Improvável - Valéria Barros (total 122 pág.)

Copyright © Valéria Barros Todos os direitos reservados. Impresso no Brasil. Nenhuma parte deste livro pode ser utilizada, reproduzida ou armazenada em qualquer forma ou meio, seja mecânico ou eletrônico, fotocópia, gravação etc. sem a permissão por escrito do autor.

EDITORA Camilla Andrade (Impulsione Comunicação) ASSISTENTE EDITORIAL Pollyana Rocha (Impulsione Comunicação) CAPA Thyago Ximenes

REVISÃO Ana Luiza Martins DIAGRAMAÇÃO Thyago Ximenes FOTOS Allysson Lopes

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

Barros, Valéria Improvável / Valéria Barros; Fortaleza, Ceará: Primeira Pessoa, 2022 120 p.: il.; 15,5x20,5 cm.

ISBN 978-85-68377-02-4 1.Valéria Barros. 2. Biografia. 3. Reflexão

Agradecimentos A Deus, pela vida, pelos recomeços e por me presentear com pessoas que fazem parte da minha história. É por elas que eu vivo: - Meus filhos Nestor, Sara e Rebeca, a quem amo imensamente e para quem quero entregar todos os dias o meu melhor.

- Meu marido Markus, que é uma grande prova do amor de Deus por mim. Sei que o Senhor decidiu investir na minha vida ao me presentear com a sua, sempre companheiro, estando ao meu lado pacientemente, me apoiando em cada mudança que eu precisei vivenciar. Eu sempre tive sonhos, mas não sabia o que e como fazer para realizá-los, mas você me ensinou e conduziu, certamente inspirado pelo Espírito Santo.

Prefácio Todos os dias cruzamos com pessoas que carregam consigo uma história; uma trajetória de lutas e vitórias; o resultado de uma construção resultante de escolhas sobre o que fazer com os episódios da vida que deixaram marcas e feridas.

Talvez você já tenha cruzado com Valéria Barros. De repente você saiba algo sobre ela, um recorte de quem ela é de fato. Pode ser que a conheça como mãe, como esposa ou como empresária, mas agora, com esta Biografia, você saberá os detalhes desta mulher sobre quem muitos podem ter dito ser uma IMPROVÁVEL. De uma infância e adolescência marcados por abandono e abusos, a uma vida pessoal e profissional próspera, o meio do caminho conta com viradas de chave que foram determinantes para reconstruir a sua história.

Autoconhecimento, perdão, atitude e coragem. Valéria Barros vivenciou o seu processo e, com muita generosidade, compartilha conosco esta inspiradora narrativa, convidando cada leitor a também refletir sobre a própria vida.

André Guanabara Médico

Sobre Valéria Barros Valéria Barros é empresária, esposa do Markus, mãe de três filhos, membro da CCVideira, dona de uma fé inabalável e sonhadora. No mundo dos negócios, é conhecida como empreendedora nata e CEO da Trevo, marca reconhecida pela gelateria e pelo açaí. Em plena expansão, Valéria comanda um time com lojas em vários estados do Brasil. Protagonista de uma história de superação emocionante, ela revela no livro experiências, traumas, insights e o caminho que a levou da falta de perspectiva de vida à realização de muitos sonhos. Isso dá uma sorte!

ÍNDICE CAPÍTULO 01 ESTRUTURA FAMILIAR: A BASE DE TUDO

14

CAPÍTULO 02 A FUGA

30

CAPÍTULO 03 PELAS MÃOS DE UM ANJO

38

CAPÍTULO 04 A LIBERTAÇÃO

48

CAPÍTULO 05 AMOR À SEGUNDA VISTA

60

CAPÍTULO 06 DOS OBSTÁCULOS, FEZ-SE A VITÓRIA

70

CAPÍTULO 07 AGORA VIREI MÃE

80

CAPÍTULO 08 CONECTADA COM DEUS

92

CAPÍTULO 09 A TREVO

98

CAPÍTULO 10 LIÇÕES DE UMA VIDA

116

CAPÍTULO 01 A glória desta última casa será maior do que a da primeira, diz o Senhor dos Exércitos, e neste lugar darei a paz, diz o Senhor dos Exércitos” (Ag 2:8-9)

IMPROVÁVEL

1 ESTRUTURA FAMILIAR: A BASE DE TUDO Nasci em Pirapora, cidade localizada a 349 quilômetros de Belo Horizonte-MG, em 25 de fevereiro de 1980. Pouco tempo permaneci em terras mineiras. Vera, minha mãe, veio do Ceará em 1977 para ser funcionária de um restaurante em Pirapora, conheceu meu pai biológico e, em pouco tempo, engravidou e eu nasci.

Aos dois anos de idade enfrentei minha primeira provação: mamãe separou-se de meu pai e decidiu morar em Tabuleiro do Norte, no Ceará, onde vivia sua família. Com pouco ou quase nenhum recurso financeiro, ela saiu fugida de Pirapora porque meu pai não queria o fim do relacionamento. Levando apenas uma mamadeira, poucas roupas e comigo nos braços, minha mãe dirigiu-se à rodoviária, mas sem condição nenhuma de comprar os bilhetes e até mesmo de nos manter durante a viagem. Lá chegando, bateu à porta de um restaurante local e ofereceu o serviço de lavagem de pratos em troca de um lanche e de nossas 16

VALÉRIA BARROS

passagens. Deu certo. Na cozinha do restaurante, colocou-me embaixo da pia num caixote de cerveja forrado com alguns panos para conseguir lavar as louças utilizadas.

Com o dinheiro nas mãos, comprou as passagens e comida suficiente para o início da longa viagem de, pelo menos, quatro dias até o Ceará. Ao embarcar no ônibus, mamãe logo iniciou uma conversa amistosa com o motorista, contando-lhe um pouco de sua história.

No auge dos meus dois anos, já demonstrava um grau de esperteza para lidar com as situações (até as desconfortáveis) e, durante o percurso da nossa viagem, circulava sapeca pelo corredor do ônibus, entre os bancos, fazendo graça e conquistando a simpatia de alguns passageiros. Nas paradas do ônibus, o motorista, sensibilizado com a nossa situação e, demonstrando ser um homem de bom coração, ofereceu-se para pagar os nossos banhos e refeições em todo o percurso. Assim, superamos a demorada viagem até o Município de Tabuleiro do Norte (CE), considerada a cidade dos caminhoneiros, o ponto de parada de muitos motoristas, como também a rota de passagem e acesso a outros destinos.

Era plena madrugada quando chegamos ao nosso destino.

Descemos do ônibus e nos dirigimos à casa de minha avó materna, 17

IMPROVÁVEL

que morava com algumas irmãs. No local, também funcionava um bar chamado Timbaúba, nome de uma árvore plantada nos fundos da casa. Do funcionamento do bar, vinha todo o sustento da casa, mantida com muita dificuldade. E, por incrível que pareça, até hoje me lembro dessa cena: minha avó colocou-me em cima da mesa e ficou olhando para mim, admirando-me. Não sei o que se passou na cabeça dela quando me viu, tão pequena, chegando num ambiente que não oferecia muitas possibilidades.

Por vezes, aquela família passava dificuldades a tal ponto de não ter o que comer e, agora, eu e minha mãe fazíamos parte dessa dura realidade.

Então, cresci nesse ambiente onde minha avó era alcoólatra e, hoje, entendo porque ela olhava tanto para os netos, todos com fome e sem perspectivas, era muita miséria num só lugar.

Lembro-me bem, na minha infância, de um dia em que ela estava muito embriagada e cheguei junto dela pedindo um pacote de biscoito. Vi no seu semblante muita tristeza, quando então ela pegou na minha mão e me respondeu: - Minha filha, tenha fé em Deus, que Deus vai mandar muita comida para você ainda. Esta frase ficou gravada na minha memória, começou a fazer parte da minha vida, aquela vontade de acreditar em um ser superior ou em alguém que iria me salvar.

18

VALÉRIA BARROS

A partir de então, comecei a ter fé em Deus.

Em pouco tempo nessa nova vida viria outra grande provação: minha mãe começou um novo relacionamento, e logo o homem estava morando conosco. Mas, sem a seriedade esperada, acabou engravidando de outra pessoa, e nasceu minha irmã Vanessa.

Entre idas e vindas, engravidou novamente de outro homem, e nasceu meu irmão caçula, Diogo. Nessa briga de vai e volta, vai e volta, minha mãe acabou reatando o relacionamento inicial.

Todos os três filhos foram registrados por ele, embora não fosse biologicamente pai de nenhum.

Os anos foram passando e fomos criados dentro de uma realidade de brigas, infidelidade, desunião e muita miséria.

Passávamos muita fome, não fazíamos todas as refeições.

Dentro de casa, a comida era algo difícil de ser alcançada para a gente. Na hora do almoço, lembro que quando o marido da minha mãe chegava com alguma comida, eu e meus irmãos tínhamos que esperar ele terminar de comer, muitas vezes não sobrava quase nada. Em um desses dias, ficamos esperando, famintos e nervosos, ele levantar e sair da mesa, e quando saiu não deixou nada. Eu, com muita fome, comecei a chupar o osso da galinha, o mesmo que ele já tinha colocado na boca, procurando algum resto de carne, e essa cena se repetiu outras vezes. Até hoje não 19

IMPROVÁVEL

como carne de galinha porque fui acostumada a chupar apenas o osso.

Muitas vezes, consegui saciar um pouco da fome na escola.

No horário do lanche, comia o que podia e ainda levava mais um pouco para casa escondido. Era bolacha, pão, o que tinha. Ficava com vergonha dos meus colegas, mas só Deus sabia a fome que passávamos.

Ao lado da nossa casa, morava uma família que, aos meus olhos, era perfeita. Todos os dias os pais e os filhos almoçavam juntos, com muita fartura. Eu ficava olhando da janela e sonhando com aquela cena, admirava aquela união e aqueles momentos.

Pensava: por que eu não tenho aquela família, aquela comida, as bonecas que ela tem? A filha do casal era minha amiga e, às vezes, brincávamos na rua. Um dia, tomei coragem e pedi para almoçar com eles. Na ocasião, o pai dela levantou-se bravo da cadeira e disse em alto e bom som que não queria mais a filha dele brincando com a filha de certo tipo de gente. Saí dali correndo e chorando.

Não era a primeira vez que eu estava sendo expulsa da casa dele, eu sempre voltava porque achava aquela família perfeita.

Em outro dia, essa minha amiga estava comendo uma maçã 20

VALÉRIA BARROS

na calçada. Cheguei perto dela e perguntei que gosto tinha a maçã. Ela respondeu o óbvio para ela: tem gosto de maçã. Mas eu nunca tinha comido essa fruta. Quando ela terminou de comer e descartou o talo ali do lado, esperei ela entrar, corri, lavei o restinho da maçã e comi.

Muitas vezes na escola não prestava atenção nas aulas, contando o tempo que faltava para a hora do recreio. Alguns dias acordava e minha única refeição do dia era a fornecida pela escola. Por essas situações, não culpo minha mãe e nem minha avó, mesmo ela sendo alcoólatra, hoje entendo que era a forma de esquecer os problemas por ver ali os netos passando fome. Minha mãe, quando aparecia em casa, vinha sempre trazendo comida, roupas, presentes, e tudo o mais que conseguia das viagens. Por outro lado, era muito ausente e não via grande parte do que a gente passava.

Certa vez, no final do ano, perto do Natal, vi pela janela da casa da minha amiga ela escrevendo e desenhando num papel.

Perguntei-lhe o que escrevia, no que me disse que era uma cartinha para o Papai Noel pedindo uma bicicleta. Quis saber como fazia, ela explicou-me que bastava escrever a carta informando o presente que gostaria de ganhar, colocar a cartinha numa meia e pendurar na janela que Papai Noel levava e trazia o presente 21

IMPROVÁVEL

na noite de Natal. Saí correndo para escrever a carta pedindo uma bicicleta, coloquei na meia e pendurei na janela. Lembro que fui dormir muito ansiosa e, na manhã seguinte, quando olhei debaixo da rede não tinha nada. Saí correndo pela casa dizendo que alguém tinha pego minha bicicleta e todos começaram a rir, dizendo que não havia bicicleta nenhuma. Fui à casa da minha amiga e ela estava lá toda feliz com seu presente. Fiquei com muita raiva do Papai Noel, como ele tinha passado na casa dela e não tinha passado na minha? Ele só existia para os ricos? Desde então desencantei-me de toda história de Papai Noel e nunca incentivei essa crença entre meus filhos.

Foi, portanto, dentro de um núcleo familiar totalmente vulnerável que passei pelas maiores provações. Mas sentir a dor da fome, não ter uma referência de segurança e afeto como deveriam ser os pais, viver na pobreza, ter que pedir favor para tudo, não eram as piores questões. Com apenas sete ou oito anos comecei a ser exposta a situações de abuso sexual, que ninguém, menos ainda uma criança, deveriam passar jamais. Primeiro fui eu a vítima, depois minha irmã, temos uma diferença de idade de três anos. Tenho lembranças terríveis de nós duas com nove e doze anos sendo expostas a situações horrendas.

Tudo aquilo era desagradável, não entendia porque tínhamos 22

VALÉRIA BARROS

que viver aquelas situações. Ao anoitecer, já começava a ter crises de nervosismo, ficava roendo a unha, ia dormir logo, e tentava acreditar que aquele mal não se repetiria.

Foram anos passando por tudo aquilo, entendendo que poderia ser “normal”, até que um dia, já com quase quatorze anos, conversando com uma amiga, perguntei-lhe se algum familiar fazia o mesmo com ela, e comecei a contar tudo com detalhes.

Minha amiga ficou em choque, começou a chorar e me abraçar.

Por ser mais velha que eu, disse-me que não, que tudo aquilo que estava acontecendo era totalmente errado e me aconselhou a falar com alguém, ou buscar ajuda profissional. A partir daquela confidência passei a entender, de fato, os acontecimentos. Não iria permitir mais aquela situação. Certo dia, em que ele ainda tentou me agarrar num terreno próximo à casa onde morava, consegui fugir, mesmo ele disparando tiros contra mim.

Decidi conversar primeiro com uma tia em quem muito confiava. Depois que relatei tudo, ela tomou a decisão de me levar até a juíza da cidade. Naquela época, a casa de uma juíza era conhecida de todo mundo. A magistrada logo nos atendeu quando minha tia bateu à porta. Chorando muito, contou todo o absurdo que eu estava passando. Pelo fato de haver o envolvimento de um familiar, que era autoridade na cidade, a juíza ficou assustada e, 23

IMPROVÁVEL

diante da situação, orientou que chamasse minha mãe ao fórum para que eu falasse tudo o que estava se passando. Encorajada por estar sendo orientada e na certeza de que, a partir dali, receberia o apoio, o carinho e a atenção da minha mãe diante de um caso tão grave, eu tinha a segurança de que ela não iria mais me deixar passar por tudo aquilo.

No dia agendado comparecemos ao Fórum, eu, minha tia e minha mãe. Eu estava com muito medo, e minha mãe, sem entender nada. Comecei a falar tudo, a relatar todos os acontecimentos. A juíza pediu-me que confirmasse a veracidade das informações, eu confirmei. Minha mãe não acreditou em mim.

Disse que eu estava inventando tudo, que o homem citado como abusador era uma pessoa boa e não poderia estar fazendo o que eu estava relatando. Naquele momento fiquei sem chão, ainda tinha esperança de ter na minha mãe uma segurança, um colo, um apoio. O que recebi foi difamação e uma surra quando cheguei em casa. Isso mesmo, apanhei muito. Fui espancada com um cinto e ainda tive uma hemorragia no olho, provocada pela fivela do cinto. Foi uma surra para 10, que eu levei sozinha.

Naquele dia, a janela do meu quarto estava aberta e não pensei 24

VALÉRIA BARROS

duas vezes: quando terminou a surra e ela fechou a porta, pulei a janela e fugi. Nunca mais voltei para aquela casa.

Faço parte das estatísticas (abaixo da realidade) das crianças que sofreram abuso ou sofrem, porque, com certeza, os números são bem maiores que os registrados. Muitas famílias escondem, passam por cima e fingem não ver os impactos que os abusos causam na vida de crianças e adolescentes. Grande parte dos abusadores são pessoas conhecidas, familiares, vizinhos ou pessoas próximas. Não podemos compactuar com essas práticas. É importante denunciar. Sofri essa violência há quase 30 anos e os efeitos na alma ainda são presentes. Hoje, temos maiores recursos e formas de combater abusos e violência infantil.

Diante de casos como esses não hesite em denunciar pelo disque 100.

A família exerce um papel fundamental na formação psicossocial das crianças, cuidando de sua segurança, zelando pela sua integridade. É na infância que estabelecemos muitas das nossas crenças, da nossa identidade e da nossa forma de encarar a vida. Lares onde não existe um ambiente afetuoso, respeitoso e responsável, formam seres humanos fragilizados, transgressores, replicadores de atitudes erradas. O homem que 25

IMPROVÁVEL

me abusou e transformou parte da minha infância e adolescência em pesadelo, também sofreu abuso na infância.

Creio que a minha dor está ligada ao meu propósito de vida.

Hoje, ajudo mulheres que sofreram abuso e famílias que passam fome.

26

IMPROVÁVEL

Para refletir Os começos da nossa vida em geral marcam e por vezes determinam o futuro. Mas, mesmo não sendo possível voltar no tempo, é possível decidir o que fazer com as marcas que ficam no coração e na alma. Eu decidi que elas não seriam o senhor da minha vida. Eu seria protagonista da minha história.

Se você, como eu, teve começos traumáticos ou passou por situações dolorosas em algum momento da jornada, busque em primeiro lugar reconhecer, dar nome a elas, para em seguida tratar as feridas e seguir um novo rumo.

28

VALÉRIA BARROS

Agora é sua vez 1) Você já vivenciou algum episódio doloroso que marcou sua vida e ainda causa dores? Escreva abaixo, chame-o pelo nome, e decida, hoje mesmo, que as dores que ele deixou não terão senhorio sobre sua história

2) Que atitudes você precisa tomar para tratar possíveis traumas que lhe acompanham durante sua jornada? (Pode ser um acompanhamento psicológico, uma boa conversa com um (a) amigo (a), um acompanhamento espiritual ou outro passo que seja necessário para que você não esteja sozinho (a) nesta mudança de chave).

29

CAPÍTULO 02 Não temas, porque eu sou contigo; não te assombres, porque eu sou o teu Deus; eu te esforço, e te ajudo, e te sustento com a destra da minha justiça.

(Isaías 41:10)

IMPROVÁVEL

2 A FUGA Saí correndo em direção a BR praticamente com a roupa do corpo e descalça. Não pensei em mais nada, só queria sair dali.

O primeiro lugar que me ocorreu recomeçar a vida foi Fortaleza.

Sabia da existência de uma tal “Casa de Apoio”, então no meu pensamento seria o local ideal para buscar ajuda e tentar reconstruir-me longe de casa e de todos que ali estavam. Andei por mais ou menos dez quilômetros até chegar à rodovia. Fiquei na beira da estrada acenando com a mão na esperança de que alguém parasse e me desse carona até Fortaleza. Um motorista de caminhão parou. Quando parou, eu corri, e ao abrir a porta da cabine, ele falou: - Você está indo para onde?

- Estou fugindo e preciso de ajuda! – respondi, chorando bastante.

- Entre.

O motorista era um senhor de idade, contei-lhe toda minha 32

VALÉRIA BARROS

história e porque estava fugindo. Ele olhou para mim assustado e alertou-me que poderia ser prejudicado por estar dando carona a uma menor de idade e ainda mais fugitiva. Garanti-lhe que não o prejudicaria, porque ninguém estava sabendo da minha fuga e lhe implorei que me ajudasse a chegar em Fortaleza. Nunca havia saído de Tabuleiro do Norte até então. Não sabia nada sobre a capital, nem conhecia ninguém em Fortaleza, mas fui com a ideia fixa de chegar na tal “Casa de Apoio”. Ouvi muito minha mãe falar que era um local onde as pessoas iam para dormir, comer e tomar banho. Na minha cabeça de criança, achava que seria um lugar para dar apoio a quem não tinha onde morar, que oferecia abrigo, comida e roupa a quem não tinha condições de pagar. Esse seria o meu destino naquele momento.

O motorista do caminhão me levou na condição de deixar-me próximo à rodoviária, argumentando que só poderia me levar até ali. Ainda me orientou a perguntar aos taxistas onde ficava o local que eu tanto procurava. Infelizmente cheguei já no final do dia, então procurei um lugar para me abrigar pois precisaria passar a noite na rua. Fiquei encolhida numa calçada, embaixo da escada de um prédio. Foi uma das noites mais longas da minha vida. No dia seguinte, saí perguntando nos pontos de táxis onde ficava a Casa de Apoio e segui andando. Consegui chegar lá, bem 33

IMPROVÁVEL

próximo à avenida Domingos Olímpio. A proprietária recebeu-me e lhe contei toda a história, salientando que precisava ficar lá porque não tinha para onde ir.

Mas a casa de apoio era um local para acolher acompanhantes ou doentes que estavam em tratamento na cidade e não tinham onde ficar, algo provisório. Naquele momento entrei em desespero. Como seria? Eu estava sem calçado, sem comer direito, sem dinheiro. A dona então me chamou no quarto e me ofereceu o banheiro para tomar banho, deu-me roupa, chinelo e comida. Disse que eu poderia passar o dia, dormir por uma noite, mas que no dia seguinte teria que ir embora e me explicou novamente porque eu não poderia ficar lá. Até aquele momento tinha conseguido conter o medo, mas depois de perceber que o meu destino seria as ruas, fiquei desesperada. E agora, vou para onde?

Com apenas 14 anos, sem noção de nada, nem para onde ir ou o que fazer, saí da Casa de Apoio, andei duas casas, sentei na calçada e comecei a chorar muito, a chorar alto, as pessoas passando a olhar, sem maiores reações. De cabeça baixa comecei a questionar Deus porque estava acontecendo tudo aquilo comigo. Questionei fortemente: será que você existe mesmo?

Ou só existe para rico? Foi uma das poucas vezes em que estive 34

VALÉRIA BARROS

com minha fé abalada. Ao mesmo tempo, eu acredito que Deus manda anjos para todo mundo, anjos para abençoar nossas vidas, e foi o que ele fez.

35

VALÉRIA BARROS

Para refletir De repente você se encontra neste momento em uma situação difícil, sem saber que direção seguir. Mas saiba que quanto maiores os desafios, melhor é a história que está sendo construída. Não há restrições nem limites para onde você pode ir.

1) O que você quer que a próxima página da sua história conte?

37

CAPÍTULO 03 Não fui eu que ordenei a você? Seja forte e corajoso! Não se apavore nem desanime, pois o Senhor, o seu Deus, estará com você por onde você andar”. Josué 1:9)

IMPROVÁVEL

3 PELAS MÃOS DE UM ANJO De repente apareceu um homem todo de branco ao meu lado, olhei para cima e vi quem era, o rosto parecia familiar, mas não o reconheci. Ele se aproximou, sentou ao meu lado e me perguntou porque eu chorava tanto. Eu tinha muita facilidade de falar da minha dor, e contei-lhe tudo o que tinha acontecido: sobre a fuga, disse que era filha de Vera, falei do abuso que sofri aqueles anos e do fato da minha mãe não acreditar em mim. E acrescentei que estava numa situação pior, porque ia ficar na rua, e tinha muito medo das ruas. Nunca fiquei na rua! Ele falou de forma solícita: você não vai ficar na rua, vou te ajudar. Perguntei o seu nome.

Ele disse: Nestor Vasconcelos. Quando ouvi o nome, olhei bem no rosto dele e falei que já tinha ouvido muito falar em Nestor Vasconcelos, e questionei: você é o prefeito da minha cidade?

Ele confirmou. Disse também que estava correndo muito risco por querer me ajudar, uma vez que minha mãe era concorrente dele. Na verdade, ela era candidata a vereadora pelo partido de 40

VALÉRIA BARROS

oposição ao do Nestor. Por fim, falou sobre o fato de eu ser menor de idade e que isso poderia realmente prejudicá-lo, já que era candidato novamente a prefeito. Garanti-lhe que minha mãe nem ninguém sabia onde eu estava, e ele então convenceu-se.

Andei até o final da rua e dobrei, como ele me pediu. Fiquei aguardando-o aparecer, pensei até que tinha desistido de me ajudar. Foi quando o carro dele dobrou a esquina que eu entendi a demora: ele não queria que ninguém me visse com ele. Naquele momento, ao entrar no carro, senti-me protegida, fiquei aliviada com aquela situação, não iria dormir na rua nem correr os riscos de quem vive sem teto. Ele me levou até um hotel, no bairro de Fátima, em frente à rodoviária. Ao todo, foram 90 dias hospedada naquele hotel, não saia do quarto para nada. Toda semana Nestor levava dinheiro, roupa e o que mais fosse preciso para minhas necessidades, e me mantinha lá na condição de que eu não saísse para expor ninguém, nem ele e nem a mim. Tinha o melhor tratamento, como se fosse filha dele, com todos os cuidados necessários. Depois de três meses morando no hotel, ele chegou um dia, firme, decidido de que eu não poderia mais ficar lá.

Justificou-se dizendo que o hotel era muito próximo à rodoviária, que passava muita gente de Tabuleiro do Norte, que também muitas pessoas da cidade se hospedavam lá e ele não poderia 41

IMPROVÁVEL

ser visto entrando ali. Naquele momento veio-me novamente o desespero, estava vivendo dias de conforto e segurança, sentia-me bem onde estava e ainda não tinha decidido o que ia fazer da minha vida. Questionei-o: para onde vou agora? De imediato, ele já respondeu. Tinha pensado em tudo. Acalmou-me.

Decidiu alugar um apartamento para mim num prédio localizado na região central de Fortaleza. Foi o primeiro apartamento em que morei. Disse-me que eu poderia morar ali pelo tempo que quisesse. Na mesma hora respondi: quero morar aqui para sempre. Ele retrucou: para sempre é muito tempo.

Na minha cabeça, não tinha muitas escolhas, estava sendo cuidada por alguém que era como um pai para mim. Recebia, além do conforto e das coisas materiais para me manter, atenção e companhia. A cada dia que passava, só me sentia mais segura.

Nunca tinha sido tratada tão bem, nunca tinha recebido tanta atenção, nunca tinha ganhado tantas roupas, nunca tinha me alimentado tão bem. Quem desejaria sair dali? Não tinha noção do que o mundo poderia ainda me oferecer e, por enquanto, estava feliz naquele lugar.

Alguns anos se passaram, e ele me manteve ali, onde eu vivia muito feliz. Quando completei 18 anos, passei a enxergá-lo de outra forma, não mais como um pai, mas com a possibilidade de 42

VALÉRIA BARROS

ter um relacionamento. Que fique claro, ele nunca tentou nada comigo até o momento que eu demonstrei interesse. Percebi que estava apaixonada por ele. Mesmo com toda a diferença de idade, era por ele que sentia um carinho especial, a segurança e o desejo de realmente me entregar. Durante todo esse tempo, nem minha mãe nem minha família de Tabuleiro do Norte soube de nada.

Até os meus 18 anos minha mãe não sabia do meu paradeiro, não recebia notícias minhas, nada. Eu sabia o que se passava em Tabuleiro porque ele me falava das coisas que por lá aconteciam, trazia muita informação. Foi assim que soube da fuga da minha irmã. Fiquei louca, desesperada, porque ela tem problemas de saúde e transtorno de bipolaridade. Só me vinha à cabeça uma explicação: ela fugiu pelo mesmo motivo que eu. Não demorou muito e a encontraram, minha mãe conseguiu levá-la de volta para casa. Vanessa também foi estuprada pelo mesmo familiar que abusou sexualmente de mim durante muitos anos. Com a notícia de sua fuga não pensei em mais nada, fiquei enfurecida e o meu amor por ela despertou em mim a coragem de enfrentar todo mundo e o que mais fosse necessário. Então, resolvi aparecer na casa da minha mãe, depois de tantos anos.

Cheguei em Tabuleiro do Norte em um táxi, depois de quase quatro anos sem dar notícias minhas, arrumada, bem vestida, 43

IMPROVÁVEL

perfumada e com dinheiro. Isso causou um choque duplo na minha família, nos vizinhos e no povo da cidade. Como é que a Valéria, que saiu de casa sem nada, sem destino, estava retornando nessas condições? Deixei que a imaginação ficasse a consumir a cabeça deles. Eu só tinha um objetivo: livrar a minha irmã daquela vida.

Naquela época, Nestor já estava se relacionando comigo e vivíamos uma paixão louca. Decidido a assumir o nosso relacionamento publicamente, por não aguentar mais viver escondido, alugamos uma casa em Tabuleiro do Norte e retornei para a cidade onde vivi minha infância e parte da minha adolescência, mas agora em outro cenário.

Quando nos mudamos foi um acontecimento na cidade.

Era gente de todo lugar parando em frente à nossa casa para bisbilhotar, saber com quem o prefeito estava, buscar informações sobre “a filha de Vera”. Foi assunto pra mais de dez anos, como a gente diz no interior.

Morando novamente na cidade, trouxe Vanessa para junto de nós e passei a me relacionar novamente com minha mãe. Aos 21 anos, tive meu primeiro filho, que tem exatamente o nome do pai. Nestor não queria que o filho levasse o sobrenome do padrasto e nem da sogra, então ficou realmente Nestor Nogueira 44

VALÉRIA BARROS

de Vasconcelos Filho. Àquela altura, já tinha perdoado minha mãe e começamos a viver de forma pacífica.

Quando Nestorzinho nasceu, minha mãe já não morava mais em Tabuleiro, então fui à Fortaleza levá-lo para ela conhecer.

Ao chegar na capital, recebi uma ligação anônima falando que o Nestor estava na minha casa com uma mulher. Então, da mesma forma que cheguei, voltei com o intuito de pegá-los em flagrante, pois já desconfiava. Ele havia mudado muito comigo. Ao chegar em casa, de madrugada, abri a porta com minha chave e peguei os dois em nossa cama dormindo. Foi um choque muito grande.

A mulher que estava com ele, eu a conhecia, era da minha família.

Acordei os dois e iniciei uma discussão, mas não me demorei muito. Peguei minhas coisas e voltei para Fortaleza.

O acontecimento me causou grande sofrimento, ele era a pessoa em quem eu mais confiava e, para mim, esse foi o fim, embora estivesse com duas brigas internas: se me separasse, não teria para onde ir e nem como me sustentar; se aceitasse, poderia ser traída para o resto da vida. Era um impasse. Não tinha estudo completo, nem experiência com trabalho. Nestor sempre foi muito ciumento, e nunca me deixou estudar fora nem frequentar cursos. Estudava em casa, ele levava fitas cassete e VHS para que eu pudesse assistir às aulas. Então, recomeçar novamente não 45

IMPROVÁVEL

seria nada fácil. Mais uma grande provação estava chegando, e dessa vez, também a minha transformação.

46

VALÉRIA BARROS

Para refletir O que você tem feito com os dias bons? Aproveite-os ao máximo, desfrute, viva intensamente! Nos momentos de “trégua” das provas que a vida certamente vai reservar para você, prepare-se para os dias de luta que poderão surgir novamente.

1) Hoje, você está vivendo dias de trégua ou de batalhas? Como tem sido sua atitude ao lidar com o cenário que o presente lhe oferece? Como você pode se preparar melhor para o dia de amanhã, seja ele de paz ou de guerra?

47