

AutoritArismo Cool e eConomiA PolítiCA do ProCesso PenAl BrAsileiro
Copyright© Tirant lo Blanch Brasil
Editor Responsável: Aline Gostinski
Assistente Editorial: Izabela Eid
Capa e diagramação: Jéssica Razia
Imagem da capa: O Conjuro, de Francisco Goya
eduArdo Ferrer mAc-GreGor Poisot
Presidente da Corte Interamericana de Direitos Humanos. Investigador do Instituto de Investigações
Jurídicas da UNAM - México
JuArez tAvAres
Catedrático de Direito Penal da Universidade do Estado do Rio de Janeiro - Brasil
luis lóPez GuerrA
Ex Magistrado do Tribunal Europeu de Direitos Humanos. Catedrático de Direito Constitucional da Universidade Carlos III de Madrid - Espanha
owen m. Fiss
Catedrático Emérito de Teoria de Direito da Universidade de Yale - EUA
tomás s. vives Antón
Catedrático de Direito Penal da Universidade de Valência - Espanha
CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO
SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ
G48a v 2
Gloeckner, Ricardo Jacobsen
Autoritarismo e processo penal II [recurso eletrônico] : autoritarismo cool e economia política do processo penal brasileiro / Ricardo Jacobsen Gloeckner - 1 edSão Paulo : Tirant Lo Blanch, 2023. recurso digital ; 1 MB
Formato: ebook
Modo de acesso: world wide web
ISBN 978-65-5908-527-9 (recurso eletrônico)
1 Direito penal - Brasil 2 Processo penal - Brasil 3 Autoritarismo - Brasil 4 Livros eletrônicos I Título
23-82763
CDU: 343 2(81)
Meri Gleice Rodrigues de Souza - Bibliotecária - CRB-7/6439
DOI: 10.53071/boo-2023-07-28-64c4524f77416
01/03/2023 06/03/2023
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AutoritArismo Cool e eConomiA PolítiCA do ProCesso PenAl BrAsileiro
Congresso Internacional do Medo Provisoriamente não cantaremos o amor, que se refugiou mais abaixo dos subterrâneos. Cantaremos o medo, que esteriliza os abraços, não cantaremos o ódio porque esse não existe, existe apenas o medo, nosso pai e nosso companheiro, o medo grande dos sertões, dos mares, dos desertos, o medo dos soldados, o medo das mães, o medo das igrejas, cantaremos o medo dos ditadores, o medo dos democratas, cantaremos o medo da morte e o medo de depois da morte, depois morreremos de medo e sobre nossos túmulos nascerão flores amarelas e medrosas.
(Carlos Drummond de Andrade)Não são poucas as pessoas a quem devo agradecer. Cada uma a seu modo contribuiu decisivamente para esta versão final. Uma crítica, um ponto de vista, diálogos, indicações de referências, enfim. É muito provável que eu esqueça vários nomes. Mesmo assim desejo agradecer nominalmente à Joseane, pela paciência, carinho e amor. Ao Jeferson e Marco Antônio pela amizade inabalável. Ao Edgar, companheiro de preocupações democráticas. Guto e Fernanda, para além da academia, a amizade. Gostaria de agradecer também a todos os colegas do Programa de Pós-Graduação em Ciências Criminais da PUCRS, acadêmicos e acadêmicas que contribuíram, cada qual a seu modo, no estímulo à esta pesquisa. Nominalmente, gostaria de também agradecer à Jadia Larissa Timm dos Santos pela valiosa revisão dos originais; ao Felipe Lazzari pelo fraterno diálogo em torno de uma tema comum; ao prof. Maurício Dieter pelo suporte para que eu pudesse acessar várias referências, ao Rafael Dezidério de Luca pela utilíssima contribuição com fotocópias de obras junto à biblioteca da USP. Ao Luiz Eduardo Cani e à Luiza Borges Terra pelo auxílio com uma importante e difícil referência. Agradeço ainda a PUCRS pelo suporte na confecção desta pesquisa bem como à Aline e à editora Tirant lo Blanch, pela confiança.
Entre os anos de 2019 e 2022 empreendi um estudo sobre as possíveis ressignificações do autoritarismo. Evidentemente, à primeira vista, tratava-se de uma análise contemporânea do pensamento autoritário no direito processual penal, processo este iniciado ainda em 2015, quando da elaboração do texto Autoritarismo e Processo Penal. Penso que as razões do autoritarismo “novo” ou como anuncia ZAFFARONI, “cool” deve ser examinado à luz da racionalidade neoliberal. Várias são as justificativas que poderia oferecer a fim de identificar que uma análise sem a necessária transdisciplinaridade sobre este assunto correria o risco de ser da mais absoluta infecundidade. A extensão que assumiu o texto obrigou-me a cindir a pesquisa em dois volumes. O primeiro deles, que recorta o tema do neoliberalismo, também editado pela Tirant lo Blanch se chama “Neoliberalismo, a Contrarrevolução Permanente: um Estado forte para uma economia livre”. O segundo volume, que o leitor tem em mãos, trata dos aspectos mais essenciais da penetração da racionalidade neoliberal no processo penal. É possível ao leitor compreender as questões aqui examinadas sem a leitura do texto prévio. No entanto, é inevitável que muitas opções metodológicas e conceituais fiquem sem o devido aprofundamento e esclarecimento neste estudo, justo porque penso tê-las feito anteriormente e com um nível de profundidade que não caberia, neste livro, reproduzir. A cisão, portanto, não impede a leitura. Mas acredito que torne este texto mais inteligível. Se vale a recomendação, sugiro que o leitor tenha lido primeiramente o livro Neoliberalismo, a Contrarrevolução Permanente.
Começo a escrever esta apresentação no dia seguinte ao “domingo antidemocrático”, o famigerado dia 08/ 01/ 2023, quando foram invadidos e destruídos os prédios do STF, do Palácio do Planalto e do Congresso Nacional, por militantes da direita radical alinhados ao ex-presidente Bolsonaro. Um lamentável espetáculo de radicalismo antidemocrático, autoritário e delirante. O volume II da obra ‘autoritarismo e processo penal’ mostra a atualidade, pertinência e relevância do debate trazido por Ricardo Jacobsen Gloeckner, já desde o primeiro volume. O processo penal brasileiro, historicamente autoritário, interage constantemente com essa complexa ambiência social (inclusive pela via do ‘bolsolavismo penal’, como denomina o autor). Na primeira parte da sua obra, Ricardo bem demonstrou a matriz autoritária de um CPP que nasce por decreto lei, com o congresso nacional fechado, e assumidamente inquisitório (ou seja, sinônimo de autoritário e antidemocrático, aqui), bem como o papel das reformas pontuais na manutenção – proposital, portanto – na manutenção desse complexo engenho. Nem mesmo a Constituição Federal de 1988 conseguiu romper com essa cultura, essa mentalidade autoritária. Nesse contexto é crucial, como explica o autor, o marcador do pensamento e da racionalidade neoliberal (entendido como uma espécie de “contrarrevolução permanente”). Também é interessante como Ricardo explica o ‘tecnicismo jurídíco’ do pensamento italiano do inicio do Século XX serviu, ainda que dissimulado como ‘neutro’, para a efetivação dos ideais fascistas. Partindo disso, o autor explica que nosso CPP não foi (propositadamente) uma simples cópia do código de Rocco, mas isso não o isenta de estar completamente contaminado pelo tecnicismo jurídico (no fundo, comprometido com o fascismo italiano) na elaboração e versão final do nosso CPP de 1941 (encabeçado por Francisco Campos, ministro da justiça de Getúlio Vargas e absolutamente avesso ao liberalismo jurídico (que não se confunde com o liberalismo econômico)).
Mas é claro que essa relação é de uma complexidade gigantesca, como gigantesco é o trabalho do Ricardo Gloeckner para demonstrá-la e denunciá-la, esparramando-se pelos diversos institutos do processo penal, mas também do direito penal que ele é chamado a efetivar, enquanto caminho necessário para se chegar a uma pena. Nesse denso diálogo – imprescindivelmente interdisciplinar, sob pena de grave redução da complexidade, o autor transita pelo pensamento economicista neoliberal e o uso – ou melhor, manipulação – do poder punitivo para pseudo combate a corrupção e a lavagem de dinheiro. Como define o autor, a transnacionalização (imposta por interesses alheios aos nacionais, por elementar) das campanhas anticorrupção, antilavagem de dinheiro, enfrentamento
ao terrorismo, fazem parte da lexicografia neoliberal, fruto da imposição de um modelo economicista. A lava jato, a campanha das ‘dez’ (que nunca foram dez, mas centenas) de medidas ‘anticorrupção’ (e “anticonstituição” (ataque frontal à Constituição), além de atingirem a todos os delitos previstos no CP, não apenas a corrupção) inserem-se nessa dinâmica de poder.
Na segunda parte da obra, o autor vai tratar do ‘autoritarismo cool’ (Zaffaroni) e o processo penal, desvelando uma série de falácias, como a ‘dupla via da proporcionalidade’ ou o absurdamente chamado de ‘garantismo integral’ (algo como um ‘direito penal do inimigo-mas-garantista’). Obviamente, essa fraude conceitual que se apropria indevidamente do ‘garantismo’, é combatida com veemência pelo autor.
E o livro segue tratando de questões fundamentais para o processo penal brasileiro, como a demonstração dos perigos do ‘plea bargaining’ que, se adotado, pode literalmente acabar com o processo penal brasileiro e gerar um super-encarceramento sem precedentes. A negociação no processo penal decorre de argumentos economicistas e eficientistas, encontrando no nosso sucateado e superado modelo, um terreno fértil para seduzir incautos (e outros nem tão ingênuos, mas que se valem dela para ampliar ainda mais o caráter autoritário e seletivo do processo penal).
E o autor segue trilhando os caminhos mais tortuosos (e perigosos para a democracia, portanto) do processo penal brasileiro, como o sistema de nulidades a la carte (e o amorfismo, teoria do prejuízo, relativizações, etc servem exclusivamente para comprimir a esfera de direitos e garantias individuais e esparramar o ‘poder líquido’, tudo isso já denunciado e profundamente tratado pelo autor na excepcional obra “Nulidades no Processo Penal’); o esvaziamento (abolição?) das provas ilícitas; a flexibilização da contaminação e as perigosas exceções à prova ilícita; o racionalismo e a verdade (que verdade é essa?) no processo penal, dialogando com a presunção de inocência; e finalizando no atual e importantíssimo terreno das reformas dos sistemas de justiça criminal latino-americanos.
Nesse último ponto, incursiona Ricardo por um terreno desconhecido por muitos autores e professores brasileiros: quem e qual ideologia está por trás das reformas realizadas na américa latina nos anos 90 e 2000? Existe um ovo da serpente ali, que pouca gente tem conhecimento e consciência, fazendo com que muitos sejam manipulados (e o pior, com as melhores intenções possíveis). Gente do bem, que acredita estar fazendo o bem, mas no fundo estão sendo manipulados. Leiam o livro do Ricardo e compreenderão o que estou falando...
Enfim, uma obra fundamental para todos aqueles comprometidos com a democracia e a efetivação da Constituição no processo penal brasileiro. Uma profunda anamnese de toda a genealogia autoritária do nosso processo penal e como
ela permanece hígida e presente nas práticas atuais. É uma pesquisa séria, com um esforço hercúleo por parte do autor e com uma densidade sem igual na sua musculatura teórica. Louvável ainda a paciência que Ricardo teve em ler autores e obras de péssima qualidade teórica, manipuladores conceituais, para demonstrar seus erros, distorções e inconsistências. A intenção foi, evidentemente, advertir leitores que não possuem um conhecimento jurídico sólido e denso, com baixo senso crítico muitas vezes (e o pensamento crítico, infelizmente, ainda é pouco estimulado por muitos professores na graduação) que muitas vezes são presas fáceis de doutrina de baixa qualidade. Consomem e seguem – em geral com as melhores intenções - repetindo e reproduzindo esse pensamento retrógrado, autoritário e não raras vezes, puras falácias a serviço do autoritarismo processual. Não sem razão, encontramos ainda hoje tanta resistência em romper com esse verdadeiro senso comum teórico estabelecido. A obra do Ricardo é fundamental nesta luta.
Finalizo dizendo que é um especial prazer apresentar – mais uma vez
uma grande obra do Prof. Dr. Ricardo Jacobsen Gloeckner, sem dúvida um dos maiores juristas brasileiros, e com quem tenho o privilégio de conviver há muito tempo.
Leiam este livro, vale a pena.
Aury loPes Jr Doutor em Direito Processual Penal pela Universidad Complutense de Madrid. Professor Titular de Direito Processual Penal da PUCRS. Professor no Programa de Pós-Graduação –Doutorado, Mestrado e Especialização – em Ciências Criminais da PUCRS. Membro da Associação Brasileira dos Advogados Criminalistas (ABRACRIM), do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM) e Membro Emérito do Instituto Baiano de Direito Processual Penal - IBADPP. Parecerista e conferencista. Advogado Criminalista integrante do Escritório Aury Lopes Junior Advogados Associados, com sede em Porto Alegre e Brasília.
Qualquer estudo que pretenda traçar diagnósticos sobre o processo penal e sobre o seu futuro possível não pode desprezar os contextos, circunstâncias e movimentos políticos, econômicos, culturais e sociais. As análises “tecnicistas” – tomando aqui em consideração aquelas emergentes no início do século XX e que encontraram na Itália e no Brasil campo fértil para seu desenvolvimento – jamais se despolitizaram como prometiam. A dogmática processual penal brasileira muito recentemente é que construiu um percurso crítico, ainda minoritário, que poderia oferecer uma leitura dissonante da dominante matriz acrítica, pretensamente apolítica e mantenedora de baixa densidade constitucional com a qual nossas práticas punitivas estão afeiçoadas.
Uma investigação sobre o processo penal brasileiro compreende - caso se queira reconhecer duas espécies distintas de racionalidade que o estruturam - dois momentos significativos. Antes de avançar sobre estas duas dimensões, convém um pequeno aparte a fim de que não se induza o leitor em erro. Não se está negando aqui a importância dos estudos sobre o processo penal brasileiro anteriores à edição do código de processo penal de 1941. Evidentemente, a reforma de 1841, fruto de uma “reação conservadora” e que acabou por alterar profundamente o quadro vigente do contexto jurídico processual de 1832 (um código com flagrantes feições acusatórias) não pode ser simplesmente expurgada do quadrante político. Da mesma maneira, os distintos códigos estaduais que foram sendo promulgados no Brasil, como consequência do federalismo de inspiração norte-americana consignado na Constituição de 1891 não são meras peças decorativas na formação do pensamento processual brasileiro. Desta opção política federalista sobrevieram os códigos de processo penal estaduais: do Rio Grande do Sul (Lei nº 24, de 15/ 8/ 1898), do Amazonas (Lei nº 334, de 14/ 2/ 1901); do Maranhão (Lei nº 507, de 22/ 3/ 1909), da Paraíba (Lei nº 336, de 21/ 10/ 1910), do Rio de Janeiro (Lei nº 1. 137, de 20 de dezembro de 1912), do Espirito Santo (Decreto nº 1. 891, de 26/ 9/ 1914), da Bahia (Lei nº 1. 119, de 21/ 8/ 1915); de Sergipe (Lei nº 753, de 7/ 9/ 1918) do Rio Grande do Norte (Lei nº 449, de 30/ 11/ 1918), do Piauí (Lei nº 962, de 4/ 7/ 1919), do Paraná (Lei nº 1. 916, de 23/ 2/ 1920) de Goiás, (Lei nº 659, de 5/ 6/ 1920), do Ceará (Lei nº 1950, de 24/ 12/ 1921), do Distrito Federal (Decreto nº 16. 751, de 31/ 12/ 1924. de Pernambuco (Lei nº 1. 750, de 1925), de Santa Catarina (Lei nº 1. 526, de 14/ 11/ 1925), de Minas Gerais (Decreto nº 7. 259, de 14/ 6/ 1926). Todos estes diplomas, em maior ou menor medida, se mantinham nas linhas do “código
de processo penal de 1841”, tendo em vista a extensão e profundidade das reformas que romperam a frágil “acusatoriedade” do diploma de 18321.
Se, por um lado, até este período a base do processo penal brasileiro se mantinha como uma forma de composição entre um código bifacetado – uma fase de instrução preliminar e outra supostamente acusatória, seguindo as linhas do Code de 1808 francês -, e que se materializou de vez com a edição do Decreto 482, de 1871, foi somente com a Constituição de 1934 que fora devolvida à União a competência exclusiva para legislar em matéria processual penal. O código de 1941 seria fruto do retorno da experiência politicamente centralizada, com inegável influência do código de processo penal italiano de 1930. Como já tive oportunidade de explicar com mais detalhes em obra anterior2, a modelagem do código se arvora no diploma processual italiano, ainda que com matizações (como por exemplo a manutenção de um júri “tutelado” e a presença do inquérito policial, tipicamente de feição ibérica). Portanto, além da presença inegável de similitudes com o código de processo penal italiano, o brasileiro conservou algumas tradições que já se haviam radicado de forma mais profunda na tradição brasileira (algumas espécies recursais como os embargos, o inquérito policial e o júri à francesa).
Pode-se dizer que as linhas de pensamento que compõem a edição e a consolidação do atual código de processo penal brasileiro se inscrevem em uma espécie de “autoritarismo clássico”. A racionalidade que permeia esta visão de mundo estava assentada sobretudo nas diversas vertentes sociológicas que compunham o que se poderia designar como ideologia autoritária brasileira. Autores diferentes entre si como Francisco CAMPOS, OLIVEIRA VIANNA, AZEVEDO AMARAL, ALBERTO TORRES dentre outros comungavam de uma cosmologia que de certa forma recorria ao saber sociológico como expressão científica e que justificava a linha vermelha que percorria os textos destes autores: a sua aversão ao liberalismo político (que não se pode confundir com o liberalismo econômico)3.
A forma de expressão desta racionalidade autoritária - a sociologia – seria substituída, de acordo com SILVA, no novo ciclo do pensamento autoritário brasileiro. Esta nova racionalidade autoritária apresentaria suas novas dimensões no golpe militar de 1964. Esta segunda fase do autoritarismo se socorreria, na visão deste autor, de uma racionalidade manifestada em termos científicos através da economia. Fundamentalmente, a sociologia que sustentava o discurso autoritário “clássico” seria substituída pelo discurso economicista, que passou a dar roupa-
1 Em realidade, a reforma de 1841 não quebra uma suposta acusatoriedade preexistente. O que ela produz, de fato, é a intensificação do inquisitorialismo, fenômenos bastante diversos.
2 GLOECKNER, Ricardo Jacobsen. Autoritarismo e Processo Penal: uma genealogia das ideias autoritária no processo penal brasileiro. São Paulo: Tirant lo Blanch, 2018.
3 SILVA, Ricardo. A Ideologia do Estado Autoritário no Brasil. Chapecó: Argos, 2004.
gem científica às novas formas de ideologia autoritária. Se esta cisão entre duas roupagens distintas que assumiu o autoritarismo brasileiro podem ser levadas a cabo como ferramenta metodológica, parece-nos que esta metodologia pode ser direcionada também para um exame do processo penal. Afinal de contas, o processo penal não pode ser divorciado de sua epocalidade e de sua forte conexão com os campos político, econômico, cultural e social. Portanto, as duas dimensões que serviram para SILVA identificar as expressões racionais do autoritarismo brasileiro poderão ser empregadas para exame desta realidade no campo processual penal. E, em sendo assim, a hipótese que norteia o presente estudo (e que foi esmiuçada em obra anterior) é de que a fórmula que alberga a expressão autoritária “nova” do direito processual penal brasileiro, em razoável medida, é fruto da racionalidade neoliberal.
No campo teórico, antes mesmo de se passar ao exame das justificativas, pontos de vista e argumentos que exploram os nós existentes entre racionalidade neoliberal e processo penal, insta reafirmar o compromisso existente entre o conservadorismo e os atores do sistema de justiça criminal. Com efeito, o Brasil ainda mantém vigente – apesar das reformas – um código de processo penal estruturado à semelhança do Codice Rocco italiano de 1930 - cujas reformas jamais estiveram à altura de um compromisso efetivo com a erradicação da cultura autoritária tecnicista transformada em um conjunto de regras pelo Código de Processo Penal Brasileiro de 1941.
Durante o Estado Novo, momento em que o atual código de processo penal foi gestado, pode-se verificar o trânsito de uma prática autoritária para um autoritarismo doutrinário (primeira república)4. Intelectual de destaque no período, Francisco CAMPOS está inserido no que se poderia chamar, juntamente com ROSENFIELD, de “constitucionalismo autoritário brasileiro”5. Francisco CAMPOS também será a expressão de um pensamento que afetou profundamente o direito processual penal brasileiro e que ainda contemporaneamente deixa as suas marcas. A transição para a democracia e a construção de uma Constituição visceralmente democrática não foram empecilhos para a manutenção de um sistema processual penal autoritário. Em parte, pelo fato de que os limites constitucionais à ação do poder judiciário e dos órgãos policiais ter sido parcamente regulada, o que secundariamente propiciou a ausência de uma tradição que repousa na justa observância das garantias individuais6. Em relação aos países sul-americanos que experimentaram os golpes neoliberais de Estado como Chile e Argentina,
4 ROSENFIELD, Luis. Revolução Conservadora: genealogia do constitucionalismo autoritário brasileiro (1930-1945). Porto
Alegre: EdiPUCRS, 2021. p. 47.
5 ROSENFIELD, Luis. Revolução Conservadora: genealogia do constitucionalismo autoritário brasileiro (1930-1945). Porto Alegre: EdiPUCRS, 2021.
6 AVRITZER, Leonardo. O Pêndulo da Democracia. São Paulo: Todavia, 2019. p. 27.
a “transição para a democracia” – sabidamente um operador de mudança fraco – estabeleceu as condições ideais para que houvesse maior continuidade entre o autoritarismo e a democracia, com uma justiça de transição tardia e com forte compromisso institucional com os principais atores da ditadura7. O resultado foi sabidamente incapaz de sanar as feridas históricas abertas pelas práticas terroristas militares. Isso explica, em parte, o “retorno” do militarismo explícito, que correu em paralelo ao surgimento do bolsonarismo. O bolsonarismo logrou êxito num discurso revisionista que jamais fora debelado pela democracia brasileira. Militares comemoravam a “revolução”, a “ameaça comunista” fora transmutada em um perigo real, terroristas militares foram anistiados e um deputado homenageou a tortura tendo sido premiado com o posto de presidente. O bolsonarismo mostrou, à saciedade, como a falta de uma efetiva justiça de transição, com a punição dos responsáveis por crimes atrozes permitiu a subsistência de um pensamento contrarrevolucionário que não se havia extinguido com a abertura democrática. Todavia, esta contrarrevolução se deu, de 1964 em diante, assumindo a estrutura, a constituição e a formatação do neoliberalismo. Assim, como referido em obra anterior, o neoliberalismo pode ser entendido como uma espécie de “contrarrevolução permanente”.
No campo do processo penal, o tecnicismo, uma corrente teórica que se desenvolveu na Itália entre as décadas de 1920 e 1930 - possibilitou a “expulsão” das discussões políticas concernentes ao direito e ao processo penal, fazendo com que a teoria processual penal se autodesignasse como alheia ao cenário político fascista. Assim, à semelhança da hipótese de INGRAO sobre o papel da intelectualidade alemã no nazismo, a difusão de um tecnicismo como anteparo à ideologização dos saberes8 representava uma espécie de salvaguarda moral que liberava estes atores para participar ativamente da consolidação do sistema de justiça criminal. Como esteio ético e moral, a maior parte dos colaboradores do regime fascista se autodeclarava como liberal, cujo trabalho intelectual consistia em conter os avanços da política autoritária. Hipótese que pode ser designada como “teoria do freio” (segundo esta tese, os intelectuais da época teriam contribuído legislativamente com regimes autoritários no escopo de conter o iliberalismo estatal). Esta hipótese, contudo, foi utilizada apenas como uma espécie de fundo que permitiu à doutrina manter intocada a biografia de intelectuais importantes como CARNELUTTI, por exemplo. A teoria do freio como doutrina oficial jamais conseguiu oferecer biografias isentas de compromissos – maiores ou menores -, com os aludidos regimes antidemocráticos. 7
Na Itália do início do século XX, as extensas críticas ao Código Finochiaro-Aprile - o Código tardo-liberal italiano de 1913 - preexistentes ao advento do fascismo e que lhe acusavam de um liberalismo anacrônico permitiram que o caminho da reforma, quando do advento do regime de MUSSOLINI, já estivesse praticamente pavimentado. Os movimentos que demarcaram as aproximações do processo penal com outros saberes (criminologia, ciência política e até mesmo a disciplina contígua do processo civil) são plúrimos, não podendo ser reduzidos a uma espécie de progressiva autonomização do processo penal relativamente à sua alma mater, o direito processual civil.
As mutações ocorridas no campo do direito processual penal durante o fascismo podem ser compreendidas pela torsão autoritária atribuída às categorias liberais preexistentes, como acentua SBRICCOLI9. Ou seja, em grande medida o pensamento liberal reacionário do início do século XX serviu como plataforma que posteriormente fecundou o processualismo fascista. Portanto, em síntese, o fascismo encontrou “prontas” as categorias processuais penais que seriam utilizadas para garantir os contornos epistêmicos que serviriam de base para o Codice Rocco. A instrumentalização das categorias processuais penais liberais-reacionárias do início do século XX se perfectibilizou com o “giro autoritário” a elas atribuído.
A orientação predominante no pensamento italiano da primeira metade do século XX era o denominado “tecnicismo jurídico”, que como epistemologia dominante, acabou por realizar dois movimentos: a) a pretensa neutralização de qualquer sentido político presente no processo penal e em suas categorias fundantes; b) o escamoteamento da ideologia da defesa social, mormente em sua faceta positivista, que penetrou profundamente no tecido normativo do Codice Rocco, especialmente através do uso indiscriminado das medidas de segurança e medidas cautelares de polícia (como o fermo), e que se encontrava presente no discurso do principal representante do tecnicismo jurídico daquele período, Vincenzo MANZINI, como demonstra a sua prolusão turinesa10.
Esta corrente de pensamento que predominou nos circuitos acadêmico e político italianos durante o regime fascista permitiu a elaboração de uma narrativa que se tornou bastante familiar: a colaboração dos juristas e intelectuais na elaboração dos códigos fascistas se deu no sentido de evitar o pior. Esta hipótese de trabalho denominada como “tese do freio” acabou se transformando no relato fundamental e hegemônico de toda uma época, encobrindo os registros, rela-
ções, atuações e articulações políticas dos intelectuais do período, salvaguardando biografias e mantendo incólumes determinadas orientações de estilo. A historiografia neste ponto também se encarregaria de expulsar dos registros jurídicos os compromissos políticos destes atores.
Assim as coisas, banido o elemento político do pensamento tecnicista e blindadas as tomadas de posição no procedimento codificatório fascista, se tornava fácil admitir que o produto do pensamento dos intelectuais da época – em especial no campo do direito processual penal – estaria como que imunizado da contaminação política que havia, por exemplo, ocorrido na Alemanha. Esta metanarrativa comparatística entre o ordenamento processual penal italiano e o germânico foi, inclusive, a base que impediu uma completa abolição do Codice Rocco, cuja revogação plena somente adveio em 1989, com o novo código de processo penal italiano (observado que na Itália a reforma de 1955 foi mais formal do que substancial). A defesa do produto legislativo do período fascista seria exercida pelos autores que se reuniriam em torno da revista Archivio Penale, mormente Giovanni LEONE, Tullio DELOGU e Remo PANNAIN.
No Brasil não foi diferente. A orientação tecnicista que imantava o pensamento jurídico durante a década da codificação processual penal de 1940 deixava transparecer uma aura de neutralidade política aos institutos. Em que pese a notável similitude estrutural com o Codice Rocco, o atual Código de Processo Penal Brasileiro não foi simplesmente uma “cópia” de seu modelo italiano, se por esta expressão entendermos uma simples transposição dos artigos, distribuídos através de livros e capítulos que deveriam seguir uma mesma ordem.
O projeto de código de processo penal brasileiro, encabeçado por Francisco CAMPOS herdou o “antiliberalismo esclarecido” de seu congênere italiano. Ademais, por se tratar de uma “obra técnica” e não o produto de deliberação parlamentar, este código se dispunha a proceder a uma convergência de tradições: mantendo alguns recursos (como os embargos) e especialmente destacando o inquérito policial como o epicentro da investigação preliminar, o autoritarismo italiano teceria em terras brasileiras concessões ao conservadorismo ibérico. Portanto, não se pode diagnosticar o atual código de processo penal brasileiro como um simples modelo trasladado. Há inequivocamente, a convergência de um modelo autoritário de processo penal (o italiano) com certos institutos ibéricos de corte conservador. Ademais, a estrutura do júri, após a reforma de 1841, importou o modelo francês, destruindo as características mais salientes do modelo anglo-americano e sobrevivendo até hoje como uma espécie de “júri tutelado”. Todavia, seja como for, tampouco se pode discutir a paternidade política de um código haurido em pleno Estado Novo. Sob a carapuça da tecnicidade da legislação se escondiam as preferências políticas não apenas de Francisco CAMPOS, o Ministro da Justiça de Getúlio VARGAS. Mas também aquelas de diversos juristas como