

DISPOSITIVOS DA NORMATIVIDADE

Copyright© Tirant lo Blanch Brasil
Editor Responsável: Aline Gostinski
Assistente Editorial: Izabela Eid
Diagramação e Capa: Jéssica Razia
CONSELHO EDITORIAL CIENTÍFICO:
Eduardo FErrEr Mac-GrEGor Poisot
Presidente da Corte Interamericana de Direitos Humanos. Investigador do Instituto de Investigações Jurídicas da UNAM - México JuarEz tavarEs
Catedrático de Direito Penal da Universidade do Estado do Rio de Janeiro - Brasil
Luis LóPEz GuErra
Ex Magistrado do Tribunal Europeu de Direitos Humanos. Catedrático de Direito Constitucional da Universidade Carlos III de Madrid - Espanha
owEn M. Fiss
Catedrático Emérito de Teoria de Direito da Universidade de Yale - EUA
toMás s. vivEs antón
Catedrático de Direito Penal da Universidade de Valência - Espanha
CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO

SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ
T824d
Tucci, Antonio
Dispositivos da normatividade [recurso eletrônico] / Antonio Tucci ; tradução e revisão técnica José Luís Ferraro, Augusto Jobim do Amaral - 1 ed - São Paulo : Tirante Lo Blanch, 2023. recurso digital ; 1 MB
Tradução de: Dispositivi della normatività
Formato: ebook
Modo de acesso: world wide web
ISBN 978-65-5908-584-2 (recurso eletrônico)
1 Política - Filosofia 2 Direito - Filosofia 3 Direito - Aspectos políticos 4 Biopolítica. 5. Livros eletrônicos. I. Ferraro, José Luís. II. Amaral, Augusto Jobim do. III. Título
CDD: 320 01
23-84489
CDU: 321 01
Meri Gleice Rodrigues de Souza - Bibliotecária - CRB-7/6439
DOI: 10.53071/boo-2023-06-28-649c963acc726
14/06/2023 20/06/2023

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Antonio Tucci
DISPOSITIVOS DA NORMATIVIDADE

Tradução e Revisão Técnica
Augusto Jobim do Amaral José Luís Ferraro
antonio tucci
Antonio Tucci é Professor de Filosofia Política no Departamento de Ciências Jurídicas da Università di Salerno, onde também ensina Filosofia do Direito. É membro do colegiado do doutoramento em Ciências Jurídicas (Università di Salerno). Participa do conselho editorial da revista “Soft Power” e da “Revista euro-americana de teoría y historia de la política y del derecho” (Universidad Católica de Bogotá - Università di Salerno, Penguin). É membro do comitê científico de Revistas e Séries italianas e internacionais. Seus interesses de investigação estão centrados em: Técnicas de governo; Normatividade e normalização; Subjetivação política; Espacialidade política; Democracia e agency; Dispositivos de inclusão e exclusão.
auGusto JobiM do aMaraL
Augusto Jobim do Amaral é Doutor em Altos Estudos Contemporâneos (Ciência Política, História das Ideias e Estudos Internacionais Comparativos) pela Universidade de Coimbra (Portugal); Doutor, Mestre e Especialista em Ciências Criminais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Realizou estudos de Pós-Doutorado em “Teoria e Filosofia do Direito” na Universidad de Málaga (UMA/Espanha) e na Università Degli Studi di Padova/Itália, em Filosofia Política. É Professor do Programa de Pós-Graduação em Ciências Criminais da Escola de Direito e do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Escola de Humanidades, ambos da PUCRS. Professor visitante (Bolsa CAPES PrInt) na Universidad de Sevilla/ ESP. Desenvolve investigações na área da Criminologia, Direito, Filosofia Política e História das Ideias – com ênfase em temas como ética, tecnopolítica, cultura penal, violência punitiva, direitos humanos, controle social, segurança pública direito penal e processo penal. Autor e organizador de, entre outras obras, de “Algoritarismos” (Tirant lo Blanch, 2022), “Política de la Criminología” (Tirant lo Blanch, 2021) e “A Cidade como Máquina Biopolítica” (Tirant lo Blanch, 2022).
José
Luís FErraro
José Luís Ferraro é Doutor em Educação e professor da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Atua como pesquisador no Programa de Pós-Graduação em Educação da Escola de Humanidades e no Programa de Pós-Graduação em Educação em Ciências e Matemática da Escola Politécnica da PUCRS – onde orienta alunos de Mestrado e Doutorado. Coordenou projetos junto à Newcastle University (Reino Unido); foi professor visitante na University of Oxford (Reino Unido) e na Universidade de Coimbra (Portugal), além de desenvolver pesquisas junto a University of Southern Queensland (Austrália). Seus temas de pesquisa circunscrevem-se aos campos da governamentalidade, da biopolítica, dos processos de subjetivação e da epistemologia. Atualmente realiza um segundo doutoramento no Programa de Pós-Graduação em Ciências Criminais da Escola de Direito da PUCRS.
introdução
Duas séries televisivas, The Wire1 e Here and Now2, que contam histórias e contextos de vida absolutamente diferentes, podem ser úteis para introduzir o tema deste livro. The Wire, uma série de detetives que foi ao ar há alguns anos, trata de acontecimentos públicos e privados de um grupo de agentes pertencentes a uma unidade policial de Baltimore, cidade conhecida por seu alto índice de criminalidade. Os agentes – que se assemelham a tudo menos aos heróis a que o modelo estrangeiro nos habituou – enfrentam, ao longo dos anos, operações policiais ligadas ora ao narcotráfico ora à corrupção política, ou mesmo ao mundo da Educação.
Nesse contexto, especificamente, a figura do Major Colvin assume particular importância para nós. Poucos meses após a aposentadoria, frente à situação incontrolável e da violência crescente, ele decide, sem o conhecimento das autoridades municipais, eliminar o tráfico de drogas em um bairro dilapidado e, praticamente, desabitado – com apenas alguns idosos relutantes, remanescentes em suas casas mesmo que em ruínas. O objetivo do major é libertar as ruas da cidade do perigo, encaminhando os desviantes, aqueles que infringem a norma, para um ambiente fechado, disciplinado e constantemente controlado.
O desvio, e consequentemente a ordem, são administrados por meio de um dispositivo de deslocamento, de separação entre áreas nas quais se aplicam diferentes e inconciliáveis tipos de normatividade.
As boas intenções do major, que de fato têm efeitos imediatos em termos de redução da violência, passam a ser duramente condenadas pelas autoridades, em que pese em termos de imagem, sejam notadamente reconhecidas pela nova situação instaurada de ordem aparente.
1 N.T.: Série policial norte-americana – chamada de “A Escuta” no Brasil – foi veiculada entre 2002 e 2008 pela HBO e criada pelo escritor e ex-repórter policial David Simon.
2 N.T.: Série dramática norte-americana estreada em 2018 na HBO com apenas uma temporada.
Mais tarde, encontramos o major aposentado. Ele, que nunca negou a bondade de seu projeto, torna-se consultor de um liceu em um programa que visa à recuperação e à integração de alunos em condições socioeconômicas e étnico-culturais de risco: o contexto e a abordagem mudam, mas, essencialmente, o método não muda. Mesmo na escola, a “ordem” é mantida, marcando separações, diferenciações e deslocamentos.
Vamos agora para a outra cena, da série Here and Now: ambientada em Portland, uma cidade norte-americana de classe média que apresenta situações aparentemente menos conflituosas.
Os protagonistas são um casal de intelectuais, democratas e progressistas, que realizaram seu próprio projeto multicultural: tiveram quatro filhos; três dos quais foram adotados na Libéria, Vietnã e Colômbia. Já adultos, foram educados segundo o modelo da esquerda radical americana: abertura ao outro a partir de relações marcadas pela empatia e tolerância, segundo um modelo regulatório amplamente difundido.
Um modelo regulatório que vincula as mesmas pessoas que o praticam, mas que, ao mesmo tempo, não as mantêm absolutamente passivas, sendo reelaborado segundo métodos próprios e particulares. Acredito que as reações de todos à norma devam ser interpretadas neste sentido: a esquizofrenia do jovem adotado na Colômbia; o desconforto e a desorientação induzidos pela vivência da própria corporeidade por parte da filha que vem da Libéria – percebida em evidente dissonância com seu real status social branco; a obsessiva disciplina do corpo e a recusa da felicidade do filho vietnamita, muitas vezes confundido, entre outras coisas, com um chinês. Estes acontecimentos são ladeados por outras experiências de reelaboração da identidade impostas e emblematicamente sintetizadas por um jovem muçulmano de gênero fluido.
Em última análise, além da excessiva maldade do roteiro, o que interessa é o retrato efetivo de um tipo de normatividade (o multiculturalismo bem-humorado) que, embora imposta — tomada e adotada pelos próprios destinatários — não funciona pelo simples fato de ser imposta, mas, antes, assenta-se em sua constante reelaboração por parte dos indi-
víduos: assim, a norma resultante não corresponde à verdade que a produz, mas sim à sua interação com práticas eficazes implementadas pelos próprios destinatários; ambos sujeitos “à” e “da” norma.
Das duas cenas apenas esboçadas, podem-se extrair exemplos e ideias para evidenciar diferentes modalidades de funcionamento dos mecanismos de inclusão e exclusão.
Ao nos concentrarmos nessas modalidades, que na teoria política e jurídica sofreram e passam por um contínuo repensar e ajustes, em nossa trajetória, tentaremos ler as transfigurações e mudanças a que a ideia de norma foi submetida, e evidenciar a função que, de tempos em tempos, é a ela atribuída.
No primeiro capítulo, partindo da distinção entre diferentes conotações de poder em Foucault, será feita uma reflexão sobre o longo processo que levou a norma de uma dimensão de transcendência a estágios progressivos de imanência.
A diferente percepção sobre o poder e seus dispositivos serão, de fato, assumidos como critério de leitura – ainda, seguindo o discurso foucaultiano – para a caracterização da norma em termos de normatividade (típica dos sistemas jurídicos soberanos), da normação (presente nos sistemas disciplinares) e da normalização (referente aos sistemas securitários e biopolítico-governamentais). Trata-se de investigar o progressivo descolamento entre o direito e o monopólio em relação ao jurídico, para situá-la nas mais díspares esferas que concernem à vida em suas manifestações plurais. Um desengajamento que se concretiza, como veremos, na subtração do poder e seus dispositivos de heteronomia da obrigação jurídica — uma vez rebaixada — em direção às relações de poder que, por sua vez, apresentam diferentes níveis de autoformação, inscrevendo-se em processos conjuntos de sujeição e subjetividade. O ponto fixo, de fato, será a estreita relação do poder com os sujeitos que ele mesmo, de vez em quando, é capaz de “formar”; seja pela repressão, pelo disciplinamento, pelo controle ou pelo governo.
No entanto, um esclarecimento preliminar será imprescindível para essa jornada: soberania, disciplina e segurança não se colocam, seja historicamente ou na leitura da dinâmica
atual do poder, como mutuamente excludentes, mas aparecem e se mostram como opostas, sobrepostas e compatíveis, dando assim, origem a estruturas complexas e ambivalentes de poder e realidade.
Este pressuposto será fundamental para a compreensão das novas dinâmicas de governo que são transversais no que diz respeito à esfera de exercício da soberania do Estado, sem ceder a leituras que decretam o seu fim inexorável ou menos ainda o seu papel central, em um cenário atravessado por poderes que redesenham a espacialidade político-jurídica, produzindo novas semânticas para categorias políticas tradicionais.
Abordaremos isso no segundo capítulo, com particular atenção à forte reafirmação das fronteiras e contemporaneamente às suas desagregações: trata-se apenas de uma aparente ambivalência, porque as fronteiras não coincidem mais com imagens de muros e exclusão, mas se coloca no discurso político como espaço de usabilidade, como lugar que implica em uma complexa reorganização disciplinar e governamental, a partir da qual se definem novos e inéditos processos de subjetivação, em nome da proteção contra riscos e de uma governamentalidade baseada em dispositivos de segurança. As mesmas modalidades serão detectadas nessa metamorfose de soberania que Aiwha Ong definiu como “graduada”: um entrelaçamento entre repressão, disciplina e governo, realizado segundo técnicas precisas de zoneamento e atravessamentos espaciais.
Estamos, portanto, diante de técnicas e estratégias que cruzam diferentes paradigmas e diferentes modos de governamento. O efeito imediato é que os conceitos de inclusão e exclusão construídos na ordem territorial do Estado e das categorias a ele relacionadas – cidadania, direitos, fronteiras – não se deixam arregimentar pela dicotomia dentro/fora; interno/externo.
Por isso, no terceiro capítulo, abordaremos o paradigma da inclusão/exclusão para mostrar como, diante da complexidade da contemporaneidade, poderosos dispositivos de exclusão e formas de inclusão seletivas e diferenciais se sobrepõem.
Por fim, na conclusão, nosso caminho se abrirá para uma questão: é possível imaginar um lugar para o agenciamento político no espaço urbano hodierno? Admitindo-se que é precisamente na cidade contemporânea, fortificada e ao mesmo tempo lugar de infinitos atravessamentos, que assistimos de forma ambivalente a formas de exclusão, também violentas, e a projetos de inclusão. Portanto, serão recuperadas aquelas interpretações da política evidenciadas em práticas efetivas de liberdade, pois a normatividade do projeto político, que funda subjetividades totalmente pré-definidas em relação à política, corre o risco de se traduzir em uma normatividade vinda de cima, enquanto, por outro lado, assistimos à afirmação de novas práticas de autogoverno, que nas formas mais díspares de mediação, negociação, mas também de resistência e antagonismo, reivindicam direitos, bens e espaços para a política.
tEcnoLoGias dE PodEr: disPositivos disciPLinarEs E dE sEGurança
1.1. norMaLização
Gostaria de lhes referir um trecho que pode ser encontrado na segunda edição do livro de Georges Canguilhem Le normal e le pathologique. Neste texto, que trata da questão da norma e da normalização, há algumas ideias que me parecem histórica e metodologicamente fecundas.
Por um lado, a referência a um processo geral de normalização social, política e técnica, que vemos desenvolver-se no século XVIII, e que produz os seus efeitos nos âmbitos da educação, com as escolas normais; da medicina com a organização hospitalar; da produção industrial e, sem dúvida, também no militar. [...] No mesmo texto a que me refiro, você também encontra a importante ideia, em minha opinião, de que a norma não se define em termos de uma lei natural, mas de acordo com o papel disciplinar, coercitivo, capaz de ser exercido nas áreas as quais se dirigem. Consequentemente, a norma é a portadora de uma rede de poder. A norma não é um princípio de inteligibilidade, é um elemento a partir do qual se funda e se legitima um determinado exercício de poder. Conceito polêmico – diz Canguilhem. Talvez, poderia dizer-se político. Em todo o caso, a norma traz consigo, ao mesmo tempo, um princípio de designação e um princípio de correção. Ela não tem a função de excluir, de rejeitar. Pelo contrário, está sempre ligada a uma técnica positiva de intervenção e transformação, a uma espécie de “projeto normativo”3.
3 M. FOUCAULT, Gli anormali. Corso al Collège de France (1974-75) (1999), Feltrinelli, Milano, 2000, pp. 52-53 [Os Anormais. Curso no Collège de France (1974-1975). Tradução Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2001]. G. CANGUILHEM, Il normale e il patologico (1966), Einaudi, Torino, 1998 [O normal e o patológico. Tradução de Mana Theresa Barrocas. Revisão técnica Manoel Barros da Motta. Tradução do Posfácio de Pierre Macherey e da apresentação de Louis Althusser. Luiz Otávio F. Barreto Leite. 6 ed.. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2009].
Da mesma forma escreve Foucault em um texto crucial para quem quer fazer uma reflexão sobre o repensar da norma: o objetivo é relativizar, de alguma forma, toda a carga imperativa e o fundamento de transcendência. Trata-se de subtrair a norma da esfera da Natureza (e do Direito) para recolocá-la em uma esfera “política” — como diz Foucault —e mais precisamente no interior de “formações sócio-históricas”. Em primeiro lugar, convém sublinhar oportunamente que, tanto Foucault quanto Canguilhem, estão “unidos pela convicção de que as normas enquanto tais não existem; não representam qualquer medida já dada, mas se materializam apenas na medida em que uniformizam, tornando-se reais apenas no processo pelo qual se afirmam, ao contornar ou regular os obstáculos aos quais se opõem. Não existe “a” norma, poderíamos assim dizer, mas apenas a força da norma: é o vivente que possui uma normatividade intrínseca e são as tecnologias de poder que as produzem, garantindo o seu exercício”4, como efetivamente vem enfatizado na introdução à edição italiana do texto de Macherey sobre Foucault e Canguilhem.
É precisamente Macherey quem sublinha, como veremos melhor nas páginas seguintes, o processo de imanentização da norma que, a nosso ver, parece ser um critério útil para uma leitura particularmente eficaz do cenário contemporâneo.
No curso de 1977-1978 no Collége de France, intitulado Segurança, território, população, Foucault enuncia uma crítica direta, particularmente incisiva, embora feita de forma seca, à ideia de normatividade – a referência explícita ao normativismo de Kelsen – em estreita conexão com a ideia de lei heterônoma, hierárquica, externa aos destinatários. A lei, de fato, no sentido de normatividade, prescreve um modelo, antecipa comportamentos, define-os e os marca no interior de rígidos esquemas de obrigação e cumprimento: “No fundo, a disciplina, e aliás os sistemas de legalidade, como é que precedem?” – pergunta Foucault –. “Pois bem, eles dividem todas
as coisas de acordo com um código que é o do permitido (permis) e do proibido (défendu). Depois, no interior desses dois campos – do permitido e do proibido –, vão especificar, determinar exatamente o que é proibido, o que é permitido, ou melhor, o que é obrigatório. E pode-se dizer que, no interior deste sistema geral, o sistema de legalidade, o sistema da lei tem essencialmente por função determinar sobretudo as coisas proibidas. No fundo, o que a lei diz, essencialmente, é que não fazer isso, não fazer tal coisa, não fazer também tal outra, etc.. De modo que o movimento de especificação e de determinação num sistema de legalidade incide sempre e de modo tanto mais preciso quando se trata do que deve ser impedido, do que deve ser proibido”5: a dependência das sociedades disciplinares ao código do direito confirma o caráter externo da norma, ainda que nelas a própria norma não esteja sempre e diretamente ligada à ideia de proibição, de coerção, mas de regulação, que distingue o normal do anormal, o incluído do excluído.
É nesse sentido que Foucault sugere distinguir entre normação e normalização: as disciplinas normatizam, os dispositivos de segurança normalizam. Nestes últimos, há uma completa inversão da ideia de norma. A norma não está mais ligada a um fundamento de transcendência, como nos dispositivos disciplinares; não é exterioridade, transcendência (heteronomia), mas encontra seu próprio constituinte no tecido autorregulador do social, em uma dialética de subjetivação e sujeição que caracteriza os dispositivos estruturantes da subjetividade: estamos diante de um repensar radical da norma, através da abertura a uma lógica imanentista e, não obstante, normativa. A vida produz normas em seu contínuo adaptar-se e produzir-se sob diferentes formas. A normalização, portanto, manifesta-se por uma lógica centrífuga, uma lógica do lais-
5 M. FOUCAULT, Sicurezza, territorio, popolazione. Corso al Collège de France (1977-1978) (2004), Feltrinelli, Milano, 2005, p. 46 [Segurança, Território, População. Curso dado no Collège de France (1977-1978). Edição estabelecida por Michel Senellart sob a direção de François Ewald e Alessandro Fontana. Tradução Eduardo Brandão. Revisão da tradução Claudia Berliner. São Paulo: Martins Fontes, 2008, p. 60]. “Mas um poder que tem a tarefa de se encarregar da vida terá a necessidade de mecanismos contínuos, reguladores e corretivos. [...] Não quero dizer que a lei se apague ou que as instituições de justiça tendam a desaparecer; mas que a lei funciona cada vez mais como norma, e que a instituição judiciária se integra cada vez mais num contínuo de aparelhos (médicos, administrativos etc.) cujas funções são sobretudo reguladoras.”, M. FOUCAULT, La volontá di sapere (1976), Feltrinelli, Milano, 1988, pp. 127-128 [História da sexualidade 1: a vontade de saber. São Paulo: Graal, 1988, p. 135].
sez-faire: na governamentalidade neoliberal, como veremos, os espaços de ação se expandem e se integram em diferentes níveis e segundo trajetórias plurais, mas ainda dentro de uma estrutura de gestão e governança, menos direta, menos explícita, mas mais abrangente, eficaz, global. A normalização produz sujeitos livres e autorresponsáveis, mas ainda envolvidos em suas tramas menos rígidas, em uma dialética incessante entre a introjeção da norma e sua contínua reelaboração.
Em última análise, podemos dizer que nos dispositivos soberanos a norma exclui, nos dispositivos disciplinares rejeita, mas nos dispositivos de segurança biopolíticos da governamentalidade ela transforma.
A norma põe-se, portanto, como elemento de referência essencial para uma análise relativa às questões da normalização, do disciplinamento, do processo de legitimação do poder e, sobretudo, relativa às dinâmicas de funcionamento voltadas à produção da realidade. Em nossa opinião, parece evidente no discurso foucaultiano que nas práticas sociais de normalização, normalidade e normatividade se sobrepõem e se cruzam sem qualquer solução. O momento descritivo da norma vem, portanto, a confundir-se com sua dimensão prescritiva, ou ainda: a produção normativa (no sentido de normatividade) define, determina o sentido de normalidade e de anormalidade, do lícito e do ilícito.
Da transcendência à imanência da norma, poderíamos dizer.
Como afirma Macherey com grande clareza, “Pensar a imanência da norma significa naturalmente renunciar sua ação de forma restritiva, como ´repressão´, como interdição que se exerce em antecipação a essa ação contra um sujeito dado, e que poderia, portanto, se libertar ou ser libertado de um certo controle: a história da loucura, como a das práticas penitenciárias e da sexualidade, mostram de forma suficiente como uma tal ´libertação´ longe de reprimir a ação das normas, pelo contrário, reforça-a. Ainda, pode-se, entretanto, perguntar se denunciar as ilusões deste discurso antirrepressivo é suficiente para realmente escapar dele: ao fazê-lo, não há risco de reproduzi-lo em outro nível, no qual aquelas ilusões não só são mais ingênuas, mas, mesmo que tenham se tornado
fundamentadas, são igualmente desproporcionais ao conteúdo que se pretende mirar?”6
A norma não se configura como exterior ao seu campo de aplicação, mas é ela que o produz — e produz a si mesmo ao produzi-lo —, “assim, o que faz da norma a norma é a sua própria ação”7. Trata-se de reconhecer, contra toda tentativa organicista e transcendente de recomposição, da sociedade e da política – crítica operada com grande eficácia por Canguilhem – uma normatividade intrínseca ao próprio viver. Macherey, retoma a definição pascaliana de force de la vie para ressaltar a separação entre as dimensões impositiva, transcendente e imanente da mesma norma: a norma não está na relação de separação entre emissor e receptor da mesma, pressupõe simultaneidade, coincidência, presença recíproca, portanto não antecede à realidade a qual ela mesmo se refere: “atua precisamente nos seus efeitos”8.
Esse processo da transcendência à imanência normalizadora não se subtrai – ao invés disso, assume um peso de grande relevância – da tensão, para Foucault, típica dos processos de subjetivação: o poder normalizador de fato procede através da seleção do que pode ser julgado, do que no processo de subjetivação deve ser submetido à “ortopedia social governamental”, isto é, ao tratamento das pessoas, constantemente monitoradas, disciplinadas, comandadas, protegidas. É sobre este objeto, variável, mas cada vez mais próximo dos seres vivos, que o poder pede veridição, um dizer a verdade: o sujeito deve encontrar em si a verdade, professada pelo poder e – com o trabalho que vai da confissão à emergência de um valor construtivo, corretivo, da pena – moldar as resistências relutantes à modalidade que o regime de verdade define como natural e dominante. “Quer se trate de procedimentos de instrução ou de considerandos de uma sentença, do emprego de testemunhas ou da perícia, das alegações finais ou de declarações de culpa, da interpretação da lei ou da observação de costumes ou de dados econômicos, a prática judiciária atribui
7 Ibidem, p. 88.
8 Ibidem, p. 86.
posição considerável ao dizer verdadeiro, e em formas notavelmente diversas”9.
O tema da verdade marca continuamente toda a produção foucaultiana e, tal como a norma da qual é suporte e produto, assume diferentes conotações tomando por base os dispositivos em que atua. Se nos dispositivos disciplinares o tema é analisado pelos modos como o poder produz a verdade e cria um sistema de veridição e constrangimentos mais ou menos evidentes sobre os sujeitos que devem aceitar essa verdade, nos dispositivos governamentais, Foucault aborda o estudo da verdade como um conjunto de obrigações às quais um sujeito se submete no momento em que introjeta essa mesma verdade e a replica em suas ações.
Há duas maneiras, portanto, de ler a verdade e a norma que dela derivam: desde o assujeitamento passivo a um regime de verdade produzido externamente, de um lado; e desde o assujeitamento ao discurso da verdade e subjetivação mediante formas de resistência, por outro.
Trata-se de um processo que modifica o poder governamental, uma vez que resistência e contraconduta são poderes: um poder gera outro poder. Portanto, não se pode imaginar o processo de transformação da função jurídica de repressiva à normalizadora, se ignorarmos a tensão interna que, em todo caso, se abre com os polos de resistência.
Diz-se em resumo que a norma – em todas as suas formas incluindo a lei – não está “enraizada na estrutura original da existência”, mas é a expressão de uma normatividade intrínseca à própria sociedade e a seus dispositivos, portanto o direito não “coincide com a esfera natural do homem e com a essência de sua sociabilidade, mas com as formas que o qualificam como uma identidade plural. O evento limite de uma extinção do direito não envolveria o homem, mas suas formas de subjetivação”10. Subjetivações que, como acabamos de ver,
9 M. FOUCAULT, Mal fare, dir vero. Funzione della confessione nella giustizia. Corso di Lovanio (1981), Einaudi, Torino, 2012, p. 13 [Malfazer, dizer verdadeiro. Tradução Ivone C. Benedetti. São Paulo: Martins Fontes, 2018, p. 12]. Sobre os regimes de jurisdição/veridição em Foucault, cfr. G. BRINDISI, Potere e giudizio. Giurisdizione e veridizione nella
10 P.
situam-se dentro e, ao mesmo tempo, fora do âmbito de ação da própria norma, o indivíduo, o sujeito, é produzido por ela, que por sua vez o modifica, elabora-o: o objetivo de Foucault consiste em “refundar a questão do sujeito” – um sujeito que não é dado definitivamente, “mas que se constitui dentro da própria história, a cada instante fundado e refundado pela história” para libertá-lo de qualquer referência às verdades transcendentais.
“Há dois ou três séculos, a filosofia ocidental postulava, explícita ou implicitamente, o sujeito como fundamento, como núcleo central de todo conhecimento, como aquilo em que e a partir de que a liberdade se revelava e a verdade podia explodir [...]. Atualmente, quando se faz história – história das ideias, do conhecimento ou simplesmente história – atemo-nos a este sujeito do conhecimento, a este sujeito da representação, como o ponto de origem a partir do qual o conhecimento é possível e a verdade aparece. Seria interessante tentar ver como se dá, através da história, a constituição de um sujeito que não é dado definitivamente, que não é aquilo a partir do que a verdade se dá na história, mas de um sujeito que se constitui no interior mesmo da história, e que é a cada instante fundado e refundado pela história. É em direção a essa crítica radical do sujeito humano pela história que devemos nos dirigir”11.
1.2. norMação E norMaLização: disciPLina E sEGurança
Como se pode depreender das páginas anteriores, ao lado e para além da racionalidade jurídica – baseada na soberania e no código binário proibido-permitido – existem diferentes técnicas de poder embasadas na disciplina e na segurança. Uma, como veremos, exerce-se sobre corpo-indivíduo, as outras no corpo-espécie ou população.
Uma digressão sobre essas tecnologias pode ser útil para compreender o processo de recondução da norma do âmbito da normatividade jurídica para o da normalização.
11 M. FOUCAULT, La verità e le forme giuridiche (1973), in Archivio Foucault, Feltrinelli, Milano, 1997, p. 155 [A verdade e as formas jurídicas. Tradução Roberto Machado e Eduardo Morais, supervisão final do texto Léa Porto Novaes et. al.. Rio de Janeiro: NAU, 2003, p. 10].
Mas prosseguiremos passo a passo.
A concepção de poder na qual Foucault coloca os dispositivos disciplinares biopolíticos e governamentais de poder responde, como o autor afirma em A vontade de saber, à racionalidade do governo que – no que diz respeito ao direito soberano de vida e morte, o direito de fazer morrer (causar a morte) e deixar viver (ius vitae ac necis), simbolizados pela espada12 – são assumidos dentro de uma perspectiva de poder como fazer viver (causar a vida) ou devolver à morte.
Um poder soberano, que se concretizava em um direito de apropriação das coisas, “culminava com o privilégio de se apoderar da vida para suprimi-la”13, enquanto a nova racionalidade remete a um poder que se exerce diretamente sobre a vida biológica das pessoas: “esse poder sobre a vida desenvolveu-se a partir do século XVII, em duas formas principais; que não são antitéticas e constituem, ao contrário, dois polos de desenvolvimento interligados por todo um feixe intermediário de relações. Um dos pólos, o primeiro a ser formado, ao que parece, centrou-se no corpo como máquina: seu adestramento [dressage], na ampliação de suas aptidões, na extorsão de suas forças, no crescimento paralelo de sua utilidade e docilidade, na sua integração em sistemas de controle eficazes e econômicos – tudo isso assegurado por procedimentos de poder que caracterizam as disciplinas: anátomo-política do corpo humano. O segundo, que se formou um pouco mais tarde, por volta da metade do século XVIII, centrou-se no corpo-espécie, no corpo transpassado pela mecânica dos ser vivo e como suporte dos processos biológicos: a proliferação, os nascimentos e a mortalidade, o nível de saúde, a duração da vida, longevidade, com todas as condições que podem fazê-los variar; tais processos são assumidos mediante toda uma série de intervenções e controles reguladores: uma biopolítica da população. As disciplinas do corpo e as regulações da população constituem os dois polos em torno dos quais se desenvolveu a organização do poder sobre a vida14. A instalação – durante a
12 M. FOUCAULT, La volontà di sapere (1976), Feltrinelli, Milano, 1988, p. 120.
13 Ibidem [p. 128]
14 Cf. S. LUCE, Fuori di sé. Poteri e soggettivazioni in Michel Foucault, Mimesis, Milano, 2009, pp. 105-118, onde, entre outras coisas, se evidencia como, na leitura foucaultiana, o corpo foi levado para a dinâmica política já na época dos suplícios, na era da tortura pública dos criminosos.
época clássica, desta grande tecnologia tem duas faces – anatômica e biológica, individualizante e especificante, voltada para os desempenhos do corpo e encarando os processos da vida – caracteriza um poder cuja função mais importante já não é mais matar, mas investir sobre a vida, de cima a baixo”15.
Um poder, portanto, que vem subtraído em relação à sua conexão com caráter repressivo da lei, à sua identificação exclusiva com a instituição e, mais ainda, em relação à unidade e à centralidade do poder soberano: um poder difuso, persuasivo, um poder microfísico16. Um poder onipresente, relacional e produtivo, que “vem de baixo”, certamente não atribuível aos critérios de dominação e, portanto, “não é algo que se adquira, arrebate ou compartilhe, algo que se guarde ou deixe escapar; o poder se exerce a partir de inúmeros pontos e em meio a relações desiguais e móveis”17. Relações de poder as quais, enfatiza Foucault, não são alheias às outras relações, mas imanentes a elas, “apesar de as relações de poder serem imanentes às instituições, o poder e as instituições não são idênticos. Não são, contudo, relações de mera associação, nem tampouco posições de simples superestruturas”18. É justamente nesse sentido que o poder mostra seu caráter produtivo: produtivo de subjetivações e não simplesmente dirigido a sujeitos/assujeitados. De fato, afirma Foucault: “Temos que deixar de descrever sempre os efeitos de poder em termos negativos: ´exclui´, ´reprime´, ´recalca´, ´censura´, ´abstrai´, ´mascara´, ´esconde´. Na verdade, o poder produz; ele produz realidade; produz campos de objetos e rituais da verdade. O
15 Ibidem, p. 123 [História da sexualidade 1: a vontade de saber, p. 131]. “A disciplina tenta reger a multiplicidade dos homens na medida em que esta multiplicidade pode e deve redundar em corpos individuais que devem ser vigiados, treinados, utilizados, eventualmente punidos.”, M. FOUCAULT, Bisogna difendere la società (1977), Feltrinelli, Milano, 1988, p. 209 [Em Defesa da Sociedade: curso no Collège de France (1975-1976). Tradução Maria Ermantina Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 289]. Cf. L. BAZZICALUPO, Dispositivi e soggettivazioni, Mimesis, Milano, 2013, pp. 7-22.
16 M. FOUCAULT, Microfisica del potere, Einaudi, Torino, 1977 [Microfísica do Poder. Organização e tradução de Roberto Machado. Rio de Janeiro: Graal, 1979].
17 M. FOUCAULT, La volontà di sapere, cit., p. 83 [História da sexualidade 1: a vontade de saber, p. 89].
18 O trecho citado segue da seguinte maneira: “Por exemplo, a escola, não pode ser reduzida à função disciplinar. O conteúdo da geometria euclidiana não mudou devido à arquitetura da escola. Porém, muitos outros aspectos da vida escolar mudaram pela introdução da tecnologia disciplinar (horário rígido, separação dos alunos, vigilância da sexualidade, classificação, individualização etc.)”, H. L. DREYFUS, P. RABINOW, La ricerca di Michel Foucault. Analitica della verità e storia del presente (1982), Ponte alle Grazie, Firenze, p. 211 [Michel Foucault, uma trajetória filosófica: para além do estruturalismo e da hermenêutica. Tradução de Vera Porto Carrero. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995, p. 203-4].