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A utoritA rismo e P rocesso P en A l II

AutoritArismo Cool e eConomiA PolítiCA do ProCesso PenAl BrAsileiro

Copyright© Tirant lo Blanch Brasil

Editor Responsável: Aline Gostinski

Assistente Editorial: Izabela Eid

Capa e diagramação: Jéssica Razia

Imagem da capa: O Conjuro, de Francisco Goya

CONSELHO EDITORIAL CIENTÍFICO:

eduArdo Ferrer mAc-GreGor Poisot

Presidente da Corte Interamericana de Direitos Humanos. Investigador do Instituto de Investigações

Jurídicas da UNAM - México

JuArez tAvAres

Catedrático de Direito Penal da Universidade do Estado do Rio de Janeiro - Brasil

luis lóPez GuerrA

Ex Magistrado do Tribunal Europeu de Direitos Humanos. Catedrático de Direito Constitucional da Universidade Carlos III de Madrid - Espanha

owen m. Fiss

Catedrático Emérito de Teoria de Direito da Universidade de Yale - EUA

tomás s. vives Antón

Catedrático de Direito Penal da Universidade de Valência - Espanha

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO

SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ

G48a v 2

Gloeckner, Ricardo Jacobsen

Autoritarismo e processo penal II [recurso eletrônico] : autoritarismo cool e economia política do processo penal brasileiro / Ricardo Jacobsen Gloeckner - 1 edSão Paulo : Tirant Lo Blanch, 2023. recurso digital ; 1 MB

Formato: ebook

Modo de acesso: world wide web

ISBN 978-65-5908-527-9 (recurso eletrônico)

1 Direito penal - Brasil 2 Processo penal - Brasil 3 Autoritarismo - Brasil 4 Livros eletrônicos I Título

23-82763

CDU: 343 2(81)

Meri Gleice Rodrigues de Souza - Bibliotecária - CRB-7/6439

DOI: 10.53071/boo-2023-07-28-64c4524f77416

01/03/2023 06/03/2023

É proibida a reprodução total ou parcial, por qualquer meio ou processo, inclusive quanto às características gráficas e/ou editoriais. A violação de direitos autorais constitui crime (Código Penal, art.184 e §§, Lei n° 10.695, de 01/07/2003), sujeitando-se à busca e apreensão e indenizações diversas (Lei n°9.610/98).

Todos os direitos desta edição reservados à Tirant lo Blanch.

Fone: 11 2894 7330 / Email: editora@tirant.com / atendimento@tirant.com

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Impresso no Brasil / Printed in Brazil

A utoritA rismo e P rocesso P en A l II

AutoritArismo Cool e eConomiA PolítiCA do ProCesso PenAl BrAsileiro

Congresso Internacional do Medo Provisoriamente não cantaremos o amor, que se refugiou mais abaixo dos subterrâneos. Cantaremos o medo, que esteriliza os abraços, não cantaremos o ódio porque esse não existe, existe apenas o medo, nosso pai e nosso companheiro, o medo grande dos sertões, dos mares, dos desertos, o medo dos soldados, o medo das mães, o medo das igrejas, cantaremos o medo dos ditadores, o medo dos democratas, cantaremos o medo da morte e o medo de depois da morte, depois morreremos de medo e sobre nossos túmulos nascerão flores amarelas e medrosas.

AGrAdecimentos

Não são poucas as pessoas a quem devo agradecer. Cada uma a seu modo contribuiu decisivamente para esta versão final. Uma crítica, um ponto de vista, diálogos, indicações de referências, enfim. É muito provável que eu esqueça vários nomes. Mesmo assim desejo agradecer nominalmente à Joseane, pela paciência, carinho e amor. Ao Jeferson e Marco Antônio pela amizade inabalável. Ao Edgar, companheiro de preocupações democráticas. Guto e Fernanda, para além da academia, a amizade. Gostaria de agradecer também a todos os colegas do Programa de Pós-Graduação em Ciências Criminais da PUCRS, acadêmicos e acadêmicas que contribuíram, cada qual a seu modo, no estímulo à esta pesquisa. Nominalmente, gostaria de também agradecer à Jadia Larissa Timm dos Santos pela valiosa revisão dos originais; ao Felipe Lazzari pelo fraterno diálogo em torno de uma tema comum; ao prof. Maurício Dieter pelo suporte para que eu pudesse acessar várias referências, ao Rafael Dezidério de Luca pela utilíssima contribuição com fotocópias de obras junto à biblioteca da USP. Ao Luiz Eduardo Cani e à Luiza Borges Terra pelo auxílio com uma importante e difícil referência. Agradeço ainda a PUCRS pelo suporte na confecção desta pesquisa bem como à Aline e à editora Tirant lo Blanch, pela confiança.

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AdvertênciA Ao leitor

Entre os anos de 2019 e 2022 empreendi um estudo sobre as possíveis ressignificações do autoritarismo. Evidentemente, à primeira vista, tratava-se de uma análise contemporânea do pensamento autoritário no direito processual penal, processo este iniciado ainda em 2015, quando da elaboração do texto Autoritarismo e Processo Penal. Penso que as razões do autoritarismo “novo” ou como anuncia ZAFFARONI, “cool” deve ser examinado à luz da racionalidade neoliberal. Várias são as justificativas que poderia oferecer a fim de identificar que uma análise sem a necessária transdisciplinaridade sobre este assunto correria o risco de ser da mais absoluta infecundidade. A extensão que assumiu o texto obrigou-me a cindir a pesquisa em dois volumes. O primeiro deles, que recorta o tema do neoliberalismo, também editado pela Tirant lo Blanch se chama “Neoliberalismo, a Contrarrevolução Permanente: um Estado forte para uma economia livre”. O segundo volume, que o leitor tem em mãos, trata dos aspectos mais essenciais da penetração da racionalidade neoliberal no processo penal. É possível ao leitor compreender as questões aqui examinadas sem a leitura do texto prévio. No entanto, é inevitável que muitas opções metodológicas e conceituais fiquem sem o devido aprofundamento e esclarecimento neste estudo, justo porque penso tê-las feito anteriormente e com um nível de profundidade que não caberia, neste livro, reproduzir. A cisão, portanto, não impede a leitura. Mas acredito que torne este texto mais inteligível. Se vale a recomendação, sugiro que o leitor tenha lido primeiramente o livro Neoliberalismo, a Contrarrevolução Permanente.

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sumário PreFácio ........................................................................................................... 12 Aury Lopes Jr introdução ...................................................................................................... 15 1.1. A Crônica de um Suicídio Anunciado: o garantismo inquisitório brasileiro ou de como um sistema acusatório não pode ser construído por decreto .............................................. 24 1.2. Uma Contrarreforma “Sem Reforma” e o Autoritarismo Contemporâneo: sintomas antidemocráticos e a efervescência do “novo” autoritarismo 31 1.3. Law and Economics: a linguagem conservadora-reacionária do pensamento jurídico neoliberal 39 PARTE I A TRANSNACIONALIZAÇÃO DO DISCURSO ANTICORRUPÇÃO COMO EXPRESSÃO DA GOVERNANÇA NEOLIBERAL NO SÉCULO XXI CAPítulo i A trAnsnAcionAlizAção dAs cAmPAnhAs AnticorruPção e AntilAvAGem de dinheiro: A deFormAção neoliberAl do Processo PenAl .................................................... 51 1.1. A Constituição e a Supremacia do Modelo Economicista de Tratamento da Corrupção ........................................................................................................................ 54 1.2. Breves Apontamentos Sobre a Transnacionalização do Enfrentamento à Corrupção ...... 73 1.3. Lavagem de Dinheiro, Anticorrupção e Financiamento ao Terrorismo: uma lexicografia neoliberal ......................................................................................................................... 82 1.4. Lavagem de Dinheiro e Restrição de Direitos Fundamentais 107 1.4.1. A Criminalização da Advocacia Criminal: um projeto inacabado ....................... 112 1.5. Mãos Limpas e Revisionismo Histórico: a construção do discurso anticorrupção despolitizador ................................................................................................................. 124 1.6. Lava Jato: dalle Mani Pulite alle Mani Sporche ......................................................... 135 1.6.1. A Excepcionalidade da Lava Jato: um processo em detrimento das formas jurídicas .................................................................................................................. 141 1.6.2. A Forma Política da Lava Jato ............................................................................ 155 1.6.3. A Lava Jato e o Projeto Reformista: as dez medidas contra a Constituição .......... 166 1.7. Considerações Finais do Capítulo 171
POLÍTICA DO PROCESSO PENAL: O AUTORITARISMO Cool E AS SUAS MÚLTIPLAS DIMENSÕES CAPítulo i conservAdorismo e Processo PenAl: umA breve introdução Ao “novo” AutoritArismo................................................................................................. 178 1.2. O “Bolsolavismo” Penal: pensamento contrarrevolucionário, antigarantismo e anticiência 184 CAPítulo ii inteGrAlistAs: GArAntismo inteGrAl e o AutoritArismo cool no Processo PenAl brAsileiro ....................................................................................................... 214 2.1. Retórica do Equilíbrio, Princípio de Proporcionalidade e il Metodo del Non So Come 221 2.2. Garantismo Integral em Prática ou de Como Tornar a Constituição da República Inoperante 231 2.3. Considerações Finais do Capítulo ........................................................................... 241 CAPítulo iii direito FundAmentAl à seGurAnçA?................................................................. 250 3.1. Balizas Teóricas de um Direito Fundamental à Segurança ........................................ 251 3.2. Os Efeitos Concretos da Aplicação do Direito à Segurança em Matéria Processual Penal .............................................................................................................................. 268 3.3. Considerações Finais do Capítulo 274 CAPítulo iV o discurso dA GuerrA Ao terror e A trAnsFormAção necessáriA do direito ProcessuAl PenAl ............................................................................................ 278 4.1. Governamentalidade Neoliberal e Sociedades Securitárias: um imbricamento necessário 278 4.2. Terrorismo e Alterações Profundas no Campo Jurídico-Penal .................................. 290 4.3. Conclusões Finais do Capítulo ................................................................................ 303 CAPítulo V PleA bArGAininG e neoliberAlismo: A AlternAtivA Ao Processo PenAl ................ 308 5.1. O Surgimento do Plea Bargaining: um exame das hipóteses sobre o nascimento da negociação processual penal ........................................................................................... 312 5.2. Excesso de Acusação, Voluntariedade do Acordo e a Punição Pelo Exercício Regular de um Direito ..................................................................................................................... 325 5.3. Em Defesa do Livre Mercado Processual Penal: a matriz economicista e o plea bargaining como mecanismo eficiente de alocação de recursos ......................................................... 333 5.4. Plea Bargaining, Racionalidade Neoliberal e Processo Penal 342 5.5. Considerações Finais do Capítulo ........................................................................... 347
PARTE II ECONOMIA
CAPítulo Vi um sistemA de inFormAntes? notAs sobre o direito Ao conFronto e o estímulo A umA JustiçA criminAl underground ................................................................. 350 6.1. O Direito ao Confronto e o Sistema de Informantes Como Meio de Prova ............. 363 6.2. O Tribunal Europeu de Direitos Humanos e a Mutilação do Direito ao Confronto .... 371 6.3. Informantes, Colaboração Premiada e Luta Anticorrupção 376 6.4. Considerações Finais do Capítulo ........................................................................... 384 CAPítulo Vii Abuso de GArAtiAs, Abuso de Processo e PreJuízo eFetivo: A eliminAção do controle de vAlidAde dos Atos ProcessuAis PenAis .......................................... 387 7.1. Prejuízo Efetivo e o Desmanche das Formas Processuais .......................................... 391 7.2. Ofensividade Como Critério Para o Prejuízo Efetivo? 397 7.3. “Abuso de Garantias”, Nulidade de “Algibeira e Boa-Fé Objetiva Como Medidas Anticorrupção 407 7.4. Considerações Finais do Capítulo ........................................................................... 419 CAPítulo Viii Pós-Positivismo, neoconstitucionAlismo e neoProcessuAlismo: As vertentes JurídicAs dA rAcionAlidAde neoliberAl ou o constitucionAlismo AntiGArAntistA .................... 421 8.1. Antipositivismo, Jurisrprudência dos Valores e a Formação do Pensamento Neoconstitucionalista: lições desde Weimar .................................................................... 432 8.2. O Neokantismo de Baden e os Fundamentos Antiformalistas do Direito ................ 439 8.3. “Neoconstitucionalismo e Pós-Positivismo”: de uma narrativa histórica falsificada ao império do decisionismo ................................................................................................ 447 8.4. Neoprocessualismo e Constitucionalismo Antigarantista 454 8.5. “Saiam das Bibliotecas”: precedentalização e as reformas neoliberais ....................... 460 8.6. Considerações Finais do Capítulo 467 CAPítulo iX Abolição dAs ProvAs ilícitAs? desconstitucionAlizAção, PonderAção e A lóGicA utilitáriA-economicistA .................................................................................. 472 9.1. As Regras de Exclusão e o Processo de Excepcionalização da Prova Ilícita na Jurisprudência da Suprema Corte Norte-Americana ....................................................... 480 9.1.1. A teoria dos frutos da árvore venenosa e suas limitações .................................... 485 9.1.2. As Exceções à Doutrina dos Frutos da Árvore Venenosa ..................................... 488 9.1.2.1. A Doutrina da Fonte Independente (Independent Source Doctrine) 488 9.1.2.2. A Exceção da Descoberta Inevitável (Inevitable Discovery Doctrine) ............... 493 9.1.2.3. A Exceção do Nexo de Ilicitude Atenuado ou Purgação da Ilicitude 502 9.1.2.4. Doutrina da Destruição da Mentira do Acusado ou Teoria do Impedimento .... 506 9.1.2.5. Exceção da Boa-Fé (good faith limitation) ...................................................... 508 9.2. Breve Análise Sobre as Exceções à Prova ilícita no Brasil 513
9.3. O Processo de Desconstitucionalização da Prova Ilícita nos Estados Unidos 517 9.4. Proibições de Prova: uma teoria forte contra a tendência abolicionista norteamericana? 528 9.5. Ponderação, Integralismo e Desconstitucionalização da Prova ilícita ........................ 534 9.6. Conclusões Finais do Capítulo 543 CAPítulo X rAcionAlismo e verdAde no Processo PenAl .................................................... 552 10.1. Concepção Racionalista da Prova, Correspondentismo e Liberdade da Prova 555 10.1.1. Verdade Como Correspondência e Inferência da Melhor Explicação ................ 561 10.2. Poderes Probatórios de Ofício e Política do Processo 568 10.3. Considerações Finais do Capítulo ......................................................................... 587 CAPítulo Xi os AtAques à Presunção de inocênciA, Ao direito Ao silêncio e Ao recurso ..... 591 11.1. Presunção de Inocência e a Instrumentalização Confessional das Cautelares .......... 592 11.2. Presunção de Inocência e a Introdução da Fórmula “Aquém da Dúvida Razoável (Below Any Reasanoble Doubt) ........................................................................................ 595 11.3. Presunção de Inocência e Regra de Tratamento: execução provisória da pena e supressão de recursos ...................................................................................................... 601 11.4. O Dever de Produzir Prova Contra Si Mesmo: uma nova hermenêutica para um novo processo penal ................................................................................................................ 610 11.5. Direito ao Recurso? Ma non troppo! 615 11.6. Considerações Finais do Capítulo ......................................................................... 618 CAPítulo Xii As reFormAs dos sistemAs de JustiçA criminAl lAtino-AmericAnos: sistemAs “AcusAtórios”, rAcionAlidAde neoliberAl? ...................................................... 622 12.1. Norte-Americanização dos Sistemas Jurídicos? ...................................................... 623 12.2. As Reformas Processuais Penais Latino-Americanas 630 12.3. Reformas Acusatórias, Estatísticas Inquisitórias: sucesso das reformas processuais penais? 639 12.4. Considerações Finais do Capítulo ......................................................................... 646 conclusões .................................................................................................... 651 reFerênciAs biblioGráFicAs ............................................................................. 662

PreFácio

Começo a escrever esta apresentação no dia seguinte ao “domingo antidemocrático”, o famigerado dia 08/ 01/ 2023, quando foram invadidos e destruídos os prédios do STF, do Palácio do Planalto e do Congresso Nacional, por militantes da direita radical alinhados ao ex-presidente Bolsonaro. Um lamentável espetáculo de radicalismo antidemocrático, autoritário e delirante. O volume II da obra ‘autoritarismo e processo penal’ mostra a atualidade, pertinência e relevância do debate trazido por Ricardo Jacobsen Gloeckner, já desde o primeiro volume. O processo penal brasileiro, historicamente autoritário, interage constantemente com essa complexa ambiência social (inclusive pela via do ‘bolsolavismo penal’, como denomina o autor). Na primeira parte da sua obra, Ricardo bem demonstrou a matriz autoritária de um CPP que nasce por decreto lei, com o congresso nacional fechado, e assumidamente inquisitório (ou seja, sinônimo de autoritário e antidemocrático, aqui), bem como o papel das reformas pontuais na manutenção – proposital, portanto – na manutenção desse complexo engenho. Nem mesmo a Constituição Federal de 1988 conseguiu romper com essa cultura, essa mentalidade autoritária. Nesse contexto é crucial, como explica o autor, o marcador do pensamento e da racionalidade neoliberal (entendido como uma espécie de “contrarrevolução permanente”). Também é interessante como Ricardo explica o ‘tecnicismo jurídíco’ do pensamento italiano do inicio do Século XX serviu, ainda que dissimulado como ‘neutro’, para a efetivação dos ideais fascistas. Partindo disso, o autor explica que nosso CPP não foi (propositadamente) uma simples cópia do código de Rocco, mas isso não o isenta de estar completamente contaminado pelo tecnicismo jurídico (no fundo, comprometido com o fascismo italiano) na elaboração e versão final do nosso CPP de 1941 (encabeçado por Francisco Campos, ministro da justiça de Getúlio Vargas e absolutamente avesso ao liberalismo jurídico (que não se confunde com o liberalismo econômico)).

Mas é claro que essa relação é de uma complexidade gigantesca, como gigantesco é o trabalho do Ricardo Gloeckner para demonstrá-la e denunciá-la, esparramando-se pelos diversos institutos do processo penal, mas também do direito penal que ele é chamado a efetivar, enquanto caminho necessário para se chegar a uma pena. Nesse denso diálogo – imprescindivelmente interdisciplinar, sob pena de grave redução da complexidade, o autor transita pelo pensamento economicista neoliberal e o uso – ou melhor, manipulação – do poder punitivo para pseudo combate a corrupção e a lavagem de dinheiro. Como define o autor, a transnacionalização (imposta por interesses alheios aos nacionais, por elementar) das campanhas anticorrupção, antilavagem de dinheiro, enfrentamento

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ao terrorismo, fazem parte da lexicografia neoliberal, fruto da imposição de um modelo economicista. A lava jato, a campanha das ‘dez’ (que nunca foram dez, mas centenas) de medidas ‘anticorrupção’ (e “anticonstituição” (ataque frontal à Constituição), além de atingirem a todos os delitos previstos no CP, não apenas a corrupção) inserem-se nessa dinâmica de poder.

Na segunda parte da obra, o autor vai tratar do ‘autoritarismo cool’ (Zaffaroni) e o processo penal, desvelando uma série de falácias, como a ‘dupla via da proporcionalidade’ ou o absurdamente chamado de ‘garantismo integral’ (algo como um ‘direito penal do inimigo-mas-garantista’). Obviamente, essa fraude conceitual que se apropria indevidamente do ‘garantismo’, é combatida com veemência pelo autor.

E o livro segue tratando de questões fundamentais para o processo penal brasileiro, como a demonstração dos perigos do ‘plea bargaining’ que, se adotado, pode literalmente acabar com o processo penal brasileiro e gerar um super-encarceramento sem precedentes. A negociação no processo penal decorre de argumentos economicistas e eficientistas, encontrando no nosso sucateado e superado modelo, um terreno fértil para seduzir incautos (e outros nem tão ingênuos, mas que se valem dela para ampliar ainda mais o caráter autoritário e seletivo do processo penal).

E o autor segue trilhando os caminhos mais tortuosos (e perigosos para a democracia, portanto) do processo penal brasileiro, como o sistema de nulidades a la carte (e o amorfismo, teoria do prejuízo, relativizações, etc servem exclusivamente para comprimir a esfera de direitos e garantias individuais e esparramar o ‘poder líquido’, tudo isso já denunciado e profundamente tratado pelo autor na excepcional obra “Nulidades no Processo Penal’); o esvaziamento (abolição?) das provas ilícitas; a flexibilização da contaminação e as perigosas exceções à prova ilícita; o racionalismo e a verdade (que verdade é essa?) no processo penal, dialogando com a presunção de inocência; e finalizando no atual e importantíssimo terreno das reformas dos sistemas de justiça criminal latino-americanos.

Nesse último ponto, incursiona Ricardo por um terreno desconhecido por muitos autores e professores brasileiros: quem e qual ideologia está por trás das reformas realizadas na américa latina nos anos 90 e 2000? Existe um ovo da serpente ali, que pouca gente tem conhecimento e consciência, fazendo com que muitos sejam manipulados (e o pior, com as melhores intenções possíveis). Gente do bem, que acredita estar fazendo o bem, mas no fundo estão sendo manipulados. Leiam o livro do Ricardo e compreenderão o que estou falando...

Enfim, uma obra fundamental para todos aqueles comprometidos com a democracia e a efetivação da Constituição no processo penal brasileiro. Uma profunda anamnese de toda a genealogia autoritária do nosso processo penal e como

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ela permanece hígida e presente nas práticas atuais. É uma pesquisa séria, com um esforço hercúleo por parte do autor e com uma densidade sem igual na sua musculatura teórica. Louvável ainda a paciência que Ricardo teve em ler autores e obras de péssima qualidade teórica, manipuladores conceituais, para demonstrar seus erros, distorções e inconsistências. A intenção foi, evidentemente, advertir leitores que não possuem um conhecimento jurídico sólido e denso, com baixo senso crítico muitas vezes (e o pensamento crítico, infelizmente, ainda é pouco estimulado por muitos professores na graduação) que muitas vezes são presas fáceis de doutrina de baixa qualidade. Consomem e seguem – em geral com as melhores intenções - repetindo e reproduzindo esse pensamento retrógrado, autoritário e não raras vezes, puras falácias a serviço do autoritarismo processual. Não sem razão, encontramos ainda hoje tanta resistência em romper com esse verdadeiro senso comum teórico estabelecido. A obra do Ricardo é fundamental nesta luta.

Finalizo dizendo que é um especial prazer apresentar – mais uma vez

uma grande obra do Prof. Dr. Ricardo Jacobsen Gloeckner, sem dúvida um dos maiores juristas brasileiros, e com quem tenho o privilégio de conviver há muito tempo.

Leiam este livro, vale a pena.

Aury loPes Jr Doutor em Direito Processual Penal pela Universidad Complutense de Madrid. Professor Titular de Direito Processual Penal da PUCRS. Professor no Programa de Pós-Graduação –Doutorado, Mestrado e Especialização – em Ciências Criminais da PUCRS. Membro da Associação Brasileira dos Advogados Criminalistas (ABRACRIM), do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM) e Membro Emérito do Instituto Baiano de Direito Processual Penal - IBADPP. Parecerista e conferencista. Advogado Criminalista integrante do Escritório Aury Lopes Junior Advogados Associados, com sede em Porto Alegre e Brasília.

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introdução

Qualquer estudo que pretenda traçar diagnósticos sobre o processo penal e sobre o seu futuro possível não pode desprezar os contextos, circunstâncias e movimentos políticos, econômicos, culturais e sociais. As análises “tecnicistas” – tomando aqui em consideração aquelas emergentes no início do século XX e que encontraram na Itália e no Brasil campo fértil para seu desenvolvimento – jamais se despolitizaram como prometiam. A dogmática processual penal brasileira muito recentemente é que construiu um percurso crítico, ainda minoritário, que poderia oferecer uma leitura dissonante da dominante matriz acrítica, pretensamente apolítica e mantenedora de baixa densidade constitucional com a qual nossas práticas punitivas estão afeiçoadas.

Uma investigação sobre o processo penal brasileiro compreende - caso se queira reconhecer duas espécies distintas de racionalidade que o estruturam - dois momentos significativos. Antes de avançar sobre estas duas dimensões, convém um pequeno aparte a fim de que não se induza o leitor em erro. Não se está negando aqui a importância dos estudos sobre o processo penal brasileiro anteriores à edição do código de processo penal de 1941. Evidentemente, a reforma de 1841, fruto de uma “reação conservadora” e que acabou por alterar profundamente o quadro vigente do contexto jurídico processual de 1832 (um código com flagrantes feições acusatórias) não pode ser simplesmente expurgada do quadrante político. Da mesma maneira, os distintos códigos estaduais que foram sendo promulgados no Brasil, como consequência do federalismo de inspiração norte-americana consignado na Constituição de 1891 não são meras peças decorativas na formação do pensamento processual brasileiro. Desta opção política federalista sobrevieram os códigos de processo penal estaduais: do Rio Grande do Sul (Lei nº 24, de 15/ 8/ 1898), do Amazonas (Lei nº 334, de 14/ 2/ 1901); do Maranhão (Lei nº 507, de 22/ 3/ 1909), da Paraíba (Lei nº 336, de 21/ 10/ 1910), do Rio de Janeiro (Lei nº 1. 137, de 20 de dezembro de 1912), do Espirito Santo (Decreto nº 1. 891, de 26/ 9/ 1914), da Bahia (Lei nº 1. 119, de 21/ 8/ 1915); de Sergipe (Lei nº 753, de 7/ 9/ 1918) do Rio Grande do Norte (Lei nº 449, de 30/ 11/ 1918), do Piauí (Lei nº 962, de 4/ 7/ 1919), do Paraná (Lei nº 1. 916, de 23/ 2/ 1920) de Goiás, (Lei nº 659, de 5/ 6/ 1920), do Ceará (Lei nº 1950, de 24/ 12/ 1921), do Distrito Federal (Decreto nº 16. 751, de 31/ 12/ 1924. de Pernambuco (Lei nº 1. 750, de 1925), de Santa Catarina (Lei nº 1. 526, de 14/ 11/ 1925), de Minas Gerais (Decreto nº 7. 259, de 14/ 6/ 1926). Todos estes diplomas, em maior ou menor medida, se mantinham nas linhas do “código

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de processo penal de 1841”, tendo em vista a extensão e profundidade das reformas que romperam a frágil “acusatoriedade” do diploma de 18321.

Se, por um lado, até este período a base do processo penal brasileiro se mantinha como uma forma de composição entre um código bifacetado – uma fase de instrução preliminar e outra supostamente acusatória, seguindo as linhas do Code de 1808 francês -, e que se materializou de vez com a edição do Decreto 482, de 1871, foi somente com a Constituição de 1934 que fora devolvida à União a competência exclusiva para legislar em matéria processual penal. O código de 1941 seria fruto do retorno da experiência politicamente centralizada, com inegável influência do código de processo penal italiano de 1930. Como já tive oportunidade de explicar com mais detalhes em obra anterior2, a modelagem do código se arvora no diploma processual italiano, ainda que com matizações (como por exemplo a manutenção de um júri “tutelado” e a presença do inquérito policial, tipicamente de feição ibérica). Portanto, além da presença inegável de similitudes com o código de processo penal italiano, o brasileiro conservou algumas tradições que já se haviam radicado de forma mais profunda na tradição brasileira (algumas espécies recursais como os embargos, o inquérito policial e o júri à francesa).

Pode-se dizer que as linhas de pensamento que compõem a edição e a consolidação do atual código de processo penal brasileiro se inscrevem em uma espécie de “autoritarismo clássico”. A racionalidade que permeia esta visão de mundo estava assentada sobretudo nas diversas vertentes sociológicas que compunham o que se poderia designar como ideologia autoritária brasileira. Autores diferentes entre si como Francisco CAMPOS, OLIVEIRA VIANNA, AZEVEDO AMARAL, ALBERTO TORRES dentre outros comungavam de uma cosmologia que de certa forma recorria ao saber sociológico como expressão científica e que justificava a linha vermelha que percorria os textos destes autores: a sua aversão ao liberalismo político (que não se pode confundir com o liberalismo econômico)3.

A forma de expressão desta racionalidade autoritária - a sociologia – seria substituída, de acordo com SILVA, no novo ciclo do pensamento autoritário brasileiro. Esta nova racionalidade autoritária apresentaria suas novas dimensões no golpe militar de 1964. Esta segunda fase do autoritarismo se socorreria, na visão deste autor, de uma racionalidade manifestada em termos científicos através da economia. Fundamentalmente, a sociologia que sustentava o discurso autoritário “clássico” seria substituída pelo discurso economicista, que passou a dar roupa-

1 Em realidade, a reforma de 1841 não quebra uma suposta acusatoriedade preexistente. O que ela produz, de fato, é a intensificação do inquisitorialismo, fenômenos bastante diversos.

2 GLOECKNER, Ricardo Jacobsen. Autoritarismo e Processo Penal: uma genealogia das ideias autoritária no processo penal brasileiro. São Paulo: Tirant lo Blanch, 2018.

3 SILVA, Ricardo. A Ideologia do Estado Autoritário no Brasil. Chapecó: Argos, 2004.

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gem científica às novas formas de ideologia autoritária. Se esta cisão entre duas roupagens distintas que assumiu o autoritarismo brasileiro podem ser levadas a cabo como ferramenta metodológica, parece-nos que esta metodologia pode ser direcionada também para um exame do processo penal. Afinal de contas, o processo penal não pode ser divorciado de sua epocalidade e de sua forte conexão com os campos político, econômico, cultural e social. Portanto, as duas dimensões que serviram para SILVA identificar as expressões racionais do autoritarismo brasileiro poderão ser empregadas para exame desta realidade no campo processual penal. E, em sendo assim, a hipótese que norteia o presente estudo (e que foi esmiuçada em obra anterior) é de que a fórmula que alberga a expressão autoritária “nova” do direito processual penal brasileiro, em razoável medida, é fruto da racionalidade neoliberal.

No campo teórico, antes mesmo de se passar ao exame das justificativas, pontos de vista e argumentos que exploram os nós existentes entre racionalidade neoliberal e processo penal, insta reafirmar o compromisso existente entre o conservadorismo e os atores do sistema de justiça criminal. Com efeito, o Brasil ainda mantém vigente – apesar das reformas – um código de processo penal estruturado à semelhança do Codice Rocco italiano de 1930 - cujas reformas jamais estiveram à altura de um compromisso efetivo com a erradicação da cultura autoritária tecnicista transformada em um conjunto de regras pelo Código de Processo Penal Brasileiro de 1941.

Durante o Estado Novo, momento em que o atual código de processo penal foi gestado, pode-se verificar o trânsito de uma prática autoritária para um autoritarismo doutrinário (primeira república)4. Intelectual de destaque no período, Francisco CAMPOS está inserido no que se poderia chamar, juntamente com ROSENFIELD, de “constitucionalismo autoritário brasileiro”5. Francisco CAMPOS também será a expressão de um pensamento que afetou profundamente o direito processual penal brasileiro e que ainda contemporaneamente deixa as suas marcas. A transição para a democracia e a construção de uma Constituição visceralmente democrática não foram empecilhos para a manutenção de um sistema processual penal autoritário. Em parte, pelo fato de que os limites constitucionais à ação do poder judiciário e dos órgãos policiais ter sido parcamente regulada, o que secundariamente propiciou a ausência de uma tradição que repousa na justa observância das garantias individuais6. Em relação aos países sul-americanos que experimentaram os golpes neoliberais de Estado como Chile e Argentina,

4 ROSENFIELD, Luis. Revolução Conservadora: genealogia do constitucionalismo autoritário brasileiro (1930-1945). Porto

Alegre: EdiPUCRS, 2021. p. 47.

5 ROSENFIELD, Luis. Revolução Conservadora: genealogia do constitucionalismo autoritário brasileiro (1930-1945). Porto Alegre: EdiPUCRS, 2021.

6 AVRITZER, Leonardo. O Pêndulo da Democracia. São Paulo: Todavia, 2019. p. 27.

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a “transição para a democracia” – sabidamente um operador de mudança fraco – estabeleceu as condições ideais para que houvesse maior continuidade entre o autoritarismo e a democracia, com uma justiça de transição tardia e com forte compromisso institucional com os principais atores da ditadura7. O resultado foi sabidamente incapaz de sanar as feridas históricas abertas pelas práticas terroristas militares. Isso explica, em parte, o “retorno” do militarismo explícito, que correu em paralelo ao surgimento do bolsonarismo. O bolsonarismo logrou êxito num discurso revisionista que jamais fora debelado pela democracia brasileira. Militares comemoravam a “revolução”, a “ameaça comunista” fora transmutada em um perigo real, terroristas militares foram anistiados e um deputado homenageou a tortura tendo sido premiado com o posto de presidente. O bolsonarismo mostrou, à saciedade, como a falta de uma efetiva justiça de transição, com a punição dos responsáveis por crimes atrozes permitiu a subsistência de um pensamento contrarrevolucionário que não se havia extinguido com a abertura democrática. Todavia, esta contrarrevolução se deu, de 1964 em diante, assumindo a estrutura, a constituição e a formatação do neoliberalismo. Assim, como referido em obra anterior, o neoliberalismo pode ser entendido como uma espécie de “contrarrevolução permanente”.

No campo do processo penal, o tecnicismo, uma corrente teórica que se desenvolveu na Itália entre as décadas de 1920 e 1930 - possibilitou a “expulsão” das discussões políticas concernentes ao direito e ao processo penal, fazendo com que a teoria processual penal se autodesignasse como alheia ao cenário político fascista. Assim, à semelhança da hipótese de INGRAO sobre o papel da intelectualidade alemã no nazismo, a difusão de um tecnicismo como anteparo à ideologização dos saberes8 representava uma espécie de salvaguarda moral que liberava estes atores para participar ativamente da consolidação do sistema de justiça criminal. Como esteio ético e moral, a maior parte dos colaboradores do regime fascista se autodeclarava como liberal, cujo trabalho intelectual consistia em conter os avanços da política autoritária. Hipótese que pode ser designada como “teoria do freio” (segundo esta tese, os intelectuais da época teriam contribuído legislativamente com regimes autoritários no escopo de conter o iliberalismo estatal). Esta hipótese, contudo, foi utilizada apenas como uma espécie de fundo que permitiu à doutrina manter intocada a biografia de intelectuais importantes como CARNELUTTI, por exemplo. A teoria do freio como doutrina oficial jamais conseguiu oferecer biografias isentas de compromissos – maiores ou menores -, com os aludidos regimes antidemocráticos. 7

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AVRITZER, Leonardo. O Pêndulo da Democracia. São Paulo: Todavia, 2019. p. 39. 8 INGRAO, Christian. Crer e Destruir: os intelectuais na máquina de guerra da SS nazista. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2015. p. 50.

Na Itália do início do século XX, as extensas críticas ao Código Finochiaro-Aprile - o Código tardo-liberal italiano de 1913 - preexistentes ao advento do fascismo e que lhe acusavam de um liberalismo anacrônico permitiram que o caminho da reforma, quando do advento do regime de MUSSOLINI, já estivesse praticamente pavimentado. Os movimentos que demarcaram as aproximações do processo penal com outros saberes (criminologia, ciência política e até mesmo a disciplina contígua do processo civil) são plúrimos, não podendo ser reduzidos a uma espécie de progressiva autonomização do processo penal relativamente à sua alma mater, o direito processual civil.

As mutações ocorridas no campo do direito processual penal durante o fascismo podem ser compreendidas pela torsão autoritária atribuída às categorias liberais preexistentes, como acentua SBRICCOLI9. Ou seja, em grande medida o pensamento liberal reacionário do início do século XX serviu como plataforma que posteriormente fecundou o processualismo fascista. Portanto, em síntese, o fascismo encontrou “prontas” as categorias processuais penais que seriam utilizadas para garantir os contornos epistêmicos que serviriam de base para o Codice Rocco. A instrumentalização das categorias processuais penais liberais-reacionárias do início do século XX se perfectibilizou com o “giro autoritário” a elas atribuído.

A orientação predominante no pensamento italiano da primeira metade do século XX era o denominado “tecnicismo jurídico”, que como epistemologia dominante, acabou por realizar dois movimentos: a) a pretensa neutralização de qualquer sentido político presente no processo penal e em suas categorias fundantes; b) o escamoteamento da ideologia da defesa social, mormente em sua faceta positivista, que penetrou profundamente no tecido normativo do Codice Rocco, especialmente através do uso indiscriminado das medidas de segurança e medidas cautelares de polícia (como o fermo), e que se encontrava presente no discurso do principal representante do tecnicismo jurídico daquele período, Vincenzo MANZINI, como demonstra a sua prolusão turinesa10.

Esta corrente de pensamento que predominou nos circuitos acadêmico e político italianos durante o regime fascista permitiu a elaboração de uma narrativa que se tornou bastante familiar: a colaboração dos juristas e intelectuais na elaboração dos códigos fascistas se deu no sentido de evitar o pior. Esta hipótese de trabalho denominada como “tese do freio” acabou se transformando no relato fundamental e hegemônico de toda uma época, encobrindo os registros, rela-

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9 SBRICCOLI, Mario. Le Mani nella Pasta e Gli Occhi al Cielo: la penalistica italiana negli anni del fascismo. In Quaderni Fiorentini per la Storia del Pensiero Giuridico Moderno. v. 28. t. II. Milano: Giuffrè, 1999. p. 831. No mesmo sentido CORDERO, Franco. Guida Alla Procedura Penale. Torino: UTET, 1986. p. 99. 10 MANZINI, Vincenzo. La Politica Criminale e il Problema della Lotta Contro la Delinquenza e la Malavita. In Rivista Penale. n. 73. v. XXXVII, 1911.

ções, atuações e articulações políticas dos intelectuais do período, salvaguardando biografias e mantendo incólumes determinadas orientações de estilo. A historiografia neste ponto também se encarregaria de expulsar dos registros jurídicos os compromissos políticos destes atores.

Assim as coisas, banido o elemento político do pensamento tecnicista e blindadas as tomadas de posição no procedimento codificatório fascista, se tornava fácil admitir que o produto do pensamento dos intelectuais da época – em especial no campo do direito processual penal – estaria como que imunizado da contaminação política que havia, por exemplo, ocorrido na Alemanha. Esta metanarrativa comparatística entre o ordenamento processual penal italiano e o germânico foi, inclusive, a base que impediu uma completa abolição do Codice Rocco, cuja revogação plena somente adveio em 1989, com o novo código de processo penal italiano (observado que na Itália a reforma de 1955 foi mais formal do que substancial). A defesa do produto legislativo do período fascista seria exercida pelos autores que se reuniriam em torno da revista Archivio Penale, mormente Giovanni LEONE, Tullio DELOGU e Remo PANNAIN.

No Brasil não foi diferente. A orientação tecnicista que imantava o pensamento jurídico durante a década da codificação processual penal de 1940 deixava transparecer uma aura de neutralidade política aos institutos. Em que pese a notável similitude estrutural com o Codice Rocco, o atual Código de Processo Penal Brasileiro não foi simplesmente uma “cópia” de seu modelo italiano, se por esta expressão entendermos uma simples transposição dos artigos, distribuídos através de livros e capítulos que deveriam seguir uma mesma ordem.

O projeto de código de processo penal brasileiro, encabeçado por Francisco CAMPOS herdou o “antiliberalismo esclarecido” de seu congênere italiano. Ademais, por se tratar de uma “obra técnica” e não o produto de deliberação parlamentar, este código se dispunha a proceder a uma convergência de tradições: mantendo alguns recursos (como os embargos) e especialmente destacando o inquérito policial como o epicentro da investigação preliminar, o autoritarismo italiano teceria em terras brasileiras concessões ao conservadorismo ibérico. Portanto, não se pode diagnosticar o atual código de processo penal brasileiro como um simples modelo trasladado. Há inequivocamente, a convergência de um modelo autoritário de processo penal (o italiano) com certos institutos ibéricos de corte conservador. Ademais, a estrutura do júri, após a reforma de 1841, importou o modelo francês, destruindo as características mais salientes do modelo anglo-americano e sobrevivendo até hoje como uma espécie de “júri tutelado”. Todavia, seja como for, tampouco se pode discutir a paternidade política de um código haurido em pleno Estado Novo. Sob a carapuça da tecnicidade da legislação se escondiam as preferências políticas não apenas de Francisco CAMPOS, o Ministro da Justiça de Getúlio VARGAS. Mas também aquelas de diversos juristas como

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