

uma genealogia da ideias autoritárias no processo penal brasileiro
2ª Edição
Copyright© Tirant lo Blanch Brasil
Editor Responsável: Aline Gostinski
Assistente Editorial: Izabela Eid
Capa e diagramação: Jéssica Razia
Imagem da capa: The Lamp of the Devil, de Francisco Goya
eduArdo Ferrer mAc-GreGor Poisot
Presidente da Corte Interamericana de Direitos Humanos. Investigador do Instituto de Investigações
Jurídicas da UNAM - México
JuArez tAvAres
Catedrático de Direito Penal da Universidade do Estado do Rio de Janeiro - Brasil
luis lóPez GuerrA
Ex Magistrado do Tribunal Europeu de Direitos Humanos. Catedrático de Direito Constitucional da Universidade Carlos III de Madrid - Espanha
owen m. Fiss
Catedrático Emérito de Teoria de Direito da Universidade de Yale - EUA
tomás s. vives Antón
Catedrático de Direito Penal da Universidade de Valência - Espanha
G48a
Gloeckner, Ricardo Jacobsen
Autoritarismo e processo penal [recurso eletrônico] : uma genealogia das ideias autoritárias no processo penal brasileiro, volume 1 / Ricardo Jacobsen Gloeckner. - 2.
ed. - São Paulo [SP] : Tirant Lo Blanch, 2023.
recurso digital ; 2 MB
Formato: epdf
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Modo de acesso: world wide web
Inclui bibliografia e índice
ISBN 978-85-9477-187-2 (recurso eletrônico)
18-51089
CDU: 343.2(81)
Meri Gleice Rodrigues de Souza - Bibliotecária CRB-7/6439
DOI: 10.53071/boo-2023-07-28-64c3cf77674f9
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Impresso no Brasil / Printed in Brazil
1. Direito penal - Brasil. 2. Processo penal - Brasil. 3. Livros eletrônicos. I. Título. Prof. Dr. Ricardo Jacobsen Gloeckneruma genealogia da ideias autoritárias no processo penal brasileiro
2ª Edição
Dedico este livro à Joseane, Que por intermédio de uma espiral da mais cândida transcendentalidade fosse possível expressar, Sem os sortilégios infecundos de uma pletora de clichês, Através de uma linguagem que fosse mais pregnante de sentido que a própria ancestralidade, Que se não esgotasse em motivos que mimetizam, mas não conseguem criar...
Aquilo que para mim é ar...ar que se respira, que se vive e que se pereniza
Ar que se articula no infinitivo do verbo amar... Como o infinito do desejo, qual bruma a morrer em cada vez que beija a areia, Que só o amor e que no amor aprisiona, Um tanto de mim, a melhor parte.
O presente texto é originário do primeiro encontro do grupo de Extensão “Curso Interdisciplinar de Processo Penal”, realizado na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul durante o ano de 2015. Este primeiro encontro, datado de 17 de abril de 2015, foi degravado e posteriormente expandido. A expansão do texto também se deu em virtude de um curso, ministrado junto à Universidade de São Paulo, chamado Autoritarismo e Processo Penal, no ano de 2017, dividindo a fala com o grande professor Dr. Geraldo Prado, a convite do meu grande amigo Maurício Dieter, por quem tenho a mais sincera admiração.
Portanto, o texto pretendeu, na medida do possível, manter a forma oral, tanto quanto necessário, com algumas reformas, no intuito de melhor exprimir uma ideia, aclará-la ou ainda, aprofundar determinadas questões. Igualmente, procurou-se utilizar uma linguagem mais simplificada, até mesmo pelo fato de que em tais encontros do grupo havia a presença de acadêmicos da graduação do curso de direito da PUCRS e de outras instituições, muitos ainda se familiarizando com o direito e especialmente, com os limites desta pesquisa. Desta maneira, para evitar um discurso hermético e esotérico, preferi tentar “didaticamente” explorar determinadas categorias, em muitas oportunidades renunciando à verticalização de temas contíguos ou aqueles que de alguma maneira, poderiam não fazer muito sentido imediato aos acadêmicos.
Os encontros, que abordaram diversos temas fundamentais do processo penal, dentre eles este que o leitor tem em mãos, chamado “Autoritarismo Processual Penal”, se sucederam a partir de meus grupos de pesquisa “Ressignificações do Autoritarismo Processual Penal” e “Pensamento Político e Criminológico”. Desta maneira, inevitável o caráter interdisciplinar dos estudos, mormente pela confluência, além do processo penal, da criminologia, filosofia e ciência política. Tal abordagem pode ser estranha àquele que espera uma leitura essencialmente processual do fenômeno.
Esta pesquisa segue, igualmente, outras tantas que vêm ocorrendo no Brasil, a despeito do tema “autoritarismo”. Com efeito, pesquisadores – dos quais sou profundamente devedor - como Geraldo Prado, Rubens Casara, Diogo Malan, Juarez Tavares, Fauzi Hassan Choukr, Jacinto Coutinho, Aury Lopes Jr, Rui Cunha Martins, Nereu Giacomolli, Maurício Dieter, Augusto Jobim do Amaral e outros tantos que não caberiam nesta apresentação, promoveram, através de inúmeros diálogos, o “start” necessário que configurou esta interface entre pensamento político (fundamentalmente de onde deriva a categoria “autoritarismo”)
e o campo processual penal, que possui relações profundas com a ciência política (e que não deve se esgotar apenas no tratamento doutrinário do tema “sistemas processuais”).
O curso originariamente foi idealizado como uma espécie de série de “relatórios de pesquisa”, isto é, a divulgação de resultados que servissem como canal de difusão da produção oriunda dos grupos de pesquisa por mim coordenados na PUCRS. Sem dúvidas, neste ciclo, beneficiei-me de algumas inúmeras observações, críticas e perguntas que me foram endereçadas e que me permitiram refletir melhor e mais profundamente sobre a temática, de forma a aperfeiçoar o campo sobre o qual havia circunscrito meus objetos de pesquisa.
Outrossim, não seria possível avançar sem também revelar os meus agradecimentos ao grupo de jovens acadêmicos que participou do curso (dos graduandos aos doutorandos e demais pesquisadores). Em especial, ao Dimytrius Thiago Peixoto Fagundes, Daniela Chies Portal e a Thais Oliveira, que generosa e corajosamente, levaram a cabo a tediosa tarefa de degravar os áudios dos encontros.
Agradeço também fortemente aos amigos e professores Yuri Felix, Felipe Lazzari, Roberto Freire e Renzo Orlandi que me auxiliaram com o material bibliográfico, além é claro, do serviço da biblioteca da PUCRS, que foi muito eficiente no rastreamento de todo o material histórico. Agradeço ainda à Tyrant lo Blanch/Empório do Direito, por viabilizar a publicação, cujos agradecimentos faço nas pessoas da Aline e da Fernanda e a PUCRS por garantir a realização do trabalho, oferecendo as condições necessárias de tempo e codições materiais para que a empreitada fosse levada a cabo. Por fim, agradeço à minha família e aos amigos Marco Antonio Scapini e Jeferson Dutra.
Certamente ficam de fora muitas pessoas a quem eu deveria nominalmente agradecer. Agradeço de maneira muito viva aos acadêmicos da PUCRS pelas interlocuções.
Este livro procura, como objetivo geral, cruzar, de maneira transversal, aquilo que se poderia denominar como “autoritarismo processual penal” no Brasil, colocando em exame a categoria “instrumentalidade” do processo. Com efeito, mais do que um exame exaustivo do assunto, procuraremos demonstrar a penetração das expressões autoritárias no ideário da categoria instrumentalidade. Como o curso, a leitura é endereçada, fundamentalmente, àqueles que se iniciam na pesquisa. Evidentemente, espero, também, colaborar, oferecendo pistas, aos pesquisadores que, na área processual penal, ainda não desistiram de um processo penal democrático.
Este prefácio está sendo escrito em tempos de crise da noção de democracia conforme consagrada no período posterior à Segunda Guerra Mundial.
O primado exclusivo do governo da maioria provou ser um instrumento manejável em uma sociedade de massas, dispositivo dotado de potência capaz de submeter as pessoas a condições de vida indigna. O governo da maioria é necessário à consolidação da democracia, mas não é o que basta para que ela, democracia, se realize plenamente.
O controle do exercício do poder, mesmo do poder em tese legitimado pelo voto da maioria, revela-se imprescindível em contextos nos quais a capacidade de conformar o futuro alheio implica na possibilidade de ampliar formas de dominação que, no extremo, pervertem o conceito de Direito, manipulam a ideia de justo e disseminam a convicção de que a eliminação do Outro está justificada em determinadas circunstâncias, que por evidente são sempre aquelas circunstâncias definidas pelos que exercem o poder.
O ponto de equilíbrio entre representação popular, exercício direto do poder e prática de controles antimajoritários orientados à tutela da dignidade de todas as pessoas e à preservação da vida no planeta está concretamente afetado pela tempestade autoritária que parece varrer o globo.
O Brasil não está imune à poderosa ventania do arbítrio. A brisa autoritária em realidade nunca esteve ausente. Ao contrário, como as correntes de ar de nosso litoral norte, que permanentemente não dão tréguas às terras que por ironia serviram de inspiração ao clássico «Iracema», do conservador José de Alencar, as práticas autoritárias jamais desapareceram do cenário do nosso cotidiano.
O que se experimenta na atualidade, no entanto, é o ressurgimento viril – a violência das práticas do arbítrio renascido é «machista» - preconceituoso – o cárcere e a morte violenta são o destino preferencial de pretas e pretos, conotando o inescondível «racismo» da nossa realidade – e classista das ações e da mentalidade autoritárias.
Não surpreende que em uma trágica reprodução dos discursos moralistas de Francisco Campos, proferidos nos anos 30 do século passado, com respaldo em um consenso autoritário que tornou possível o Estado Novo, a ditadura Vargas, a perseguição, prisão, tortura e morte por motivos políticos, sejam ouvidas conclamações de importantes autoridades em desfavor da liberdade.
As dolorosas páginas de um extraordinário trabalho de arqueologia do saber jurídico-penal brasileiro e de rastreio da genealogia do poder inscrito em nossa vida republicana não podem iniciar sem que, no seu preâmbulo, o prefaciador chame atenção para as semelhanças discursivas entre passado e presente e os riscos à democracia que tais semelhanças implicitamente carregam.
Aos magistrados recentemente fez-se convocação para «combater a corrupção e os privilégios de uma minoria muito bem protegida... os corruptos... pessoas que são libertadas a granel de maneira que desprestigia os juízes de primeiro grau que enfrentam essa cultura de desigualdade que sempre protegeu os mais ricos.»1
Aqui não se trata somente de fustigar a liberdade – como princípio, como regra e como ideal. Colocado o discurso em seu contexto e analisadas as decisões em matéria criminal proferidas no âmbito dos tribunais superiores do Brasil, hoje é visível a tendência a não aplicar as garantias que a Constituição da República de 1988 consagrou em nosso presumido retorno ao seio das comunidades de tradição democrática.
A degeneração autoritária revelou-se paulatinamente pelo prestígio à figura do juiz inquisidor, representado de modo quase teatral por magistrado que, rebelando-se contra as vigentes regras do direito processual penal, tomou para si a tarefa de investigar, processar e punir «os corruptos», categoria esgarçada na qual cabem e descabem pessoas a critério exclusivo de quem exerce o poder.
O princípio da separação dos poderes, caro à República, aos poucos foi convertido em desejo utópico de idealistas inconformados com os «desafios» que a contemporânea criminalidade de Estado e de Mercado supostamente impunha aos juízes, em uma nova ordem messiânica, política, jurídica e econômica, encarregando-se os neomissionários da Justiça – alguns magistrados e membros do Ministério Público - de corrigir as «falhas naturais» que identificam em uma legislação «hipergarantista», legislação essa que nada mais seria que a própria Constituição.
Na mesma toada e com igual intensidade, princípios e regras constitucionais de limitação do poder punitivo foram despejados das práticas penais, recuperando-se, em alguns casos literalmente, as normas jurídicas do período mais autoritário de nossa história republicana.
A prisão automática do acusado que responde a processo perante o tribunal do júri, abolida formalmente em 2011, mas pelo menos desde 2008 considerada
incompatível com a Constituição pós-ditadura, foi restabelecida para o condenado em moldes quase idênticos aos da época do Estado Novo e do Decreto-lei nº 167, de 1938.
O episódio da repristinação da prisão automática do condenado pelo Tribunal do Júri é um exemplo das estratégias de argumentação que na obra prefaciada identificam-se com métodos de ressignificação por meio da «eufemização de certas categorias e usos no direito processual».
A soberania dos jurados que a Constituição alberga no inciso XXXVIII do artigo 5º é um direito individual do imputado que se caracteriza por colocar o titular em uma posição jurídica favorável em face do exercício do poder punitivo. Sua história no Brasil remonta à reação liberal posterior às estratégias políticas autoritárias que levaram à modificação instituída no júri em 1842, pela Lei nº 261. Naquela oportunidade o objetivo era assegurar o controle político dos julgamentos dos rebeldes da insurgência denominada «Balaiada» pelo poder central (1838-1841 – Maranhão).
Na ocasião o júri, como dispositivo de punição, harmonizou-se com os amplos poderes que o governo central havia concedido a Luís Alves de Lima e Silva, em 1840/1841, para conter os liberais Bem-te-vi e os escravos que se aliaram contra os desmandos conservadores dos Cabanos, desmandos que em alguma medida recebiam o incentivo do governo central.
A recuperação do júri como garantia individual e sua significação histórica neste preciso sentido são obra da Constituição de 1988. No entanto, neste campo a tradição autoritária, como se vê, deita raízes no século XIX, escora-se no silêncio da Constituição do Estado Novo (1937), para ser amenizada somente em 1973, ironicamente em benefício de um conhecido torturador.
Na opinião do prefaciador, a operação recentemente levada a cabo pelo Supremo Tribunal Federal (STF),2 de conversão do júri de dispositivo de tutela da liberdade do acusado em mecanismo de instrumentalização do poder de punir, em desfavor do titular da garantia, ilustra o acerto das teses sistematizadas no presente livro, pois que a mencionada operação é paradigmática do performativo jogo de linguagem associado à pretensa neutralidade da técnica jurídica.
O método técnico-jurídico em voga em meados do século passado na Itália, via pela qual chegou ao Brasil, como elucida o autor de «Autoritarismo e Processo Penal: uma genealogia das ideias autoritárias no processo penal brasileiro», esbarra, porém, nas disposições constitucionais, que não apenas conferem
status normativo aos princípios como reorientam os critérios de interpretação e aplicação das normas jurídicas em nosso ordenamento, conferindo à liberdade a preponderância que as democracias modernas reconhecem, em oposição aos valores coletivistas que inspiraram os autoritarismos do século vinte.
À «segurança jurídica», no contexto dessa nova tradição democrática inspirada nas condições político-jurídicas do processo Constituinte de 1987-1988, importa o elemento material. O que, afinal, se «assegura» é no mínimo tão relevante quanto a própria condição de asseguramento.
Ao tratar do tema à luz das premissas clássicas, em obra de referência, Humberto Ávila colocou em destaque a perspectiva tradicional da «segurança jurídica». São suas palavras:
“De outro lado, porém, pode-se defender que a segurança jurídica exige a elevada capacidade do cidadão de compreender os sentidos possíveis de um texto normativo, a partir de núcleos de significação a serem reconstruídos por meio de processos argumentativos intersubjetivamente controláveis. É nesse sentido que se fala em determinabilidade e certeza (relativa) do Direito. É igualmente nessa acepção que parte da doutrina qualifica a segurança jurídica como algo a ser progressivamente atingido. O mesmo Kelsen, em estudo posterior, não mais utiliza o termo ‘ilusão’, porém emprega o termo ‘ficção’ para descrever um ideal que pode ser ‘aproximadamente realizável’ (annährungsweise realisierbar). É também nesse sentido que a doutrina, notadamente tributária, refere-se ao princípio da legalidade ‘estrita’ ou tipicidade material ‘aberta’.3
“A CF/88 é insistente na proteção da liberdade não só no seu conjunto, como já analisado, como nas suas partes. Já no “Preâmbulo” ela institui um Estado Democrático de Direito, destinado a garantir a liberdade. E no capítulo dos direitos e das garantias individuais inicia garantindo aos cidadãos a inviolabilidade do direito à liberdade para, em seguida, instituir uma série de direitos mais específicos (liberdade de manifestação do pensamento, de consciência e de crença, da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, de associação para fins lícitos) e de garantias destinadas à efetivação da liberdade (recebimento de informação dos órgãos públicos, impetração de mandado de segurança ou de habeas corpus).”4
A hermenêutica autoritária, no entanto, volta às costas às perspectivas teóricas que se desenvolveram no círculo da dogmática do nosso processo penal de 1988 em diante.
Reinstaura-se a dimensão pragmática no nível que colonizou o processo penal brasileiro em seu período mais rudimentar, que remonta ao século XIX. A instauração dessa dimensão pragmática, todavia, tem notas que absorvem experiências autoritárias de diversas épocas, incorporando a ideologia da «instrumentalidade do processo» e as vertentes neoliberais que, no plano da circulação das
Ao examinar o conceito de «segurança jurídica» pelo prisma material mais uma vez é Humberto Ávila quem discorre acerca da preponderância da proteção da liberdade.3 ÁVILA, Humberto. Teoria da Segurança Jurídica. 3ª ed. São Paulo: Malheiros, 2014. p. 137. 4 ÁVILA, Humberto. Teoria da Segurança Jurídica. 3ª ed. São Paulo: Malheiros, 2014. p. 233.
ideias processuais penais, em contexto de globalização jurídica, confere aura de «moderno» ao que objetivamente é atrasado.
O autor de «Autoritarismo e Processo Penal: uma genealogia das ideias autoritárias no processo penal brasileiro» lança luz acerca das condições de constituição de um «saber praxista, divorciado da experiência acadêmica, intuitivamente repetindo a fórmula dicotômica law in books e law in action».
Sem dúvida que pelo ângulo funcional o «praxismo processual penal» é expoente de uma «determinada governamentalidade criminal» que o autor do livro, a nosso juízo de maneira adequada, no caso brasileiro filia à perspectiva ideológica de Francisco Campos.
Seu reaparecimento em cena, conforme o prefaciador, inscreve-se no mesmo registro autoritário. À diferença – parcial – dos tempos do Estado Novo, a ruptura entre dogmática do processo penal sob a inspiração da Constituição de 1988 e o law in action atual, que corre dos tribunais superiores para a base da magistratura e do Ministério Público, mas também segue na direção oposta, de Curitiba para Brasília, está ancorada na chamada «circulação simbólica de modelos».
Ao apresentar a obra de Elisabetta Grande sobre imitação de modelos, Luís Fernando Sgarbossa cuida de chamar atenção para o que, na nossa opinião, exprime uma das mais dolorosas estratégias de governo criminal em curso, que é a manipulação conceitual e semântica de ferramentas teóricas que fazem parte do repertório de outras culturas jurídicas e que, a pretexto da globalização e com o objetivo de punir estamentos historicamente imunizados contra a persecução criminal, faz circular a «idealização» de regras, institutos e teorias jurídicas estrangeiros e não as próprias regras, institutos e teorias. Convém mencionar a passagem da apresentação ao «Imitação e Direito»:
“Conforme a Professora Elisabetta Grande demonstrará neste livro [Imitação e direito: hipóteses sobre a circulação dos modelos], a circulação de regras, institutos ou teorias jurídicas em cada um destes âmbitos de uma cultura jurídica está sujeita a dinâmicas próprias e é impulsionada por fatores específicos, podendo um sistema ser importador e exportador, simultaneamente, em diferentes âmbitos de sua cultura jurídica e em diferentes áreas do direito. E, talvez o aspecto mais interessante abordado nesta obra, pode a circulação dar-se apenas simbolicamente - circulação simbólica, hipótese na qual o que circula não são as regras propriamente ditas, mas sua idealização, como se verá.”5
O êxito contemporâneo da empreitada hermenêutica autoritária ao menos até o presente momento revela-se em intercâmbios semânticos e idealizações flagrantemente equivocadas, como o tomar-se a «eficácia preclusiva» como equi-5 SGARBOSSA, Luís Fernando. Nota prévia do tradutor. In: GRANDE, Elisabetta. Imitação e direito: hipóteses sobre a circulação dos modelos. Tradução de Luíz Fernando Sgarbossa. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2009. p. 14.
valente ao conceito de «trânsito em julgado», no contexto da presunção de inocência, ou aplicar as noções de «inferência da melhor explicação» em detrimento do exigente standard de prova que o direito constitucional brasileiro impõe no âmbito do processo penal, em virtude da adoção entre nós do princípio da culpabilidade jurídica, e ainda o de expandir os poderes do Ministério Público à margem e em oposição às exigências do princípio da legalidade processual penal, como se verifica na hipótese das interceptações telefônicas.6
Parte desse sucesso é creditável à legitimação de «um discurso neoliberal, que acaba por emprestar forma às práticas autoritárias conduzidas pelo sistema de justiça criminal», recorrendo-se igualmente por empréstimo à expressão empregada pelo autor de «Autoritarismo e Processo Penal: uma genealogia das ideias autoritárias no processo penal brasileiro».
A obra prefaciada, a par de outros expressivos méritos, identificará na ideia de «instrumentalidade do processo» um dos marcos de legitimação do pensamento autoritário no Brasil.
Também neste campo as simetrias entre passado e presente são visíveis. Mas é ao passado que o prefaciador recorre para apontar para a necessidade de situar as pessoas em seus círculos políticos, conforme as ideias que professam e praticam na arena pública.
Assim, por exemplo, não se pode ignorar que o período de maior virulência da ditadura empresarial-militar de 1964 foi o tempo da produção das teorias de base do autoritarismo contemporâneo brasileiro nos campos político, econômico, social e também jurídico.
A tese de doutorado em sociologia de Sebastião André Alves de Lima Filho, sobre «O que a Escola Superior de Guerra (ESG) Ensinava», dirige os olhos ao «diálogo autoritário» entre estes diferentes campos, interlocução que buscou aportar elementos teóricos ao autoritarismo da ocasião, o justificando à luz das circunstâncias e moralidades da época. A presença de juristas na turma de 1975 é indicativa de uma pista muito relevante na esfera do corpus conceitual do processo (p. 269).
Pessoas, organizações e instituições são elementos imprescindíveis quando se trata de conhecer o sistema de justiça criminal, suas bases e as tendências em disputa em determinado momento.
Alberto Binder chama atenção para o fato de o processo penal ser um «saber prático», que não pode ignorar a realidade das organizações e instituições que compõem o denominado «Sistema Penal» de arbitramento de responsabilidade.7
Existem Poder Judiciário, Ministério Público, Ordem dos Advogados, Defensoria Pública e Polícia. São organizações com história, cultura e características próprias. Há também governos, o Poder Legislativo e personalidades cuja atuação igualmente opera no âmbito da adjudicação de responsabilidade penal no seio da instituição Justiça Criminal.
Os procedimentos adotados em conjunto ou separadamente obedecem ao padrão de interpretação vigente em cada uma das organizações acerca do desenho institucional que corresponde às funções que lhes são atribuídas, de forma expressa ou tácita.
Tomando as coisas por este ângulo, entende-se a afirmação de Ellen Immergut, em «As regras do jogo»,8 de que «a mudança é um problema essencial para a análise institucional». A Constituição de 1988 propôs uma mudança em termos de organização e funcionamento do sistema de justiça criminal e quanto aos critérios de orientação que haveriam de vigorar dali em diante.
Este processo de mudança não somente foi interrompido, como o que se experimenta na atualidade é a sua reversão.
É inegável que dinâmicas institucionais e cadeias de decisão política extremamente complexas tenham peso no processo decisório, algo que não é apropriável, analiticamente, pelo exame isolado da atuação e do propósito dos atores envolvidos.
Salienta Immergut que «instituições devem ter uma espécie de capacidade de permanência». As instituições que se desenvolveram no Brasil à sombra da mentalidade autoritária exercitam agora sua extraordinária capacidade de permanência nestes termos, deixando à vista de todos o quanto estavam impermeáveis ao projeto de democratização simbolizado pela Constituição.
Quando se cogita de um setor significativo do Estado e da sociedade, como é o caso da Justiça Criminal, independentemente da inclinação inquisitória do modelo vigente e de sua recriminação por toda uma geração de juristas com formação e profissão de fé no Estado de Direito, as forças de resistência à mudança estão presentes e atuam em todos os âmbitos.
Isso leva a acreditar que, se mudanças institucionais «ocorrem durante períodos de tempo mais longos», como adverte Wolfgang Streeck,9 fato é que a tendência no sentido das transformações confronta-se com «causas contrariantes que as desaceleram».
Vivemos tempos de aparente hegemonia das «causas contrariantes» em benefício da prevalência da mentalidade autoritária.
Ainda que não fosse pela excelência da obra em si, sendo «Autoritarismo e Processo Penal: uma genealogia das ideias autoritárias no processo penal brasileiro» o resultado de uma rica, profunda e cuidadosa pesquisa das matrizes do processo penal brasileiro, a verdade é que o conhecimento das «causas contrariantes» à redução do grau de autoritarismo de nosso sistema de justiça criminal já estaria a justificar a leitura deste precioso livro.
Claro que a história nos orienta quanto às decisões presentes e nos permite conhecer os dilemas enfrentados por nossos antepassados e as motivações das soluções adotadas.
Mas não são apenas estes «guias de leitura» a recomendar vivamente o mergulho nesta complexa investigação de história das ideias e da cultura jurídico-penal brasileiras.
Existe um quê de encontro/reencontro com o que temos de melhor e de pior nas relações intersubjetivas.
«Autoritarismo e Processo Penal: uma genealogia das ideias autoritárias no processo penal brasileiro» percorre os desvãos de nossa alma inquisitória, revelando passo a passo as estratégias pelas quais o autoritarismo de nossas práticas penais escamoteou sua real natureza.
O concurso de esforços de intelectuais do direito e de fora do direito para, ora sonegando, ora expondo claramente o viés autoritário de nossas práticas penais, constituir as organizações e institutos jurídicos em conformidade com a mentalidade autoritária está à vista de quem quiser ler.
A nossa inteira responsabilidade aqui, não importa quanto de fato nos apropriamos das estratégias igualmente autoritárias desenvolvidas em Portugal no século XIX e na Itália no século XX, é tributária de decisões políticas orientadas ao exercício da dominação.
Mentalidade autoritária, linguagem autoritária, expropriação e, além disso, apropriação de institutos autoritários de outras culturas foram objeto de rigorosa
análise conceitual, precedida de competente e sincera pesquisa em fontes pouco manejadas pelos juristas brasileiros.
O que temos de melhor nas relações intersubjetivas aparece na obra pelo ângulo da qualidade da análise a revelar a grandiosidade teórica deste jurista que é Ricardo Jacobsen Gloeckner.
Desde o cuidado metodológico quanto ao exame conceitual dos «autoritarismos», em suas diversas vertentes e em sua inevitável confrontação com a perspectiva dicotômica «autoritarismo e totalitarismo», à decisão de não sonegar ao leitor os múltiplos marcos teóricos que viabilizam a aproximação ao tema, passando pela coragem de desnudar as contradições presentes nos discursos dos juristas e políticos, especialmente os brasileiros, o livro faz muito mais que suprir uma lacuna real em nossa bibliografia processual penal.
Lendo privilegiadamente «Autoritarismo e Processo Penal: uma genealogia das ideias autoritárias no processo penal brasileiro» não tive como deixar de lembrar do título do romance biográfico de um querido escritor mineiro. A obra de Ricardo Gloeckner desponta como nosso «Encontro Marcado», dos juristas práticos e teóricos brasileiros, com a densidade autoritária que o processo penal expõe mesmo em tempos de democracia, praticamente a cobrar dia a dia a coerência e sinceridade das opções pessoais de apreço ou desapreço à democracia.
Neste teste de coerência e sinceridade relativamente à adesão aos princípios democráticos, a realidade é que, recorrendo às categorias expostas com especial brilho pelo autor, hoje muitos juristas estão definitivamente reprovados.
Vitoriosos circunstanciais no exercício do poder, pois que podem ditar as decisões e sentenças, dificilmente serão aprovados no teste da história.
Ponto comum ao pensamento autoritário é a crença na «unidade do povo», uma visão limitada e irreal de «comunidade». A ideia de igualdade neste caso apela apenas retoricamente ao enfrentamento à desigualdade, mas na prática ela confronta mesmo é a diferença e ignora de propósito o caráter seletivo e estigmatizante do Sistema Penal.
Não se trata de reduzir a desigualdade até porque a pena criminal não é redutora de desigualdades. Trata-se de dominação pura e simples, exercida a partir das velhas conhecidas noções de catastrofismo, cientificismo, antiliberalismo e nacionalismo político, muito bem tratadas no livro, articuladas entre si sob a guarda da confortável posição elitista.
O ódio à democracia manifesta-se pela censura pública à liberdade e aos defensores da liberdade.
"Autoritarismo e Processo Penal: uma genealogia das ideias autoritárias no processo penal brasileiro" era para ser – e é – uma obra prima da história
das ideias e cultura jurídico-penais brasileiras e por essa razão seu autor está de parabéns.
O livro, porém, diz muito sobre o nosso presente. Que o tomemos como lição, porque se há algo que a história nos ensinou é que o futuro está sempre em aberto.
Congratulo-me com o leitor pela oportunidade de ler um dos melhores livros de processo penal de nossa literatura jurídica.
Em 01 de junho de 2018.
GerAldo PrAdo Professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro