Almanaque devir

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esquizofrênico, ele traduz o mais rápido possível cada frase de sua língua materna em palavras estrangeiras que têm um som e um sentido semelhantes; anoréxico, ele se precipita em direção à geladeira, rasga as latas, arranca elementos com os quais empanturra-se o mais depressa possível43.

Seria falso acreditar que ele toma emprestado às línguas estrangeiras palavras “disfarçadas” das quais necessita. Muito antes, ele arranca de sua própria língua partículas verbais que não podem mais pertencer à forma dessa língua, assim como ele arranca às “comidas” partículas alimentares que não mais pertencem às substâncias nutritivas formadas: as duas espécies de partículas entram em vizinhança. Pode-se dizer igualmente: emitir partículas que tomam tais relações de movimento e repouso porque entram em tal zona de vizinhança; ou: que entram em tal zona porque tomam tais relações. Uma hecceidade não é separável da neblina ou da bruma que dependem de uma zona molecular, de um espaço corpuscular. A vizinhança é uma noção ao mesmo tempo topológica e quântica, que marca a pertença a uma mesma molécula, independentemente dos sujeitos considerados e das formas determinadas.

Schérer e Hocquenghem destacaram esse ponto essencial, quando reconsideraram o problema das crianças-lobos. Não se trata, é claro, de uma produção real como se a criança tivesse “realmente” se tornado animal; tampouco se trata de uma semelhança, como se a criança tivesse imitado animais que a teriam realmente criado; mas tampouco se trata de uma metáfora simbólica, como se a criança autista, abandonada ou perdida, tivesse apenas se tornado o “análogo” de um bicho. Schérer e Hocquenghem têm razão de denunciar esse falso raciocínio, fundado num culturalismo ou num moralismo que reivindicam a irredutibilidade da ordem humana: com


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