E STUDOS CRIMINAIS REVISTA DE
Nº 87 - OUTUBRO/DEZEMBRO 2022
Instituto Transdisciplinar de Estudos Criminais
Instituto
nº
Transdisciplinar de Estudos Criminais
87 - outubro/dezembro 2022
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Revista de estudos CRiminais – ano XXi – nº 87
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Transdisciplinar de Estudos Criminais nº 87 - outubro/dezembro 2022
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ANO XXI – 2022 – Nº 87
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ANO XXI – 2022 – Nº 87
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ANO XXI – 2022 – Nº 87
PUCRS
Programa de Pós-Graduação em Ciências Criminais
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Decana Associada
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Coordenador do PPGCCRIM
Prof. Dr. Nereu José Giacomolli
ITEC
Instituto Transdisciplinar de Estudos Criminais
Diretoria
Presidente Rodrigo Moraes de Oliveira
Vice-Presidente Camile Eltz de Lima
Secretário Alberto Ruttke
Tesoureira Helena Costa Franco
Conselho Permanente
Alexandre Wunderlich
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Bruna Aspar Lima
Camile Eltz de Lima
Daniel Achutti
Fabio Roberto D’ Avila
Felipe de Oliveira
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Helena Costa Franco
Jader Marques
Lilian Reolon
Marcelo Caetano Guazzelli Peruchin
Marcelo Almeida Ruivo
Paulo Vinícius Sporleder de Souza
Rafael Braude Canterji
Rodrigo Moraes de Oliveira
Salo de Carvalho
Outubro/Dezembro 2022
Notas dos Editores
A Revista de Estudos Criminais chega ao número 87 com uma perda irreparável. O Editorial deste volume homenageia um dos Editores-Assistentes, nosso querido amigo e professor, Me. Antônio Goya de Almeida Martins-Costa, que precocemente nos deixou no penúltimo dia de novembro de 2022.
A justa homenagem é registrada por meio da publicação do discurso proferido pelo Prof. Dr. Marcelo Buttelli Ramos, na Faculdade Fisul, em Garibaldi/RS. A solenidade marcou a inauguração da sala “Prof. Antônio Goya de Almeida Martins-Costa”, onde foi ministrada a sua última classe naquela instituição de ensino:
Discurso Prof. Dr. Marcelo Buttelli Ramos
A pedido dos pais do nosso querido Antônio Goya de Almeida Martins-Costa, coube a mim, na qualidade de amigo, sócio e parceiro acadêmico, dizer algumas brevíssimas palavras em honra à sua memória.
Essas palavras são, em realidade, um testemunho de quase uma década de abnegada amizade e companheirismo. Buscam essas palavras dimensionar, ainda que minimamente, a honra e a alegria de ter podido conviver com um ser humano nada menos que excepcional.
Antônio foi para mim, e certamente para muitos do que ouvem e leem esse discurso, muito mais que um esposo, um filho, um sobrinho, um professor, um colega de pesquisa ou, ainda, um grande advogado... Foi um amigo fiel, um conselheiro, um exemplo de humanidade, retidão e integridade.
Homem de princípios, Antônio jamais permitiu que suas crenças e ideias jurídicas (e políticas) se dobrassem à conveniência do “bom” convívio.
Não fugia aos debates...
Valente como poucos, dobrava-se, contudo, à qualidade daqueles argumentos que reconhecia, com uma humildade ímpar, como logicamente superiores aos seus.
Combatia, também como poucos, a arbitrariedade dos argumentos de autoridade, infelizmente ainda comuns na ciência do Direito.
Toda essa seriedade no enfrentamento dos problemas da ciência jurídica, notadamente da ciência jurídico-penal, fez com que o nosso querido Antônio preferisse, por vezes, reservar seus extraordinários escritos para a leitura crítica dos seus amigos mais íntimos.
Preferiu o nosso amigo, por toda a sua vida, exaltar a qualidade acadêmica dos seus amigos esquecendo-se, por vezes, de enxergar a sua própria.
Numa franca tentativa de corrigir essa injustiça, tomei a liberdade de reunir um grupo de jovens e notáveis cientistas do direito para garantir que o mundo possa, finalmente, conhecer, em detalhes, o pensamento desse incrível penalista.
Nesse sentido, colho a oportunidade para tornar público o fato de que se encontra em processo de revisão, para fins de publicação, a dissertação de mestrado intitulada “Po-
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sição de Garantia em Direito Penal: a problemática da equiparação na omissão imprópria”, defendida pelo Professor Antônio Martins-Costa junto ao programa de Pós-Graduação em Ciências Criminais da PUCRS.
Estamos trabalhando para trazer à tona um texto dotado de uma qualidade ímpar que certamente terá lugar nas bibliotecas das melhores faculdades e universidades do país e na formação de inúmeros futuros penalistas.
Antônio nos deixou cedo, cedo demais, mas também nos deixou um legado enorme, que temos a obrigação de lembrar e cultivar. A nomeação desta sala com o seu nome é um gesto muito significativo nesse sentido.
Só me resta agradecer penhoradamente à FISUL pela homenagem dedicada ao meu querido amigo e esperar que este espaço, que imortalizará o seu nome, seja um espaço dedicado ao cultivo do ensino de um saber jurídico comprometido, por princípio, com o rigor científico e com a defesa intransigente dos direitos humanos.
Finalizo lembrando de um conhecido poema de Mário Quintana, onde se lê que é preciso a saudade para que consigamos sentir em nós a presença misteriosa da vida.
A saudade que sentimos hoje começa, por diversos atos, a ser ressignificada, e passa a ser encarada não simplesmente como uma dolorida falta, mas, também, como presença imortalizada das ideias e valores do Antônio dentro de cada um de nós.
Obrigado
A equipe de editores da Revista de Estudos Criminais, o PPGCCRIM e o !TEC agradecem a imensa oportunidade que a vida proporcionou em poder dividir e compartilhar a produção científica com o querido Antônio Goya de Almeida Martins-Costa.
Prof. Dr. Rodrigo Moraes de Oliveira Editor-chefe
Programa de Pós-Graduação em Ciências Criminais da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PPGCCrim/PUCRS
Prof. Dr. Nereu Giacomolli Consultor
Programa de Pós-Graduação em Ciências Criminais da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PPGCCrim/PUCRS
Me. Alberto Ruttke Editor-assistente
Instituto Transdisciplinar de Estudos Criminais - ITEC
Prof. Dr. Daniel Silva Achutti Editor-chefe
Instituto Transdisciplinar de Estudos Criminais – ITEC
Prof. Dr. Alexandre Wunderlich Consultor
Instituto Transdisciplinar de Estudos Criminais – ITEC
Dra. Maria Eduarda Azambuja Amaral Editora-assistente
Programa de Pós-Graduação em Ciências Criminais da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PPGCCrim/PUCRS
Prof. Me. Daniela Dora Eilberg Editora-assistente
Programa de Pós-Graduação em Ciências Criminais da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul –PPGCCrim/PUCRS
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Sumário
12
Igualdade aos (des)iguais: A colaboração premiada defensiva como aproximação à Paridade de Armas no Processo Penal Brasileiro
Alexis Couto de Brito, Jenifer Moraes e Juan Carlos Ferré Olivé
30
Quais as prisões que nos cercam? Racismo estrutural e política de algoritmos nas decisões judiciais
Ana Célia Passos Pereira Campos, Bruna Luiza de Oliveira e José Luiz Quadros de Magalhães
58
O Supremo Tribunal Federal e o Tribunal Penal Internacional: Petição nº 4.625/2009 – República do Sudão
Antonio Sergio Cordeiro Piedade e Patrícia Camila Fraga
71
100
O “cárcere eletrônico” e suas nuanças: uma análise crítica do monitoramento eletrônico no Brasil
Emanuele Dallabrida Mori e Maiquel Ângelo Dezordi Wermuth
Delicta Mere Prohibita. Reflexões a partir do artigo 273 §1º-b do Código Penal brasileiro. Escrito em homenagem ao
Prof. Doutor Augusto Silva Dias
Fabio Roberto D’Avila e Rodrigo Moraes de Oliveira
126
A (in)distinção processual entre dolo e culpa – parte II: por um novo sistema de imputação subjetiva
Israel D. Jorio
155
Sumário
Autoria criminal: da possibilidade de adoção do conceito unitário reduzido de autor de Helmut Fuchs no concurso de pessoas pelo sistema penal brasileiro
José Mário Ramos Correia de Araújo e Simone de Sá Rosa Figueirêdo
179
Prevenção agressiva e controle da violência na “cidade de muros”: ensaio sobre direito penal paralelo e privatização da segurança
José Antônio Gerzson Linck
201
O risco da espetacularização da política pública de justiça restaurativa
José Querino Tavares Neto, Lucília de Lima e Platon Teixeira de Azevedo Neto
218
A incidência prévia do stalking nos delitos de feminicídio íntimo: considerações criminológicas a partir da perspectiva latino-americana
Luana Aristimunho Vargas Paes Leme e Paola Soldatelli Borsato
Criminal investigation 4.0: perspectives and contours for incorporating artificial intelligence
240
(AI) tools in the criminal prosecution phase
Mateus de Oliveira Fornasier e Rafael Soccol Sobreiro
IGUALDADE AOS (DES)IGUAIS: A COLABORAÇÃO PREMIADA DEFENSIVA COMO APROXIMAÇÃO À PARIDADE DE ARMAS NO PROCESSO PENAL BRASILEIRO
EQUALITY OF (UN)EQUALS: THE DEFENSIVE PLEA
BARGAIN AS AN APPROXIMATION TO THE PARITY OF ARMS IN THE BRAZILIAN CRIMINAL PROCEDURE
RESUMO: O presente ensaio tem por objetivo analisar se é possível uma compatibilização entre mecanismos de justiça negocial, especialmente a colaboração premiada, com o ideal de igualdade de condições no Processo Penal Brasileiro, bem como as formas pelas quais essa aproximação pode ser implementada de maneira a diminuir o comprometimento principiológico havido a partir da inserção dessa ferramenta em nossa legislação. Para tanto, serão trabalhadas as principais consequências observadas a partir do Plea Bargain americano, os principais obstáculos enfrentados pelo instituto a partir da nossa principiologia constitucional, bem como serão sugeridas propostas para a compatibilização do instituto com ideia de paridade de armas e igualdade de conduções no processo penal.
ABSTRACT: This essay aims to analyze whether it is possible to reconcile mechanisms of negotiation justice, especially the award-winning collaboration, with the ideal of equal conditions in the Brazilian Criminal Procedure, as well as the ways in which this approximation can be implemented to reduce the principled commitment arising from the insertion of this tool in our legislation. To this end, the main consequences observed from the American Plea Bargain will be worked out, the main obstacles faced by the institute from our constitutional principles, as well as proposals will be suggested for the compatibility of the institute with the idea of parity of arms and equality
1 Pós Doutor pela Universidade de Salamanca, Pós Doutor pela Universidade de Coimbra, Doutor pela Universidade de São Paulo - USP, Mestre em Direito pela PUC/SP. Professor da Universidade Presbiteriana Mackenzie (Graduação, Lato e Stricto sensu) Advogado. LATTES: http://lattes.cnpq.br/9424442556070110, ORCID: HTTPS://orcid.org/0000-0003-3197-6690.
2 Doutoranda em Direito Penal pela Universidade de Salamanca. Mestre em Direito Penal pela PUC/SP, Pós-graduada em Direito Penal e Direito Penal Econômico pela Universidade de Coimbra/ IBCCRIM, Graduada em Direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Professora da Universidade Nove de Julho, pesquisadora e advogada. LATTES: http://lattes.cnpq.br/7297015076673099, ORCID: https://orcid. org/0000-0002-9931-3458.
3 Doutor em direito pena Universidade de Salamanca. Catedrático de Direito penal da Universidade de Huelva – Espanha.
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A lexis C outo de B rito 1 J enifer M or A es 2 J u A n C A rlos f erré o livé 3
Igualdade aos (des)iguais: A colaboração premiada defensiva como aproximação à Paridade de Armas no Processo Penal Brasileiro
Alexis Couto de Brito, Jenifer Moraes e Juan Carlos Ferré Olivé
of conduct in the criminal proceedings.
PALAVRAS-CHAVE: Colaboração Premiada, Paridade de Armas, Processo Penal, Devido Processo Legal.
KEYWORDS: Plea Bargain, Parity of Arms, Criminal Procedure, Due Process of law.
SUMÁRIO: 1 Introdução; 2 O Plea Bargain americano e as consequências observadas a partir de sua implementação; 3 Colaboração Premiada e Ordenamento Jurídico brasileiro: principais rupturas; 4 Mecanismos de aproximação à paridade de armas no processo penal; 5 Conclusão; Referências.
1 Introdução
A inserção de mecanismos negociais no processo penal mostra-se cada vez mais como um caminho sem volta. Modelos que originariamente foram concebidos para ordenamentos jurídicos de natureza anglo-saxã ganham cada vez mais espaço em países europeus ou latino-americanos, não sendo o ordenamento jurídico brasileiro uma exceção à essa regra.
Diante de um contexto de ampliação dessas ferramentas e considerando que a instrumentalização dessas estruturas negociais já permite a reflexão sobre suas principais consequências, compete a doutrina promover uma interpretação no sentido de orientar sua aplicação, de forma a compatibilizar seus efeitos com a principiologia fundante de cada modelo processual. Ainda que singelamente, este é o objetivo do presente ensaio.
A partir da reflexão sobre os defeitos inerentes à própria natureza da colaboração premiada, serão analisadas as principais deturpações ocasionadas à utilização dessa ferramenta como meio de obtenção de prova no processo penal brasileiro, bem como as formas pelas quais essas incompatibilidades podem ser mitigadas ao mínimo possível.
Partindo-se, portanto, de uma lógica epistemológica a partir da realidade atual, procuramos apontar algumas sugestões para aperfeiçoamento do nosso modelo processual que, ao mesmo tempo, proporcione um reparo na desigualdade de condições entre os sujeitos processuais – amplificada por meio desses mecanismos – e reoriente o modelo de processo penal ao seu real objetivo, qual seja, servir como mecanismo de proteção dos cidadãos frente ao poder punitivo do Estado, que é originariamente ilimitado.
1 O Plea Bargain e as consequências observadas a partir de sua implementação
Apesar da impossibilidade de equiparação da colaboração premiada implementada no Brasil com a estrutura negocial característica do ordenamento jurídico
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estadunidense, o estudo da Guilty Plea e, mais especificamente do Plea Bargain, é fundamental para a identificação das principais controvérsias relativas à utilização da justiça negocial como mecanismo facilitador da obtenção de provas, especialmente por representar o gérmen da disseminação desse modelo de justiça ao redor do globo.
Como a própria nomenclatura indica, o Guilty Plea pode ser conceituado como um instituto para a admissão judicial de culpa, sendo o Plea Bargain a modalidade pela qual essa autoincriminação decorre de uma negociação entre o acusado e os demais sujeitos processuais4. Muito embora esse instituto se refira eminentemente à renúncia do réu à direitos fundamentais – como a vedação a autoincriminação e o cross examination5 – as estruturas processuais contemporâneas passaram a comportar que essa negociação produzisse efeitos a terceiros, na medida em que se passou a admitir que o acusado figure como testemunha, esclarecendo a dinâmica da organização criminosa e auxiliando a captura dos demais integrantes em troca de uma bonificação processual ou material, relativo ao quantum de pena a ser-lhe atribuído.
Sobre o tema, alguns autores entendem que, muito embora a quinta emenda à Constituição dos Estados Unidos proíba obrigar uma pessoa a incriminar a si mesma, não se proíbe obrigar uma pessoa a incriminar a outra, de modo que a barganha por informações não sujeita o réu ao mesmo ônus no exercício de um direito constitucional que a barganha para sua confissão de culpa.6
Ao longo dos anos, essa perspectiva passou a ganhar força dentro da estrutura jurídica do Common Law, sendo avalizada por diversas cortes locais e autoridades, como o juiz federal Stephen Trott, que publicamente enalteceu a “utilidade” da instrumentalização do réu como testemunha7, até ser chancelada pela Suprema
4 Neste sentido: Rogério FILLIPETO. Colaboração premiada: visão a partir do garantismo e do modelo cooperativo de processo, p. 326.
5 Rogério FILLIPETO. Colaboração premiada: visão a partir do garantismo e do modelo cooperativo de processo, p.326.
6 No original: Furthermore, although the fifth amendment prohibits compelling a person to incriminate himself, the Constitution does not prohibit compelling a person to incriminate another; and when one could be imprisoned for refusing to present incriminating information, the offer of an affirmative inducement to present this information may not seem notably disturbing. Bargaining for information, like bargaining for restitution, plainly does not subject a defendant to the same burden on the exercise of a constitutional right as does bargaining for his plea of guilty. Bargaining for information may also pose a lesser risk to the accuracy of criminal judgments. When a defendant is offered lenient treatment for testifying against another, he may testify falsely to provide the prosecutor with what he wants to hear. A similar danger of unreliability may arise when a defendant is induced to convict not another but himself. When one defendant agrees to testify against another, however, his statements will be subject to refutation and critical evaluation in the courtroom. In contrast, as the Supreme Court has noted, a guilty plea “is itself a conviction.... More is not required; the court has nothing to do but give judgment and sentence.”. ALSCHULER, A. Plea Bargaining and Its History. COLUMBIA LAW REVIEW, Hein Online -- 79 Colum L. Rev. 3, 1979. P. 4.
7 FILLIPETO, Rogério. Colaboração premiada: visão a partir do garantismo e do modelo cooperativo de processo
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Igualdade aos (des)iguais: A colaboração premiada defensiva como aproximação à Paridade de Armas no Processo Penal Brasileiro
Alexis Couto de Brito, Jenifer Moraes e Juan Carlos Ferré Olivé
Corte dos Estados Unidos que, em precedente de 19728, admitiu que a concessão de benefícios extremos, como a imunidade, seria compatível com a importância do testemunho prestado, posto que “as únicas pessoas aptas a dar depoimentos úteis são aquelas nele implicadas”.9 A fé na “eficiência” da ferramenta para o deslinde dos casos em que a colheita probatória era deficitária permitiu a extensão dos poderes originariamente concedidos à acusação, de modo que, naquele país, em 1978, a mesma Suprema Corte, chancelou a possibilidade do parquet substituir o juiz de primeiro grau na decisão de quem poderia ser eleito para testemunhar e, em último caso, receber um perdão ou não ser denunciado.10
Muito embora a essência dessa ferramenta compartilhe as mesmas características dos instrumentos inseridos nos ordenamentos jurídicos de matriz continental, há que se salientar que a Guilty Plea comunga de um valor probante imensamente maior que a confissão – esta entendida simplesmente como um meio de prova nos países europeus e latino-americanos – posto que tem como consequência o imediato reconhecimento da procedência das imputações criminosas, o que, por si só, legitimaria a condenação do réu, caso não houvesse a celebração de acordo com a acusação11. Nesse contexto, a translação desse atributo aos países não pertencentes a essa modalidade de ordenação processual, segundo adverte Schünemann, não satisfaria as rígidas exigências principiológicas que alicerçam o sistema, e inclusive levaria a destruição do nexo legitimador existente entre o direito material e o direito processual:
Condenar alguém simplesmente porque ele assim o deseja não corresponderia à expectativa relativa ao cumprimento da finalidade da pena e seria verdadeiramente um despropósito. Portanto, o instituto do Guilty plea destrói o nexo legitimatório existente entre o processo penal e o direito penal material e por isso não pode jamais servir de fundamento para uma justa imposição da sanção penal.12
A despeito dessa incompatibilidade medular entre o instituto e o princípio de culpabilidade que, vale dizer, também encontra representação nos países anglo-saxões, a aplicação do Plea Bargain ao longo dos anos veio acompanhada de uma série de outros problemas, inclusive já ressaltados por estudiosos por países do Common Law. No âmbito criminológico, por exemplo, pesquisas demonstraram
8 Kastigar v. United States, 406 U.S. 441, 446 (1972)
9 FILLIPETO, Rogério. Colaboração premiada: visão a partir do garantismo e do modelo cooperativo de processo. P.18
10 ALSCHULER, A. Plea Bargaining and Its History. COLUMBIA LAW REVIEW, Hein Online -- 79 Colum L. Rev. 3, 1979. P. 4.
11 SCHUNEMANN, Bernd. Um olhar crítico ao modelo processual penal norte-americano. Estudos de direito penal, direito processual penal e filosofia do direito. GRECO, Luís (Coord.). São Paulo: Marcial Pons, 2013. P. 251
12 SCHUNEMANN, Bernd. Um olhar crítico ao modelo processual penal norte-americano. Estudos de direito penal, direito processual penal e filosofia do direito. GRECO, Luís (Coord.). São Paulo: Marcial Pons, 2013. P. 251
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Revista de Estudos Criminais 87
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que a popularização dessa ferramenta negocial veio acompanhada por um decréscimo no número de condenações que, após a audiência de instrução e julgamento, resultaram em absolvições. Nos termos da conclusão apresentada por Finkelstein, esse decréscimo, em um índice que deveria ter se mantido estável independentemente da implementação da técnica, demonstraria que as pessoas que restariam absolvidas se submetidas a um julgamento comum – seja por falta de provas, seja porque realmente eram inocentes - agora estavam se declarando culpadas, especialmente pelo medo de serem encarceradas ao final do processo:
Com base na análise que segue, concluo que a pressão sobre os réus para se declararem culpados na Justiça Federal tem induzido um alto índice de condenações por “consentimento” em casos em que nenhuma condenação teria sido obtida se houvesse contestação. Se esta conclusão estiver correta, ela sugere que, ao avaliar as práticas de delação premiada, o problema do “caso fraco” não pode ser ignorado, e que julgamentos mais particularizados sobre a relação entre a força da indução e o caso do promotor podem ser necessários para satisfazer as exigências constitucionais e éticas. normas relativas a fundamentos13
Em seu estudo, o autor enfatiza que a pressão exercida para que os réus se declarassem culpados estaria sendo empregada nos casos em que a condenação não poderia ser efetivada pelo arcabouço probatório contido nos autos14 e ressalta a preocupante possibilidade de que pelo menos um terço de todos os réus que se declararam culpados em distritos de alta taxa escapariam da condenação se tivessem se recusado a se autoincriminar.15
As conclusões de Finkelstein chegam a um patamar ainda maior de gravidade quando observamos pesquisas mais recentes indicando que somente 2% de todos os casos federais vão à julgamento nos Estados Unidos, e que a grande maioria dos que são submetidos a uma audiência resultam em condenação.16 Para além
13 No original: On the basis of the analysis that follows, I conclude that the pressure on defendants to plead guilty in the federal courts has induced a high rate of conviction by “consent” in cases in which no conviction would have been obtained if there had been a contest. If this conclusion is correct, it suggests that in assessing plea bargaining practices the “weak case” problem cannot be ignored, and that more particularized judgments about the relation between the strength of the inducement and the prosecutor’s case may be necessary to satisfy constitutional and ethical standards relating to pleas. FINKELSTEIN, M. O. A Statistical Analysis of Guilty Plea Practices in the Federal Courts. Harvard Law Review, v. 89, n. 2, p. 295, dez. 1975.
14 FINKELSTEIN, M. O. A Statistical Analysis of Guilty Plea Practices in the Federal Courts. Harvard Law Review, v. 89, n. 2, p. 295, dez. 1975.
15 FINKELSTEIN, M. O. A Statistical Analysis of Guilty Plea Practices in the Federal Courts. Harvard Law Review, v. 89, n. 2, p. 295, dez. 1975. No original: Instead, pressures to plead guilty have been used to secure convictions that could not otherwise be obtained. In the highest rate guilty plea districts, the marginal defendants covered by our analysis constitute approximately one-half the total group pleading guilty. Assuming (unrealistically) that no other guilty plea defendants would have escaped conviction, the 69 percent implicit non-conviction rate for the marginal group means that at least one-third of all defendants pleading guilty in high-rate districts would ultimately have escaped conviction if they had refused to consent. Clearly, plea bargaining in such districts raises difficult ethical and constitutional issues that the Supreme Court ignored in its Brady opinion.
16 Pesquisa realizada em 2018. Disponível em: https://www.pewresearch.org/fact-tank/2019/06/11/only-2-of-federal-criminal-defendants-go-to-trial-and-most-who-do-are-found-guilty/. Último acesso em 27.03.2023.
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Igualdade aos (des)iguais: A colaboração premiada defensiva como aproximação à Paridade de Armas no Processo Penal Brasileiro
Alexis Couto de Brito, Jenifer Moraes e Juan Carlos Ferré Olivé
da experimentação no âmbito processual, as mesmas conclusões são alcançadas quando o nível de pressão exercida é inclusive menor do que o apresentado pelo Estado ante um cidadão que potencialmente enfrentará uma pena privativa de liberdade. Como exemplo, citamos um estudo que envolveu dezenas de estudantes universitários e ocorreu ao longo de vários meses, que revelou que o problema da barganha não se restringe ao âmbito processual, nem está isolado de um conjunto raro e obscuro de casos, de modo que mais da metade dos participantes inocentes estavam dispostos a admitir falsamente a culpa em troca de um benefício percebido17
Ainda no tocante à injustiça inerente à aplicação do Plea Bargain, a doutrina vem há anos denunciando a natureza extorsionista desse tipo de negociação que, em realidade, não pressupõe partes em um mesmo patamar informacional e, por conseguinte, não é capaz de proporcionar um consenso18, posto que o réu sempre ocupará uma posição desvantajosa:
A desvantagem para o réu é que a negociação é uma forma de extorsão para a assunção de culpa. Os cidadãos, que nunca entraram em contato com o sistema de justiça, especialmente como réus, acreditam firmemente que nunca considerariam se declarar culpados. No entanto, a realidade da acusação pode ser bem diferente do que as pessoas imaginam ser, especialmente se o governo tiver uma “testemunha” pronta para mentir em apoio à acusação ou, possivelmente, fortes evidências circunstanciais. Nesse ponto, o advogado de defesa, especialmente se for nomeado ou um defensor público, instará o suspeito a concordar com uma sentença menor, em vez de arriscar uma sentença muito mais longa19.
Para além da impossibilidade de consenso, a barganha especificamente utilizada para legitimar o testemunho de um réu em detrimento de outros representa um incremento na probabilidade de uma condenação injusta, posto que a recompensa serve de estímulo para que o réu, já acuado pela situação, não meça esforços para dizer o que for mais conveniente para a acusação e, consequentemente, para aumentar as suas chances de fazer um bom acordo e reduzir a sua pena. Nessas condições, convencer a promotoria de fatos amparados por uma expectativa sobre sua veracidade nem sempre é tão difícil, o que pode proporcionar resultados catastróficos seja em relação à justiça, seja em relação aos demais envolvidos20
17 DERVAN, Luciane.; EDKINS, Vanessa A., The Innocent Defendant’s Dilemma: Na Innovative Empirical Study of Plea Bargaining’s Innocence Problem, p. 04.
18 SCHUNEMANN, Bernd. Um olhar crítico ao modelo processual penal norte-americano. Estudos de direito penal, direito processual penal e filosofia do direito. GRECO, Luís (Coord.). São Paulo: Marcial Pons, 2013. P. 251
19 VIANO, Emilio C., Plea bargaining in the United States: perversion of justice, in: Revue internationale de droit pénal, p. 119.
20 VIANO, Emilio C., Plea bargaining in the United States: perversion of justice, in: Revue internationale de droit pénal, p. 136.
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Mais do que isso, essa modalidade negocial também materializa uma violação do cânone da proporcionalidade posto que a recompensa oferecida pode servir como um incentivo21 aos membros mais graduados da organização criminosa, que necessariamente terão mais informações sobre a estrutura organizacional e os delitos perpetrados em sua totalidade. Justamente essas pessoas, que normalmente receberiam uma punição mais elevada, é que são agraciadas com a diminuição de pena ou, até mesmo, com a dispensa da acusação22:
Quanto mais envolvido um acusado estava na atividade criminosa ou mais alto ele estava na hierarquia da organização criminosa, mais valioso é para o promotor e a polícia. Assim, maior a probabilidade dessas negociações com o promotor levarem a uma penalidade substancialmente reduzida. Outros membros do mesmo grupo criminoso, que apenas executam ordens e não têm informações particularmente importantes para fornecer, são frequentemente enviados para a prisão por períodos mais longos, simplesmente porque não têm valor para o sistema23
Nessas situações, os defensores da medida costumam afirmar que o interesse público em punir outros infratores e desmantelar organizações complexas permitiria o sacrifício da impunidade do delator24. Por outro ângulo, em relação ao próprio mecanismo utilizado para pressionar o réu para a celebração do acordo, também não são incomuns as denúncias sobre práticas abusivas – de maus tratos até tortura física ou psicológica – para constranger o réu a aceitar qualquer condição para se ver livre, especialmente em casos midiáticos em que as autoridades também são pressionadas para a resolução da questão25.
Muito embora todos esses problemas já tenham sido apontados pela doutrina anglo-saxã e estejam longe de serem solucionados, a ideia de “eficiência” promovida pelos atores do sistema de justiça estadunidense, mormente nos casos em que a procuradoria não logrou levantar provas pela via ordinária, permitiu a exportação de ferramentas negociais análogas para outros países, notadamente da Europa e América Latina. Essa apressada importação, vendida como um mecanismo para modernização da legislação, contribui para uma ruptura nuclear no sistema processual continental, em particular no que diz respeito à paridade de armas, cânone constitucional contemporâneo. Eis o que demonstraremos a seguir.
21 BENTHAM, Jeremy. The rationale of reward, p. 104.
22 SÁNCHEZ, García de Paz. Isabel. El coimputado que colabora con la justicia penal, p. 09/10.
23 VIANO, Emilio C., Plea bargaining in the United States: perversion of justice, in: Revue internationale de droit pénal, p. 118.
24 ALSCHULER, A. Plea Bargaining and Its History. Columbia Law Review, Hein Online -- 79 Colum L. Rev. 3, 1979. P. 4.
25 VIANO, Emilio C., Plea bargaining in the United States: perversión of justice, in: Revue internationale de droit pénal, p. 130
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Igualdade aos (des)iguais: A colaboração premiada defensiva como aproximação à Paridade de Armas no Processo Penal Brasileiro
Alexis Couto de Brito, Jenifer Moraes e Juan Carlos Ferré Olivé
3 Colaboração Premiada e Ordenamento Jurídico brasileiro: principais rupturas
Na estrutura processual brasileira, a atual regulamentação da colaboração premiada é prevista na lei 12.850/2013 (Lei das Organizações Criminosas), nos artigos 3-A até o 7º. O instituto, contudo, não foi inserido em nosso ordenamento de maneira uniforme, havendo a previsão de modelos negociais diversos nas leis 8.072/90 (Lei de Crimes Hediondos), 7.492/86 (Crimes de Colarinho Branco), 9.613/98 (Lei da Lavagem de Dinheiro) e 11.340/03 (Lei de Drogas).
Apesar das diferenças estruturais, a atual concepção de colaboração premiada no ordenamento jurídico brasileiro veio acompanhada de toda a problemática enfrentada em sua nação originária, o que desemboca em gravíssimas incompatibilidades com vigas mestras que sustentam nosso ordenamento jurídico, como o sistema acusatório e o devido processo legal.
Em relação às dificuldades havidas quanto a própria natureza do instituto – tais como as injustiças produzidas, a não confiabilidade dos depoimentos prestados e a pressão ilegitimamente produzida por agentes do Estado para a celebração dos acordos – foi possível observar sua incidência em nosso território especialmente após o uso indiscriminado da colaboração premiada pelas autoridades até então condutoras da denominada “operação lava-jato”.
A partir de eventos recentes denunciados pelos principais meios de comunicação, testemunhamos valiosos exemplos de como não deve conduzir um processo penal inserido em um contexto democrático e, especialmente, regido por uma principiologia tal como a implementada pela Constituição Federal de 1988. Para citarmos alguns casos, temos acordos celebrados naquela oportunidade em que os próprios colaboradores reconheceram a falsidade das informações prestadas26, testemunhos que foram desacreditados após investigações conduzidas pela própria polícia federal27, delatores que denunciaram a pressão exercida por autoridades públicas visando a incriminação de alvos específicos28 e um panorama de generalização da ferramenta, em que dezenas de colaboradores foram beneficiados, subvertendo-se a própria utilização do instituto como medida excepcional para a obtenção de provas29
26 Neste sentido: https://www.brasildefato.com.br/2021/09/14/em-carta-de-proprio-punho-leo-pinheiroconfessa-que-mentiu-em-delacao-contra-lula
27 Neste sentido: https://www.estadao.com.br/politica/delacao-desmentida-pela-pf-favorece-lula-e-podeincriminar-palocci-dizem-juristas/
28 Neste sentido: https://www.cnnbrasil.com.br/politica/era-nitido-que-a-questao-era-com-o-lula-dizdelator-da-lava-jato-em-filme/
29 Neste sentido: https://www.intercept.com.br/2021/05/25/delacao-odebrecht-lava-jato-falta-provas/
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Tais resultados catastróficos sobrelevam a precariedade do instituto e, por decorrência, a incompatibilidade havida entre a vulgarização da colaboração premiada com os postulados que deveriam conduzir nosso modelo processual penal.
Em relação ao modelo acusatório, viga mestre do nosso sistema, temos que a introdução de casos de acusação “negociada” em processos criminais pode permitir que os interrogatórios realizados durante a investigação se assemelhem à “Santa” Inquisição. Tendo-se o método inquisitorial como base para a obtenção das provas o acusador não mais estaria se pautando pela criteriosa avaliação dos fatos e de suas evidências, mas sim em uma mera declaração de intenções, convicções sem provas, uma exacerbação artificial das consequências criminais muito além do que racionalmente poderíamos considerar como “uma solução justa”. E no âmbito de uma inquisição, métodos de intimidação do acusado como a possibilidade de expandir a acusação para alcançar terceiros ligados a ele (cônjuge, filhos etc.), pareceres contrários à revogação de sua prisão e a demais direitos do réu por não concordar em colaborar na descoberta dos fatos, transformam o Ministério Público em um “déspota” da investigação, acusação e desfecho do processo penal e, consequentemente, do jus puniendi do Estado, o que não tem nenhum amparo constitucional30.
Em relação ao cânone do Devido Processo Legal, da mesma forma, é possível notar que a coação explícita ou implicitamente infligida compromete o pressuposto básico de qualquer estrutura processual pós iluminista, qual seja, a liberdade do próprio acusado em se manifestar sobre os fatos a ele imputados e gozar das garantias que lhe são inatas para produzir as provas que considerar mais adequadas:
Quais são alguns dos fatores que mais frequentemente levam os suspeitos a fazer uma confissão falsa que leva a uma condenação injusta? Podem ser medo ou intimidação. A maioria das pessoas não tem conhecimento ou contato com a polícia e o sistema de justiça criminal. Assim, sua reação a uma prisão e acusação de irregularidades criminais pode gerar confusão, apreensão, medo e intimidação, especialmente quando interrogados pela polícia. Os suspeitos que já tenham sofrido prisões anteriores e talvez condenações no passado podem sentir que estão em uma situação desesperadora, pois será fácil para a polícia e a promotoria convencer um júri de sua culpa, dada a sua ficha criminal31
Não suficiente, a condução – e disseminação – dos modelos de justiça negociada, tal como observamos, compromete um dos principais pressupostos da legitimidade processual, qual seja, a igualdade de condições entre os sujeitos (evi-
30 Neste sentido, ORTIZ, Juan Carlos. La delación premiada en España: instrumentos para el fomento de la colaboración con la justicia, p. 61/62.
31 VIANO, Emilio C., Plea bargaining in the United States: perversion of justice, in: Revue internationale de droit pénal, p. 129.
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