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E STUDOS CRIMINAIS REVISTA

Nº 85 - ABRIL/JUNHO 2022

Instituto Transdisciplinar de Estudos Criminais
Instituto
Transdisciplinar de Estudos Criminais
85 - abril/junho 2022

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Revista de estudos CRiminais – ano XXi – nº 85

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abril/junho
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2022

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ANO XXI – 2022 – Nº 85

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ANO XXI – 2022 – Nº 85

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ANO XXI – 2022 – Nº 85

PUCRS

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ITEC

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Rodrigo Moraes de Oliveira

Salo de Carvalho

Notas dos Editores

Caros leitores e caras leitoras, Para a edição de número 85 da Revista de Estudos Criminais (REC), preparamos um dossiê especial com a temática Justiça Penal Negociada: acordos penais e justiça restaurativa. Diante de um cenário de constantes metamorfoses na justiça penal tradicional e do avanço significativo de espaços de consenso nessa seara, a REC não poderia deixar de abordar o assunto e oferecer ao seu público artigos de elevada qualidade científica a respeito.

Para tanto, concluiu-se pela necessidade de ampliar a coordenação do dossiê para além do quadro do Conselho Editorial da REC, motivo pelo qual convidamos a Profa. Dra. Fernanda Fonseca Rosenblatt (UNICAP/PE e IIRP/EUA) e o Prof. Dr. Felipe Faoro Bertoni (Faculdade Dom Bosco/RS) para que, juntos à nossa valorosa equipe, pudessem brindar o público com os seus argutos olhares e percepções.

Como de praxe, recebemos uma quantidade considerável de artigos, e gostaríamos de tê-los publicados todos. Infelizmente, por uma questão de espaço, isso não é possível. Cogitou-se realizar um segundo dossiê temático com os demais artigos, mas o fluxo contínuo da REC e o nosso compromisso com a periodicidade não nos permitiram. De qualquer maneira, registramos nosso agradecimento a todos autores e autoras que submeteram seus artigos, e temos certeza de que os trabalhos ora publicados representam bem o estado da arte sobre o tema do dossiê.

Cientes de que ainda há muito espaço para o debate sobre o tema do dossiê, encorajamos autores e autoras a submeter seus trabalhos para a nossa Revista, que teve seu Qualis A1 assegurado para mais um quadriênio, o que a torna a única revista especializada em ciências criminais no Brasil com essa qualificação. Ainda, conforme anteriormente prometido, em breve estaremos com o sistema de assinatura da revista em funcionamento, e convidamos a todos e todas para que sigam nos acompanhando, seja pela revista impressa, seja em nossas redes sociais.

Regras e orientações para a submissão de artigos estão disponíveis no site do ITEC (http://www.itecrs.org/edicoes/diretrizes:regras) e deverão ser encaminhados para o nosso email: rec@itecrs.org

Desejamos uma boa leitura!

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Revista de Estudos Criminais 85 Abril/Junho 2022
Prof. Dr. Rodrigo Moraes de Oliveira Programa de Pós-Graduação em Ciências Criminais da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul –PPGCCrim/PUCRS Prof. Dr. Daniel Silva Achutti Instituto Transdisciplinar de Estudos Criminais – ITEC Profa. Dra. Fernanda Fonseca Rosenblatt Programa de Pós-Graduação em Direito – UNICAP/PE International Institute for Restorative Practices – IIRP (EUA) Prof. Dr. Felipe Faoro Bertoni Faculdade Dom Bosco/RS

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A retroatividade do acordo de não persecução penal

Anna Beatriz Sartorio Ramos da Silva, Lucas Brandão Petengill e Rafael Junior Soares

29 Os desafios de implementação do modelo de justiça negociada anticorrupção no Brasil

Antonio Henrique Graciano Suxberger, Carlos Higino Ribeiro de Alencar e Ives Nahama Gomes Dos Santos

54 Breves notas sobre o acordo de não persecução penal como reflexo de uma justiça eficientista

Bárbara Feijó Ribeiro, Michelle Gironda Cabrera e Rodrigo Fernandes da Silva

77 Prácticas de justicia juvenil restaurativa en Argentina

Carla Villalta, Marina Medan e Valeria Llobet

104

O consenso como categoria-chave que distancia a justiça restaurativa da justiça criminal negocial

Daniela Carvalho Almeida da Costa, Luciana Leonardo Ribeiro Silva de Araújo e Victor Fernando Alves Carvalho

Sumário

129

A delação premiada como instrumento de potencialização da seletividade do direito penal: uma análise comparativa do tratamento conferido pelo Supremo Tribunal Federal

Gustavo Noronha de Ávila, Luiz Antônio Borri e Walter Barbosa Bittar

149

Justiça criminal e direitos humanos no sul global: pensar o movimento restaurativo para além da colonialidade

Grasielle Borges Vieira de Carvalho, Paulo Renato Vitória e Vitória Viana da Silva

172

Justiça Restaurativa para vítimas de violência corporativa

Ivo Aertsen

193 A censura na justiça restaurativa: entre a ausência e a correção

Letícia Pereira de Lemos e Ricardo Gueiros Bernardes Dias

Sumário

A RETROATIVIDADE DO ACORDO DE NÃO PERSECUÇÃO PENAL

THE RETROACTIVITY OF THE CRIMINAL

RESUMO: O presente artigo tem por objetivo analisar a retroatividade do acordo de não persecução penal, trazido pela Lei 13.964/19, em especial como mecanismo de enfrentamento à superpopulação carcerária. Além disso, a valorização de um microssistema tem autorizado acordos na seara da improbidade administrativa em qualquer fase do processo, o que deve ser estendido à esfera penal, como forma de se garantir a segurança jurídica e a isonomia. Por meio de pesquisa bibliográfica e documental que versam sobre o tema, foi possível concluir que o acordo de não persecução pena é uma norma penal mista que deve retroagir, inclusive nas condenações já transitadas em julgado.

PALAVRAS-CHAVE: Acordo de não persecução penal. Retroatividade. Norma Penal Mista. Lei Benéfica ao Réu.

ABSTRACT: This article aims to analyze the retroactivity of the non-prosecution agreement, brought by Law 13.964/19, especially as a mechanism to face the prison overpopulation. In addition, the valorization of a microsystem has authorized agreements in the field of administrative improbity at any stage of the process, which must be extended to the criminal sphere, as a way of guaranteeing legal certainty and isonomy. Through bibliographical and documentary research that deal with the subject, it was possible to conclude that the agreement of non-persecution penalty is a mixed criminal norm that must retroact, including the convictions that have already become final.

KEY-WORDS: Non-criminal prosecution agreement. Retroactivity. Mixed Criminal Norm. Law Beneficial to the Defendant.

SUMÁRIO: 1 Introdução; 2 Da Justiça Negocial e o Encarceramento no Brasil; 3 Acordo de Não Persecução Penal; 4 Do Acordo de Não Persecução Cível e sua Relação na Esfera Penal; 5 Conclusões; Referências bibliográficas.

1 Mestranda na UFSC. https://orcid.org/0000-0003-0146-5240.

2 Pós-graduando na PUCRS. https://orcid.org/my-orcid?orcid=0000-0003-2822-1932.

3 Doutorando na PUCPR. Professor de Direito Penal. https://orcid.org/0000-0002-0035-0217.

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A nn A B e A triz S A rtorio r A mo S d A S ilv A 1 l uc AS B r A ndão P etengill 2 r A f A el J unior S o A re S 3
NON-PROSECUTION AGREEMENT

Revista de Estudos Criminais 85

1 Introdução

Uma das principais novidades legislativas dos últimos anos é a Lei Anticrime, promulgada em 2019 com o intuito de trazer diversas modificações no Código Penal, Código de Processo Penal e algumas leis extravagantes.

A Lei 13.964/19 foi a responsável pela instituição do acordo de não persecução penal, instituto da justiça negocial que visa evitar a persecução penal nos casos que não cabe arquivamento e que o investigado confesse o delito praticado sem violência ou grave ameaça e com pena mínima inferior a quatro anos, além da suficiência para prevenção e reprovação do crime.

O acordo de não persecução penal está previsto no artigo 28-A do Código de Processo Penal, mas como sua consequência é a extinção de punibilidade, é considerado norma processual penal de natureza mista. Isso influencia diretamente na retroatividade do acordo, pois a regra para a aplicação do princípio da retroatividade da lei mais benéfica ao réu é exclusiva para as normas de direito material, enquanto as normas de direito processual penal devem ser aplicadas a partir do momento de sua promulgação.

Porém, esse caso em específico é especial, visto que o acordo de não persecução penal se trata de uma norma processual com aspectos materiais, ou seja, é possível afirmar que se trata de uma norma processual penal mista. Desse modo, será analisada a posição da doutrina e da jurisprudência a respeito da aplicação da retroatividade da lei mais benéfica. O objetivo do artigo é analisar a possibilidade do acordo de não persecução penal retroagir. Para a elaboração desse trabalho será utilizada a pesquisa bibliográfica e documental, tratando-se de assunto de extrema relevância diante da discussão ainda pendente sobre a aplicação retroativa do instituto.

Além disso, a definição quanto à aplicação aos casos anterior é relevante na medida em que permite combater o superencarceramento no Brasil, ou seja, há a possibilidade de se utilizar do novo acordo penal como forma de corrigir um dos problemas crônicos no âmbito do sistema de justiça criminal.

2 Da justiça negocial e o encarceramento no brasil

Não é de hoje que o cenário judicial é atingido pela morosidade, tanto é assim que inúmeras são as propostas de modificação do processo penal, inclusive o projeto do novo Código de Processo Penal4, instrumento capaz de concretizar o poder punitivo estatal, desde que sejam respeitados os direitos e garantias fundamentais.

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4 Tramita há aproximadamente treze anos o PLS 156/2009 que visa introduzir no país um novo Código de Processo Penal.

A retroatividade do acordo de não persecução penal

Dentre as propostas mais recorrentes nos debates está a justiça negocial5, cujas principais características são a aceleração e a simplificação procedimental, inclusive com a abreviação do caminho para a imposição de uma sanção penal

Embora formalizada após a promulgação da Lei n°. 9.099/95, legislação por meio da qual se consagrou a transação penal e a suspensão condicional do processo, primeiros institutos consensuais penais, a introdução da justiça penal negocial ocorreu a partir do artigo 98, inciso I, da Constituição Federal6. Após a introdução da Lei n°. 13.964/19, também conhecida como Pacote Anticrime, houve a ratificação da expansão do espaço consensual frente ao processo penal, em especial pela implementação de novo instituto, qual seja o acordo de não persecução penal. Além disso, na proposta legislativa apresentada inicialmente ao Congresso Nacional, avançava-se até mesmo à negociação da pena a ser aplicada contra o acusado, nos moldes do sistema estadunidense (plea bargaining7), o que acabou por não ser aprovado, mas que persiste em debate no radar dos legisladores.

Nesse contexto, a celeridade, reprimenda de maneira efetiva, simplificação procedimental, evitar o acionamento da máquina do judiciário e a consequente redução de despesas, todos os referidos elementos – e muitos outros - podem ser utilizados para justificar a necessidade de implementação da justiça penal negocial, contudo, o enfoque do presente trabalho recairá sobre o desencarceramento e seu liame com os institutos despenalizadores, tendo em vista o impacto que tais institutos podem gerar no sistema de justiça criminal, em especial porque, a título de exemplo, mais de oitenta por cento do Código Penal permite a incidência do acordo de não persecução penal8.

Sobre isso, inegável que a essência do sistema carcerário brasileiro em ressocializar o indivíduo, é maculada, também, pela quantidade de pessoas encarceradas9, muitas vezes à mercê de condições mínimas de sobrevivência, de maneira a ocasionar violação generalizada de direitos fundamentais no tocante à dignidade,

5 VASCONCELLOS, Vinicius Gomes de. Barganha e justiça criminal negocial. Editora: Instituto Brasileiro de Ciências Criminais. 2015. p. 25.

6 BITTAR, Walter Barbosa. Delação premiada: direito, doutrina e jurisprudência. 3. ed. São Paulo: Tirant Lo Blanch, 2020. p. 226

7 COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Plea bargaining no projeto anticrime: crônica de um desastre anunciado. Boletim IBCCRIM, São Paulo, v. 27, n. 317, p. 2-5, abr.. 2019.

8 MENDES, Tiago Bunning; LUCCHESI, Guilherme Brenner. Lei anticrime: a (re)forma penal e a aproximação de um sistema acusatório? 1 ed. São Paulo: Tirant lo Blanch, 2020, p. 57-56.

9 SILVA, Camila Rodrigues da; GRANDIN, Felipe; CAESAR, Gabriela; REIS, Thiago. População carcerária diminui, mas Brasil ainda registra superlotação nos presídios em meio à pandemia. G1. Disponível em: https://g1.globo.com/monitor-da-violencia/noticia/2021/05/17/populacao-carceraria-diminui-masbrasil-ainda-registra-superlotacao-nos-presidios-em-meio-a-pandemia.ghtml. Acesso em: 10 jun. 2022.

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higidez física e integridade psíquica, ante ao degradante e indigno tratamento das pessoas que se encontram sob custódia10 .

A referida argumentação foi empregada pelo Ministro Marco Aurélio, do Supremo Tribunal Federal, para reconhecer o “Estado de Coisas Inconstitucional”, embora proferido no ano de 2015, durante o julgamento da cautelar na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 347/DF, no qual se consolidou o entendimento de que não obstante a escassez de recursos, a proteção aos direitos fundamentais é obrigação dos Poderes Públicos, de modo a ser prerrogativa do Estado oferecer condições mínimas para a concretização de tais direitos, ao que se atribui o nome de “mínimo existencial”11. A fundamentação ainda se mostra pertinente ao cenário carcerário atual, sobretudo pela contínua afronta aos direitos fundamentais daqueles que se encontram cumprindo pena, dada as condições precárias dos estabelecimentos prisionais.

A partir da importação do Estado de Coisas Inconstitucional, que nada mais é do que a violação massiva e generalizada de direitos fundamentais, decorrentes da inércia ou incapacidade do Estado em fornecer garantias mínimas12, o contraponto entre a população carcerária e o crescente espaço de justiça penal negocial frente ao ordenamento jurídico é de extrema relevância, porquanto os institutos despenalizadores tem justamente o condão de proporcionar uma resposta alternativa à pena restritiva de liberdade.

Nesse sentido, não se pode concluir que o processo penal implicará necessariamente em encarceramento, sobretudo porque a finalidade do acordo, segundo o viés do sistema garantista, é exatamente minimizar a aplicação de penas privativas de liberdade, de modo a ter uma repreensão de maneira alternativa13 ao delito cometido. Em outros termos, a partir da compreensão da justiça penal negocial, deve haver uma ruptura com o paradigma de que o Direito Penal é intrinsicamente vinculado às penas privativas de liberdade.

10 Trechos retirados do voto do Ministro Marco Aurélio, proferido durante a medida cautelar na arguição de descumprimento de prefeito fundamental 347/DF. Disponível em: https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/ paginador.jsp?docTP=TP&docID=10300665. Acesso em: 13 jun. 2022.

11 GONÇALVES, Cristiane Lopes. O reconhecimento do estado de coisas inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal e as suas possíveis consequências na ordem jurídica brasileira. 2016. Monografia –Centro Universitário de Brasília. Brasília. 2016.

12 Há quem defenda que o mero reconhecimento do Estado de Coisa Inconstitucional é importante, mas não suficiente para a solução do problema prisional, haja vista ser inconcebível que um Estado Democrático de Direito cuja Constituição tem como basilar a dignidade humana, aceite o cenário carcerário. Assim: TORON, Alberto Zacharias; BOTTINI, Pierpaolo Cruz. O encarceramento em massa, um estado de coisas abominável. Consultor jurídico. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2022-jan-31/direito-defesaencarceramento-massa. Acesso em: 11 jun. 2022.

13 FISCHER, Douglas. Apontamentos sobre algumas questões relevantes do Acordo de Não Persecução Penal – ANPP. In: SALGADO, Daniel de Resende; KIRCHER, Luis Felipe Schneider; QUEIROZ, Ronaldo Pinheiro de. Justiça Consensual: Acordos Penais, Cíveis e Administrativo. São Paulo: Editora JusPodivm, 2022. p. 375.

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A retroatividade do acordo de não persecução penal

A partir disso, a interligação entre a justiça penal negocial e a consequência de sua aplicação frente ao encarceramento brasileiro é consubstanciada na medida em que a crescente tendência negocial tem como escopo justamente fornecer uma gama de medidas alternativas não privativas de liberdade, seja antes do oferecimento da denúncia ou até a prolação da sentença14. Tais acordos podem se mostrar interessante na administração do sistema de justiça criminal, pois oferecem respostas sancionatórias aqueles que praticaram crimes, ainda que não seja uma solução de encarceramento. Por outro lado, é preciso delimitar exaustivamente as regras dos acordos penais, a fim de se evitar discricionaridade pelos operadores do Direito no uso dos institutos.

Aliás, neste mesmo norte é a Regra 2.5 das Regras de Tóquio, a qual é categórica a tentar diminuir a recorrência aos procedimentos ou julgamentos formais em tribunal, desde que a medida adotada se enquadre com as garantias legais e as regras de direito, situação que também ratifica a utilização do direito penal como ultima ratio, isto é, somente nas ocasiões em que as demais esferas do direito não forem aptas a solucionar a situação.

Com efeito, especificamente a respeito do acordo de não persecução penal, a benesse se coaduna as referidas propostas, sobretudo porque o instituto faculta ao investigado a aceitação de condições dispostas em lei, a serem oferecidas pelo Ministério Público, de modo a se evitar o início da persecução penal15, pois impede o acionamento da máquina processual judiciária e o posterior julgamento em tribunal16 .

Dito isso, o liame entre o hiperencarceramento e a justiça penal negocial, como é o caso da transação penal, suspensão condicional do processo e até mesmo o acordo de não persecução penal, se dá na medida em que os institutos consensuais impõem outras medidas que não a privação de liberdade do indivíduo após a prolação de sentença condenatória, o que, além de prevenir a espera do oneroso trâmite do processo penal tradicional, contribui para a redução da população carcerária.

Diante de tudo isso, ganha especial relevância a interpretação quanto à retroatividade do acordo de não persecução penal, pois a ampliação do seu emprego

14 Neste sentido é a Regra 2.3, das Regras Mínimas para a Elaboração de Medidas não Privativas de Liberdade, adotada pelas Assembleia Geral das Nações Unidas mediante a Resolução 45/110 de 14 de dezembro de 1990.

15 BITTAR, Walter Barbosa; SOARES, Rafael Junior. Código de Processo Penal – Decreto-Lei 3.689/41. In: BITTAR, Walter Barbosa (org.). Comentários ao Pacote Anticrime. São Paulo: Tirant lo Blanch, 2021. p. 59.

16 ARAS, Vladimir. Acordos penais no Brasil: uma análise à luz do direito comparado. In: CUNHA, Rogério Sanches; BARROS, Francisco Dirceu; SOUZA, Renee do Ó; CABRAL, Rodrigo Leite Ferreira (orgs). Acordo de não Persecução Penal. 2ª. ed. Salvador: Editora JusPodivm, 2018. p. 326.

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é capaz de impactar de forma significativa diversos processos penais, bem como reduzir a quantidade de pessoas submetidas a penas privativas de liberdade.

3 Acordo de não persecução penal

O acordo de não persecução penal foi introduzido no ordenamento jurídico brasileiro como o objetivo de simplificar a persecução penal, tendo em vista que o investigado, a partir do preenchimento de requisitos, o cumprimento de condições negociadas entre as partes e a ausência de vedações, poderá obter a extinção da punibilidade da infração penal praticada, nos termos do art. 28-A do Código de Processo Penal.

Apesar da legislação penal brasileira já possuir alguns institutos despenalizadores no sistema consensual para delitos de menor potencial ofensivo e de maior potencial ofensivo, como a transação penal e a colaboração premiada, ainda faltava instrumento processual que pudesse abranger a aplicação da justiça consensual nos crimes de médio potencial ofensivo, e o acordo de não persecução penal preencheu essa lacuna17

Considerando a relevância do instituto em termos da quantidade de infrações penais que autorizam o acordo de não persecução, sobreveio debate relevante quanto à aplicação do instituto, ou seja, se somente seria aplicável aos novos casos ou se poderia retroagir para atingir crimes praticados antes da vigência da Lei 13.964/2019. A formação de entendimento sobre o assunto é relevante porque pode redundar em significativo impacto na quantidade de processos criminais que tramitam no Poder Judiciário e, por consequência, no encarceramento de pessoas submetidas à persecução penal.

Não há como se ignorar que o Brasil alcançou a notável marca de mais de 900 mil pessoas encarceradas, de modo que qualquer instituto que diminua o encarceramento, deve ser aplicado da forma mais ampla possível, devendo prevalecer interpretações que ampliem o espaço de incidência do novo acordo penal

Diante disso, o Supremo Tribunal Federal fixou entendimento no sentido de que é cabível o acordo de não persecução penal tão somente até o momento pré-processual18, isto é, o marco temporal a celebração da benesse seria o recebimento da denúncia, em especial porque o acordo se aplica a uma fase específica da

17 MONTEIRO, Pedro Henrique; ARAUJO, Guilherme Silva. Justiça Penal Consensual: o “novo” acordo de não persecução penal conforme a lei 13.964/2019. In: OLIVEIRA, Pedro Miranda de (coord.). Advocacia

Criminal: temas atuais. São Paulo: Tirant lo Blanch, 2022. p. 211-220. p. 216.

18 STF. Agravo Regimental no Habeas Corpus nº 191.464-SC. Agravante: Mario Cesar Sandri. Agravado: Presidente do Superior Tribunal de Justiça. Relator: Ministro Roberto Barroso. Brasília, 11 de novembro de 2020. Disponível em: https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=754484857. Acesso em: 14 jun. 2022. p. 1.

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A retroatividade do acordo de não persecução penal

persecução penal e, quando superada, deve ser prestigiada a marcha progressiva do processo.

Com efeito, a retroatividade diz sobre a aplicação dos efeitos da nova lei nos crimes cometidos anteriormente e a da lei penal é diferente da lei processual penal. Segundo Bitencourt19, há o princípio da irretroatividade da lei penal, que garante a liberdade na sociedade e a segurança jurídica. Porém, isso só se aplica no caso da lei mais severa, sendo possível a retroatividade da lei penal mais benigna ao réu.

Já no caso da lei processual penal, de acordo com Aury Lopes Jr.20, se aplica o princípio da imediatidade, ou seja, a mudança será aplicada a partir daquele momento, sem efeito retroativo.

As normas mistas, que são aquelas que possuem características do direito penal e do direito processual, possuem a mesma regra da irretroatividade da lei penal, mas com a possibilidade de retroagir se for mais benéfico ao réu, como previsto no artigo 5º, XL da Constituição Federal.

Isto é, embora se enquadre as normas mistas, por tratar de preceitos materiais, quanto à aplicabilidade do acordo de não persecução penal, o tratamento é análogo àquele dispensado às leis materiais, de modo a continuar aplicável aos fatos que ocorreram durante a sua vigência caso seja mais benéfica, assim como se revestirá de retroatividade nas hipóteses de uma novatio legis in mellius21 .

Em outros termos, Faraco Neto e Lopes22 dizem que o princípio da retroatividade da lei penal benéfica deve ser aplicado ao acordo de não persecução penal, pois muito embora ele esteja disposto na legislação processual, trata expressamente de preceitos materiais, configurando norma mista, logo deve incidir nos processos em andamento iniciados anteriormente à vigência do art. 28-A do Código de Processo Penal.

Por sua vez, Carvalho23 também acredita que pelo caráter misto da norma, visto que a consequência do acordo é a extinção da punibilidade, a lei deve retroa-

19 BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal – parte geral. 28. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2022. v. 1. p. 64.

20 LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal. 18. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2021. p. 45.

21 SOUZA NETTO, José Laurindo de; LEAL, Jenyfer Michele Pinheiro; GARCEL, Adriane. Limites à retroatividade do acordo de não persecução penal no pacote anticrime. In: CAMBI, Eduardo; SILVA, Danni Sales; MARINELA, Fernanda (org.). Pacote Anticrime. Curitiba: Escola Superior do MPPR, 2021. v. 1, p. 170186. p. 179.

22 FARACO NETO, Pedro; LOPES, Vinicius Basso. Acordo de Não Persecução Penal – A Retroatividade da Lei Penal Mista e a Possibilidade dos Acordos Após a Instrução Processual. Boletim IBCCRIM, São Paulo, a. 28, n. 331, p. 22-25, jun. 2020. p. 24.

23 CARVALHO, Sandro Carvalho Lobato de. Questões Práticas Sobre o Acordo de Não Persecução Penal. São Luís: Procuradoria Geral de Justiça, 2021. p. 54.

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gir para os casos ocorridos antes da sua vigência. No mesmo sentido, Calabrich24 afirma que o acordo de não persecução penal tem aplicação retroativa e pode beneficiar investigados ou acusados por atos anteriores à Lei Anticrime.

Lopes Jr. e Josita25 concordam com a retroatividade da lei para beneficiar o agente nesse caso e ainda dizem que se deve aplicar em todos os processos em curso, ainda não sentenciados até a entrada em vigor da lei. Soares e Aquino26 também concluem pela possibilidade da aplicação do acordo de não persecução penal aos casos já em andamento com a entrada em vigor, mas optam pela exclusão dos processos com trânsito em julgado, pois este momento processual não se coaduna com as finalidades do acordo.

Em sentido contrário, Fischer27 concorda com o entendimento sedimentado pelo STF, por achar que seria contrariar a expressa norma legal, mas diz que apesar de achar equivocada a aplicação da retroatividade, se aplicada deverá abranger todos os processos penais, inclusive os transitados em julgados, pois não há “meia retroatividade penal” mais benéfica.

Já Alves e Rocha28 sustentam que o acordo de não persecução penal deve ser tratado como a norma de direito material e processual que é, não sendo viável aplicar só a o princípio da retroatividade da lei penal mais benéfica em todos os casos, mas somente aos crimes cometidos antes da vigência da Lei n° 13.964/19 que não tenha havido o recebimento da denúncia.

Superado o aspecto da natureza jurídica da benesse, o que influência diretamente em sua aplicação e retroatividade, a relevância da matéria é consubstanciada a partir da divergência entre o posicionamento adotado pelo Supremo Tribunal Federal e Superior Tribunal de Justiça e o entendimento doutrinário acerca da possibilidade de celebração do acordo de não persecução penal após o recebimento da denúncia.

24 CALABRICH, Bruno. Acordos de Não Persecução Penal: oportunidade, retroatividade e preclusão. In: WALMSLEY, Andréa; CIRENO, Lígia; BARBOZA, Márcia Noll (coords. e orgs.) Inovações da Lei n° 13.964, de 24 de dezembro de 2019. Brasília: MPF, 2020. p. 348-364. p. 355

25 LOPES JR., Aury; JOSITA, Higyna. Questões polêmicas do acordo de não persecução penal. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2020-mar-06/limite-penal-questoes-polemicas-acordo-nao-persecucao-penal. Acesso em: 15 jun. 2022.

26 SOARES, Fernanda da Silva; AQUINO, Mariane de Matos. Os Limites de Aplicação do Acordo de Não Persecução Penal. In: CAMBI, Eduardo; SILVA, Danni Sales; MARINELA, Fernanda (org.). Pacote Anticrime Curitiba: Escola Superior do MPPR, 2021. v. 2, p. 239-256. p. 253.

27 FISCHER, Douglas. Não cabe acordo de não persecução em ações penais em curso. Disponível em: https:// meusitejuridico.editorajuspodivm.com.br/2020/07/11/nao-cabe-acordo-de-nao-persecucao-em-acoespenais-em-curso/. Acesso em: 15 jun. 2022.

28 ALVES, Luana Azerêdo; ROCHA, Huggo Gomes. Acordo de Não Persecução Penal: fronteiras da retroatividade de norma híbrida. Revista Eletrônica do Ministério Público do Estado do Piauí, a. 01, ed. 01, p. 134-148, jan./jun. 2021. p. 143 e 144.

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A retroatividade do acordo de não persecução penal

Neste sentido, as referidas Cortes Superiores se unificaram no sentido de que o instituto somente seria aplicável até o recebimento da denúncia, sob a ótica de que naquele momento já haveria a superação da fase pré-processual e, por consequência, o início da persecução penal, motivo pelo qual inexistiria razão para incidência do instituto despenalizador, cujo escopo é justamente poupar o agente do delito e o aparelho estatal da instauração do processo crime.29

O Grupo Nacional de Coordenadores de Centro de Apoio Criminal (GNCCRIM), do Conselho Nacional de Procuradores Gerais dos Ministérios Públicos dos Estados e da União (CNPG)30 restringe a aplicação do acordo de não persecução penal somente aos crimes cometidos antes da vigência da Lei n° 13.964/19, caso a denúncia não tenha sido recebida seguindo o entendimento atual do STF, como exposto no enunciado de número 20.

Conforme entendimento parecido ao uniformizado pelas Cortes Superiores, Fuller31, apesar de concordar com a retroatividade do acordo de não persecução penal, se opõe ao alcance dos processos que já tenham sentença condenatória, pois o acordo tem a função de substituir a persecução penal por uma solução de consenso, ou seja, impediria a discussão a respeito da culpabilidade do sujeito. Desse modo, não teria mais cabimento a aplicação da pena consensual por meio da negociação do acordo se a satisfação do direito de punir do Estado foi alcançada por meio de decisão penal condenatória.

Em contrapartida, a doutrina majoritária se divide em distintas concepções a respeito, inclusive entre a possibilidade de retroatividade até nos casos de sentença transitada em julgado ou sendo o trânsito em julgado o verdadeiro marco temporal. Acerca da segunda corrente, De Bem e Martinelli32 justificam a possibilidade de retroatividade após o trânsito em julgado da sentença sob o fundamento de que a condenação gera outros efeitos além da primária imposição da pena criminal, como a reincidência e, a partir dela, inúmeras outras restrições de benefícios. Ou seja, a finalidade do acordo de não persecução penal, neste caso, teria o fito de resguardar a primariedade do agente.

29 SOARES, Rafael Junior; BORRI, Luiz Antonio. Desafios na aplicação dos acordos de não persecução penal e cível nos processos. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2022-mar-26/soares-borri-acordos-naopersecucao-penal#_ftn4. Acesso em: 01.jun.2022.

30 CONSELHO NACIONAL PROCURADORES-GERAIS DOS MINISTÉRIOS PÚBLICOS DOS ESTADOS E DA UNIÃO. Grupo Nacional de Coordenadores de Centro de Apoio Criminal - GNCCRIM. Enunciados interpretativos da Lei nº 13.964/2019 - Lei Anticrime. Brasília, DF, 2020. Disponível em: https://criminal. mppr.mp.br/arquivos/File/GNCCRIM_-_ANALISE_LEI_ANTICRIME_JANEIRO_2020.pdf. Acesso em: 14 jun. 2022.

31 FULLER, Paulo Henrique Aranda. Alterações ao Código de Processo Penal. In: JUNQUEIRA, Gustavo [et al.]. Lei Anticrime Comentada – artigo por artigo. 2. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2021. p. 164-476. p. 341.

32 DE BEM, Leonardo Schmitt; MARTINELLI, João Paulo. O limite temporal da retroatividade do acordo de não persecução penal. Disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/o-limite-temporalda-retroatividade-do-acordo-de-nao-persecucao-penal-24022020. Acesso em: 14 jun. 2021.

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Do mesmo modo, Menezes33 acredita que não só deve ocorrer a retroatividade do acordo, como deve haver a provocação do Juiz das Execuções pelas partes para o requerimento da aplicação dessa norma mais favorável no caso das condenações já transitadas em julgado e que aguardam o cumprimento da pena fixada, argumento que encontra supedâneo legal convergente com o artigo 2º, parágrafo único, do Código Penal.

Por outro lado, embora concorde com a possibilidade da retroatividade após o recebimento da denúncia, Moraes34 acredita que a barreira intransponível é o trânsito em julgado da sentença penal condenatória, haja vista o encerramento da persecução penal e início da execução da pena, de modo a haver uma incompatibilidade entre as situações de condenado com o trânsito em julgado e de proposta de acordo de não persecução penal.

Na mesma linha de raciocínio é o entendimento perfilhado pelo ex-ministro Nefi Cordeiro, da 6ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, o qual expressou a possibilidade de aplicação do acordo de não persecução penal em ações penais em curso até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória, porquanto “o cumprimento integral do acordo de não persecução penal gera a extinção da punibilidade (art. 28-A, §13º, do CPP), de modo que como a norma jurídica mista e mais benéfica ao réu, deve retroagir em seu benefício em processos não transitados em julgado (art. 5º, XL, da CF)”35

Neste mesmo sentido, em recente entrevista concedida a Revista Consultor Jurídico, o Ministro Sebastião Reis, do Superior Tribunal de Justiça, transpareceu a errônea interpretação da Corte Cidadã e da Corte Suprema no que tange à fixação do recebimento da denúncia como marco temporal para a propositura do acordo de não persecução penal, bem como evidenciou a falta de consenso sobre o tema no próprio órgão do Ministério Público:

Se vamos caminhar para o acordo de não persecução penal, ótimo, já demos o primeiro passo: a previsão legal, determinadas limitações. Agora, é preciso ver como caminhar com isso para evoluir em um segundo momento. Nos acordos de persecução penal, na minha opinião, a falha foi da própria interpretação

33 MENEZES, Daniel Feitosa de. Acordo de Não Persecução Penal e o Efeito Retroativo da Lei Penal Mais Benéfica. Boletim IBCCRIM, São Paulo, a. 30, n. 350, p. 11-13, jan. 2022. p. 13.

34 MORAES, Carlos Otaviano Brenner de. ANPP e retroatividade às ações penais em curso. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/depeso/354930/anpp-e-retroatividade-as-acoes-penais-em-curso. Acesso em: 14 jun. 2021.

35 “1. É reconsiderada a decisão inicial porque o cumprimento integral do acordo de não persecução penal gera a extinção da punibilidade (artigo 28-A, § 13, do CPP), de modo que como norma de natureza jurídica mista e mais benéfica ao réu, deve retroagir em seu benefício em processos não transitados em julgado (artigo 5º, XL, da CF). 2. Agravo regimental provido, determinando a baixa dos autos ao juízo de origem para que suspenda a ação penal e intime o Ministério Público acerca de eventual interesse na propositura de acordo de não persecução penal, nos termos do artigo 28-A do CPP (introduzido pelo Pacote Anticrime — Lei nº 13.964/2019). (AgRg no HC 575.395/RN, Rel. Min. Nefi Cordeiro, Sexta Turma, j. 08/09/2020)”.

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