Kamilla Faria Mello o racismo está no mundo e deve sernosdiscutidoautos: Uma postura interpretativa que coloca em xeque a prova testemunhal no Processo Penal
Copyright© Tirant lo Blanch Brasil Editor Responsável: Aline Gostinski Assistente Editorial: Izabela Eid Diagramação e Capa: Jéssica Razia CONSELHO EDITORIAL CIENTÍFICO: Eduardo Ferrer Mac-Gregor Poisot Presidente da Corte Interamericana de Direitos Humanos. Investigador do Instituto de Investigações Jurídicas da UNAM - México Juarez Tavares Catedrático de Direito Penal da Universidade do Estado do Rio de Janeiro - Brasil Luis López Guerra Ex Magistrado do Tribunal Europeu de Direitos Humanos. Catedrático de Direito Constitucional da Universidade Carlos III de Madrid - Espanha Owen M. Fiss Catedrático Emérito de Teoria de Direito da Universidade de Yale - EUA Tomás S. Vives Antón Catedrático de Direito Penal da Universidade de Valência - Espanha Todos os direitos desta edição reservados à Tirant lo Blanch. Avenida Brigadeiro Luiz Antonio nº 2909, sala 44. Bairro Jardim Paulista, São Paulo - SP CEP: 01401-000 Fone: 11 2894 7330 / Email: editora@tirant.com / atendimento@tirant.com www.tirant.com/br - www.editorial.tirant.com/br/ Impresso no Brasil / Printed in Brazil É proibida a reprodução total ou parcial, por qualquer meio ou processo, inclusive quanto às características gráficas e/ou editoriais.A violação de direitos autorais cons titui crime (Código Penal, art.184 e §§, Lei n° 10.695, de 01/07/2003), sujeitando-se à busca e apreensão e indenizações diversas (Lei n°9.610/98). Bibliotecária responsável: Elisabete Cândida da Silva CRB-8/6778 DOI: 10.53071/boo-2022-06-11-62a4c3e566565 M478 Mello, Kamilla Faria O racismo está no mundo e deve ser discutido nos autos : uma postura interpretativa que coloca em xeque a prova testemunhal no processo penal [livro eletrônico] / Kamilla Faria Mello. - 1.ed. – São Paulo : Tirant lo Blanch, 2022.1Kb; livro ISBN:digital978-65-5908-358-9 1. Processo penal. 2. Racismo. I.CDU:Título.323.12
Kamilla Faria Mello o racismo está no mundo e deve sernosdiscutidoautos: Uma postura interpretativa que coloca em xeque a prova testemunhal no Processo Penal
SUMÁRIO APRESENTAÇÃO ..................................................... 6 PREFÁCIO .............................................................. 14 Adilson José Moreira RESUMO ................................................................ 21 INTRODUÇÃO ...................................................... 22 POSTURAS INTERPRETATIVAS .......................... 25 2.1 Postura interpretativa que colabora para manutenção da exclusão de grupos raciais discriminados ........................... 29 2.1.1 Os efeitos perversos desta postura interpretativa na seara penal ....................................................................... 42 2.2 Postura interpretativa que colabora para emancipação de grupos raciais .................................................................... 51 2.2.1 A possibilidade de realização desta postura interpretativa na seara penal pressupõe a efetividade do contraditório e realização de um sistema plenamente acusatório .............. 55 PROVAS TESTEMUNHAIS E SEUS RISCOS ........ 62 3.1 O imaginário racista .................................................... 65 3.2 Falsas memórias e sugestionabilidade ............................ 77 3.3 O valor probatório das palavras dos policiais e alguns problemas da guerra às drogas ............................................ 86 CONCLUSÃO ......................................................... 95 REFERÊNCIAS ....................................................... 98
“Eu tenho um sonho que meus quatro pequenos filhos um dia viverão em uma nação onde não serão julgados pela cor da pele, mas pelo conteúdo do seu caráter.”
Martin Luther King Jr. Apresentar este livro e sua autora me dá um orgulho que não cabe nessas linhas. Vi sua autora, Ka milla Faria Mello, brotar na PUC Minas Betim como uma aluna que despontava e era considerada por todos os professores como uma promessa. O que eu, e talvez nenhum de meus pares, imaginava era que a promessa viraria realidade em tão pouco tempo.
6 APRESENTAÇÃO
Lembro de conhecer a Kamilla no quarto período do curso de Direito, quando lecionei na sala dela Direito Penal III, já ali ela chamava a atenção pelo conhecimento, pelas críticas pertinentes, pela nota, pela educação, entre outras qualidades. A beleza chamava a atenção, mas o conteúdo é que destacava, falava dos temas correlatos às Ciências Penais com propriedade, parece que nasceu para isso. Ali já era mais que uma aluna, era uma interlocutora qualificada, como ainda é, de meus estudos, com quem se pode debater temas complexos do Direito, da política e das ciências sociais em geral.Certa vez, quando a autora estava mais ou menos no quinto período, portanto antes de ter qualquer con-
Enfrentou o curso aproveitando cada oportunidade que lhe apareceu, fez pesquisa, extensão e ensino com a fome de saber de poucos.
7 tato com o Direito Processual Penal, fizemos na PUC um evento sobre a mentalidade inquisitória. Na épo ca eu coordenava um grupo de pesquisa da LAJUMG (Liga acadêmica fundada pela Kamilla junto de outros alunos da PUC) sobre o tema e a Kamilla participava junto de outros alunos. No grupo, passei aos alunos alguns textos sobre a inquisitoriedade do processo penal brasileiro, discutíamos nas mesas ao lado da biblioteca, pois como aprendi com meu Orientador professor Doutor Leonardo Marinho as melhores discussões não se fazem em uma aula mas em torno de uma mesa onde todos são iguais e podem dialogar sem que um esteja de pé ou em plano superior que os demais. Perguntei aos membros do grupo quem gostaria de falar no evento, apenas a caçula do grupo quis participar com uma fala. E ela falou, encantou, todos assistimos uma fala brilhante.Porém,
a caçula do grupo de pesquisa cresceu, e como cresceu rápido, amadureceu como pessoa e como pesquisadora.
Tempos depois, Kamilla me convidou para participar de um projeto de pesquisa sobre prisões, disse a ela que estava correndo para terminar minha tese, mas que por conhecê-la topava a empreitada. Kamilla desenvolveu um trabalho brilhante que rendeu algumas publicações conjuntas e o desejo de orientar sua pesquisa de fim de curso, porém, faltava o convite para ser orientador.
Creioraríssimo.queomedo era infundado, o diamante já veio pronto e lapidado de natureza, não precisava ser lapidado por mim. Kamilla já estava pronta, madura para brilhar. Ela colocou no trabalho que fui orientador, mas, na verdade fui apenas um privilegiadíssimo leitor, que pude acompanhar o desenvolvimento do texto página por página. Terminava a leitura para “correção” de um capítulo ansioso por receber o próximo, e a cada correção nem erro de vírgulas havia para eu corrigir. Os erros eram tão poucos que a correção final sequer fora enviada por e-mail para a aluna, preferi enviar apenas algumas poucas mensagens por Whasapp. O trabalho não precisava correção, precisava ser lido. Kamilla não precisava de correção, já estava pronta para voar, madura não escreveu uma monografia, fez uma dissertação com texto crítico, coerente de quem sabia o que dizia e tinha urgência por dizer. O racismo está no mundo, infelizmente, e tem que ser discutido nos autos. O racismo mata no mundo e condena nos autos. Os mortos e condenados são os mesmos pretos. A escravidão não acabou no Brasil, as senzalas foram trocadas pelas cadeias, os navios negreiros por viaturas policiais. Nas periferias das cidades pretos pobres fardados sobem morros atrás de pretos
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Confesso que quando fui procurado pela Kamilla para orientar seu trabalho, apesar de ter essa vontade, além de feliz senti um pouco de medo. Feliz porque tinha a certeza que viria um trabalho excepcional, com medo porque orientar sua autora era como lapidar um diamante
pobres sem farda, pretos e pobres, pobres e pretos matam e morrem. Os pretos que não morrem, são presos e julgados por uma maioria branca, que de uma realidade distante.Quantas
Partindo das obras de Adilson José Moreira e Silvio Almeida, grandes juristas brasileiros da atualidade, Kamilla conseguiu mostrar como a questão racial tem
Ágatas e João Pedros ainda morrerão para vermos que a bala perdida pode errar o alvo, mas acertam a mesma cor? Até quando se achará normal que a população preta presa seja a maioria da população carcerária e se pensará que os pretos cometem mais crimes? Até quando o sistema penal selecionará os puníveis pela cor da pele? Quantas vidas pretas ainda serão ceifadas até que se perceba que o racismo está no mundo? Vidas pretas importam! Os que não entenderam o racismo respondem que todas as vidas importam, sim, todas as vidas importam, mas quando os pretos seguem morrendo em um verdadeiro genocídio contra a população preta, é preciso bradar que VIDAS PRETAS IMPORTAM!Énesse contexto que a obra nos confronta com a realidade. A obra autora não pede passagem, entra derrubando a porta, mostra que somente uma hermenêutica que pense como um negro, compreen dendo a discriminação, o preconceito e o racismo que ainda hoje sentem na pele e na vida é que será capaz de romper com o preconceito. Somente partindo daqueles que sofrem o racismo é que se poderá acabar com ele.
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10 influência na prova testemunhal. Mas não parou por aí, mostrou a necessidade da mudança da postura interpre tativa do direito no Brasil, como o racismo do mundo gera o superencarceramento da população negra. Kamilla mostrou, com toda propriedade de quem sentiu na pele o preconceito, como o racismo do mundo vai parar nos autos e ali é reproduzido. Em tom de denúncia-crítica a autora põe o dedo na ferida para apontar o problema e propor a solução através da mudança da hermenêutica para uma interpretação que leve os fatores raciais na construção de um sistema efetivamente democrático. Não há espaço para o racismo na democracia, ou se acaba com o racismo ou ele corroerá os pilares da Apósdemocracia.sersubmetida a uma banca composta por mim e pelos professores Dr. Renato Patrício Teixeira e a mestranda Gabriela Mendes Machado, o trabalho foi aprovado com nota máxima, com louvor. A banca assistiu não uma defesa, mas uma aula, Kamilla nos brindou com um show, onde discorreu sobre o tema com profundidade, segurança e simpatia. A banca assistiu de camarote. Não haviam arguições a fazer, apenas elogios ao trabalho. O leitor perceberá na leitura o que sentimos quando terminamos de ler o trabalho.
O presente trabalho não precisa de uma apresentação longa, precisa ser lido, precisa ser discutido. É preciso que os juristas entendam o racismo e que se construa uma hermenêutica democrática. A democracia só se constrói livre do racismo, do machismo, do sexismo, da homofobia e de todos os preconceitos que
ainda assombram nosso País. As minorias não precisam ser toleradas, não precisam ser aceitas, precisam ser res peitadas, a democracia existe partindo das diferenças.
Aliás, me soa estranho dizer que os pretos são uma minoria em um país onde a população negra é majoritária, porém a opressão histórica os coloca nessa condição.
Um texto fácil de ser lido e com a profundidade de quem sabe o que está falando, é esse o texto de Kamilla Faria Mello. Simples e direto, crítico e contun dente. Parabéns à editora Tirant por apostar em jovens tão cheios de talento e publicar uma obra como essa.
Não posso terminar sem dirigir algumas palavras à autora, essa é apenas a primeira obra de uma carreira promissora. Kamilla é uma jovem pesquisadora que irradia luz por onde passa, tem sede de saber, urgência de escrever. Esse é só o primeiro trabalho de fôlego dela, tenho certeza que muitos outros virão, pois para lutadoras como ela, que não têm medo da luta democráti ca, forjada no sofrimento de quem sente o racismo no dia a dia e vence o racismo dia após dia, o futuro sorri com enorme esperança e expectativa. Esse é só o começo, Kamilla, o céu é o limite para você! Brilhe, pois o futuro ainda te reserva muito mais que somos capazes de prever!Finalizo a apresentação lembrando de Caetano Veloso e Gilberto Gil, o Haiti é aqui. Espero um dia que não seja aqui e nem no Haiti. Espero um dia que as pessoas possam não ser julgadas pela cor de sua pele, como disse Martin Luthes King Jr. no distante ano de
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E quase brancos quase pretos de tão pobres são tratados E não importa se os olhos do mundo inteiro Possam estar por um momento voltados para o largo Onde os escravos eram castigados E hoje um batuque um batuque Com a pureza de meninos uniformizados de escola secundária Em dia de parada E a grandeza épica de um povo em formação Nos atrai, nos deslumbra e estimula Não importa nada: Nem o traço do sobrado Nem a lente do fantástico, Nem o disco de Paul Simon Ninguém, ninguém é cidadão Se você for a festa do pelô, e se você não for Pense no Haiti, reze pelo Haiti O Haiti é aqui O Haiti não é aqui
Da fundação casa de Jorge Amado
Pra ver do alto a fila de soldados, quase todos pretos Dando porrada na nuca de malandros pretos
E aos quase brancos pobres como pretos Como é que pretos, pobres e mulatos
1968. Em resumo, com orgulho porque vi a autora florescer e amadurecer, por que vi o trabalho evoluir página por página, ou simplesmente porque o trabalho merece ser lido para pensar um mundo antirracista, recomendo a leitura. Quando você for convidado pra subir no adro
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De ladrões mulatos e outros quase brancos Tratados como pretos Só pra mostrar aos outros quase pretos (E são quase todos pretos)
E na TV se você vir um deputado em pânico mal dissimulado
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E
Notar um homem mijando na esquina da rua sobre um saco Brilhante de lixo do Leblon E quando ouvir o silêncio sorridente de São Paulo
Diante de qualquer, mas qualquer mesmo, qualquer, qualquer Plano de educação que pareça fácil Que pareça fácil e rápido representar uma ameaça de democratização Do ensino do primeiro grau se esse mesmo deputado defender a adoção da pena capital venerável cardeal disser que vê tanto espírito no feto E nenhum no marginal se, ao furar o sinal, o velho sinal vermelho habitual
E vá
E
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Diante da chacina presos indefesos, mas presos são quase todos pretos Ou quase pretos, ou quase brancos quase pretos de tão pobres E pobres são como podres e todos sabem como se tratam os pretos E quando você for dar uma volta no Caribe E quando for trepar sem camisinha E apresentar sua participação inteligente no bloqueio a Cuba Pense no Haiti, reze pelo Haiti O Haiti é aqui O Haiti não é aqui (Caetano Veloso e Gilberto Gil – Haiti)
Belo Horizonte, em uma madrugada de inverno do conturbado 2020 José de Assis Santiago Neto1 Mestre e Doutor em Direito Processual (PUC Minas). Professor de Direito Penal e Processual Penal da Faculdade Mineira de Direito (PUC Minas). Advogado
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Eles devem estar plenamente cientes de que a processo legislativo não pode ser visto como mera expressão da racionalidade de um povo soberano, nem a aplicação da norma como um ato de mera adequação da legislação às circunstâncias de um caso. Essa visão limitada encobre o fato de que sociedades liberais estão marcadas por relações hierárquicas de poder, relações que criam diferenciações de status entre os diversos grupos sociais, sendo que elas também podem ter um papel relevante no processo hermenêutico. Esse problema precisa ser objeto de um amplo debate sobre as formas como o processo interpretativo pode promover a inclu
Estamos em um momento no qual não podemos mais nos ater a certas formas de interpretação de nor mas jurídicas que não analisam o locus social no qual os sujeitos estão inseridos. Estamos em um momento no qual não podemos mais ignorar o fato de que o processo de aplicação de normas legais precisa ser pautado pelos princípios teleológicos que regulam nosso texto constitucional. Temos um compromisso constitucional com a justiça social, com a emancipação de grupos vulneráveis e isso significa que precisamos estar atentos ao caráter político do processo de interpretação jurídica.
PRefÁcIO
O tipo de ciência jurídica presente no atual paradigma constitucional não pode mais estar vinculado a posturas interpretativas que recorrem a pressupostos liberais, tais como as noções de neutralidade e imparcialidade. Intérpretes de normas jurídicas não devem buscar a imparcialidade.
Este problema parece ser especialmente agudo na interpretação de normas processuais penais. O sistema criminal brasileiro tem operado ao longo do tempo como um instrumento de subordinação de minorias raciais, um problema cuja complexidade não tem sido devidamente apreciada por juristas brasileiros. A ideia de imparcialidade se mostra especialmente problemá tica em uma realidade social no qual os sujeitos sociais entram no sistema criminal em uma situação diferen ciada. A raça é o principal fator responsável por diferenciações de status na nossa sociedade, motivo pelo qual o entendimento da forma como ele afeta o processo penal tem grande importância para que esse processo possa ser justo. Como tem sido demonstrado por especialistas em sociologia jurídica, a raça opera em muitas instâncias como um texto social: ele é investido de sentidos que são interpretados a partir de conteúdos culturais que circulam dentro da sociedade. A raça é uma forma de diferenciação social que estabelece a forma como operadores do direito percebem os sujeitos que entram no sistemaDiferenciaçõespenal. de status entre pessoas influenciam as maneiras como muitas pessoas são percebidas, sendo que isso pode ocorrer no plano consciente e no plano inconsciente. Uma postura que parte da ideia de imparcialidade traz dificuldades porque ela ignora um aspecto importante do funcionamento da mente humana: nosso psiquismo opera por meio de um processo
15 são de grupos minoritários, o que requer o desvelamento dos meios de produção de disparidades sociais.
16 constante de categorização e generalização dos estímulos que recebemos. Essa categorização ocorre a partir de categorias culturais internalizadas, sendo que elas correspondem às formas como a sociedade estabelece diferenciações entre as pessoas. É preciso observar que essa é a forma como todos os seres humanos raciocinam: todos nós estamos classificando as pessoas a partir de valores sociais compartilhados e eles influenciam nossa percepção do outro mesmo no plano inconsciente. Vemos então que uma perspectiva que parte da noção de neutralidade como parâmetro interpretativo pode contribuir para a injustiça.
Este ótimo trabalho que ora prefacio problematiza então um tópico extremamente relevante para que o sistema penal brasileiro possa operar de forma mais adequada. Ele começa abordando um aspecto de natureza epistemológica relacionado com o lugar a partir do qual os sujeitos falam e interpretam normas jurídicas. As pessoas estão inseridas em diferentes estruturas de poder, elas falam a partir da inserção dentro dessas estruturas; operadores do direito também operam como sujeitos ideológicos, motivo pelo qual não podemos falar que normas jurídicas possam ser interpretadas de forma neutra. Há outra dimensão presente nessa ques tão: a interpretação da norma, a condução de procedimentos judiciais também é influenciada por processos psicológicos que ocorrem fora do plano da consciência das pessoas. Este trabalho acompanha autores que fazem uma diferenciação entre posturas interpretativas baseadas nas noções de neutralidade e objetividade e
É importante observar que essa postura crítica não é uma mera tentativa de desconstrução do direito, ela não pretende apenas descontruir sem oferecer ne nhum tipo de contribuição. Essa perspectiva interpretativa encontra ampla fundamentação no nosso sistema jurídico. Seus fundamentos estão presentes nos primeiros artigos do texto constitucional, artigos que caracterizam as funções das instituições públicas e também os objetivos do nosso sistema político. A autora recorre a pressupostos teóricos que procuram entender o direito como um sistema que tem a função de promover a emancipação de grupos vulneráveis, um propósito juridicamente positivado. Embora ela utilize referenciais teóricos que analisam o lugar da posição subjetiva do intérprete, seu trabalho não se resume a uma defesa de um puro subjetivismo; ele encontra legitimidade nos princípios estruturantes do nosso sistema constitucional.
A autora mostra de forma persuasiva como essa perspectiva crítica se mostra relevante no campo do direito processual penal. Reduzir a interpretação e aplicação das normas desse campo à ideia de procedimento ignora, como afirmamos anteriormente, que as pessoas entram no sistema penal de forma diferenciada e que
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uma postura que procura analisar a norma a partir do seu enraizamento social. Essa última encontra funda mento em estudos críticos que procuram pensar o pa-
pel da raça no processo de interpretação jurídica, o que implica a forma como diferenciações de status entre grupos raciais influenciam procedimentos jurídicos.
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essa diferença de status poderá ter consequências significativas na condução do julgamento das pessoas. Estereótipos descritivos, designações de supostas características de indivíduos, estereótipos prescritivos, designações dos lugares que eles podem ocupar, influenciam a percepção da periculosidade dos indivíduos, o que poderá ter um papel determinante no testemunho. A autora nos convida a pensar o papel do juiz na condução no campo do direito penal, essa seara que lida com um dos bens mais relevantes que um indivíduo pode ter: a liberdade. Uma perspectiva racial crítica ocupa um papel de importância central em uma sociedade marcada pelo processo de encarceramento em mas sa, pelo policiamento que sempre teve pessoas negras como alvos, que considera o depoimento de policiais como parâmetro suficiente para condenar pessoas negras, o que ignora a presença do racismo institucional nas práticas policiais. Esta é uma contribuição importante para um diálogo que precisa ser estabelecido na nossa cultura jurídica: as relações entre direito antidiscriminatório e direito penal. A autora nos mostra a urgência de in vestigarmos os mecanismos responsáveis pela reprodução da subordinação racial, o que inclui as perspectivas utilizadas no processo de interpretação e aplicação de normas do processo penal. Ela demonstra a relevância dos estudos da psicologia social da discriminação para que possamos entender a dinâmica dos estereótipos no campo do testemunho. Espero que este seja o primeiro de uma série de estudos sobre essas interseções entre
19 esses dois campos do direito, algo que tanto falta na nossa cultura jurídica. AdIlSOn JOSé MOReIRA
“Liberdade pra mim é isso: não sentir medo.” Nina Simone “O teu silêncio não vai te proteger.” Audre Lorde