Valores Próprios 2019-024

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PT de missão cumprida no final de cada jantar. Os verdadeiros protagonistas dos jantares vão chegando aos poucos. Na maioria dos casos, não vêm sozinhos, e, se vêm, rapidamente deixam de estar. São maioritariamente sem-abrigo, pessoas carenciadas e socialmente fragilizadas; porém, sejam quais forem os rótulos sociais com que chegam, estes ficam fora da cantina. Antes, durante e até ao próximo jantar são a Maria, o Luís ou o Picoleti. O mesmo se processa com os voluntários, e as etiquetas coladas nas camisolas de todos os intervenientes servem exatamente para tornar mais fácil e claro que à mesa, não há títulos, a não ser os que a amizade trate de criar. Catarina Rocha é uma das várias caras conhecidas do Técnico que “faz questão de integrar estes jantares”. A antiga aluna de Arquitetura já faz há muito parte da família do voluntariado, como fica bem percetível no à-vontade com que o faz. “Eu sempre gostei muito de fazer voluntariado, muito antes de vir para a universidade”, começa por partilhar. “Quando cheguei ao Técnico, não tinha bem a noção do que podia fazer por cá, havia muitas opções”. Curiosamente, foi em casa que surgiu a ideia para saciar o “bichinho”: “o meu pai descobriu estes jantares. Assim que veio a primeira vez adorou, disse-me que tínhamos de vir fazer isto juntos”. Hoje em dia, e volvidos muitos anos desde que começaram, estas iniciativas são uma constante na lista de compromissos da alumna: “Estes jantares já se apoderaram automaticamente da minha agenda, tornaram-se uma prioridade. É um jantar entre as 19h e as 23h, uma altura do dia em que não temos assim tanta coisa para fazer, e isso torna a escolha ainda mais fácil de fazer, porque não ocupa assim tanto tempo útil da nossa vida”. Quando os jantares da Serve the City passaram para a cantina do Técnico, “tudo ficou mais fácil” para Sara Cabeça, aluna do mestrado em Microbiologia, que já fazia parte da família antes: “Posso ficar a estudar até à hora do jantar, não preciso de apanhar transportes, basta descer as escadas e passo a fazer parte de algo incrível.” A aluna do Técnico já experimentou desempenhar os diferentes postos neste jantar, mas confessa que é à mesa, perto das pessoas, que se sente melhor. “Há um contacto muito maior, uma partilha de experiências. Vamo-nos conhecendo, e aprendendo mais sobre como chegar às pessoas”, salienta a voluntária. Quando a questionamos sobre o retorno da experiência, este parece-lhe tão óbvio que encontra dificuldades em passá-lo para palavras: “Nós sentamo-nos à mesa e falamos sobre a vida, partilhamos momentos e preocupações. Há uma preocupação na conversa, uma vontade de cuidar. Mas também há o cuidado de não invadirmos o espaço do outro. É uma forma muito simples de eu servir a minha cidade e a

sociedade. Basta sentar-me à mesa, estar disposta a ouvir e ser eu mesma”. “Apesar de estar habituada a fazer voluntariado, nunca havia equacionado o facto de o fazer junto desta ‘faixa da sociedade mais frágil’”, confessa Helena Rogério, funcionária do Técnico. Sete anos volvidos, e, de voluntária receosa, passou a elemento essencial destes jantares. A experiência tornou-a na líder que os voluntários procuram e nos braços que todos fazem questão de entrelaçar. “A particularidade disto é a dignidade do ser humano, o facto de, na sua degradação moral, psicológica ou económica, poder sentir-se valorizado à volta de uma mesa, com uma refeição que foi preparada para o receber”, refere a funcionária do campus do Taguspark. Além do seu empenho, Helena Rogério foi trazendo consigo novos membros, muitos deles sentados à mesa neste jantar. É também ela a responsável pela participação de uma equipa do Técnico no serviço de um dos jantares anuais: “Tanto professores, como funcionários e alunos aderem. Há quem só queira dar o contributo e há quem faça questão de vir servir. Vimos já há cinco anos seguidos”, partilha. “No próximo ano, estamos a pensar servir dois jantares, para conseguirmos envolver mais pessoas”, adiciona posteriormente. No decorrer da conversa, a voluntária faz questão de lembrar: “Por alguma razão, a vida destas pessoas não deu certo, e todos corremos o risco de passar para esse lado. A barreira entre a estabilidade e o isolamento social é mais ténue do que imaginamos”. À saída, com regresso marcado, uma certeza: há uma família de pontos distantes que se junta, dá e recebe sem sequer ser Natal. •

“Há uma preocupação na conversa, uma vontade de cuidar. Mas também há o cuidado de não invadirmos o espaço do outro” ~ “There’s care, a will­ ingness to care. But we’re also concerned not to invade each other’s space”


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