetuados.
1 Amílcar Correia – «Monumento às vítimas das invasões europeias desde 1492 – O outro lado da ‘descoberta’ de Colombo», no «Público» de 7-10-1992, p. 24.
2 Tão só se diga que como antítese da mesma lá está o saber e o sentir de consabidos filósofos de antanho!
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O Presidente Emmanuel Macron, conforme divulgado, em maio e junho de 2021, pelos meios de comunicação social, reconheceu graves «responsabilidades do país no genocídio de 1994 em Ruanda». O governo francês, então liderado por François Mitterrand, apadrinhava o governo sanguinário do Ruanda que procedeu ao extermínio dos opositores, tendo sido massacrados à volta de oitocentos mil (setenta por cento destes eram da etnia Tutsi) 1 .
Os meios de comunicação social, em março de 2019, enfaticamente divulgaram que o Presidente do México, López Obrador, lembrou as autoridades espanholas e também o Papa de que deveriam pedir publicamente perdão pelos crimes cometidos na colonização,mas,abespinhado,o «governoespanholrejeitoucomtodaafirmezaopedido de López Obrador» e insistiu na pertinência de ser comemorado pela Espanha o «descobrimento» do México 2 19. 15. O pedido de perdão da Igreja Católica
Quanto a iniquidades cometidas, a Igreja Católica, pediu perdão, isto no contexto da pomposa celebração do quinto centenário da expansão da «cristandade», no além-mar Iniquidades perenes e retintas (fale-nos a História, o Direito Natural, a Ética) que claramente são a antítese da mensagem de Jesus de Nazaré (mas, conforme referido no ponto 19.4., uns dias após, o Papa disse que «desde o início da evangelização, a Igreja Católicadefendeuosíndioscomtodasassuasforças,protegendoosvalores dasuacultura e promovendo os valores humanos, quando comparada com frequentes e inescrupulosos abusos dos colonizadores») Tendo sido essas execrações também cometidas por outras igrejas/religiõestradicionaisditas «cristãs»,refira-se,desdejá,queosautoresde «OLivro NegrodoCristianismo» 3 ,versando(commençãodeexpressivosdadosestatísticos)sobre as chacinas perpetradas no Norte da América pelos Ingleses – os quais, recorrendo ao seu «deus», tratavam os nativos como sub-humanos e indóceis quanto à «fé» –, aduzem de uma das fontes por eles citada a seguinte «inscrição no túmulo de um puritano do século XVII: ‘à memória de Lynn S. Love que, durante a sua vida, matou 98 índios que o Senhor
1 A Bélgica pelo muito que oprimira o Ruanda, quando sua colónia, veio a manifestar publicamente arrependimento. Assinale-se que, com um autêntico «pedido de perdão», tem que conectar-se uma atitude de plena fraternidade, uma atitude de reparação/coadjuvação.
2 Tendo o México assim como as demais colónias sido descobertas há milénios pelos seus ocupantes, o que os invasores espanhóis ali «descobriam», com regalo, era a oportunidade de exterminar, roubar, violar, etc.
3 Jacopo Fo, Sérgio Tomat e Laura Malucelli – «O Livro Negro do Cristianismo – Dois mil anos de crimes em nome de Deus», trad. de Carmen Pagliuca; Editorial Magnólia, 2009, pp. 179 a 182.
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lhe havia destinado. Esperava ele elevar este número para cem quando adormeceu nos braços de Jesus».
Em termos de identidade, a Igreja Católica é a mesma de ontem e de sempre, conforme rezam os catecismos, é a mesma que teve essa atitude execranda e secular e que, agora, no limiar do século XXI, formula pedido de perdão. Enfim, a Igreja Católica não seatribui umaidentidadedistintadadaquelaquecometeu essasiniquidades. Segundo ela, «vivifica-a Jesus, que disse: ‘Eu estarei convosco até à consumação dos séculos» Atente-se no seguinte: segundo catecismo de pleno século XX, ou seja, de 1956, de que disponho, há, na Igreja, «duas partes» – a «docente», ou seja, a que «ensina» e «governa»/«manda» e a «discente», ou seja, a multidão que «aprende» e «obedece»; «a Igreja docente é infalível…»; «as verdades reveladas por Deus sabemo-las por meio da Igreja docente, isto é, por meio do Papa, sucessor de S. Pedro e por meio dos Bispos, sucessores dos Apóstolos»; «… A lei da Igreja tem a mesma autoridade que a lei de Deus, de quem a Igreja recebeu a autoridade de fazer leis…»; «A Igreja não pode enganar-se, porque, segundo a promessa de Jesus, é constantemente assistida pelo Espírito Santo»; «Somos obrigados a acreditar em todas as verdades que a Igreja nos ensina; e Jesus Cristo declara que quem não crê, já está condenado»/«somos obrigados a ouvir a Igreja docente, sob pena de condenação eterna»/«somos obrigado a fazer tudo o que a Igreja manda…».
Há católicos subscrevendo esse pedido de perdão e há-os que manifestam a sua discordância quanto ao mesmo.
Encarando-se a atitude dos que o não subscrevem, assinale-se que ela assentará na reafirmação de que a Igreja é «vivificada por Jesus» (indiscutível posição teológica/catequética) e,logo, inquestionavelmente santa ejamais passível deadulteração. E até rezam os catecismos, «ipsis verbis», que ela «não erra» (não «pode errar»). Como compatibilizar o «não errar» (estamos, note-se, não ante simples faltas, mas, sim, ante horrores) e o pedir perdão?
Face a isto, como compatibilizar inoculações teológicas com a tão interpelante Sensibilidade da mensagem de Jesus?
Quanto aos que subscrevem o pedido de perdão, vejamos:
Por um lado, no essencial, é intuitivo o discernimento entre a Harmonia e a inarmonia, o discernimento entre o que é digno e o que é iníquo. E isto é tanto mais evidente quanto mais antitética é a factualidade em causa. Como no-lo assegura a sabedoria/ciência e a consciência, trata-se de horripilantes perversões mesmo, de diversa
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ordem e a preencher o quotidiano durante tantos séculos. «Cada árvore conhece-se pelo seu fruto.» 1
E afirmar que Jesus nunca deixou de ser o «vivificador» de uma igreja que cometeu tais iniquidades não é dizer que, nestas, o mesmo é conivente?
Que postura/atitude assumiria um ser sensível perante Jesus se Ele, por uma só vez que fosse, gravemente maltratasse uma criança?
Há quem, tentando escamotear com bizantinices teológicas, enfim, com uma nuvem de fumo, esse pedido de perdão formulado no início do século XXI e na quadra das próprias excelsas festas comemorativas da atroz «epopeia», diga que a Igreja não falhou enquanto Instituição. Mas então a Igreja pede perdão pelas iniquidades de quem?
19.16. Efeitos psicossociais e morais do transpersonalismo dos poderes sobre uma Europa que foi atirada sobre os povos do Mundo (abordagem multidisciplinar). O domínio do poder religioso sobre as consciências e respetivas consequências
O que se passa a historiar em relação ao seguinte «statu quo» em Portugal permitirá uma ideia aproximada no tocante ao que então se passava na Europa
Em Magalhães Godinho, lê-se 2: «… país de vínculos, comendas e bens da Coroa, dirá Herculano; e o juiz do povo Francisco Velho queixa-se amargamente, em 1632, de que não há nos reinos lavrador que lavre em terra própria, por quase toda ser respetivamente das igrejas, reguengos da Coroa, ou foreira a diversos senhores, e os foros e pensões dela, e imposições e tributos imoderados.»
E, ao correr da pena, diga-se que, por exemplo, a «carta de inquirições sobre os foros de Cunha» 3 (freguesia do conc. de Braga), por mim traduzida 4, razoavelmente nos
1 Lucas, cap. 6, vers. 44 (também Mateus, cap. 12, vers. 33).
2 Vitorino Magalhães Godinho – «Ensaios sobre História de Portugal», 2ª ed., 1978, p. 64.
3 Arquivo Nacional da Torre do Tombo – «Carta de inquirições sobre os foros de Cunha» (de 5 de abril de 1263); Chancelaria de D. Afonso III: Livro 1, fl. 66.
Da dita carta é indissociável um manuscrito de igual natureza que o Arquivo Nacional da Torre do Tombo conjuntamente enviou à respetiva Junta de Freguesia.
4 Não consegui apurar o significado de um ou outro termo
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elucida sobre a pesada tarraxa 1 das cobranças/«direituras» 2 (ora em dinheiro 3 –morabitinos, «sólidos legionenses», «dinheiros»; ora em galinhas, capões/frangos, leitões, cordeiros, cabritos, «boi ouvaca», centeio, vinho, milho-alvo, favas, alhos-porros, queijo, manteiga, ovos, linho, etc.) e sobre certas obrigações, designadamente a «tercia» 4 e a «toruiscada». E, no tocante a coimas, são lá mencionadas a «voz» e a «calúnia» («calumpnia»).
E, à laia de parêntese, refira-se que, entre as tantas tributações com que os reis fustigavam as gentes, figurara, numa fase mais remota, também o «dízimo» 5 .
Num livro do século XVIII 6, ao discorrer-se sobre «Causas da decadencia da agricultura», vinca-se que «a decadencia total da Agricultura teve principio com as Conquistas, e se conservou neste deplorável estado pelos exorbitantes privilegios, pelos tributos sobre os generos da primeira necessidade, e com a prohibição de sacar os productos da Agricultura», apontando-se, um pouco adiante, várias «Cauzas Fysicas» (as duas últimas apontadas no rol são «a falta de meios para cultivar os terrenos» e «a pouca quantidade de gente e de gado») e, de seguida, oito «Cauzas moraes», de que transcrevo esta: «Pela mizeria pois, na qual os Lavradores são educados, contentão-se de hum vil sustento, nem procurão os commodos da vida, e assim faltos de forças pouco podem trabalhar, e pela mizeria em que se achão muitos delles não se cazão.»
Em «Tensões Sociais na Região de Entre-Douro-e-Minho», José Viriato Capela 7 apresenta-nos um «statu quo» deveras impressivo:
«… A concentração maciçada propriedadeterritorialnas mãos de privilegiados…, o extremamento das classes sociais cavando cada vez mais fundo o fosso já existente, a ganância do fisco real e senhorial e dos seus executores, os abusos das câmaras e administrações senhoriais, os maus anos agrícolas, as fomes, as pestes, com o seu cortejo de misérias que tornavam insuportável o fardo da própria vida» (ob. cit., p. 30).
1 Quanto ao ímpio esbulho e multiforme bruteza sobre os povos muito se regista designadamente no vol. I da «História da Igreja em Portugal», de Fortunato de Almeida, sendo de recair particular atenção sobre os pontos desenvolvidos nas páginas a seguir referidas: Fortunato de Almeida – «História da Igreja em Portugal», nova edição prep. e dirigida por Damião Peres, Portucalense Editora/Porto, 1967, vol. I, pp. 109 a 123.
2 Aparecendo,naenunciaçãodealgumasdelas, vocábulos taiscomo «fogacia», «eyradiga», «lopitosa», «pedida», «lutuosa»/«luctosa»
3 Por mera curiosidade, aponte-se o passo que respeita ao fossado: «Igualmente, dão da mesma freguesia de Cunha,de sete casais, três sólidos legionenses, no dia 1 de Janeiro, pelo que não vão ao fossado (…) Igualmente, dão três ‘sextários’ para a ‘fossadaria’ que montem em 13 dinheiros e meio legionenses de toda essa freguesia de Cunha.»
4 «Igualmente, devem fazer a ‘tercia’ do castelo de Fraião, quando os chamarem, uma vez por ano.»
5 Vide «Dízimo», in «Wikipédia, enciclopédia livre».
6 Academia Real das Sciencias de Lisboa – «Memorias Economicas da Academia Real das Sciencias de Lisboa para o Adiantamento da Agricultura, das Artes e da Industria em Portugal e Suas Conquistas». Officina da Academia Real das Sciencias, 1789, tomo I, pp 172 e segs.
7 José Viriato Capela – «Tensões Sociais na Região de Entre-Douro-e-Minho», em «O Distrito de Braga», vol. III da 2ª série, 1978, Administração Distrital de Braga, pp. 29 a 104.
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No frenesi do alcance de cada vez mais poderio, riqueza e vida fácil, os próprios opressores do povo se digladiavam entre si. «Sucediam-se os desregramentos morais, as múltiplas turbulências entre fações de cónegos e oficiais de justiça…» (p. 33) Enfim, o poder eclesiástico, «fações de cónegos» e seus apaniguados entram, arrogantemente, em lutas e traições, de que resultam mortes e terror (num documento da época, lê-se: «cazos atrozes e abomináveis que de anos a esta parte se tem cometido nesta cidade de Braga sem se lhe dar castigo algum» – p. 33). E «tentavam sistematicamente impedir qualquer diligência» de funcionários régios que viessem «devassar» (p. 33). Atente-se num dos vários exemplos apontados por José Viriato Capela e que não será o mais expressivo (referindo o autor outros casos chocantes em páginas seguintes do seu estudo):
«A obstrução do Cabido é constante contra a entrada na cidade de Braga e nos seus coutos dos oficiais régios. Em 1641, o Cabido em carta dirigida ao monarca alega o privilégio de se não poder entrar a devassar na cidade ‘sem consentimento do prelado dela’, para impedir o desembargador António de Beja da Relação do Porto de ‘devassar no caso da morte feita à espingarda a hum meirinho da mesma cidade’, e também ‘dos mais cazos que havião sucedido» (p. 39).
A Igreja de Braga, também ela, tem um poder enorme: por um lado, o poder inerente à posse de vasto território… e, afinal de contas, posse sobre os habitantes; por outro lado, poder para enfrentar, com arrogância, o poder régio. «A título de referência, recorde-se que, na conspiração tramada em 1641 contra D. João IV, o arcebispo de Braga, D. Sebastião de Matos, aparece à cabeça do movimento contra o rei» (p. 41).
Além de mais, «em 1719, numa petição entregue ao corregedor da comarca em correição no concelho, ‘os moradores do couto e deste concelho de Entre Homem e Cadavo se queixam a vossa mercê que o padre D. Abade de Rende (sic) usurpa a jurisdição real, fazendo juiz do cível a seu próprio voto, coutando rios, tomando montes e aforando ao dito convento, servindo sse o dito juiz de oficial para tomarem os ditos montes e os fazerem aforar…, razão por que está o dito povo oprimido coutãodo lhe rios e montes…» (pp. 50-51). Sobre tão aberrante «justiça» – um meio eficaz ao serviço dos opressores – José Viriato Capela fala em «infindáveis e arruinosas demandas quase sempre ao sabor dos tribunais senhoriais», não destoando de todo esse encastelamento de atropelos o facto de o «mui reverendo Dom Abade» ocupar o excelso posto de «ouvidor» e só por isso é-lhe devida por cada morador uma galinha (p. 46) 1 .
1 Num estudo que, na década de setenta, durante vários meses, em diálogo fraterno/em «observação participante», fiz sobre a aldeia comunitária de Casais de Vide, se regista, entre outros, o ancestral preceito de os moradores da mesma fornecerem anualmente ao
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À tona de imensas tributações, exigências e atropelos de vária ordem, a «décima militar»(reclamada pelo rei) eos «votos deSantiago»(contributopecuniárioexigido pela Igreja) geram forte tensão no arcebispado de Braga. Ocorre até um motim em Rendufe. Contra os rebeldes «exige o Mosteiro», «em capítulo geral» («Capítulo de Rendufe de 1647»), um castigo exemplar 1, «para que fique exemplo aos mais que não façam outras semelhantes o que se lhes manda em virtude da santa obediência e sob pena de excomunhão».
E de tantos outros importantes aspetos nos inteira, doutamente, José Viriato Capela: punições, cobranças de vária ordem, despersonalizante controlo/manipulação das gentes, ferozes e iníquas induções comportamentais, delações do foro inquisitorial, etc.
Na essência, não havia gritantes diferenças entre o «statu quo»de Rendufe e o dos outros povoados e paragens 2
Evocando-se «um motim provocado pela carestia do pão, em Braga, ocorrido em 16/9/1694», não pode ficar por dizer-se que vários documentos nos dão conta das gravíssimas fomes que afligiam o Povo Português. Por exemplo, no «Liber Fidei Sanctae Bracarensis Ecclesiae» 3, em documento de 26/5/1206, é referida uma «gravíssima fome». Importa seriar uns tantos itens respeitantes tão só ao século XVI, a coberto de Eduardo Moreira 4: «1503 – Grandes inundações. Fóme em Portugal atribuída a manobras dos christãos-novos» (como já dito noutro passo, até se lhes atribuiu, odiosamente, a derrota de Alcácer Quibir); «1522 – Grandes fomes em Portugal e queixas contra os judeus convertidos»; «1525 – A peste em Lisboa e fome de novo atribuída a açambarcamento pelos cristãos-novos»; «1535 – Numa carta de Clenardo, escripta de Evora a seu mestre Latomus, descreve-se a grande desmoralização do nosso povo»; «1569 – A peste grande desenvolve-se em Lisboa. Mata em 4 meses 60 mil pessoas»; «1581 – Peste em Lisboa, Évora, etc.»; «1598 – A grande peste em Lisboa mata mais de 80 mil pessoas». Neste enquadramento, não fique por observar-se que, tendo eu compulsado os assentos paroquiais 5 da minha freguesia natal – Gamil (Barcelos) –, eles próprios me abriram um janelo sobre a confrangedora situação desse nosso povo: por vezes, faleciam
pároco de Azias uns carros de giestas– arbusto queaíancestralmente seamanhavapor ser nesses montes mui escassa outra vegetação. Francisco de Azevedo Gomes – «Infinda Manhã Primaveril Após Noite Invernosa» (romance), 1983, p. 133.
1 Propondo-se ou sugerindo-se: «O prellado lhes tome as terras para a caza se assim se julgarem para que fique exemplo aos mais…» (ob. cit., p. 102).
2 Quanto a esta temática, muito nos transmite também Teotónio da Fonseca, em «O Concelho de Barcelos Aquém e Além-Cávado», Companhia Editora do Minho – Barcelos, 1948.
3 PadreAvelino de Jesus Costa– edição críticade«Liber Fidei SanctaeBracarensis Ecclesiae»(Assembleia Distrital deBraga – 19781990), tomo II, p. 247.
4 EduardoMoreira – «O Século deDamiãodeGóis», na«Revista deHistória»(da SociedadePortuguesadeEstudos Históricos),1916, 5º vol., pp. 347, 350, 351, 353, 360, 361, 362.
5 Arquivo Distrital de Braga – Assentos Paroquiais da Freguesia de S. João de Gamil, 1642 a 1911; livros nº 396 a 400 e 1254-1255
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dois ou até três filhos (já adolescentes ou quase) de uma mesma família, no decurso de poucos dias: tão só se exemplifique com o falecimento, em 1701, destes três irmãozitos: Helena, Isabel e Domingos (em 15/7, 18/10 e 28/10, respetivamente 1); eram muitíssimas as mães solteiras 2; havia muitas crianças «postiças» ou «expostas» (colocadas, à socapa, à porta de alguém); várias pessoas ora enlouquecidas, ora falecidas bem precocemente e, quantas vezes, em total miséria 3; muitos indivíduos falecidos longe da sua terra, só chegando, não raro, anos depois, a notícia do seu óbito…
Nos assentos paroquiais respeitantes aos óbitos, nota-se a preocupação (entendase!)damaioriados indivíduos implicarem os familiares sobrevivos nos encargos,pesados encargos, de lhes acudirem à «alma» com ofícios fúnebres de vários padres (ofícios com cinco, seis, dez, quinze, vinte padres…), um número significativo de missas(por exemplo, num caso, vinte 4, logo no «post mortem»; e, noutro caso, dispunha-se que se perfizesse um total de duzentas missas), etc.
Um antepassado meu (falecido em 5/5/1714) vincou em testamento isto que o pároco assim registou no assento de óbito: «… se lhe fizessem pella sua alma tres officios desinquoPadrescom os uzosecustumesdestaigreja,nam deixouCapellas nem Legados, de que fis este assento…» 5
Mui frequentemente se depara com o óbito de indivíduos muito miseráveis, exarando-se no respetivo assento a costumeira elocução: «Nam se lhe fes mais pella sua alma por ser pobre e nam poder satisfaser com os usos e custumes desta freguesia» 6 .
Quanto a uma parte da informação que se segue, atente-se, no tocante a citações, no que se aponta entre a página 160 e a 177 de «Falsificação da História», cit., vol. II.
No «Liber Fidei Sanctae Bracarensis Ecclesiae» (cit.) são muitos os documentos aatestar como altos membrosdo clero (Bispos,etc.)impiaeiniquamentese locupletavam com propriedades de leigos, muitos outros atestam a existência de diferendos entre «entidades do clero» (bispos, abades, Sé, mosteiros, etc.) e leigos quanto à posse de propriedades; e vários outros patenteiam-nos que Bispos vergavam, sujeitavam terras e povos resistentes à sua soberania e/ou à sua tributação.
1 Ibidem, livro nº 397, verso da p. 70.
2 Nada surpreendente.
3 Fiquei com a impressão de que entre 1701 e 1705 ainda mais se agravou a taxa de mortalidade.
4 Estas a realizar na igreja de Gamil, pois várias outras havia a realizar noutros templos.
5 Arquivo Distrital de Braga – Assentos paroquiais de S. João de Gamil, livro nº 397, verso da p. 76.
6 E, nestas situações, conforme com alguma frequência eu fui deparando, o pároco deixou exarado que, perante o facto de «nada» se fazer «pella alma» do falecido «por ser muito pobre», tomara a seguinte atitude: «… no dia de seu enterro diselhe hua misa por caridade».
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1
E são vários os documentos a atestar-nos «usurpações» por altos membros do clero(bispos, cardeais…)sobreoutrosmembrosdocleroouinstitutosreligiosos,havendo excomunhões, em certos casos, de permeio; muitos outros atestam litígios entre entidades do clero quanto à posse ou soberania sobre terras, prédios urbanos, domínios, igrejas, etc., havendo, consequentemente, cartas de agnição, escrituras de reposição, composição, devolução, etc.; e outros atestam que bispos e outros altos membros do clero vergavam outras entidades eclesiásticas (designadamente mosteiros e respetivos abades, como, por exemplo, o de Samos, o de Tibães, o de S. Martinho de Crasto) à sua soberania, havendo atas de declaração de sujeição, de composição, de reposição na obediência e no pagamento de «direitos».
Há ainda vários documentos a evidenciar conflitos (sendo-lhes subjacentes, geralmente, a presunção e a ganância) por causa da obediência/autoridade de uns membros do clero em relação a outros (bispos, abades, arcebispos, etc.). Seguem-se dois exemplos: num deles, eis, em 1114, a «bula ‘Quanti criminis’ enviada por Pascal II ao bispo de Coimbra D. Gonçalo, a lamentar que tenha desprezado as admoestações anteriores e a impor-lhe a prestação de obediência ao arcebispo de Braga no prazo de quarenta dias»; no outro, em 1114, «Pascal II envia ao legado pontifício D. Bernardo, arcebispo de Toledo, a bula ‘Pro iniuriis’ em que serefere a admoestações que já lhe tinha feito anteriormente e isenta da sua jurisdição o arcebispo de Braga, D. Maurício».
E, em «Arquidiocese de Braga» 1 , muito se exara sobre esta temática, quedandonos aqui pelas simples alusões a contendas entre a Arquidiocese de Braga e a de Toledo, Braga e Compostela, Braga e Lugo, e, designadamente, um conflito, com diversos envolvimentos, que levou o prelado de Braga, «D. Pedro», a procurar o apoio do antipapa Clemente VII, que lhe reconheceu o privilégio de metropolita, elevando-o a arcebispo em 1091».
Aqui fique também um lampejo sobre os frequentes conflitos, em Braga, entre cabido e arcebispos, com mera alusão a alguns exemplos: graves diferendos «com D. José de Bragança (1741-1756), motivados sobretudo pela prestação de contas durante a longa sé vacante (1728-1756), pelo uso dos cetros e do privilégio do solidéu (o prelado chegou a fazer o sequestro das rendas da mesa capitular e a mandar prender 17 cónegos)» 2; «… O chantre Vasco Domingues (do cabido) capitaneou a fação do clero que movia guerra aos arcebispos D. Guilherme de la Garde (1349-1361) e D. João de Cardaillac (1361-
2 Ao correr da pena, diga-se: «nas lutas liberais, o cabido caiu em cisma, durante a longa sé vacante, entre 1827 e 1843».
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Padre Avelino de Jesus Costa – coordenação de «Arquidiocese de Braga – Síntese da sua História», Lisboa - 1984.
1371) e redobrou a violência contra o arcebispo D. Lourenço Vicente (1374-1397); o Grande Cisma do Ocidente (1378-1417) favoreceu os desígnios dos inimigos (no cabido) do arcebispo, que se passaram para o partido de Clemente VII…»; e, no século XV, «a vida do Cabido de Braga está intensamente marcada pelas relações nem sempre cordiais com os prelados…, com a Coroa e por um permanente contencioso, que também abrangia os próprios membros e o poder real, como os clérigos e leigos, na defesa do património e respetivas rendas» 1
Houvedesignadamentediferendos entreoCabidoeFrei Bartolomeudos Mártires, em alguns casos tendo sido aquele «parcialmente atendido» pela «Santa Sé»
Enfim, compulsados vários estudos e documentos, eis em que breve síntese se desemboca quanto ao olimpo do clero (ante um povo esmagado): propriedades e mais propriedades, tributos/«direituras» 2 , rendas, côngruas, «prebendas», «votos», «dádivas das igrejas», «vestorias e comedorias», exações, negócio negreiro, enfim, uma imensa voracidade, que, como seguidamente se referirá, sorvia também os caudalosos proventos resultantes de inesgotáveis «relíquias» e da negociata/venda de indulgências e perdões.
Para exemplificação, para esclarecimento quanto à venda/negociata de indulgências,aduza-seapenasumapoçãodeum caudaldearrepianteperversão.ODoutor Silva Campinho 3 , num desenvolvimento que tece sobre o assunto, insere este apontamento (respeitante ao papado de Leão X):
«Aquestãoassumiu,ainda,forosdemaiorescândalo,quandoapareceramàvenda, nos balcões dos banqueiros Fugger, os papéis das indulgências de Roma que ali eram comercializadas, como qualquer outro produto financeiro…»
Veja-se no «Livro Negro do Cristianismo» 4 a extensa lista – a «Taxa Camarae» (divulgada em 1517, no papado de Leão X) – de trinta e cinco itens, em que para cada «pecado»ouhorrorali expressoéapontadoomontanteemdinheiroadaràIgrejaCatólica e assim se obter a respetiva «indulgência»/absolvição.
Eis o que diz Erasmo: «Em toda a parte, vende-se a remissão do tormento purgatorial; não é apenas vendida, mas forçada aos que recusam comprá-la.» 5
E na revista «Novas de Alegria» 6, lê-se, a dado passo, depois de dar-se enfoque ao apuramento científico de que o «Santo Sudário», de Turim, é uma «falsificação», a
1 Em «Arquidiocese de Braga – Síntese da sua História», cit., pp. 144,145, 148…
2 Vocábulo também empregue na época.
3 Doutor Alberto Silva Campinho – «Um génio cuja obra merece reflexão», texto publicado no «Correio do Minho», de 26.1-1997, p. 15.
4 Jacopo Fo, Sérgio Tomat e Laura Malucelli, ob. cit., pp. 152 a 155.
5 Sociedade Torre de Vigília de Bíblias e Tratados – «O Homem em Busca de Deus», 1990, p. 315.
6 Fernando Martinez – texto «O Sudário de Turim», na revista «Novas de Alegria», de janeiro de 1989, p. 3.
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juntar a outras do género, pois «só na Idade Média havia 40 mortalhas ‘verdadeiras’ de Cristo nos templos católicos»: «Como curiosidade, lembramos que só na cidade alemã de Vitemberga, nos dias de Martinho Lutero, existia uma coleção de 5005 relíquias de santos! Eis algumas delas: ossos do rei David; um dente de Zacarias; dois bocados da vara de Moisés; oito fragmentos de uma das pedras com que mataram Estêvão…; sete pedaços do véu de Maria; parte do leito de onde a mãe de Jesus subiu ao céu (…). Se fosse possível juntar todos os ‘genuínos pedaços da cruz onde Jesus Cristo morreu, considerados como relíquias, os mesmos chegariam para encher um navio de grandes dimensões» 1
Em «Arquidiocesede Braga»(já cit.),após referênciasàindisciplina,relaxamento, injustiça/corrupção dos mosteiros, designadamente dos beneditinos, no séc. XVI, acrescenta-se que «os abades comendatários contribuíram, em grande escala, para a ruína económica dos mosteiros (tanto beneditinos quanto de outras observâncias) pela dilapidação dos seus patrimónios e rendas que distribuíam por familiares e amigos, e para o seu lamentável estado moral e religioso, pelo mau exemplo que muitos davam…». E, noutro passo: «… alguns proprietários erigiam templos, não para promover o culto, mas para repartir a meio com o clero as ofertas que neles fizessem os fiéis » E acontecia, também, que os «nobres e pessoas poderosas» reclamavam, não raro, «direitos de aposentadoria e/ou de padroado» sobre certas igrejas ou institutos religiosos.
«O arcebispo de Braga e o Bispo do Porto eram os principais senhores que, no século XVI, sugavam a renda feudal do fértil território de Entre-Douro-e-Minho, juntamente com o Duque de Bragança, o Marquês de Vila Real, o Infante D. Luís, o Conde de Vimioso e o Visconde de Lima.»Havia muitos «coutos»e «honras»e «em pelo menos 23 terras não entrava o corregedor», havendo resistência em relação ao «chamado centralismo régio» 2 .
«RichardKonetzkeprovoucomdadosdoConselho das Índiasquenovice-reinado da Nova Espanha (México), em começos do século XVI, pertencia às ordens religiosas um terço de todos os edifícios, solares, prédios e demais propriedades imóveis. Em meados do século XVII, dizia-se que a metade do vice-reinado do Peru pertencia ao estamento eclesiástico.» 3
Aduza-se de «O Homem em Busca de Deus» (cit.) o seguinte:
1 Sobre esta temática ocupa-se o texto «Relíquias» do Dr. João António Marques, na revista «Bereia» nº 60, de abril-junho de 1993, pp. 10 a 12.
António Borges Coelho – «Quadros para uma Viagem em Portugal», em «Correio do Minho» de 18-9-1986, p. 7
3 Fernando Alvarez-Uria – no posfácio de «Brevíssima Relação da Destruição das Índias», cit., pp. 197-198.
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«Em fins do século XV, a Igreja de Roma, com paróquias, mosteiros e conventos espalhados por todos os seus domínios, tornara-se a maior proprietária de terras de toda a Europa. Consta que ela era dona de nada menos que a metade das terras na França e na Alemanha e dois quintos ou mais na Suécia e na Inglaterra.» Logo a seguir, no livro acabado de referir, fala-se de proventos, tributos, cobranças, exigências de toda a ordem, extorsões, espoliações do poder eclesiástico 1 . «Foi com plena justificação que o erudito católico holandês, Erasmo, escreveu em 1518: ‘A falta de vergonha da Cúria Romana atingiu o clímax». De seguida, alude-se à lamúria de alguém pelo facto de «nada na igreja se conseguir sem dinheiro», até na extrema-unção e nos enterros, «parecendo que o Paraíso está vedado aos que não têm dinheiro». «Se quer estragar um filho, faça dele um sacerdote, costumava dizer-se então.» 2
No «Correio doMinho», de 11.3.1985,háalusão, a dadopasso, «às esmolas dadas diretamente ao Papa que no ano passado ascenderam a quase vinte e seis milhões de dólares (cerca de 4,6 milhões de contos)». E, logo de seguida, refere-se que o «Conselho de Cardeais pede ‘uma ainda mais generosa solidariedade por parte da Igreja Universal…»
Fortunato deAlmeida, autor,como jásedisse, de «Históriada Igrejaem Portugal», regista que, no reinado de Sancho II, o Bispo Soeiro (diocese de Lisboa), «naturalmente instigado pelo seu clero, promulgou um estatuto em que determinava que se entregasse à igreja o terço dos bens de todos os que faleciam, ou pelo menos alguma porção considerável de seus bens, sob pena de negação dos sacramentos e da sepultura canónica aos que desobedecessem» 3 ; do mesmo autor aparecem transcritos na Grande Enciclopédia Luso-Brasileira os seguintes passos acerca dos «abusos deploráveis» do clero: «… os bispos disputavam aos nobres a primazia das violências e dos desforços… Os bispos abusavam da excomunhão e do interdito contra todos os que resistiam à sua cobiça…» 4
E avulsamente se recolha apenas mais este apontamento de Fortunato de Almeida
5: «Muitos forais conferiam aos bispos parte das ‘calúnias’ ou coimas impostas a certos delitos, mais como tributos lançados sobre a criminalidade do que como penas para reparação e expiação dos crimes 6. O foral de Belmonte, de 1199, foi um daqueles em que
1 E enormíssimo era o sorvedouro a nível do papado, a nível da Cúria Romana.
2 Francisco de Azevedo Gomes – «Falsificação da História», cit., vol. II, pp. 173-174.
3 Fortunato de Almeida, ob. cit., 1967, vol. I, p. 117.
4 Vide «D. Sancho II», in «Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira», cit., vol. XXVII (1953), p. 19.
5 Fortunato de Almeida, ob. cit., vol. I, p. 120.
6 Quanto a forais, quanto ao vasto rol de «direituras», de obrigações e de coimas, compulsei também a publicação, a seguir aludida, prenhe de informação e relativamente recente:
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o bispo foi mais contemplado. Pelo crime de homicídio em Belmonte e seu termo pagavam-se cem soldos ao bispo e cinquenta aos parentes do morto. No crime de furto pagavam-se nove por um e ao bispo cabiam sete partes. Muitos mais crimes constituíam matéria para imposições em favor do bispo, tanto no foral de Belmonte como em muitos outros».
Transcreva-se o seguinte passo de «História da Inquisição em Portugal» 1: «… um grandioso relaxamento. As ordens, já extremamente abastadas, não cuidavam senão como se volveriam ainda mais poderosas em riqueza, importando-lhes pouco se os meios empregados para conseguirem uma tal magnificência, opostamente contrária às recomendações evangélicas, eram lícitos ou condenáveis. A cavilação, o fanatismo, a indústria, a subtileza, o terror e toda a sorte de artifícios, supersticiosos e visionários, eram empregados, da parte dos eclesiásticos, para com todas as outras classes da sociedade civil e de forma que vinha sempre a resultar a transmissão dos haveres pessoais de cada um desses míseros iludidos para acrescentamento do já avultado património clerical, etal era aforçada subserviênciados padres nestaépoca quenenhuma dúvida tinham em pôr a preço a absolvição dos pecados que somente eram perdoados em face de doações ou esmolas dos penitentes – a comprovação deste hábito desdourante já nós mesmos oferecemos ao público no tomo I da ‘História de Portugal’…, onde se diz demais parasejulgar do quanto a classe sacerdotal abusavaentãoda credulidadedo povo, obrigando-o a doações em prejuízo da sociedade e chegando a tal excesso os efeitos perniciosos duma extorsão tão abusiva neste nosso Reino de Portugal que foi mister acudir-se-lhe com a exibição duma lei proibitiva. Aliás, todo o Reino teria pertencido aos corpos ditos de mão-morta e constituiria um como só passal religioso.»
À laia de parêntese, refira-se, quanto aos referidos «corpos de mão morta», que alguns Portugueses «pró-napoleónicos», na altura das invasões francesas, «solicitaram a Napoleão a outorga de uma constituição», onde fossem consignados certos direitos, tais como «a apropriação dos bens de mão morta», «a igualdade dos cidadãos perante a lei», «a liberdade de imprensa e a liberdade religiosa» 2 . Em «Falsificação da História» (vol. II, pp. 486-487) alude-se à chacina, por parte de turbamultas, de vários portugueses apontados como simpatizantes da causa napoleónica, acoimados de jacobinos 3 .
Leontina Ventura e António Resende de Oliveira – «Chancelaria de D. Afonso III» (3 vols.), Imprensa da Univ. de Coimbra, 2006.
1 José Lourenço D. Mendonça e António Joaquim Moreira, ob. cit., pp. 28-29.
2 Francisco de Azevedo Gomes – «Falsificação da História», cit., vol. II, p. 175.
3 J. A Soares Fernandes – textos «As invasões francesas e as simpatias pró-napoleónicas» e «Braga perante a invasão francesade 1809
– A perseguição popular aos jacobinos», respetivamente, no «Diário do Minho» de 28-12-1988, p. 3, e no de 13-9-1988, p. 4
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Prossiga-se, aduzindo este passo de «A Inquisição»: «... os confessores revelavam os segredos da confissão… Em geral, os pregadores de púlpito buscavam apenas honras e dinheiro, lisonjeando o auditório. Um dos males que afligiam o Reino – diz Herculano – era a excessiva multidão de sacerdotes… Disputava-se pelas aldeias as missas, os enterros, as solenidades do culto, com altíssimo escândalo do povo.»
Um estudo de Maria João Marques da Silva 1 (bolseira do INIC) diz-nos que os clérigos (da diocese bracarense), «em número significativo, ao longo de todos esses séculos», são quase iletrados e têm um comportamento desedificante: frequentam as «tabernas para jogar e beber», «assoam-se aos panos do altar ou com que comem…», entram em «brigas», etc.
Em «Históriada Igreja Lusitana» 2 ,refere-seque, em Portugal, abundavaum clero «ignorante, imoral, desordeiro e sanguinário. O rei D. Afonso IV viu-se obrigado a dirigir uma carta aos bispos, com as seguintes prescrições: serem os padres proibidos de vender vinho nas tabernas e de cortar carne nos açougues; haver da parte das autoridades superiores da Igreja toda a vigilância para que os sacerdotes não matassem, não roubassem, nem jurassem falso…»
Não se encerre este ponto sem que se dê o devido enfoque ao que de tão revelador passa a expor-se. O português António Nunes Ribeiro Sanches, no seu manuscrito «Plano para a Educação de um Jovem Senhor Russo» (datado de 1766 e elaborado a pedido da imperatriz Catarina II), escreve, a dado passo:
«Os súbditos do Império da Rússia estão divididos em duas classes: a primeira contém toda a sua Nobreza: mais por privilégio do que pela constituição do Império; essa primeira classe tem a propriedade de bens. Ela pode fazer testamento, nomear herdeiros. E, embora a liberdade tenha começado a aparecer depois que a Casa Romanov subiu ao trono, ela ainda não está reconhecida nem sustentada pela lei. A segunda classe de súbditos está totalmente destituída de propriedade de bens e da Liberdade; e embora por privilégios se encontrem algumas exceções, a constituição do Império nunca lhes
1 Dr.ª
(séculos XII-XIX)», pp. 129 a 138.
2 J. Santos Figueiredo (Presbítero) – «História da Igreja Lusitana» – aparecendo a passagem em apreço recolhida na revista «Bereia» nº 63, janeiro-março/1994, p. 15.
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Maria João Violante Branco Marques da Silva – comunicação «Norma e Desvio: Comportamento e Atitudes Face ao Sagrado na Diocese Bracarense (Séculos VI-XVI)», no Congresso Internacional «IX Centenário da Dedicação da Sé de Braga», 1990. «A Catedral de Braga na História e na Arte
reconhece propriedade de bens nem liberdade.» 1 E, note-se, o «statu quo» acabado de referir só em 1861 viria a ser abolido por Alexandre II 2
19.16.1. A prostração dos católicos. Católicos doam seu património ao poder eclesiástico para «remédio» de suas almas, para levantamento de excomunhões, para alcance de perdões, etc.
Àsmuitasfontesderiquezadoclerosomava-seaquepassaaapresentar-se,aqual, além de considerável pelo seu vulto, é também muito elucidativa quanto ao «statu quo» socio-religioso e anímico.
No tocante a Braga, compulse-se mormente a compilação de testamentos nos tomos I, II e III de «Liber Fidei Sanctae Bracarensis Ecclesiae» 3. Compreender-se-á que, no tocante a este ponto, para não descer a massivas citações designadamente respeitantes a tantos testamentos/escrituras, remeto para uma resenha, com exaustivas citações, nas pp. 176 a 189 de vol. II de «Falsificação da História», cit..
São sobejamente predominantes os testamentos de doações, no «Liber Fidei…» (Livro da Fé) ou «Liber Testamentorum» (Livro de Testamentos).
Muitíssimas pessoas, deixando os filhos ou outros familiares grandemente desfalcados ou mesmo na extrema miséria, doavam tudo ou grande parte do que tinham ao poder eclesiástico, em circunstâncias tenebrosas, que a leitura deste ponto torna explícitas.
E sendo clarividente que só dá quem tem, alguns doavam valiosas quintas, terrenos ecasas, outros doavam atéo poucoquetinham –uns socalcos, uns animais, umas ferramentas… 4 Merece referência o facto de que alguns doavam, juntamente com herdades e outros haveres, escravos 5 a entidades clericais.
Mais abundam as doações em que se expressa que as mesmas visavam o «remédio da alma» («pro remedio animae meae», expressão tão frequentemente inserta em textos que tão vivamente nos falam do terror das gentes quanto ao «inferno», inferindo-se que
1 Brian Franklin Head – «Plan Pour L’Éducation D’Un Jeune Seigneur Russe» («Manuscrito de Ribeiro Sanches – 1766»), Imprensa da Universidade de Coimbra, 2016, p. 140.
2 «Alexandre II», in «Verbo – Enciclopédia Luso-Brasileira de Cultura», cit., 1963, vol. I, p. 1143.
3 Padre Avelino de Jesus Costa – edição crítica de «Liber Fidei Sanctae Bracarensis Ecclesiae». Assembleia Distrital de Braga/Junta Distrital de Braga – 1978-1990.
4 Se até os que nada tinham eram sugados até à alma.
5 Caracterizados como «mancipium» (propriedade).
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a ânsia de neste não cair – imbricada com o terror inquisitorial – é que constituía a motivação por excelência na opção pelo «céu»).
Em substância, insistia-se nesse desígnio – «para remédio da minha alma», «para remédio da minha alma, da da minha mulher, da dos meus avós ou antepassados», etc., podendo haver cambiantes em termos formais 1, acontecendo, não raro, que a essa expressão emblemática se acrescia algo de enfático ou redundante (por exemplo, «… et ego a Deo recipiam mercedem in celestibus regnis» 2 ) ou algo de vinculativo (por exemplo: «… archiepiscopus qui nunc est et qui ei sucesserit debet me recipere et honorare et filium meum legitimum et nepotem legitimum usque in septimam generationem» 3 ).
Alguns tinham o cuidado de, na escritura, expressar que, em virtude da mesma doação, a igreja (a Sé, etc.) não poderia «exigir o que costuma», note-se, por altura do falecimento do doador.
Muitasdoações eram,puraesimplesmente,exaçõesditadasporumacoaçãomoral e até por uma arrogância estarrecedora, que, quantas vezes, se transformava na mais desbragada vingança ou na mais alta forma de violência. Por exemplo, «Paio Reveliz, em satisfação de uma penitência 4, doa ao arcebispo de Braga a herdade de Fatúncias (concelho de Chaves), que tinha pertencido ao mosteiro de Ózio (freguesia de Ervedelo, concelho de Chaves), obrigando-se a dar a este mosteiro uma herdade equivalente». E Rodrigo Gomes, que estava doente e admitia a hipótese de vir a falecer, doa propriedades a alguns mosteiros e à Sé de Braga «pro anima meae», acontecendo que, como anseio de peso, aparece o de ver-se redimido dum incidente ocorrido, dizendo, às tantas: «E mando e rogo que a minha mãe e todos os meus parentes vão aos pés do arcebispo e os beijem e lhe peçam para que pela sua piíssima misericórdia se digne absolver-nos.»
Muitas doações eram por penitência imposta pelo clero: confessores, curadores de almas, etc.
Muitos doadores deixavam expresso, na respetiva escritura, uma grande aflição face aos seus pecados («uma multidão de pecados» 5 ): «… et temendo peccata mea et diem judicii…» («… e temendo os meus pecados e o dia do juízo…»); «… propter peccata mea» («por causa dos meus pecados»); «… peccatorum meorum mole depressa»
1 Por exemplo: «… do et concedo pro anima mea salvanda» («dou e concedo para que a minha alma deva ser salva»).
2 «E eu receba de Deus mercê/recompensa nos reinos celestiais».
3 «… O arcebispo e quem lhe suceder deve receber-me e honrar-me, bem como a meu filho legítimo e a descendência legítima até à sétima geração» (trata-se de doação por Lopo Dias de três herdades à Sé de Braga, escolhendo ele esta «como igreja funerante»).
4 «Et hoc facio pro penitentia magna quam tenebam de uxore mea, unde vos me aleviastis…» – «E faço isto por grande penitência que tinha de minha mulher e de que vós me aliviastes.»
5 «Mole peccatorum».
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(«deprimida pela multidão dos meus pecados»); «… sum in peccatis de omnibus compunctus» («estou compungido de todos os pecados»); «… ante Deum remunerationem et remissionem de peccatis meis» («… perante Deus remuneração/pagamento e remissão dos meus pecados»).
E havia doações para que fossem retiradas excomunhões. Por exemplo, Fernando Gomes, o marido de Elvira Moniz, que fora excomungada – «… quam tenetis excomunicatam in monasterio de Bafaves» («… que excomungastes no mosteiro de Bafaves») –, «doa», para o referido efeito, ao arcebispo excomungador, «D. João Peculiar», herdades que possui em Redondelo e Curalha (concelho de Chaves) 1
Em algumas escrituras (de 1155) se refere que as propriedades doadas são a sequência reparadora («pro compositione» – «para composição») dum mesmo «sacrilégio» cometido pelos doadores na igreja de Nozedo. Eis o início de uma delas: «Em nome de Cristo. Eu Fernando Godesteiz, juntamente com os meus filhos… Faço carta de doação e posse da minha própria herdade a vós D. João Arcebispo Bracarense e à Santa Maria de Braga (Sé) e aos clérigos aí moradores…» Eis o início de outra: «No nome Santo e individual da Trindade do Pai e do Filho e do Espírito Santo, ámen. Eu, Rolão Oariz, considerando a multidão dos meus pecados faço-vos carta de testamento a vós Arcebispo Bracarense D. João e aos vossos cónegos perpetuamente servidores do altar de Santa Maria…»
«Mendo Gomes e seu irmão Egas doam à Sé de Braga propriedades (que possuem nas igrejas de Gaifar e S. Lourenço do Mato) em reparação de sacrilégio» cometido na igreja de S. Martinho de Friastelas (concelho de Ponte de Lima). A escritura começa, como quase todas as outras, com uma jaculatória ou reza (variando de umas escrituras para as outras na forma e no conteúdo). Segue-se o texto oblativo, ou seja, a reverente menção do(s) beneficiário(s) da doação: «… a vós Arcebispo Bracarense D. João e aos vossos cónegos» 2. Mais abaixo, confessam os doadores em questão: «… quia diabolo suadente in eadem ecclesia clericum nomine Gomizonem Iohanni percussimus» («… porque, com o diabo tentador, agredimos, na mesma igreja, o clérigo de nome João Gomizonem»). «E porque de tão grave excesso não pudemos satisfazer-vos plenamente, conforme se impunha, isto vos doamos; e, além disso, para que da Igreja bracarense sempre sejamos obedientes e, tanto quanto pudermos, servos» (o termo latino significa,
1 E, por exemplo, depara-se com outro caso, em «O Distrito de Braga», vol. III da 2ª série, 1978, p. 148.
2 Neste passo, de escritura para escritura, as variantes de terminologia formam um vasto leque: «e aos vossos cónegos consagrados ao altar de Santa Maria», «e aos vossos sucessores e clérigos aí moradores», etc.
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igualmente, escravos). Antecedendo apenas escassos dias a escritura acabada de referir, há uma outra (1151) em «composição» de «sacrilégio cometido no mosteiro de Lagoa» (V. N. Famalicão).
De caminho, refira-se que, para composição de dois homicídios cometidos (um em Braga e outro no couto de Moure), o militar Afonso Enes e esposa dão bens ao arcebispo de Braga.
UmtalSarracinoNunes, buscando «misericórdia»doAbadedoMosteirodeSanto Antonino de Barbudo, doa metade da sua herdade de Moure (Vila Verde), porque não liquidara a dívida de um cavalo que do referido recebera. Sarracino Nunes refere o cavalo como aquele «que Nuno Midiz furtou e colocou-o Deus nas vossas mãos».
Há também quem faça doações por ter sido absolvido duma excomunhão –fulminação essa que, mesmo após o ritual do respetivo «levantamento», continuava a manter desmoronada a vida das vítimas.
Muitos, vendo-seenvolvidos em litígio com entidade(s)do clero,que, vorazmente, regateavam o «direito» de posse sobre certa propriedade, acabavam por cedê-la, face a receios de ordem diversa e não porque a isso os impelisse o sentido de justiça.
Muitas das doações nem sequer eram feitas nas raias do «in articulo mortis» e ocorriam em qualquer momento do trajeto da vida.
E tantos havia que, doando (para «remédio da alma», etc.), vincavam que ficavam sob um certo «amparo» dos beneficiários da doação; e havia muitos que se remetiam ao encargo dos beneficiários da doação ou perante estes se prostravam na condição que o Padre Avelino Costa designa de «colonos» (eles e os filhos ou descendentes) ligados ao amanho das terras doadas e obrigados a pagar pelo cultivo das mesmas uma prestação anual («dare rationem» – dar ração). Por exemplo, «Gonçalo Moniz oferece a sua pessoa e bens ao bispo D. Pedro e ao cabido», cujos membros enumera.
Dos que se abandonavam ao encargo dos referidos beneficiários havia-os que não se esqueciam de reivindicar, na escritura, o funeral ou até aniversário fúnebre com certo luzimento (como o devido a confrades, no caso de doação a mosteiro).
E ser enterrado num mosteiro, na Sé, etc., era um privilégio aliviante, cobiçado.
Acontecia, acrescente-se, que vários doadores consignavam a condição de serem recebidos como cónegos, membros do Cabido ou, no caso de doação a mosteiro, confrades ou irmãos…
Havia também doações a reverter, após a morte, especificamente para missas, etc.
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Eis o caso deumaconsciência(como as demais insistentemente catequizada desde ameninice quanto à indispensabilidadede,dosabidojeito, «sufragar alma»),naqual tinia uma voz que, em alguma medida, lhe apontava o semelhante: «Ximena Daniela doa a Paio Daniel os bens que possui em Santo Estêvão de Chaves, revertendo, por sua morte, para bens da alma. Em caso de extrema necessidade, pode vender metade para seu proveito.»
Em várias escrituras se fala em «mandas»/«terças das mandas», «mortuárias»/«terças das mortuárias»; com muitafrequência,aolongodo «LiberFidei...», aparecem autoridades eclesiásticas a «aforar», a «emprazar» propriedades, sugando, em contrapartida, os que amanhavam estas; várias escrituras referem-se ora a um ora a outro «concilium» (por exemplo, «concilium» de Castelo de Vinhais, «concilium de Galegos do Campo…), enfim, a um agregado populacional tornado sujeito de pesadas obrigações para com a autoridade eclesiástica.
Como se disse atrás, as escrituras começam com uma jaculatória ou reza variável na forma e no conteúdo (e até, por vezes, se desce a uma referência evangélica, como, por exemplo, «quia sic dicitur in Evangelio: ‘date et dabitur vobis» – «porque assim se diz no Evangelho: ‘dai e ser-vos-á dado»). Segue-se o texto oblativo, com menção do(s) beneficiário(s) da doação. Acontece, em vários casos, que à menção deste(s) se adiciona a menção, numa atitude oblativa, de várias entidades canonizadas, «celestes»: é um propósito, que eu direi mágico-propiciatório, de simbiose entre estas e as entidades eclesiásticas contempladas com a doação. Eis três exemplos: «Em nome do Senhor. Eu, serva/escrava de Cristo, Adivergo, de apelido Boa Gosendes, achei bem fazer testamento a Santo Antonino, a S. Miguel Arcanjo, a Santa Eufêmea e às relíquias que aí estão fechadas (escondidas), de que se fundou basílica em Moure, sob o castro de Barbudo, em território brácaro, aí correndo as águas do Cávado…» (e segue o texto, dizendo-se, além de mais, que se doa ao «lugar santo» – mosteiro de Santo Antonino –, «ao abade Pedro e aos irmãos que aí habitam»). Eis o segundo exemplo: «Aos senhores invictíssimos e triunfadores e aos gloriosíssimos apóstolos, mártires, confessores e virgens e todos os santos, em honra da sempre Virgem Maria, cuja basílica se fundou na sede brácara…» (e o texto prossegue, exarando-se, além de mais, que Lezenio Crexeniz doa herdades e casas ao «arcebispo D. Geraldo e a todos os clérigos e sucessores» do mesmo). E eis o terceiro exemplo: «Em nome do Senhor. Eu, serva/escrava de Cristo, Ermesinda, a vós santos, a S. Bartolomeu apóstolo, a S. Mateus apóstolo, a Santo Estêvão Mártir, a S. Antonino Mártir, ao arcanjo S. Miguel, a Santa Eufêmea, dos quais se fundou basílica em Brito,
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1
entre Moure e Barbudo…» (e prossegue-se, dizendo-se, além de mais, que Ermesinda Ordonhes doa herdade ao mosteiro de Santo Antonino).
E, note-se, uma vez recebidas as doações, com que violenta avidez o poder eclesiástico lhes lançava as garras para não mais as largarem, havendo-se, neste contexto, congeminado a tarraxa fulminante, anatematizadora que aparece exarada em muitíssimas escrituras (indiscriminadamente, ou seja, fossem quais fossem as razões que tivessem ditado a doação), sendo suficientemente elucidativas as pinceladas exemplificativas seguintes:
«… dou e concedo essas herdades… para remédio da minha alma e da dos meus avós e da dos meus pais edesde esse dia vós as tenhais e os vossos sucessores até sempre. E se algum homem quiser (ou quisermos nós) infringir esta carta de testamento seja, em primeiro lugar, excomungado e segregado e anatematizado e como Judas traidor tenha parte na eterna condenação e no dia do seu juízo não ressuscite com os amigos de Deus. E quem este testamento quiser infringir que pague a esta Sé de Santa Maria o quádruplo do que tiver pretendido prejudicar e ainda dois talentos de ouro… e, além disso, julgado, depois, por parte do rei. Eu Lezénio e vós arcebispo D. Geraldo, no dia 11 das Calendas de Janeiro de 1125…»
Em «O Distrito de Braga» 1, lê-se: «… se algum homem vier (ou viermos nós) contra esta carta de testamento… seja excomungado e segregado da fé de Cristo… e anatematizado e não ouça aquela voz que deve ser dita na Jerusalém celeste: ‘Vinde, benditos de meu Pai, e participai do reino que para vós está preparado desde a origem do mundo’ e não apareça na assembleia da ressurreição e não veja as boas coisas que há na Jerusalém e, além disso, pague a mesma herdade em dobro ou triplo ou quanto tiver sido por vós melhorada…» (e ainda se fala, a seguir, do pagamento de mil sólidos).
E, noutro caso: «… quem tentar infringir, em primeiro lugar seja excomungado e com Judas, traidor do Senhor, condenado e não tenha parte com os bons, mas com os inimigos de Deus seja lançado (podado) para as trevas exteriores, onde haverá choro e ranger de dentes…»
Esta terrífica e esconjuradora salmodia varia no conteúdo e na forma (a estipulação de uma indemnização avultada é que não falta e a comparação com Judas
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«O Distrito de Braga», cit., vol. I da 2ª série, 1975, p. 157.
traidor é muito frequente), buscando-se, em qualquer caso, o mais medonho e dissuasor impacto que se pode conceber… E, ao correr da pena, sejam ainda acrescentadas à sequência exemplificativa acabada de exarar as seguintes tiradas trovejantes:
«… seja excomungado e permaneça retirado de toda a assembleia de católicos… e com Judas traidor sofra iguais penas na eterna condenação e para o mesmo lugar santo pague o quádruplo de quanto tiver pretendido e, além disso, pague dois talentos de ouro.»
«… seja possesso de todas as legiões de diabos e com as mesmas legiões arderá nos infernos, onde Judas suporta as tenebrosas penas do incêndio e como indemnização pague para benefício do imperador um talento de ouro e pague em quádruplo a herdade…»
Lá lampeja o arranque anatematizador e brutal, na quase totalidade das escrituras. Estas, após «corroboradas» pelos respetivos doadores («com as nossas mãos corroboramos»), eram subscritas, como já se disse, por várias pessoas, predominando os membros do clero.
Note-se que, antes das ameaças de anátemas e pesadas indemnizações, etc., aparece, em muitas escrituras, a expressa menção de que a doação era para todo o sempre: «in perpetuum» ou «usque in perpetuum», «jure perpetuo» («em direito perpétuo»), «… in perpetuum possideatis» («… perpetuamente possuais»), «vobis perpetim habitura» («perpetuamente será habitada por vós»), «… in cunctis temporibus saecula saeculorum, ámen» («em todos os tempos, pelos séculos dos séculos, amen»).
E, por conexão com este contexto, veja-se (pp. 160-161 do tomo II do «Liber Fidei…»), por exemplo, como o arcebispo «D. Pedro»prescreve excomunhão para quem lheusurpe albergarias eoutrosbens, fechando a ameaçacom três vezes apalavra «amen».
O «Liber Fidei…» apresenta bastantes mexidas (rasuras, interpolações, acrescentos, etc.), tendo-as, outrora, o bispo de Compostela apontado, numa disputa que com ele houve, como indutoras em interrogações no domínio da credibilidade, pelo que meramente se pergunta: o sinistro «statu quo» aqui posto a claro não propiciou que, em certos casos, às ditas «doações»tivessem sido aditadas manigâncias, enfim, manobras em águas habilmente tornadas turvas?
No «Liber Fidei…», observe-se, aparecem várias escrituras do rei 1, dos membros da família real e de outros membros da nobreza a conceder mais possessões (localidades,
1 Eis um simples exemplo («Liber Fidei Sanctae Bracarensis Ecclesiae», cit., tomo II, p. 307): em 1130, D. Afonso Henriques, «por motivos religiosos, mas, também, para agradecer cinquenta marcas de prata e um cavalo» (marca: «antiga moeda portuguesa de ouro ou prata, do valor de 50 maravedis»), doa à Sé de Braga (à qual, em 1128, conferiu, o «direito de cunhar moeda») «a Terra de Regalados (conc. de Vila Verde)»
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herdades, coutos, etc.) e privilégios ao clero (e também benesses e privilégios dos arcebispos em relação aos cónegos, bem como da parte do rei para com membros da nobreza ou destes entre si).
Neste enquadramento, não fique por aduzir-se algo (que também se conecta com alguns aspetos apontados no ponto 19.16. desta tese) de uma recente publicação 1 , profusamente documentada, acerca de «João de Meira Carrilho e o Legado Instituído na Misericórdia de Braga (Séculos XVII-XVIII)». Muito importa dizer-se que se depara, no referido livro, com um estudo integrado sobre a Sociedade desses dois séculos – enfim, o «statu quo» urdido pelos poderes.
Atente-se, com circunspeção, numa ou noutra pincelada: múltiplos registos atestam não ter sido nada edificante, em muitos aspetos, o comportamento do referido cónego legatário, sendo-lhe apontados diversos atropelos 2
Transcrevamos apenas dois parágrafos do livro:
«Era ainda acusado de negligência, roubo e abuso de poder nas visitas 3 que realizava às igrejas. Estas foram concretizadas em período de Sé Vacante (1641 – 1671). Pordiavisitava‘seisaseteigrejas’,oquesugerefazeravisitademaneiramuitoapressada, recebendo por cada três mil réis e pelas ceias outro tanto. Porém, mais grave era vender as culpas, ou seja, acusar quem não era culpado e ilibar mediante pagamento. Atos condenáveis e demonstrativos da atuação de alguns membros da Igreja. O abuso era tal que numa visitação prendeu o abade de ‘S. Pedro de Vaboô’, sem lhe atribuir culpas. Após intervenção de uns cónegos amigos do encarcerado, ficou a saber-se que o cónego visitador referira que ‘enquanto não lhe desse hua ou duas pensoens a hum ou dois sobrinhos que tinha o avia de fazer morrer na prizão’. Exigia-lhe ainda o pagamento de umas bulas, que o referido detido afirmava já ter pago. Sem outro remédio, e para ser liberto, teve de pagar tudo, o que teria sido público e muito murmurado na cidade.» (…) «O cónego enganava os seus colegas do Cabido com negociatas no setor das rendas, o que era notório e desagradava muito à instituição. Roubava também no trânsito dos Breves de Roma para Braga, cobrando acima do custo, sendo igualmente acusado de ladrão e de ficar com dinheiro para si das rendas que cobrava.» 4
1 Doutora
2 Inclusive, o de «inquietação» de várias raparigas. Ob. cit., pp. 75, 76, 77 e passim
3 «Visitasoins».
4 Idem, pp. 78-79.
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Maria Marta Lobo de Araújo – «Enquanto o Mundo Durar: João de Meira Carrilho e o Legado Instituído na Misericórdia de Braga (Séculos XVII – XVIII», Santa Casa da Misericórdia de Braga, Braga – 2017.
Era retinto, no cónego, isto que é apanágio da generalidade dos magnates: a obcecação por alcançar cada vez mais poder, a ânsia de ser cada vez mais reverenciado, «cultuado». Muito almejava ser também «Comissário do Santo Ofício» em Braga e veio a conseguir tal objetivo.
Do «statu quo»eclesiástico abordado neste ponto, bem como noutros pontos desta tese, há, no presente, remanescências patrimoniais: por exemplo, em Braga, é vastíssimo o rol de bens imóveis 1 na posse da Igreja … E quanto ao que era a situação bracarense, no séc. XVIII, poderá evocar-se a obra que, por incumbência do Cónego Franciscus Pacheco Pereyra (Provisor do Arcebispado), foi levada a cabo pelo Padre Richardus da Rocha («Anno natiu. Domin. MDCCL. P. Richardus a Rocha») – a «obra ciclópica» de, mapeando-se toda a cidade de Braga, rua após rua, assinalar-se a imensidão de «casas foreiras ao Cabido de Braga» 2, as «casas dízimas a Deus», as casas foreiras a «outros Cabidos», etc. Desta obra foi feita, em 1989, publicação pelo Arquivo Distrital de Braga 3
E atente-se nos dois itens seguintes: Muitos são os Estados em que, ao longo de séculos e séculos, se persiste em pagar ao Vaticano a taxa designada «laudémio».
Nohistorial das implorações feitas por Afonso Henriques aos papas paraobtenção da independência de Portugal (e, logo, obtenção do título de Rei), designadamente se discorre sobre as bulas «Devotionem Tuam» (emitida por Lúcio II) e «Manifestatis Probatum» (emitida por Alexandre III, em 1177, a outorgar a referida independência) e há referência às «onças de ouro» que, em contrapartida, pelo papado seriam anualmente recebidas.
20. O poder religioso arrogava-se como teocrático, inexcedível
Faça-se uma conspícua leitura da tirada dum Inquisidor-Geral num Manual de Inquisição (de Espanha) 4 : numa toada em que ao cinismo e nefelibatismo se alia uma
1 E a não rara isenção do respetivo IMI não fora já uma e outra vez referida em meios de comunicação social?
2 Em 1750, eram, na cidade de Braga, 1 673 as «casas foreiras» ao respetivo Cabido.
3 Arquivo Distrital de Braga (Unidade Cultural da Universidade do Minho) – «Mapa das Ruas de Braga» (em 1750). Rocha/artes gráficas, lda. – Dezembro de 1989.
4 José Lourenço D. de Mendonça e António Joaquim Moreira, ob. cit., pp. 423 a 425.
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ingente insensibilidade, ele diz (numa altura em que o panorama da Europa já não era tão do agrado da Igreja como antes) serem de significado irrisório os sofrimentos sacramente infligidos pelo Santo Ofício ante as tão etéreas vantagens do mesmo. Assevera que o rechaço daquilo que se presume como ciências («ciências físicas e naturais») e liberdades é algo sacrossanto e imperioso para preservação da «Fé», sendo excelsas estas duas vantagens da Inquisição: a «ignorância»sobre tais matérias e a não entrega ao estrangeiro de muitíssimo dinheiro que teria de gastar-se na aquisição de tais livros.
E ele assim prossegue:
«A proibição dos livros de disciplina eclesiástica, história da Igreja e direito canónico, que se afastam dos princípios ultramontanos, como são Eibel, Febrónio, os teólogos de Pisa e muitos mais, sobretudo a dos que ensinam pestíferas imposturas de Lutero, de Calvino e seus sequazes, nos vêm a inculcar como dogma a supremacia temporal eespiritual dopapa, deixando-nos livrementefazercrerquesó ele, como vigário de Cristo na Terra, manda absolutamente em toda a sua circunscrição. E do mesmo modo que o Filho de Deus pratica nos Céus, assim ele depõe os monarcas 1, absolve do juramento de fidelidade aos vassalos no caso de excomunhão, etc. » (…)
«A proibição dos livros de qualquer espécie que a si se arrogou o Santo Ofício embaraça toda a introdução das opiniões que modernamente se nomeiam liberais, prescrevendo as ciências conhecidas, como direito natural e das gentes, ideologia, economia política, legislação universal, etc. Os reis foram estabelecidos imediatamente por Deus, são seus filhos muito amados (depois dos inquisidores, frades e clérigos), senhores das vidas e fazendas dos seculares, que nenhum foro ou isenção legítima podem alegar contra eles, mas também são malditos de Deus e dos seus santos, abomináveis a todo o cristão, merecedores de castigo sempiterno no outro mundo e que devem ser perseguidos como cães danados por seus próprios vassalos neste se se advertirem de tocar em um cabelo ao mais ínfimo sacristão ou a qualquer dos familiares do Santo Ofício, posto que estes tais tenham cometido roubos, estupros e parricídios e igualmente se se
1 E não fique por dizer-se que, não raro, Papas e quejandos, com pesporrência e calculismo, interferiram a nível de enlaces matrimoniais de príncipes. Por exemplo, o papa Pio V «opôs-se à ideia do casamento do nosso rei D. Sebastião com Margarida de Valois, irmã do rei francês Carlos IX, fazendo saber ao jovem monarca português, por intermédio do nosso embaixador em Roma, que, em seu entender, o rei não devia casar com a princesa de França, considerando quão enfermo aquele reino estava nas coisas da religião cristã, sendo de recear a educação que a princesa Margarida tivesse recebido». E chegou a escrever ao rei Sebastião nesse sentido. «Passados anos, porém, estando empenhado na realização da liga contra os Turcos, mudou de parecer»: passou a reputar o casamento do «misógino» rei Sebastião com Margarida de Valois essencial para a entrada da França na liga Ver «Pio V (S.)», in «Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira», cit., vol. XXI, pp. 892-893.
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lembrarem de lançar um único maravedi de contribuição sobre os eclesiásticos, ainda mesmo que a nação chegue a ponto de soçobrar por falta de recursos »
«É por virtude destes tão prudentes meios que a Inquisição tem conseguido a mais absoluta obediência da parte do povo para com o seu príncipe e do mesmo modo a completa submissão destes à classe clerical. E não é pouca utilidade a que resulta aos monarcas e potentados do avassalamento inteiro do povo, para que lhes deva parecer um sacrifício dispendioso o mostrarem-se humildosamente rendidos e sujeitos aos inquisidores e clérigos.»
«Outra não menos inestimável vantagem nos tem refluído do estabelecimento da Inquisição na Península, qual a do estado de perfeita baixeza e nulidade a que havemos chegado, sendo que a melhor parte do grande império de Carlos V já se não conhece, existindo como cousa de nenhum peso na balança da Europa. Ora bem sabemos todos nós, pelasmesmas palavras da DivinaSabedoria – quenãopode enganar-se nem enganarnos – como aquele que se deixa ficar inferior entre os irmãos é elevado pelo Eterno Padre a um lugar maior no seu reino. Havendo, pois, os espanhóis conseguido, por meio da fundação do santo Ofício, e de todas as outras instituições ao mesmo análogas, e tais que bem se podem considerar seus inalienáveis adminículos, ser hoje a última e mais desprezível nação da Europa, fica claro que no mundo da verdade (isto é, na outra vida) ocuparemos o sítio mais proeminente e distinto »
E não fique por aludir-se a análises teológicas sobre os «Sacramentos», num Catecismo do séc. XVIII (de que disponho), no qual, designadamente, se assevera o seguinte, ao discorrer-se sobre múnus/«poder dos sacerdotes» (designados «Christos de Deos»):
«Hum poder para trazer obediente à sua voz o mesmo Deos, para o pôr desde o Ceo de entre os Anjos na Terra entre os homens; o outro poder para tirar os homens, à força da sua voz, do mesmo inferno das culpas, até os meter dentro no Ceo. Que poderes são estes tão admiráveis, que dignidade tão sobre humana, e que autoridade tão Divina? (…) Aqui faltão linguas aos Serafins para o explicar; aqui não alcanção nem ainda os pensamentos mais perspicazes para comprehender o que em hum instante faz Deos por virtude deste Sacramento em hum homem».
«… Encontrando-se em Roma S. Filipe Neri com hu mancebo de dezasseis anos em traje secular, parou olhando para elle, e lhe disse: dizeme a verdade, tu não és sacerdote? Attonitoomancebolheconfessou quesim »Eexplicou-lheque «seusparentes
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o tinhão feito ordenar contra sua vontade…» Filipe Neri «disse ao Cardeal Francisco Maria Tarugi que tinha visto àquelle mancebo resplandecer na testa o Caracter de Sacerdote, por onde o conhecera».
Quanto a Conrado, «Abade cisterciense e depois Cardeal da Santa Igreja», lê-se «que os dous dedos com que pegava na Hostia lhe resplandeciam de modo que com eles se alumiava, estando às escuras, e que servindo-lhe os dedos consagrados de tocha, só com a luz, que deles reverberava, lia e estudava de noite», e, noutro passo, narra-se que um Padre que havia sido ordenado por «S. Francisco Sales» passou a ver – note-se: com os próprios olhos – que o seu Anjo de Guarda, que até ali andava à sua direita e se lhe antecipava na passagem das portas, passou, desde a ordenação, a situar-se à sua esquerda e a reservar-lhe a dianteira ante qualquer porta.
E transcreva-se também esta tirada que além de mais tresanda a racismo: «E na verdade, Catholicos, para que com os olhos da Alma penetremos a ver qual he esta tão admirável mudança, supponde este cazo. Se houvera entre nós hum homem tão poderoso, que encontrando se com huma grande chusma de escravos todos negros, e feridos mortalmente todos dentro em huma masmorra, e lhes dissesse: Eu vos dou liberdade, e no mesmo instante lhes fossem caindo as algemas, soltando-se os grilhoens, e desapertando-os as cadeas, que assombro seria? Mais se lhes dissera: Eu vos faço Hespanhoes; e no mesmo instante sem mais armas, que proferir estas palavras se lhes fossefazendobrancacomoaneveapellequetinhãonegracomopez,edanegracarapinha teza, e crespa se fizesse logo hum corredio cabelo macio, e ruivo como o ouro, que pasmo causaria? Mais: se a todos lhes dissera estando moribundos: Eu vos dou saúde; e todos se levantassem sãos, robustos, e fortes; e se finalmente, dicesse àquella lobrega, e escura habitação de huma masmorra: Eu te faço Palacio, melhor que os que habitão os melhores Reys do Mundo, e no mesmo instante sem mais officiaes, e sem mais mestres ficasse a masmorra feita a fabrica mais bella, e sumptuosa, que dicereis deste homem, não perguntaríeis: Que poder he este tão Divino? Pois sabey, que quando o Sacerdote diz: ‘Eu te absolvo’, obra na Alma, que está bem desposta, milagres sem comparação muito mayores. Que disse eu em dizer mayores? Mayores, que quantos tem feito nesta matéria osSantostodosjuntos;mayoresqueosquecomhumapalavratemressuscitadoosmortos, tem sarado os paralyticos, tem dado vista aos cegos; e mayores em fim com infinita distância, que quantos se tem exercitado nos corpos, sejão quaes forem. Pois este he o poder que se confere a hum Sacerdote na Ordem…»
Em face do que fica dito quanto a padres, que dizer de Bispos, Cardeais e Papas?
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Em catecismo de 1912 1, eis o que se diz, seguindo-se a linha de pensamento de «Santo Cura de Ars»: «Quem é o sacerdote? Um homem que ocupa o lugar de Deus; um homem que está revestido de todos os poderes divinos. ‘Ide, disse o Senhor’ (…) Quando o sacerdote perdôa os pecados, não diz ‘Deus te perdôa’, mas: ‘Eu te absolvo’. Na Consagração, não diz: ‘Este é o Corpo de Nosso Senhor’, mas: ‘este é o meu Corpo’ 2 . Se eu encontrasse um sacerdote e um anjo, saudaria primeiro o sacerdote e depois o anjo. Este é amigo de Deus, aquelle faz as suas vezes (…) Depois de Deus o sacerdote é tudo» (…) 3 E, no já referido catecismo de 1956 4, vinca-se: «Além da autoridade de ensinar, a Igreja tem especialmente o poder de administrar as coisas santas, de fazer leis e de exigir a sua observância» – este, «o poder que têm os membros da jerarquia eclesiástica não vem do povo, e seria heresia dizê-lo, mas vem unicamente de Deus», repisando-se, logo de seguida: «O exercício destes poderes compete unicamente ao corpo jerárquico, isto é, ao Papa e aos Bispos a ele subordinados». O Bispo, subordinado ao Papa, «infalível» 5 , «tem o poder de governar os fiéis da própria diocese» 6
A História claramente nos mostra aquilo que o poder religioso fez desabar sobre os povos.
Transcreva-se o seguinte passo do estudo «História da Igreja Lusitana» 7:
«Segundo refere D. Thomaz da Incarnação, o papa Gregório VII escreveu carta ao rei de Espanha no ano de 1073, afirmando que a Igreja de Roma tinha assegurado direitos sobre toda a Espanha, pois que, como não deviam ignorá-lo esses príncipes, os povos da Península, desde os tempos antigos, pertenceram de direito a S. Pedro. O antigo cardeal Hildebrando, astuto frade, tinha assim arranjado uma ciência jurídica a seu modo para conseguir os seus fins. O referido autor D. Thomaz da Incarnação conta que os reis de Espanha estranharam deveras aquelas cartas pontifícias, pois era certo que nunca rei algum godo,desdeRecaredo,quefoioprimeiroqueabraçoua religiãocatólica,até Vitiza e Rodrigo, tinha sido tributário da Sé de Roma »
1 Padre G. Perardi – «Manuale del Cathechista Cattolico» («prescrito por S. S. Pio X»), 1912, p. 640.
2 Se bem que «a latere» em relação ao que se vem dizendo, eis um episódio referido por Elvira Mea: O abade João Fernandes, em sermão em Rio Meão, afirmou que o «valor do sacrifício da missa era tal que até as almas do inferno usufruíam dele, pelo que quem tivesse cem arrobas de fogo pelos seus pecados baixaria para cinquenta, quem tivesse cinquenta tirar-se-lhe-ia vinte e cinco, etc.». Elvira Azevedo Mea, ob. cit., pp. V e VI.
3 Para concluir o breve apontamento sobre o referido catecismo, observe-se que ele não usa o nome Deus-Pai, optando por chamarlhe Padre, Deus Padre (mas nele se aplica o nome «pae» ao pai de família).
4 Compêndio da Doutrina Cristã» («prescrito por Pio X»), 11ª ed., ed. da «União Gráfica», 1956, p. 77,78, 80.
5 «O Papa é infallivel com a mesma infallibilidade da Egreja» – Padre G. Perardi – «Manuale del Catechista Cattolico», cit, p. 663. E, na pág. 224 deste mesmo catecismo de 1912, lê-se: «Qual é o caracter infallivel da doutrina de Jesus Christo? Seguramente a unidade e a invariabilidade, pois a verdadeira doutrina da fé deve ser uma só e conforme sempre comsigo mesma.»
6 Sobre este assunto algo se explana em Francisco de Azevedo Gomes – «Falsificação da História», cit., vol. II, pp. 224 e segs.
7 J. Santos Figueiredo (Presbítero) – «História da Igreja Lusitana» - aparecendo a passagem em causa recolhida na revista «Bereia» nº 61, julho-setembro de 1993, p. 7.
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Vem mesmo a talho de foice a seguinte transcrição: «Há dois meses, João Paulo II foi a Bari celebrar os 900 anos da morte do Papa Gregório VII, e não perdeu a oportunidade para exaltar este seu predecessor como uma das mais prestigiosas figuras do Papado. De facto, como é sabido, Gregório VII ficou célebre na História pela posição firme assumida no conflito com o imperador Henrique IV, na ‘questão das investiduras’, defendendo a supremacia absoluta do Papado sobre o Poder civil, com o poder de depor não só os bispos mas também os reis.» 1
E, acerca das enormes pesporrências de mitrados, não deixe de aludir-se ao seguinte exemplo de entre inúmeros possíveis: a tormentosa humilhação a que o Papa Gregório VII sujeitou o Imperador Henrique IV, após excomunhão que sobre ele atirou 2 . E veja-se, por exemplo, em «Falsificação da História» 3 , no ponto intitulado «Poder eclesiástico ‘versus’ poder secular», como, em Portugal, quatro reis consecutivos –Sancho I, Afonso II, Sancho II e Afonso III – foram por mitrados tão sobranceiramente atingidos, sendo tido como especialmente demolidor o sinete da excomunhão
Frequentemente aconteceu haver dois (e até chegou a haver três) Papas em simultâneo, mutuamente se excomungando, digladiando-se ferozmente, havendo, nas lutas sanguinárias, alinhamentos conspirativos e belicosos de reinos e multidões em prol ora dum ora doutro (sendo-nos transmitido, designadamente por diversas enciclopédias 4 , que houve, no trajeto do catolicismo, mesmo muitos antipapas 5) E não esperasse por misericórdia o que fosse vencido.
Não fique por referir-se que os poderes frequentemente procederam à investidura de Papas, Cardeais e Bispos que estavam ainda na menoridade; alguns até nem à adolescência tinham chegado (exemplificando, um autor diz que Leão X «tinha sido nomeado arcebispo de Aix aos cinco anos de Idade 6). Quanto a um dos que os poderes investiram como Papa na menoridade – Bento IX (na altura, com doze anos) – atente-se nisto: «cometeu tais torpezas e ignomínias» (tais como «homicídios» e «práticas várias de adultério») que se viu obrigado a fugir de Roma 7 . É arvorado, neste entrementes, o Papa Silvestre III. Bento IX logo regressa a Roma e «reassume a autoridade pontifícia».
1 Pacheco Gonçalves – texto «O Papa dos Plenos Poderes», no «Jornal de Notícias», de 9-7-1985, p. 14
2 Francisco de Azevedo Gomes – «Falsificação da História», cit., vol. II, p. 220.
3 Idem, ibidem, vol. II, pp. 152 a 160.
4 Por exemplo, ver «Antipapas», na «Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira», cit., vol. 1 (de 2001), p. 175.
5 No a seguir referido «Dicionário Prático Ilustrado», diz-sequehouve«trintaecinco antipapas»(«falsos papas,irregularmenteeleitos e não reconhecidos pela Igreja»): Jaime de Séguier – «Dicionário Prático Ilustrado», Lello e Irmão – Editores, Porto – 1977, p. 76.
6 Domingo Fernández Suarez – «Carta Aberta a um Católico», 4ª ed., 1973, p. 32.
7 J. Santos Figueiredo (Presbítero) – «História da Igreja Lusitana» – aparecendo os dados em apreço recolhidos na revista «Bereia» nº 59, janeiro-março/1993, p. 10.
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1
Mas, às tantas, resolveu vender a tiara/papado a um seu tio (que foi o Papa Gregório VI) por 1 500 florins. Pouco depois, Bento IX «dá o dito por não dito» e volta a reaparecer como Papa. E reaparece, também, Silvestre III, passando a haver três Papas. A contenda foi ultrapassada, investindo-se Clemente II 1 .
20.1. O caso Pio IX (2º metade do séc. XIX)
Há, na História, apesar dum jogo dialético ora mais ora menos pronunciado, uma linha de continuidade e repetição, sob a batuta dos poderes.
Na perda dos domínios temporais de Pio IX (papa desde 1846 a 1878) foi indutor o regime político neles em vigor, o qual, na Enciclopédia Portuguesa e Brasileira, é assim caracterizado: «um sistema de encarceramentos preventivos, que podia arrastar qualquer pessoa ao cárcere, sem julgamento, por simples suspeita de conspirar. Os sacerdotes, que usurparam as funções judiciárias, mostraram-se, por vezes, tão cruéis que os oficiais do exército austríaco protestaram (a Áustria era uma das ‘potências protetoras dos Estados Pontifícios’). Renasceram o banditismo e a corrupção e a administração financeira do Cardeal Antonelli foi desastrosa. Surgiram críticas no estrangeiro; já no Congresso de Paris de 1856, o embaixador inglês, Lord Clarendon, dirigiu censuras severas contra o governo do pontífice.»
A Igreja Católica, que foi a grande senhora do Mundo, ela que se arvorara em indiscutível senhora da Europa, não apenas «de facto», mas, fincando-se no embuste da «Donatio Constantini», também «de jure», viria a progressivamente perder possessões, continuando ainda em sua posse designadamente aquelas que constituem pomo de discórdia na disputa sobre que passamos a discorrer, a coberto do texto de A. Ferreira Marques 2 publicado na Revista «Vida Mundial» 3
«A sua atitude contra o liberalismo (era ‘hostil a qualquer forma de liberalismo político’) manifestou-se em Dezembro de 1864 na encíclica ‘Quanta Cura’ e no ‘Syllabus Complectens praecipuos nostrae aetatis errores’ Pio IX queria para a Igreja o controlo de
Heitor Morais, S. J. – «História dos Papas» – Luzes e Sombras», cit., pp. 199 a 202.
2 A. Ferreira Marques – texto «O fim do poder temporal e a unificação da Itália. Infalibilidadepapal: dogma com 100 anos», na revista «Vida Mundial» nº 1632, de 18-9-1970, pp. 29 a 55.
3 É pertinente repisar-se no seguinte: o Cardeal José Tolentino de Mendonça, em recente programa televisivo («Fronteiras XXI»), dissequenãohouvecristianismonaEuropano primeiro milénio.Masverdadeéquebempiordoqueoprimeiro foi o segundo milénio, neste se situando o Tribunal da Inquisição (que sucedeu designadamente à «inquisição dispersa»), as Cruzadas, as matanças dos Albigenses e dos Valdenses, o odioso rechaço sobre os Mouros (designadamente no Norte de África), a iníqua invasão do Mundo pelas hostes europeias ditas «cristãs», o tráfico transoceânico de escravos (como já referido, «legitimado» e corroborado pelas bulas «Dum Diversas», «Romanus Pontifex», «Inter Coetera»…).
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toda a cultura e da ciência, de todo o sistema de educação; negava a liberdade de fé, consciência e culto aos outros credos; e eliminava toda a ideia de tolerância. Reclamava a completa independência da Igreja em relação a qualquer fiscalização do Estado; sustentava a necessidade da continuação do poder temporal da Santa Sé e declarava, por fim, que o pontífice não podia nem devia reconciliar-se com o progresso, o liberalismo e a civilização moderna. O aparecimento deste ‘Syllabus’ causou profunda impressão, pois declarava guerra à sociedade moderna e ligava o papado aos princípios do ultramontanismo.» 1
«A liberdade de consciência foi o mais pestilento de todos os erros» – eis frase de Pio IX publicada em encíclica.
«Pode dizer-se que o pontificado de Pio IX culminou, em 18-7-1870, no concílio do Vaticano, em que foi proclamada a infalibilidade do Papa e a universalidade do seu episcopado, elevando-o assim a um ponto que nenhum dos seus predecessores atingira.» Muitos cardeais, bispos e leigos de renome assumiram atitudesdediscordância…ehouve até quem foi excomungado. Pio IX, «embora não pedisse ao Concílio a definição da infalibilidade, envidou todos os esforços para a conseguir». Em Portugal, o partido dos «velhos católicos» – a que pertencia Alexandre Herculano –, que não admitiu os dogmas da «infalibilidade» e o dogma, de 1854, da «Imaculada Conceição», foi por Pio IX condenado.
Em 1875, eis, na senda da reafirmação do papado sobre o poder civil, Pio IX a «declarar inválidas, na Encíclica ‘Quod Nunquam’, as leis prussianas sobre as relações daIgrejaedoEstado». Garibaldi,Mazzini,Cavour,VítorManuel II,eisalgunsdosnomes sonantes que se prendem à difícil «unificação da Itália»/constituição da Itália como nação soberana, o que só foi possível depois de muitos e sangrentos combates; em alturas, em que,anívelmilitar,ascoisasjánãocorriamàfeiçãodePio IX(oqual,emperíodoanterior, tinha sido desapossado de «dois terços dos seus domínios» na sequência de batalhas sangrentas), este rejeitava apelos dramáticos de Vítor Manuel II (que se reafirmava como crente) no sentido de acatar um projeto imparável e que contava com o apoio da generalidade duma população oprimida.
Uma coluna italiana entra em Roma, em 20/9/1870. Vítor Manuel II submete a anexação a plebiscito dos cidadãos romanos, tendo estes «ratificado por maioria esmagadora a união com o reino de Itália… ‘Contaram-se 153 861 votos a favor da união
1 Note-se, de caminho: no pontificado de Pio X, papa de 1903 a 1914, são condenadas as «65 proposições do Modernismo, em 1907», e, em Portugal, foi, por ordem deste papa, suspensa, por tendências consideradas modernistas, a revista «A Voz de Santo António».
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à Itália e só 1 507 contra ela»; ante isto, não custa entender que «várias províncias pontifícias», cansadas dessa iníqua «autocracia», tenham «pedido a integração no Reino de Piemonte-Sardenha (de Vítor Manuel II).»
«O Estado papal foi incluído no reino de Itália, que definiu as relações diplomáticas com a Santa Sé pela lei de 13/5/1871». O papa «repetidamente protestou contra o facto em termos indignados e até ao fim da vida recusou reconciliar-se com o ‘sacrílego’ rei de Itália». «Pio IX respondeu à tomada de Roma declarando-se a si mesmo prisioneiro e retirando-se para o palácio do Vaticano. Em Maio de 1871, dirigiu uma encíclica ao alto clero condenando a ação dos italianos, afirmando a impossibilidade de reconciliação e apelando abertamente para a intervenção das potências católicas, a fim de restaurarem a sua soberania… Mas os príncipes da Terra ignoraram o apelo de Pio IX.» Este rejeitou a chamada «Lei das Garantias» (veja-se, no referido estudo de A. Ferreira Marques, a fortuna que a Igreja acabou por receber, na sequência do Tratado de Latrão, como «indemnização» pelas «suas perdas territoriais»), «passando a considerar-se ‘prisioneiro do Vaticano’ e proibindo os chefes de Estado católicos de visitar o rei de Itália».
A. Ferreira Marques assinala que o Papa «é ainda hoje, de direito e de facto, um chefe de Estado, com todas as prerrogativas e honras ‘seculares’ de um soberano absoluto» 1
21.APÊNDICE 2 (referidonoponto19.5.6.)–Massacres, torturas, violações, «napalm» e desfolhantes, etc., no espaço colonial
A reportagem 3 intitulada «Portugal planeou um genocídio?» (esta implicou a deslocação da repórter a Nova Iorque) gira à volta dum relatório das Nações Unidas («Relatório da Comissão de Inquérito dos Massacres em Moçambique... tornado público
1 E, além de mais, acrescente-se, dispõe dum vasto rol de pomposos títulos, conforme, sob a epígrafe «Papa: o campeão dos títulos», é referido pelo diário «O Primeiro de Janeiro», de 26/4/1991, p. 11
2Quanto à temática aqui versada, há muita informação nas obras (de Felícia Cabrita e Joaquim Furtado) a seguir referidas: Joaquim Furtado – «Guerra» (14 «DVDs» conjugados com pequenos livros). Projeto desenvolvido por «LEVOIR» em parceria com o Jornal «Público» e a RTP; 2017.
Felícia Cabrita – «Massacres em África», ed. «A Esfera dos Livros», 1ª ed., 2008.
3 Bárbara Reis – «Público’ revela relatório das Nações Unidas de 1974 sobre a guerra colonial em Moçambique – Portugal planeou um genocídio?», no «Público», de 10.9.95, pp. 34 e 35.
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na Assembleia Geral da ONU, em 1974, em Nova Iorque, mas que nunca chegou a ser divulgado em Portugal»), tendo a comissão de inquérito sido criada e aprovada, em 12 de dezembro de 1973 (no rescaldo do massacre de Wiriyamu), na respetiva Assembleia Geral, pois que esta estava «profundamente perturbada» e «convencida da necessidade urgente de uma investigação internacional». Foram recolhidos dados e informações de várias entidades (que são mencionadas no referido jornal) e de várias pessoas, designadamente vários «padres missionários, quase todos católicos, ou moçambicanos que viviam nas aldeias atacadas»:
«As tropas portuguesas, sobretudo os Grupos Especiais, os Grupos Especiais de Paraquedistas, as companhias de comandos, os Flechas, um corpo auxiliar da polícia secreta, a Direção Geral de Segurança (antiga PIDE), torturaram e mataram arbitrariamente milhares de moçambicanos civis, homens, mulheres e crianças, em diferentes províncias do país e até Abril de 1974. Segundo este Relatório da ONU, durante a ditadura, as violações dos direitos humanos em Moçambique eram comuns, frequentes e generalizadas. A tal ponto que, contrariando a ideia de que o famoso massacre de Wiriyamu, a 16 de Dezembro de 1972, foi uma ação quase isolada, o relatório dedica algumas páginas à volta de uma pergunta perturbante: Portugal tinha como política planeada eliminar o povo moçambicano?
(...)
São dezenas os fatores que levaram a comissão a pensar em genocídio. A misteriosa epidemia de cólera em Vila Pery 1 é uma delas, a que se juntam os vários massacres, algumas vezes de mais de 500 pessoas, como na aldeia de Mueda, no distrito deCaboDelgado, a16deJunhode1960,ouocasodaaldeiadeMutanga,onde59pessoas, incluindo mulheres e crianças, foram queimadas vivas em Janeiro de 1965. Só num dia, a 16 de Março de 1972, tropas portuguesas e do sul da Rodésia mataram 78 pessoas na aldeia de Zambeze, 30 em Mponda, 38 em Deveteve e 38 em Chimandabue. ‘Numa área de 20 a 25 quilómetros, ficou tudo destruído.
Outro massacre foi cometido na aldeia de Chinyerere em Setembro de 1973. De uma população total de 58 pessoas, 31 foram mortas. Noventa foram mortas em Chiuaio,
1 Noutro passo do mesmo jornal, lê-se: «A comissão diz não ter bases suficientes para tirar uma conclusão 100 por cento segura, mas lendo os anexos do relatório – nos quais são transcritas, na íntegra, todas as entrevistas feitas às 69 testemunhas – não há dúvidas de que a ONU tinha, em 1973, fortes suspeitas de que Portugal estava a usar armas químicas, bacteriológicas ou a experimentar alguma substância química nova em Moçambique (...) Todos estes dados juntos sugerem, repete a comissão, que houve da parte das tropas portuguesas um ato intencional de envenenar a água que se sabia ser consumida, na região, por militares e civis.»
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naáreadeAngónia.Alistaélonga.Em Cambeue, pertodeMoatize,em Tete,300pessoas foram mortas em Setembro-Outubro de 1971. Depois foi Wiriyamu, que desapareceu do mapa e o Governo de Marcelo Caetano disse na altura que a aldeia nunca existira. Uns dias antes do massacre, um vendedor de gado português informou os aldeões de que haveria uma feira de animais em Wiriyamu, a 16 de Dezembro. Por isso, várias pessoas juntaram-se na aldeia com o seu gado. O vendedor de gado não apareceu. Em vez disso, os aldeões foram cercados por tropas comandadas por agentes da DGS, relata a comissão.
Os massacres mais recentes sobre os quais a comissão ouviu testemunhos ocorreram à volta de Inhaminga, no distrito da Beira, em Março de 1974, e custaram a vida a mais de 200 pessoas.
Os massacres foram da responsabilidade do Governo português e eram parte integrante da política colonial..., sendo claro que as políticas emanadas de níveis superiores criaram um clima geral que tolerava e até encorajava o desrespeito pelos direitos humanos.
(...)
A comissão encontrou provas de vários tipos de violências perpetrados contra a população do território, provas que indicam um certo padrão das tropas coloniais, violência que varia desde a prática frequente de tortura e massacres, envolvendo a eliminação de populações inteiras de certas aldeias. Entre os tipos de violência descrita encontram-se vários assassinatos, homicídios em massa e destruição da propriedade, frequentemente acompanhados por outros tipos de atrocidades como a violação ou o abrir as barrigas a mulheres grávidas.
Os objetos de tortura eram o cavalo-marinho (um chicote feito de pele de hipopótamo), a palmatória e os chicotes feitos com pneus de bicicletas. Algumas sessões de tortura incluíam também o uso de agulhas e choques elétricos… Às vezes, a tortura com choques elétricos era usada nos órgãos genitais. Por vezes, as pessoas morriam durante a tortura 1 .
(...)
... A seguir, as pessoas foram enviadas para um aldeamento. Aldeamento era o nome dado às aldeias fortificadas com arame farpado, para onde as pessoas, civis, geralmente trazidos de localidades diferentes, eram levadas à força de modo a evitar
1 Do vasto rol de tais usos refira-se, ainda, o de torturar pessoas penduradas de cabeça para baixo.
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possíveis contactos com a Frelimo... pelo que, em Dezembro de 1973, um milhão e 300 mil moçambicanos viviam em aldeamentos, ou seja, 15 por cento do total da população.
Alguns missionários católicos disseram que tinham a impressão de que as autoridades portuguesas desejavam deixar morrer o maior número possível de pessoas nestes locais descritos como campos de concentração.
Os relatos das atrocidades sucedem-se ao longo das 40 páginas do relatório. Alguns dos assassinatos foram cometidos da forma mais bárbara. As pessoas eram mortas por serem suspeitas de cooperarem com a Frelimo ou porque resistiam a ir para os aldeamentos.
Ntenga Mumwilo, um homem idoso da aldeia de Malunzu, na área de Nangade, em Manica e Sofala, disse à Comissão que em 1964 as tropas portuguesas foram à sua aldeia e mataram os seus três filhos. As tropas ordenaram-lhe que escavasse um buraco para enterrar os seus filhos e obrigaram-no a deitar-se dentro do buraco enquanto se riam dele e lhe encostavam os canos das espingardas contra o seu peito. A seguir foi obrigado a ir buscar os corpos e a enterrá-los.
Numa aldeia em Cabo Delgado, 11 crianças foram metralhadas a partir de um helicóptero a caminho da escola perto de uma escola da Frelimo em Mantabalala, a 10 de Outubro de 1973, quando corriam para um abrigo com homens da Frelimo.
Em Mchakadela, dez mulheres foram degoladas e, a seguir, os soldados arrancaram as entranhas de três delas, que estavam grávidas, abriram-lhes as barrigas, tiraram os fetos e cozinharam-nos em brasas espetados em paus. Aconteceu o mesmo em Nankutu, pouco depois»
No mesmo jornal («Público», de 10.9.95, p. 35), refere-se que o Marechal Costa Gomes considera o relatório de «grande importância histórica»e «confirma que as Forças Armadas portuguesas ‘utilizaram muito os desfolhantes como arma de guerra em Angola e Moçambique» (...) «Além dos desfolhantes, o marechal Costa Gomes não tem reservas em afirmar que as Forças Armadas portuguesas recorreram com frequência ao napalm nas três frentes da guerra colonial... Sobre a polémica desencadeada por afirmações suas na conferência do Martinho da Arcada em Abril último (ver ‘Público’, de 30 de Abril e 6 de Maio), segundo as quais na fase mais crítica da guerra colonial teria sido discutido o recursoauma‘armadefinitiva’,omarechal garantenuncaterfaladode‘armainvencível’ , ‘absoluta’, ‘demolidora’ ou ‘final’, mas sim em ‘armas coletivas’ e ‘outro tipo de armas’ que estiveram na ‘mente dos altos comandos portugueses»
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E Pezarat Correia, «o antigo comandante da Região Militar do Sul e membro do Conselho da Revolução, declarou que houve ‘massacres, torturas e napalm’, praticados por membros das forças armadas portuguesas», lê-se no «Público» (p. 22), de 13.4.95.
Compete a quem ler a reportagem intitulada «Os mortos não sofrem» 1 interrogarseseosnazistiveramimaginaçãoparafazerpiordoqueoquenelaérelatado. Transcrevase porção da mesma:
«Em Tete, província de Moçambique, três aldeias desapareceram do mapa. Empunhando a bandeira portuguesa, a 6.ª Companhia de Comandos e alguns elementos da DGS – a polícia política – matam em tempo recorde 400 pessoas. Chegam com o sol a pino, cheios de pó, suor e raiva. São quase uma centena. Procuram a base do inimigo, mas encontram aldeias indefesas, apenas com mulheres, crianças e velhos, desarmados. Fazem-se experiências. Um soldado abre o ventre de uma mulher grávida e mostra-lhe o sexo do feto. Colocam os canos das armas na boca de recém-nascidos, à laia de biberão. E as donzelas, depois de satisfazerem o ímpeto dos heróis, são abatidas. Quem não é capazdematarnãoserveparasoldado(...)Paraareconstituiçãodos acontecimentos desse longínquo 16 de Dezembro de 1972 foi indispensável o testemunho dos soldados portugueses, hoje espalhados um pouco por todo o país. São homens normais com memórias que não esquecem. Nalguns casos nem se exprimem. Uns com indiferença. Outros expulsando uma dor de anos»
Pelas autoras, «enviadas a Wiriyamu» (ficou conhecida como «massacre de Wiriyamu» a «destruição de três aldeias na vizinhança de Tete»: Wiriyamu, Chawola e Juwau), foram também recolhidos dados «in loco», designadamente de seis nativos que, providencialmente, escaparam daquele holocausto.
A tropa avança no cerco das povoações («as ordens são bem claras: tudo o que mexer é para abater, não há prisioneiros»). Um nativo, desarmado («nada indica que seja um guerrilheiro da Frelimo»), é apanhado entre as árvores e no bolso encontram-lhe uma caderneta referenciadora da «profissão de condutor de tratores». É interrogado, pontapeado.
1 Felícia Cabrita e Clara Azevedo – reportagem intitulada «Massacre – Os mortos não sofrem», na revista «Expresso», de 5-12-1992, pp.12-R a 24-R.
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«Já não se consegue levantar, esvai-se em sangue e perde a visão. O alferes faz um gesto com a mão a Manuel 1 ‘Eu não sujo a faca’, responde. E acaba o serviço com a G3. ‘Ainda guardo o baque da bala na cabeça dele. Parecia uma caverna...» Manuel acabara o curso de comandos havia quatro meses, mas era a primeira vez que via a cara da morte ali a seus pés. Batizava-se. A medalha de uma santa pendia do crachá, não a queria perder, tinha-o prometido à mãe. Mais à frente toca a sorte a outro negro que, ao dar pela presença dos soldados, se assusta e foge. O tiro apanha-o na nuca. Manuel virao com a bota, tem a cara rebentada e os dentes separados; na mão direita segura com força um saco de serapilheira. A tropa entrega-se à pilhagem, a Manuel calha um fato de banho branco, muito bonito, que ainda há bem pouco tempo usou nas praias da Linha».
O comandante desta operação é, em substituição do capitão da companhia, «que tombou com hepatite», o alferes Antonino Melo. Quando lhe foi cometida (com a designação de «Operação Marosca») pelo Comando da Zona Operacional (ZOT), «já há uma semana tinha sido decidida»
Com o contingente, que partiu para Wiriyamu em helicópteros, iam dois elementos da DGS.
«Ao meio-dia chega a aviação, é o sinal que esperam para entrar a matar. Dois Fiats sobrevoam a povoação e largam bombas no mato 2 ». Segundo referido, na reportagem, o comandante da esquadrilha de Fiats «recusa-se a fazer fogo na zona» «Isso vai ser um crime, aquilo é só população’, garantira o capitão, que hoje prefere ficar na sombra. ‘Só uma bomba das pequenas’, pede o comandante de operações. Nem pequena nem grande, as bombas serão largadas na mata. Sem mais, Antonino Melo parte para a missão civilizadora».
«Os aldeãos tentam fugir, é a caça ao ‘turra’. O alferes agarra tudo o que lhe vem à mão, homens, mulheres e crianças, e fecha-os em palhotas. Depois lança as granadas. As paredes de capim ficam chapeadas de corpos estilhaçados. Entretanto, os soldados reúnem o resto da população no pátio da aldeia. Chico Kachawi, o negro da DGS, interroga os mais velhos. Mas ninguém parece conhecer Raimundo 3 . Nunca o abrigaram. Wiriyamu, ochefedaaldeia,apela.Chicomanda-orebolarno chão etreinarcambalhotas.
1 Manuel Coelho. Ainda criança, saíra de Portugal com a família para o Limpopo.
2 Maria João Vieira, em «Exclusivo» do «Notícias Magazine» (suplemento nº 178 do «Jornal de Notícias», de 22-10-1995), recolhe de um depoimento sobre o «massacre de Wiriyamu» o seguinte, quanto à atuação dos Fiat (p. 18): «Entraram a ‘varrer’ com bombas de napalm». Veja-se, aí, o que diz Jaime Neves sobre esta operação militar.
3 Guerrilheiro temido pela tropa colonial, na zona.
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Depois dá o ultimato, se queres viver foge. Mal o velho se ergue, ordena: ‘Mata a gazela’ . E os soldados treinam o dedo»
«Dukiria encontra-se na fila das mulheres e percebe que o marido vai ser o próximo. Observa-o de longe, persigna-se, despede-se. Chico exige confissões. Que não, não é turra, defende-se Tinta. Com um pau, Chico esmaga-lhe o crânio, depois salta para cima do corpo. Diverte-se no trampolim, para gáudio da tropa. Todos partilham o festim. O soldado Sebola, africano de Tete, brinca com as crianças. Agarra-as por um braço e atira-as ao ar. Quando os corpos descem, espera-as o punhal».
«Orário Kudenguirana, irmão do Tinta, é o último sobrevivente da família e espera a sentença. Viu a mulher ser queimada numa palhota e o seu único filho, um bebé de um ano, teve pior sina na faca de Sebola. Não tentou fazer nada, escondido no meio dos outros pensavaainda escaparà sorte. Umsoldadoaproxima-sedo grupo das mulheres e leva a cunhada. Atrás de uma árvore, o comando proclama a sua virilidade. O soldado segura os cabelos de Dukiria para a manter de joelhos. Mas ela nem pensa rebelar-se. ‘Este é o teu último dia, tens uma bela despedida’, dizia-lhe o herói. Depois os soldados arrancaram-lhe a capulana e revezaram-se. Não sabe quantos, nem lhes distinguiu a cara, os homens de uniforme são todos iguais. Só se lembra que o último roubou as missangas que lhe adornavam a cintura e as colocou ao pescoço. Como um troféu».
«...Antesdequeimaremaspalhotas,ossoldadosfazemumalimpezageral.Rádios, lanternas, malas de madeira, bicicletas. A pilhagem salva-os do tédio. Antonino cumpre a missão à risca, não quer manchar a sua caderneta militar. A guerra não tem lógica. Mandaram-no fazer uma limpeza numa base inimiga, matar tudo o que se move é o ABC da guerrilha. Um comando nãodeixatestemunhas éolema. ‘Nessaalturatinhaumapedra no coração»
(...)
«Há gritos lancinantes, designadamente de crianças e mães (que ‘com os braços protegem os filhos’). E Antonino «exercita piadas»: «Quem quer casar comigo?». E ora Antonino ora outros, nesta festa infernal, lá vão esganiçando graçolas e cínicas instruções (queeram paracumprir): «Matartudo, quenão fiqueninguém vivo», «Batam palmas para se despedirem da vida» («eles obedecem e as granadas caem. Dukiria é atingida num pé, arrasta-se, esconde-se entre os mortos»).
A um dos filhos, uma mãe «enlaça-o pela cintura e canta, obedecendo às ordens da soldadesca», isto logo após toda a família ter sido encerrada na sua palhota e escassos momentos antes de lançadas granadas para a despedaçar.
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(...)
«Sebola acumula especialidades. Coloca as mulheres em bicha, abraçadas. Encosta o cano da G3 e dispara. Depois é a contagem e a glória. Duma vez abate sete, doutra 13. Matar é uma arte, é preciso vocação. O soldado dedica-se de novo às crianças. Pequenoscorposfazempiruetasnoarantesdecaíremnaspalhotasincendiadas.Évéspera de Natal».
«Antonino não encontra rasto de guerrilheiros, no meio dos destroços restam apenas dois canos de canhangulo, armas de caça. Não se perturba, matar gente na guerra não é novidade. Para que raio serve a guerra?»
(...)
«Mais abaixo, na aldeia de Chawola, Joaquim Pacheco, alentejano de Garvão, defende as sagradas parcelas do império. Lutar pela Pátria era uma forma de não se sentir inútil. Vinte anos, filho de agricultores, antes da guerra nunca previra tudo o que se escondenaalmahumana.TinhacasadohápoucoeregressaradeLourenço Marques,onde em cinco dias de folga festejara as bodas. Não percebia a enorme vontade que tinha agora de ter uma mulher. Talvez por ter acabado de enforcar um homem. O sangue incitava-o e, ainda tocado pela energia da morte, o alentejano descobre numa palhota três donzelas. Emcertoslancessempreprecisoudealgumsossego,eenquantooscamaradassedivertem com as outras, retiraamais novaparaavaranda.Eraamulatamais bonitae mais cobiçada. ‘Sou o primeiro, fui eu que a descobri!’ Não falam a mesma língua, mas Joaquim faz um gesto eeladeita-se.Nãoénecessáriousardeforça,ajovemrende-se.Depois nãoamatou, faltou-lhe coragem. ‘Ela portou-se bem, ajudou, não ficou parada’. Dois soldados fazem bicha. Com o último, a sorte da rapariga falha. Oferece-lhe o cano da arma para a ajudar e quando ela se tenta erguer, dispara»
«Joaquim matou muita gente, perdeu a conta. Mas crianças, jura que só foram duas. Uma levou com uma munição nas costas, a barriga era um enorme buraco, as tripas penduradas. Vivia ainda e deu-lhe o tiro de misericórdia, na cabeça. O outro era muito pequeno, dois ou três anos, e tinha as duas pernas partidas. Fechou os olhos, acertou e virou costas»
«O que pensaria a mãe se o visse naquela figura! Parecia o diabo, as botas e a farda sujas de sangue e, ao pescoço, as missangas da jovem que violara. Quando chegasse ao estacionamento havia deas desfiarpara fazerumapulseiracom oseunomedeguerra».
«A loucura não tem fim, é uma cruzada apocalíptica. Em formatura, no centro da aldeia, os que sobreviveram à primeira investida recebem granadas. À esquerda, à direita,
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no meio. Os soldados protegem-se dos estilhaços atrás das palhotas que ardem. António Michone, ferido num ombro, esconde-se entre os corpos dos pais e dos irmãos. Para que não sobrem testemunhas, os soldados retiram as coberturas de capim das palhotas e lançam fogo. António escapa-se da pilha e no meio das labaredas ludibria os soldados que disparam» 1 .
«Manuel Coelho retira-se de Juwau, outra aldeia destruída. Batem a zona até ao rio Mazoe. Os soldados estão cansados, carregam os destroços da guerra, bugigangas que nãoservemosmortos.Aproximam-sedorioLuenha.Manueltemafardacoladaaocorpo, cheira a sangue e trotil. Apetece-lhe um banho. Ao aproximarem-se do rio descobrem muitas mulheres e crianças escondidas entre as árvores. Um miúdo escapa-se. O soldado grita-lhe que pare, mas a criança não percebe português. Ergue a G3 e dispara. O corpo cai. Mas levanta-se de novo. Outro tiro e o miúdo volta a levantar-se. Um comando não falha. O corpo encalhou numa pedra, a água do rio trouxe o sangue para a margem. ‘O que é que me levou a fazer aquilo?’, interroga-se hoje Manuel Coelho, agente da PSP. Os outros soldados entretinham-se com uma mulher grávida. Manuel é convidado mas declina. Quando chegasse à cidade tinha as mulheres que quisesse. Nenhuma resiste ao crachá de comando e a uma lata de sardinhas»
«A grávida sobrevive a quatro praças. ‘Não percebo por que não a mataram, era uma testemunha perigosa!’ Passados vinte anos, Manuel ainda não perdeu vícios de tropa de elite».
De seguida, refere-se que, dois dias após a matança, os aniquiladores são rendidos por paraquedistas, que chegam «armados até aos dentes»... E os comandos, porque a «loucura não esmoreceu», escondidos na mata, simulando uma emboscada, lançam umas granadas para pregar um susto àqueles... «Afinal o que estavam eles ali a fazer? O serviço já estava feito e bem feito». E, segundo recorda o soldado José Maria, os paraquedistas até começaram por julgar que «estavam a ser atacados pelo inimigo»
«Nessa noite, no estacionamento, contam-se proezas. José Maria faz coro com os outros. Chegara a Moçambique aos 14 anos, sozinho. Expulso do seminário por falta de vocação. É um dos autores do que viria a chamar-se Wiriyamu. Mas fez aquilo como se nada fosse. Cumpria ordens. Depois, já estava calejado. Raramente poupavam um prisioneiro, não era conduta de comando. Um prisioneiro na mata era o dobro do trabalho e horas de sono perdidas para o vigiar. Mas aquela criança que matara não lhe saía da
1 O texto prossegue com a menção de folias selváticas do Joaquim
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cabeça. Não é por nada, mas o olhar do puto... Ele estava a retirar-se da aldeia quando viu a cabeça do miúdo a sair de entre os corpos. Era inadmissível, no meio daquilo tudo, deixar alguém vivo, e os mortos não sofrem. Voltou atrás. O alferes gritou: ‘Foge daí que isso está muito quente!’ Agora vem-lhe muitas vezes à memória aquela imagem. Não tinha mais de quatro anos. Levantou a cabeça, olhou-o, passou a mão pelo rosto cheio de sangue. Tinha a barriga desfeita. Talvez não sobrevivesse. Talvez... Ergueu a arma e disparou»
«Mas claro que houve cenas engraçadas: uns tipos que iam a fugir e são caçados pelo helicanhão, mãozinha da Força Aérea, e ficaram desfeitos. E mesmo anedóticas, como quando atiraram a dose habitual para dentro de uma palhota e um negro saltou com o teto. Aterrou vivo e foi a caça ao pombo. Ele desata a correr, e José Maria a disparar com os outros. ‘Aí vai disto. Devia ter 20 anos e demos cabo dele»
«Masháquemnãocantedegalonessanoite.Entre osoficiais,SilvériodoRosário chora: ‘Eu não sou assassino, fizeram de mim um assassino’ Há assassinos acidentais e profissionais».
A notícia da chacina alastra e começa a inquietar o poder colonial, que, tanto cá como nas colónias, muito se afana na divulgação e imposição de mentiras e venenosos ideários, através da propaganda e contrapropaganda.
O presidente da Cruz Vermelha em Tete, Dr. José Paz, desloca-se «ao local para confirmar. Regressa sem dúvidas e faz um relatório. Mas o inspetor da DGS trava-o a tempo e guarda as provas»
O caso gera um certo alarido (pp. 17-R e 18-R).
«AntoninoMeloéchamadodenovoàZOT.Exigem-lhequeapagueosvestígios... A 6ª Companhia faz as malas... Tentam apagar os rastos enviando-os para a Ilha de Moçambique. Mas, antes, Antonino e um grupo de confiança voltam ao local do crime. Tinham-se passado 20 dias, as aldeias eram o inferno À volta dos cadáveres, enxames de moscas e abutres. Os corpos inchados pareciam querer rebentar. Mal se dava pelas crianças, completamente estilhaçadas. O capim crescera entre os ossos. Antonino enxota com a bota as galinhas e os cães, que não largam os corpos em decomposição. Os animais tinham engordado. Embebe o lenço verde do regulamento em Old Spice, o ‘after-shave’ engana o cheiro insuportável. ‘Hoje não consigo cheirar o Old Spice sem ficar agoniado»
«José Bandeira, para tristeza sua, não participara na primeira operação. Está especado a olhar para os cadáveres. Tantos mortos, e ele que pensava conhecer a guerra como ninguém. Era um duro, tinha feito de tudo um pouco. Matar crianças com a arma
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dentro da boca como se fosse a chupeta era coisa muito normal (...) ‘Eu nessa altura era um javardo, éramos todos. Deixámos de ser homens, éramos bichos’. À volta dos corpos, uma mancha, parecia óleo. O soldado tenta arrastar um cadáver para o meter na vala, mas fica com um braço na mão. Aquele trabalho só mesmo à enxada. Com o ‘rigor mortis’ , as pernas de uma mulher ficam suspensas, José coloca-lhe a bota entre as pernas. ‘Olha que boa que era a gaja» (...)
«José de Sousa não se sente um herói. Tremeu ao entrar em Wiriyamu pela segunda vez e benzeu-se... Mas era o sistema, tinha de vencer por ele e sempre se sentiu português. Em criança jogou às aventuras nos escuteiros, patrulha elefante. Aos 20 anos optou pelos comandos por vaidade. Adorava a farda e o perigo, rabiar o medo. A 16 de Dezembro entrou em Wiriyarnu como soldado, cumpria uma missão. Ordem: dizimar a população. Hoje sente-se um cobarde. Passa por todas as aldeias, abre valas, enterra corpos apodrecidos, rega-os com gasolina. O pior é o cheiro a carne queimada. ‘Foi uma matança injustificada. Pessoas inocentes e desarmadas que morreram às nossas armas»
Um pouco à frente, há um parágrafo que apenas por mera curiosidade vai ser transcrito. Após a cremação dos corpos e eliminação de «vestígios», os executantes de tal tarefa estavam furibundos, porque, sendo já noite, não apareceram, como esperavam, os helicópteros a recolhê-los. E eis que, ao retirarem para uma estrada, sofrem uma emboscada «teimosa». Sóvou transcreveroreferidoparágrafoenãouns aspetos referidos por Antonino Melo (quem quiser leia a reportagem) e que ele considera intrigantes: «Antonino Melo estremece ainda quando pensa nisso. Será que tentaram criar vítimas para justificar o massacre? José Alberto Aparício, coronel, na altura na repartição de operações da ZOT, retira a nódoa do pano: ‘Não somos tão despersonalizados como os americanos para nos andarmos a matar uns aos outros»
«Passaram-se 20 anos. Na antiga aldeia de Wiriyamu existe agora um monumento com as ossadas das vítimas» (...)
«… A maior parte dos soldados e oficiais da 6ª Companhia preferiu não arriscar. Vivem em Portugal, constituíram família, são homens normais. Ninguém desconfiaria do seu passado. José Maria, farmacêutico, retrata-se a medo. ‘Tem a certeza de que não me vão chatear por isto? Olhe que ainda hoje há quem dê caça aos nazis...’ Antonino Melo vivenuma aldeia alentejanacom a família.Achaquea verdade épara ser contada.Expõese. Raramente fala do passado... Faz comparações, lembra a chacina de My Lai, uma população dizimada nas unhas dos americanos durante a guerra do Vietname... ‘A guerra
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foi uma estupidez, Wiriyamu, um crime’. Guerra é guerra, são todas iguais».
E era oportuno voltar, aqui, a falar nas instruções militares de índole nazi, nos ideários perversos, no aprisionamento de multidões pela trela da consciência, na impossibilidade de alcançar-se uma Felicidade jamais vivida, enquanto não houver um massivo e profundo arrependimento das gentes.
E importará, também, estar a par de reparos e estudos de psiquiatras, psicólogos, moralistas, etc., sobre as ditas "marcas da guerra" (designadamente o chamado «stress traumático»– sendo,noJN, de15.2.96,p. 7, usada aexpressão «síndroma pós-traumático do stress da guerra»), sobre ódios, insensibilidades, perturbações espirituais, psíquicas e orgânicas de diversa ordem, etc. 1 Eis a lamúria dum ex-combatente da Guiné, Mário Gaspar: «Fiz a guerra. Vi morrer e matei. Eu matei. E menti. Hoje estou doente. Hoje estou em guerra comigo e com os meus. Não sei o que hei de fazer. Estou amputado psicologicamente.Sinto-memal.Ehá140000comoeu.OPAIGCquisqueeudesertasse, ofereceu-se para me levar mas não aceitei. Não gosto de falar disto, custa-me. Ainda não consigo falar disto» 2 .
Abordando a parte final da segunda parte (que se intitula «A Mentira Oficial») da reportagem em apreço, cite-se o seguinte:
«Em 1976, ‘Massacres na Guerra Colonial’ 3 é uma prenda da editora Ulmeiro. O livro revela alguns documentos secretos, os bastidores dos massacres de Wiriyamu e os relatórios dos padres espanhóis. José Ribeiro, o editor, cai nas malhas da revolução. O Estado-Maior das Forças Armadas brinda-o com um processo. Ramalho Eanes assina a queixa. Crime: abuso de liberdade de imprensa. Os militares dão voltas para abafar o passado»
Vinte anos após este massacre, o general Kaúlza de Arriaga diz: «Morreram 60 pessoas, civis e terroristas, mas considero isso um acidente normal da guerra». Mas, pouco após o massacre 4 , num contexto de reclamações internacionais, instado a dizer algo (além de mais, segundo a reportagem em apreço, o inspetor-chefe da DGS, Joaquim Sabino,viriaaassegurar,referindo-seàarrumaçãodo «relatóriodomédicoJoséPazsobre
1 Ver, por exemplo, apontamento de Fernando Dacosta intitulado «Eu matei em África», no «Público», de 14.4.1995, p. 18
2 José António Cerejo – reportagem «Colóquio ‘A guerra colonial e o 25 de Abril – Era mais difícil desertar do que fazer a guerra», no «Público», de 10.4.1995, p. 19.
3 Também são apontadas crueldades várias, por exemplo, no livro «Em Defesa de Joaquim Pinto de Andrade», de Mário Brochado Coelho (Edição do autor/1971)
4 Mais precisamente, pouco após «... o escândalo rebentar com a publicação pelo ‘The Times’ de Londres de uma carta assinada pelo padre Hastings, relatando massacres em 1972...», baseando-se tal carta «em relatórios elaborados por missionários espanhóis da Congregação de Burgos».
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Wiriyamu» nos arquivos da polícia política: «Eu dei conhecimento disso ao Kaúlza»), Kaúlza disse que houve «20 mortes» e num cenário que, na pág. 23-R, está transcrito. Vem a talho de foice acrescentar que, na pág. 1 do «Expresso», de 19.12.92, se lê: «20 anos depois, Ex-pide 1 acusa Kaúlza de mentir sobre Wiriyamu»; e este mesmo jornal (p. 24) fala da «punição ao Presidente da Cruz Vermelha», o clínico José Paz («à época presidente da Cruz Vermelha e diretor do Hospital de Tete»), o qual ficara abalado com a «mortandade» que viu, sendo de sua viúva, Maria Manuela Matos, as seguintes palavras: «O meu marido ficou muito impressionado, sobretudo ao ter observado que grande parte das vítimas morreu dentro das palhotas, para onde tinham sido lançadas granadas».
«Manuel Diogo Neto, general, na altura comandante-chefe da Força Aérea (em Moçambique)... arruma a casa: ‘Eu nunca participaria numa coisa destas contra a população. Mas não há dúvida de que aquilo foi um massacre».
Marcelo Caetano chegou a dizer que «Wiriyamu nunca existiu» (p. 22-R).
E será melhor não ficar por recolher este passo da pág. 24-R: «... Não era fácil convencer as populações a abandonar as aldeias tradicionais para viverem em aldeias controladas pela tropa. ‘Curva de cabras’ era a alcunha popular dada aos aldeamentos fortificados, donde não se podia sair, mesmo para trabalhar, sem autorização. Quem resiste paga caro a afronta, e Wiriyamu é riscada do mapa. ‘Eu mandei lá homens fazerem ação psicológica para que eles abandonassem a aldeia e fossem para os aquartelamentos. Demos vários prazos que eles nunca cumpriram’, recorda Antonino Melo»
Num trabalho de Adelino Gomes 2, lê-se, a dado passo: «Do púlpito da igreja de Macúti, na Beira, os padres Teles Sampaio e Fernando Mendes fazem-se eco de testemunhos sobre outros massacres em aldeias de Mucumbura, entre 1971 e 1972. Já após o 25 de Abril, o missionário holandês José Martens assegurará queocorreram ‘centenas deWiriyamus em Moçambique’eapontaaregião de Inhaminga, na província de Sofala, como palco de sucessivos massacres» (tratava-se de pessoas «que recusaram o aldeamento forçado»). Recolha-se ainda este passo do mesmo trabalho: «Houve de tudo nesta guerra’, confessava há poucos dias ao ‘Público’ um oficial superior no ativo do Exército Português. ‘Napalm, tortura, prisioneiros lançados de aviões, esquartejamentos, gente enterrada viva. Com maior ou menor amplitude, mas fizemos
1 Joaquim Sabino.
2 Adelino Gomes – súmula intitulada «Deportações, massacres, terror», no «Público», de 23.4.95., p. 75.
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isso tudo. E também fuzilamentos, e também violações. Como aliás acontece em todas as guerras...»
Importa fazer uma alusão aos «quatro grandes massacres», que, sendo a «última gota afazertransbordaro copo»,levaram àeclosão daguerracolonial, em África: Batepá, Pidjiguiti, Mueda e Baixa do Cassange:
«O primeiro ocorreu em Fevereiro de 1953... O número de vítimas terá ultrapassado um milhar, num território de 60 mil habitantes. O assassinato de um oficial, que havia disparado sobre habitantes da povoação de Trindade, desencadeou a onda de repressão, que durou uma semana e na qual participaram civis europeus 1 . (...)
Em 3 de Agosto de 1959, os estivadores do porto de Pidjiguiti, em Bissau, entraram em greve por aumentos salariais. A violência da intervenção policial faz 50 mortos e uma centena de feridos (sete mortos e 15 feridos na versão portuguesa) e conduz muitos guineenses aos caminhos da militância emancipatória. Alguns dos sobreviventes são deportados para São Tomé e para Portugal. Um mês e meio depois do massacre, Amílcar Cabral declara-se favorável à luta contra o colonialismo português ‘por todos os meios possíveis’ .
Em Junho do ano seguinte, camponeses moçambicanos concentram-se na vila de Mueda, província de Cabo Delgado. O governador reúne-se durante quatro horas com os líderes do protesto. Testemunha ocular, Alberto Chipande, que seria mais tarde ministro daDefesa, conta que, no final,o governador mandoupassarem ‘para o mesmolado’todos os que pretendessem expor razões. ‘Sem mais palavras, ordenou que lhes amarrassem as mãos e a polícia começou a espancá-los’. Perante os protestos da multidão, o governador ordenou a intervenção de uma companhia, ida de Porto Amélia. ‘Foram mortas 600 pessoas’. Quatro anos mais tarde, Chipande abateu um guarda do posto de Chai, perto da vila. A guerra de guerrilhas tinha começado.
Em Janeiro de 1961, na Baixa do Cassange (Angola), trabalhadores da apanha do algodão protestam contra os privilégios da Cotonang. A empresa exige das autoridades uma ‘repressão impiedosa’. Forças de infantaria com apoio aéreo (são aviões PV-2 e T6) avançam sobre a região a mando do comandante militar, general Monteiro Libório. O
1 Para se ficar com uma ideia aproximada das sevícias infligidas sobre tantos insulares, leia-se a reportagem de Fernando Marques e Manuel Roberto intitulada «História de um massacre – Batepá, São Tomé e Príncipe, 1953», em «Público Magazine» n° 279, de 16.7.95, pp. 22 a 26.
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major piloto José Ervedosa deserta para a Argélia e denunciou o massacre, falando em 5 000 mortos e 17 aldeias destruídas...»
Ao que acabamos de transcrever de Adelino Gomes importa acrescentar que, em 1959, em Timor, na localidade de Viqueque, os Portugueses massacraram, também, não poucos timorenses, tendo outros sido deportados para Angola (a mais recente alusão ao assunto vi-aem «O Comércio doPorto», de18.8.95).Sobreeste caso de Viquequeforamme feitas, em Timor, chocantes confidências.
No jornal «Sempre Fixe», de 24.8.74, é apresentada uma sequência de três fotogravuras (p. 6), que nos fazem crispar de dor e raiva: na 1ª, muitos africanos atados com cordas, à espera de serem massacrados, junto a uma vala; na 2ª, ei-los mortos no fosso; na 3ª, uma máquina escavadora faz o aterro sobre os cadáveres. E eis a legenda que o «Sempre Fixe» exara: «Aconteceu em Cassoneca, localidade distanciada poucos quilómetros da vila de Catete (Angola), em 1968. Porque não nos move a intenção, simples, de chocar o leitor, deixamos de publicar a sequência na primeira página, embora o relevo se justificasse pelo assunto em si e pelo sentido jornalístico de quem fixou, para a História, algo que não somos capazes – confessamo-lo – de apreciar friamente. Quem nos confiou estas fotografias disse-nos que reconheceria facilmente o sítio, em qualquer altura. Ainda assim, e por motivos óbvios, ‘Sempre Fixe’ assume inteira responsabilidade pelapublicação das fotos, comprometendo-setodos os redatores que aqui trabalhamanão sujeitar outrem, por motivo algum, independentemente das consequências que tal publicação implique. Aliás, a publicação é justificada, ainda, quando é certo que o atual Governo do nosso país se decidiu por uma política de verdade, a todos a níveis. Impossíveis de divulgar antes do 25 de Abril, entendemos que o mérito da publicação destas imagens não é nosso. O ‘Fixe’ e o leitor ficam a dever esta possibilidade àqueles que derrubaram um regime que não teria permitido que falássemos de Cassoneca/68. Devemos areproduçãodas fotografias –edetudo quanto sepublicanestejornal –àqueles que derrubaram o fascismo»
César Camacho 1 , que recolhe do foro psiquiátrico a designação de «guerra demencial» para campanhas tão enormemente sádicas como as que vimos mencionando,
1 César Camacho – apontamento «Três histórias da guerra vivida», no suplemento (p. 3) do «Público», de 23.4.95.
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exara, a dado passo, o seguinte: «O relato deste episódio não vai ‘branquear’ outras ações relatadas, por exemplo, pelos padres da missão de S. Pedro, em Tete. Num desses relatos, que consta do livro ‘Massacres na Guerra Colonial – Tete, Um Exemplo’ (Ulmeiro, Abril de 1976), lê-se: ‘Chinteya, uma rapariga de quatro anos, assustada, chora. Um soldado, simulando compaixão, aproxima-se e, acariciando a criança, pergunta-lhe se está com fome. Sem, porém, esperar a resposta diz ‘Toma lá o biberão’, metendo à força o cano da arma na boca da criança, diz ‘Chupa’. E dispara. A criança cai com um rombo na cabeça...»
«Realizar um novo julgamento de Nuremberga onde serão julgados os crimes cometidos pela ex-P.I.D.E./D.G.S. em Moçambique’ tal é um dos principais objetivos do Grupo de Democratas de Moçambique, um dos movimentos políticos criados depois do 25 de Abril», lê-se num apontamento de Pierre Zanin 1. Uma «comissão de investigação de crimes contra a humanidade e a economia» criada pelo referido movimento, tendo aberto um «inquérito sobre a ação de mais de mil agentes da P.I.D.E./D.G.S. que operavam em Moçambique», ao fim de dois meses tinha «mais de mil depoimentos recolhidos pelos advogados que animam o grupo», havendo «quilos de depoimentos»
«Fala-se de prisões arbitrárias, de torturas, de fome, de assassínios, de massacres coletivos... Na prisão de Machava, em Lourenço Marques, na de Quelimane, na costa, no centro do país, ou na fortaleza da ilha do Ibo, no extremo norte de Moçambique, foi uma verdadeira tragédia vivida por milhares de prisioneiros»
«Para muitos deles, esta tragédia não parece ter terminado ainda. Muitas vezes hesitam depor contra os seus torcionários com receio de represálias".
(...)
«O ‘caso 607’ passou dez anos na fortaleza da ilha do Ibo. Preso a 11 de Maio de 1964, por suspeita de ser favorável à Frelimo, foi libertado a 1 de Maio de 1974 ‘Bateram-me, como a todos os outros, com o pau e com o pneu. Os polícias batiam-me na boca. Por isso, hoje só tenho nove dentes. Todos os dias, morriam três ou quatro prisioneiros na ilha. Enterrávamos os seus corpos, dois a dois, em pequenas valas que cobríamos de pedras. No dia seguinte, quando voltávamos, os cães ou os porcos bravos tinham desenterrado os cadáveres. O cheiro acabou por ser de tal modo insuportável que os habitantes da ilha protestaram: os nossos camaradas passaram a ser enterrados noutros
1 Pierre Zanin – reportagem «Os crimes do fascismo em Moçambique são crimes contra a Humanidade», em «O Primeiro de Janeiro», de 1.7.74, pp. 1 e 9.
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cemitérios. Por vezes, os guardas organizavam pequenas ‘caçadas’. Reuniam um grupo de cerca de 50 pessoas e deixavam-nas dispersar pela ilha. Então começava a caça aos presos. Estestinham deesconder-separaescapar às balasdos guardas. Sóvoltavametade. Outras vezes, éramos autorizados a ir tomar banho à praia. Devíamos ir nus. O caminho estava coberto de silvas e tínhamos de correr entre duas filas de soldados. Os que não andavam depressa eram espancados. Muitos não chegavam à praia».
«O ‘caso 29’ passou dez anos da sua vida numa cela da cadeia de Machava, em Lourenço Marques. Fazia parte de um grupo de 35 prisioneiros presos por suspeita de serem ‘favoráveis à Frelimo’. Hoje é o único sobrevivente. ‘Um dia, lê-se no seu depoimento, queixámo-nos da comida. Os guardas pediram para os descontentes levantarem a mão. Éramos trinta e cinco, meteram-nos em celas individuais de dois metros por três, completamente escuras. Os meus camaradas morreram de fome ao fim de 15 ou 20 dias. Não lhes davam nem água nem comida. Alguns enlouqueceram, outros arrancavam a cal das paredes e outros chegaram a tentar beber a urina. Nas portas das celas de Machava, os guardas faziam sinais que fixavam a sorte dos presos: um ‘x’ indicava que não devia ser introduzida na cela comida nenhuma; um ‘ponto de interrogação’ queria dizer que era preciso verificar, de tempos a tempos, se o preso submetido à ‘dieta’ já estava morto. Eu tive sorte. O meu julgamento estava a decorrer nessa altura. Assim, davam-me de comer duas vezes por semana, o que me permitiu sobreviver».
«Quando, depois de 25 de Abril, os militares entraram na cadeia de Machava encontraram celas manchadas de sangue. A ‘kula’ (sala de torturas) tinha o pavimento de mosaicos vermelhos. Havia ali todos os instrumentos de tortura imagináveis».
Em «O Primeiro de Janeiro», de 12.4.1973 (p. 8), aparece a notícia intitulada «As circunstâncias em que terá ocorrido a morte do Pastor Zedequias Manganhela numa prisão de Moçambique». Ante a morte («na noite de 10 para 11 de dezembro de 1972») deste pastor evangélico (preso em Machava «à ordem da Direção Geral de Segurança»), para atirar-se «poeira aos olhos», pelo «ministro do Ultramar – anuncia uma nota oficiosa da Repartição do Gabinete do Governo Geral (Moçambique) – foi designado o presidente da Relação de Lourenço Marques para proceder a um inquérito sobre as circunstâncias em que se verificou aquele falecimento». E, como era de prever, o relatório apontava para morte «devida a enforcamento e à acção do próprio falecido».
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António Mixione,que, providencialmente,escapoudomassacredeWiriyamu (ele era da aldeia de Chawola) prestou, em 7 de Junho de 1974, declarações 1, em Dar-EsSalam, «à comissão das Nações Unidas que investiga massacres que teriam sido cometidos em Moçambique. Mixione afirmou que tropas portuguesas abriram fogo sobre os habitantes de Chawola, na província de Tete, cobriram-nos com palha e lançaram-lhe fogo. ‘Consegui fugir do fogo porque me encontrava debaixo da pilha formada pelos outros aldeões’ – explicou. Descreveu também como o ventre de uma mulher grávida foi aberto à baioneta e o feto atirado às chamas. ‘Vi a mulher quando ia a fugir. Chamava-se Mbalanyamma e eu vi a criança no fogo’ – afirmou» (...)
«A missão de inquérito das Nações Unidas ouviu os depoimentos de 19 testemunhas em Dar-Es-Salam e deve seguir hoje para Zanzibar» (é ainda referido que também foram ouvidos depoimentos sobre o massacre de Mucumbura, onde após violações de mulheres, os aldeões foram forçados a entrar em suas palhotas, a estas se ateando fogo).
No nº 50 da revista «Visão» 2, lê-se: «Em 24 de Setembro de 1968, o Comité de Descolonização da ONU condenou Portugal, por 14 votos e 4 abstenções, pelo comprovado emprego de napalm e de fósforo branco na Guiné». Fala-se, depois, nos desfolhantes e, de seguida, lê-se: «... Em 7 de Agosto de 1972, a revista ‘Afrique Asie’ revelou que as forças portuguesas estavam a recorrer à guerra química no Norte de Moçambique, utilizando tóxicos, produzidos na África do Sul, adquiridos naquele país por intermédio de Jorge Jardim e espalhados no território por aviões sul-africanos. O produto utilizado, segundo a revista, matava a vegetação e tornava os solos estéreis. Lisboa sempre refutou todas estas acusações. Mas já depois de ter terminado a guerra, a revista ‘Mais Alto’, do Estado-Maior da Força Aérea, no seu número de Março/Abril de 1989, concluiu deste modo a história: ‘O napalm foi utilizado contra objetivos militares bem definidos, tais como posições de artilharia antiaérea (AAA) ou veículos...»
Nareportagem «Flechas, GE's eMilícias –Terrorismo com orçamento deEstado» 3, fala-se em mortes a pontapé, por afogamento, etc., fala-se no «ritual macabro» de
1 Notícia intitulada «As atrocidades em Moçambique», em «O Primeiro de Janeiro», de 8.6.1974, p. 2
2 João Paulo Guerra – texto «Anos de Fogo», na revista «Visão» nº 50, de 3 a 9 de março/94, p. 31.
3 Jorge Ribeiro – reportagem «Flechas, GE's e Milícias – Terrorismo com orçamento de Estado –‘Caçadores de cabeças’ ganhavam quatro contos por guerrilheiro (vivo)», no «Jornal de Notícias», de 15.2.96, pp. 6 e 7.
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«cortar as orelhas ou o pénis aos guerrilheiros mortos em combate e depositá-los em frascos com formol ou álcool, como troféus de guerra»(«... com aquilo na mão mostravase um resultado»), fala-se em violações e brutalidades diversas e, a dado passo, sob a epígrafe «Caçadoresdecabeças’ganhavamquatrocontosporguerrilheiro(vivo)»,referese esta prática, a nível das unidades militares acima mencionadas (no caso vertente, em Moçambique): atribuição de prémios, em dinheiro, segundo uma tabela existente, por guerrilheiros ou armas que trouxessem das operações efetuadas, sendo o montante dividido por todos os componentes da respetiva unidade militar (um guerrilheiro vivo –prémio de quatro contos, uma granada – 250$00, uma arma kalashnikov – 750$00, uma Simonov – 4.500$00, etc.). E, além disso, note-se, havia ainda a atribuição, de acordo com tabela consagrada, de pontuações (convertíveis em dinheiro) pelos atos de «arresto» de seres humanos e armas. Para explicitação, transcreva-se o seguinte: «Lobão mostrame cópias de relatórios de operações sancionados pelo comando do setor, onde se especificam a duração e os resultados: tantos homens, mulheres e crianças capturados e/ou abatidos, tantos acampamentos destruídos, tanto material apreendido – ao que corresponde esta quantia e aquela pontuação...»
Não poderia ficar por assinalar esse incentivador processo cumulativo de contabilizar «façanhas» em proveito dos «façanheiros».
Com o incentivo dos prémios e das pontuações, as referidas unidades militares já não propendiam tanto para aquilo que era muito frequente na guerra colonial – o bárbaro assassínio dos prisioneiros no local da captura –, muito embora na própria reportagem se assinale que, muitas vezes, o impulso sanguinário associado a alegadas dificuldades em deslocarem-se com prisioneiros («capturavam guerrilheiros, mas havia uma grande dificuldade em trazê-los prisioneiros; a tendência era matá-los») desencadeavam a sádica matança destes «in loco». Afirma o graduado Manuel Lobão que era usual os seus subordinados «cortarem acabeçaaosferidosnoscombates»e,quantoaoutrocomandante (Daniel Roxo) de unidade militar da mesma natureza, diz ele: «Ele era um privilegiado: como fazia o que lhe apetecia podia matar tudo, não trazia ninguém no regresso dos assaltos...» [e, noutro passo, diz-se: «As milícias de Roxo (120 homens) nunca traziam prisioneiros, mas encheram rapidamente uma dependência da administração em Vila Cabral, com ‘troféus’ de guerra»].
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Era ávida a PIDE/DGS de que lhe fossem trazidos indivíduos em «condições de falar», aos quais, «pela tortura e brutalidade, extraía informações» E, na transcrição seguinte, designadamente se elucubre sobre o que respeita a crianças: «Capturados ou eliminados os guerrilheiros, ‘restavam’ as populações. Ao longo da sua comissão de serviço, diz Manuel Lobão, foram cerca de 200 mulheres, crianças e velhos que foram ‘entregues etransferidos aocuidadodaDGS para VilaCabral, aoqueapolíciainformava, para interrogatórios. Para a DGS, crianças que davam trabalho, não falavam nem tinham interesse nas tabelas de prémios, eles matavam-nas. Uma boa percentagem da população deslocada das suas terras foi morta por esses motivos Nas aldeias entrávamos, revistávamos, destruíamos as machambas (terrenos cultivados) e incendiávamos as palhotas. Ao mesmo tempo atávamos as pessoas todas». E, ao referir-se à inumação, «in loco», dos que a tropa colonial abatia nas operações, assinala: «... sinalizando sempre a sepulturacom material da APSIC,panfletos ondeselia,nalínguadeles,frases como ‘Não queiras ficar como este…»
Quanto à frequência com que a tropa colonial abatia no local da captura os prisioneiros (quantas vezes após inauditas torturas), eis breve passo de uma reportagem: «... ao adivinhar-se a chegada da luta independentista, um alto responsável militar em Moçambique deu instruções para que os seus homens não fizessem prisioneiros», recordou o capitão Fernandes»(«Público», de 13.4.95, p. 22); e, no «Público», de 30.4.95 1, lê-se, a dado passo: «Teorizou-se sobre a legitimidade da ‘guerra subversiva’ e sendo ‘terroristas’ e/ou ‘selvagens’, decretou-se que podiam matar-se. Citando um general da altura, Luís Machado ilustrou esta posição com um discurso de um general salazarista: ‘O Exército não transige. Viemos combater selvagens, que não são portugueses e estão ao mando do comunismo internacional (...)» (imediatamente antes deste período é referida a última mensagem de Salazar «para Goa, horas antes da invasão, advertindo Vassalo e Silva, o comandante general da guarnição, que ‘só pode haver soldados e marinheiros vitoriosos ou mortos»).
O regime ditatorial e colonialista deposto no 25 de Abril de 1974 apostava, sem descanso, como já se disse, na propaganda e contrapropaganda para entronizar a mentira e assim perpetuar o "statu quo", essa ignominiosa vivência, que vinha do fundo dos
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António Melo – reportagem «Costa Gomes desvenda alguns segredos da guerra colonial», no «Público», de 30.4.95, p. 25.
séculos e que era raivosamente preservada e sacralizada por engrenagens sociais diversas – e esta referência serve tão só de prelúdio para citarmos os títulos, apenas os títulos, do que a propósito do «massacre de Wiriyamu» veio, nessa altura, a público, em alguns jornais: «Desmentidas pretensas atrocidades praticadas por tropas portuguesas em Moçambique» (nota oficiosa da Secretaria de Estado da Informação e Turismo)/ «Declaração divulgada hoje pela embaixada de Portugal em Londres» («O Primeiro de Janeiro», de 11-7-1973); «A Orquestração da Mentira»/«Hastings em Nova Iorque» (jornal «Época», de 31-7-1973); «As Grosserias da Mentira» 1/«Desmascara-se a Mentira das Fotografias Antiportuguesas» («Época», de 7-8-1973); «Comissão de inquérito às alegações sobre massacres em Moçambique – pede uma moção apresentada à Comissão de Curadorias da O.N.U.» («O Primeiro de Janeiro», de 8-11-1973); «Comissão das Nações Unidas irá a Moçambique averiguar a situação – Proposto o reconhecimento dos movimentos de ‘libertação» «Os Bispos de Moçambique não podem estar por nenhum motivo ao lado dos chamados movimentos de libertação – afirma O Arcebispo de Lourenço Marques» («O Comércio do Porto», de 14-12-1973); «Um comunicado da Secretaria da Conferência Episcopal de Moçambique responde a outro da Secretaria da Diocese de Nampula» («O Primeiro de Janeiro», de 28-3-1974); «Chegaram a Madrid padres espanhóis que estiveram presos em Moçambique» («O Primeiro de Janeiro», de 26.11.1973); «O bispo de Nampula, cinco padres combonianos e um secular deixaram a cidade» («O Primeiro de Janeiro», de 11-4-1974); «Nota do Ministério do Ultramar acerca do ‘Caso bispo de Nampula»/«Particularmente dolorosa’ a expulsão dos missionários, segundo o Vaticano» («O Primeiro de Janeiro», de 17-4-1974); «O Supremo Militar confirma a condenação dos padres do Macúti» («Expresso», de 26-51973); «Dois sacerdotes espanhóis responderão no Tribunal Militar de Moçambique acusados de colaborarem com guerrilheiros»/«O jornalista inglês expulso de Moçambique avistou-se com o Secretário de Estado Holandês para os Negócios Estrangeiros» («O Primeiro de Janeiro», de 9-8-1973); «Esclarecimento da Defesa Nacional»(«Diário Popular», de 19-8-1973); «A incompreensão mundial sobre a política africana portuguesa»/«O caso denominado ‘massacre de Wiriyamu» («O Primeiro de Janeiro», de 28-11-1973); «Massacres’ em Moçambique» («Jornal de Notícias», de 2-3-
1 E, em 29.12.92, era publicado algo de teor similar, sob o título «As mentiras de Wiriyamu», no jornal «O Diabo», p. 22.
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1974); «A hierarquia católica acusada de ‘ter mantido o mais absoluto silêncio sobre o caso de Moçambique» («O Primeiro de Janeiro», de 31-5-1974)
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