As pessoas idolatram a merda

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AS PESSOAS IDOLATRAM A MERDA ANTOLOGIA DO BLOG ' CÉLINE DE CAMISA CASTANHA' DE AMANY KAISER ORGANIZADA POR MARCELO ARIEL


Fodam-se Edições


O Soldado de cavalaria provisto de armaduras [trecho de "Conversações com o Professor Y.] 28 de setembro de 1912, Louis-Ferdinand Destouches se alista por três anos no 12º Batalhão de Encouraçados, nas investidas de Rambouillet, onde é incorporado no dia 3 de outubro (cf. núm. 13 deste diário). Por ter levado a cabo uma missão de reconhecimento arriscada no setor de Ypres (Flandres Ocidental), no curso da qual foi ferido com gravidade no braço direito e sofreu ferimentos na cabeça que lhe deixaram um tinnitus recorrente, foi condecorado com a Medalha militar, e posteriormente com a Cruz de guerra. Foi declarado inválido de guerra e enviado para Londres. Podemos encerrar de novembro a dezembro de 1913 (cf. 3 y 47) a redação deste diário íntimo.

Não saberei dizer o que me incita a escrever o que penso. Para quem lerei estas páginas. A noite triste de novembro me leva treze meses atrás, antes de minha chegada a Rambouillet, quando estava muito longe de pensar o que me aguardava nesta encantadora estância. Mudei muito em um ano, creio... Porque a vida de quartel ao invés de fundir-me em... (?) (raiva... tristeza... angústia) um estado que não saía ao golpe do espírito abarrotado de resoluções, lástimas, nunca realizáveis, enquanto ainda inteiramente imerso à vida triste que levamos, me sinto abrigado de uma melancolia na qual me


desenvolvo como o pássaro no ar ou o peixe na água. Tampouco e em nenhuma matéria tenho dado provas de erudição. Estas notas, como pode-se ver, têm uma palidez diáfana, são puramente pessoais e tem como objetivo marcar em minha vida uma época (talvez plena), a primeira verdadeiramente penosa que atravesso, mas talvez não a última. É ao azar dos dias que carrego estas páginas de escrita. Estarão expressas e cheias de um estado de espirito diferente segundo os dias ou as horas, já que desde minha incorporação sofri bruscas mudanças físicas e morais.

3 de outubro - chegada. Corpo de guarda repleto de suboficiais de aspecto amassado. Cabos disparatados. Incorporação de um pelotão no 4º Lt. Le Moyne, bom moço; Coujon (?), mal, falso como um judas. O Barão de Lagrange (oficial sincero e bom, mas atacado moralmente por certo nervosismo e sujeito a ataques cuja procedência, creio, devem ser consequência do excessivo libido de sua juventude). Rodeado deste estranho estado maior, dou meus primeiros passos na vida militar. Sem esquecer Servat, um cabo sujo e estilhaçado... falso e bruto, unindo à patacoada e desembaraço meridionais. Astúcia e um vil egoísmo. Nada mais é delicado, e quantas vezes confundi meus desgostos particulares com os dele ou com aqueles que criei para evitá-los. Desde as dívidas até os roubos que eu tratava de ignorar, e, acrescentado a isso, uma profunda nostalgia da liberdade... em estado pouco propício a facilitar a instrução militar.


Horríveis despertares (angustiosos) (que) ao som tão dissimuladamente alegre da trompeta do Guarda apresentam ao espirito os rancores e o horrores de sua jornada. As inspeções aos estábulos na névoa matutina. A (corrida) sarabandeada de ecos pela escada, o serviço de quadra na penumbra. Que nobre ofício, o das armas... enfim. ¿Os verdadeiros sacrifícios consistem talvez na manipulação do esterco à luz amarelada de uma lanterna gordurosa? Aos cursos dos alunos brigadieres que caíam gordos a um jovem Oficial fogoso em conflito com os sarcasmos de seu suboficial embrutecido com medo inato do cavalo... velhos ossos e seriamente comecei a pensar na deserção, única escapatória à esse cavaleiro. Quantas vezes regressei das curas e só em minha cama, coberto por imensa desesperação, chorei ao pesar de meus dezessete anos, como uma menina de primeira comunhão. Então soube que estava vazio, que minha energia era uma foça e que ao fundo de mim mesmo nada havia que não pudesse ser um homem; durante muito tempo acreditei nisto; talvez muitos como eu, antes do tempo; talvez muitos acreditam ainda mesmo que estejam velhos, e nas mesmas circunstâncias sentiriam também seus corações partir à deriva como uma garrafa no mar, esganzarado por ondas: as injúrias e a incerteza de que aquilo nunca irá terminar; então sim, verdadeiramente sofri tanto de meu mal presente como de minha inferioridade viril e do feito de comprová-la. Me dei conta de que os grandes discursos que lançava um mês antes sobre a energia juvenil em que alardeava valentia sem ao menos tê-la e que a hora da verdade não era mais que um infeliz derraigado que havia perdido a metade de suas capacidades e que não utilizava as as que ainda restam a demonstrar o nada dessa energia


É então o fundo dum abismo quando posso dedicar-me a certos estudos sobre mim e minha alma, que não posso torná-la crua creio a fundo quando está em luta consigo mesmo. Nas catástrofes são vistos os homens do grande mundo atropelar mulheres e a envilecer-se como o último dos vagabundos. Assim de golpe vi minha alma despojar-se da ilusão, do estoicismo com que minha convicção a havia encoberto para não contradizê-la mais (que seu pobre em luta com a triste realidade pela qual eu [...]). O que há de triste no mundo após um tarde de dezembro, um domingo, em um quartel? E, mesmo por estas vias, esta tristeza que me funda em profunda melancolia me custa largar... e parece que minha alma está rebrandecida e que somente em tais circunstâncias me vejo como realmente sou.

Um fundo de tristeza vem do fundo de mim mesmo, e se não tenho o valor de afugentá-lo com uma ocupação qualquer, adquire em seguida grandes proporções, até o ponto que essa profunda melancolia chega a cobrir todas minhas penas e se junta com elas para torturar-me em meu interior. Sou complexo e sensitivo de sentimentos; a menor falta de tato ou de delicadeza me fere e me faz sofrer porque dentro de mim escondo um fundo de orgulho que me repugna; quero dominar por meio de um poder fático como a ascendência militar, senão que desejo mais tarde ou antes possível ser um homem completo; serei um dia, terei a fortuna necessária para gozar essa liberdade de ação que permite impor-se. Devo obter por meus próprios meios uma situação econômica que me permita qualquer fantasia (lástima),


estarei livre e só, pois creio ter o coração demasiado complicado para encontrar uma companheira a quem amar por muitos anos. Não sei. Mas o que quero antes de tudo é viver uma vida cheia de incidentes que espero... a providência quererá colocar em meu caminho e não acabar com apenas um polo de continuidade amorfo sobre uma terra e numa vida cujas voltas desconheciam, que os permita forjar-los uma educação moral; se atravesso as grandes crises que a vida me reserva, talvez serei menos infeliz que outro, já que desejo conhecer e saber; em uma palavra, sou orgulhoso; é um defeito? não creio... e me criará dissabores ou talvez o êxito.

< ...Você desprezível-rato informantecovarde!... > Para Droit de Vivre [1]

20 de fevereiro [1948]

Sr.:


Militante da resistência? De fato e ao contrário de você, desprezível rato informante covarde! 20 de Nov. de 1914 declarado inválido, ex-soldado, - 75% - voluntariamente alistado, não na polícia ratfink [2] mas nos Cuirassiers [3] contratado novamente na Marinha em '39! E apesar de tudo isso, carcereiros!

Outra coisa... onde você leu, merda, uma única linha da minha exigência do "assassinato em massa dos judeus"?? Repugnante! Pedi os Judeus, alguns Judeus, não pedi para empurrá-los num massacre, em uma catástrofe, para o matadouro! Isso é completamente diferente, EXATAMENTE O CONTRÁRIO, e você sabe disso. É você que empurra, que sempre empurrou os judeus, seus irmãos, no matadouro através de suas provocações, os criminosos estão entre vocês, os traidores estão entre vocês.

E você sabe disso muito bem - na sua histeria - em suas mentiras - em seu ciúme.

L.F Céline

[1] A revista Droit Vivre tinha publicado um artigo hostil intitulado "Celine:. O Incompreendido"

[2] (Informantes, espiões, caguetas), a casta mais baixa da polícia mais nojenta.

[3] Antigos soldados de cavalaria armados de couraça.


Tradução da tradução de Mitchell Abidor

Carta para seus pais desde a trincheira [Céline se alistou no exército em 1912 e em 1914, com a eclosão da guerra, - foi ferido na Flandres, no dia 27 de outubro de 1914]

[Recebido em 26 de outubro de 1914]

Queridos pais,

Já passaram alguns dias desde que tive alguma chance de escrever, uma vez que os alemães fizeram coisas pesadas, realmente, contra nós e foi somente ao preço de combate árduo, às vezes a pé, às vezes a cavalo, de que fomos capazes, metro a metro, a ganhar terreno repleto de valas grandes e profundas onde os alemães se escondem e se conduzem a partir de canhões. Mas logo foram obrigados a recuar e ontem com muita dificuldade ganhamos vinte quilômetros.

Nesta enorme concentração de cavalarias, depois de 80 dias de campanha você vê as coisas mais estranhas, regimentos inteiros que tiveram que lutar nos pântanos de Lorreine


estão vestidos em trajes civis, porque seu equipamento original teve que ser deixado para trás.

Ao todo, poucos grandes encargos, mas, em geral, uma guerra de emboscadas onde a metralhadora causa danos terríveis, também tremendas noites e ataques durante o dia, a fim de chegar a um flanco ou outro de um exército. Há regimentos que particularmente sofreram, como o 28º Dragões de Sedan, onde apenas um comandante e quatro oficiais permanecem. A 20 ª Chasseurs de Vendôme de nossa divisão - que teve de atacar as ruas de Lille - mal pode montar três pelotões de quatro esquadrões.

Há também divisões de Territoriais que chegaram neste rincão de operações onde você pode ver todos os tipos de exércitos, do belga ao Inglês, juntamente com o Exército indiano, que é composto por um corpo de 5.000 anões de um vilarejo no Himalaia, exército especialmente reservado para ataques noturnos e que só luta com facas... Não é preciso dizer que eles não fazem prisioneiros. Nós nunca os vemos, pois à noite eles dormem nas árvores e você pode passar por baixo desse regimento de pigmeus horríveis, sem percebê-los.

Acho que os alemães podem preparar a paz, o embaralho do entulho é iminente. Eu espero que sejamos exigentes e que depois de todo esse sangue derramado... vamos parar de brincar como cavalheiros: este é um papel que os alemães não entendem e aqueles que estão indo negociar antes deveriam ir ver o espetáculo que vimos no dia antes de ontem em Lafosse, onde uma família de catorze pessoas, civis indefesos, foram mortos com lanças, dos quais o mais


velho tinha setenta e oito anos e o mais jovem, duas semanas ... Sem contar a mulher grávida cujo ventre foi cortado por uma soldado.

No entanto, desde que estivemos no norte aprendemos coisas surpreendentes sobre o início da campanha, o que mostra que temos muita sorte e que "Deutschland über alles" não é apenas mais uma frase vaga. De qualquer forma, o perigo tem sido evitado - e agora, em marcha!

[Na margem, sem ponto de inserção: me foi dito por fontes confiáveis que a temporada em Ostende terminou prematuramente.

Recebi os artigos e as meias; infelizmente nossos sapatos possuem mais água do que as planícies da Holanda.]

Traduzido desde Mitchell Abidor

"(...) Na pequena sala de jantar ao lado, percebíamos o pai a andar de um lado para o outro. Não devia ter a sua atitude pronta ainda para a circunstância. Talvez esperasse que os acontecimentos se precisassem antes de ter de escolher uma postura. Permanecia numa espécie de limbo. Os seres vão de uma comédia para a outra. Entretanto, a peça não está montada, eles não discernem ainda os contornos, o seu papel propício, então permanecem ali, de braços


bamboleantes, diante do acontecimento, os instintos virados como um guarda-chuva, sacudidos de incoerência, reduzidos a si mesmos, quer dizer, a nada. Bois sem palácio."

Carta d'Africa [2]

(Céline trabalhou em Camarões como representante de uma empresa francesa no entretempo de 1916-1917 . Esta descrição de sua vida foi enviada para sua amiga de infância Simone Saintu. As excentricidades de estilo estão no original.)

Bikobimbo - 28 de junho de 1916

Minha Querida Simone -

Estou tão longe, muito longe como se estivesse separado do mundo para sempre.

Na verdade, eu estou em uma pequena aldeia de Negros que em si mesmo fica no meio de uma plantação que é por si só 11 dias distante do primeiro e único europeu, que supervisona uma área tão grande como a França.

Sob estas condições você entenderá facilmente a


dificuldade que eu teria em fornecer-lhe notícias desta sociedade, as fofocas dos civilizados não atingem meus ouvidos, já não o faço desde algum tempo.

Os nativos que me cercam são chamados Paoins e são notoriamente conhecidos como canibais.

O que me permite testemunhar pequenas cenas que podem ser razoavelmente chamadas de "fatias de vida."

Além disso, o campo está completamente devastado por epidemias periódicas; malária e doença do sono florescem aqui. Adicione a isso a traição dos habitantes e você verá que tenho alguma dificuldade em salvar a minha vida, que já está tão carinhosamente amputada.

Resulta que de manhã à noite eu ando por aí coberto de véus espessos anti-mosquito - Eu cozinho para mim mesmo por medo de ser envenenado - Eu me intoxico com quinino e uma tonelada de outras drogas, a fim de me proteger da febre; Eu nunca saio sem capacete e óculos fortemente foscos por medo de insolação - Também de dia à noite tenho ao meu alcance um revólver, a fim de resolver as diferenças com os meus clientes, em cujos olhos eu às vezes espio um lampejo maldito de cobiça.

Além destes fatos encantadores, tenho que viver exclusivamente sobre a terra, que é nigger, você teria um retrato invejável da minha existência...


E mesmo assim tenho alguns consolos - a absoluta ausência de comentários sobre a minha conduta - e a grande, total, absoluta liberdade.

O comércio que estou envolvido é de uma simplicidade angelical que consiste na compra de presas de elefante em troca de tabaco - você não pode imaginar quanto o nigger prefere fumar um cigarro a ser pago em moeda (cujo valor ele não sabe) - foi um espetáculo raro para mim, todos meu clientes ficaram satisfeitos com a venda deles - em média dois maços de Marylands por um dente de elefante. Esses detalhes técnicos, provavelmente não lhe interessam muito, mas são a única razão de eu permanecer neste país encantador, bombardeando-o com o tabaco até a morte do elefante final.

Envie-me notícias suas imediatamente; isso me reunirá com o mundo: é menos feio de longe e apenas o lembro desta forma.

Sinceramente seu,

Louis

<< ... a fantasmagoria triunfa!... >>


"O câncer vence! ... O número de vítimas cresce e cresce ... seis, sete em cada dez pessoas morrem! ... E não percebem o velho aviso! ... pleno de crianças, de comungantes ... que a natureza está provocando! Ela quer você para alguma coisa, ele faz cócegas em dois de três átomos, você é puzzle, e encontra muito mais! ... uma dupla força lhe empurra, um triplo da força! ... Um olhar sobre a parte inferior do estômago! todo a sua perpetuidade falha, quebra! ... natureza ... sua máscara interna ... dois porcos-espinhos nascem em sua pleura, resolvem mordiscar o diafragma ... a fantasmagoria triunfa! .. . uma metade de seu rosto está sangrando, à parte, incha ... seu sorriso congela em grânulos fedorentos... a natureza se satisfaz..."

Louis-Ferdinand Céline, Fable pour une autrefois, Gallimard, 1952.

Pessoas idolatram a Merda Pessoas sempre idolatraram a merda, seja na música, na pintura, na escrita, na guerra, ou no palco. Impostura é a Deusa da Multidão. Se eu tivesse nascido um ditador (que Deus me perdoe) algumas coisas interessantes aconteceriam. Eu sei o que as pessoas precisam, e não é uma revolução, não são dez revoluções... O que precisam é que forcemos água e silêncio neles! Deixem todos vomitarem o tanto de álcool que beberam desde 1793 e os discursos que eles engoliram...Como se eles fossem irremediáveis! Eles estão cheios de Imundície Maçônica e Vinho, suas entranhas estão em tal estado de Jewification e cirrose que caem aos pedaços pelas casas judias na primeira erupção de um alto-falante.

Durante minha ditadura eu serei uma dor na bunda da burguesia nativa, eu lhes ensinarei boas maneiras, tanto é que lamentarão a Comuna, os Judeus, os Incas, os Hunos, e os suicídio de bestas


selvagens. Mas a nossa Burguesia é o passado! Eles dizem quase nada... Eles lançaram as bases para os Judeus, que na insegurança aniquilatória, cagam-se de medo. Eles não têm uma ideia de qual caminho percorrer, eles estão com tanta pressa para trair, para barganhar, que temem não trair o suficiente. Eles se pintam como abissínios, eles viram as narinas de dentro para fora para que os kikes coloque-os de volta onde eles estavam, ficam com eles só mais um pouquinho, pois não irão privá-los de suas mansões sob a nova ordem. Eles nasceram na traição e lá morrerão, no fracasso e na negociação... Eu sempre me perguntei o que há de mais nojento, uma judeu achatado e caído ou uma burguesia francesa em pé... o que é mais revoltante? Eu realmente não posso decidir.

De “Bagatelles pour un massacre” Translated by Mitch Abidor

http://chiseler.org/post/65042695538/peoples-idolize-shit-louisferdinand-celine

Élie Faure - L.F. Céline: 1934 Fonte: Choix de Lettres de Louis-Ferdinand Céline, edited by Henri Godard and Jean-Paul Louis. Paris, Bibliotheque de la Pléaide, 2009; Traduzido desde: marxists.org by Mitchell Abidor; CopyLeft: Creative Commons (Attribute & ShareAlike) marxists.org 2012.


(Após os tumultos fascistas de 06 de fevereiro de 1934, o romancista Louis-Ferdinand Céline foi convocado pelo historiador de arte Élie Faure para denunciar a ameaça da direita vigente da época. Ele enviou para Faure duas respostas ao seu pedido.)

Nature morte aux homards, Eugène Delacroix, 1827. Musée du Louvre. "Beau comme la rencontre fortuite sur une table de dissection d'une machine à coudre et d'un parapluie!" Lautréamont, chant VI de Les Chants de Maldoror (a associação é de Aragon)

Março 18, 1934 Caro Amigo:

Você sabe o quanto eu o admiro, como entusiasta que sou, como venero tudo o que você tem pensado, nos dado, e escrito. Leio atentamente e aprendo muito com os seus textos. Ainda leio e sempre lerei. Você é um dos meus professores raros, e, sem dúvida, o mais próximo, o mais direto. Não será esta a questão quando eu me rebelar contra as suas diretrizes atuais. Eu simplesmente me recuso a ficar em um lado ou em outro. Eu sou um anarquista até a ponta dos meus dedos. Sempre fui um e nunca vou ser outra coisa. Todo mundo tende cuspir em mim, desde Izvestia até os nazistas oficiais, M. de Regnier, Comodia, Stavisky, o presidente Dullin, todos eles, quase nos mesmos termos exatos declararam-me inaceitável, inqualificável. Eu não provoquei isso com propósito, mas é um fato. Estou bem com isso, porque é de meu direito. Todo sistema político é uma empresa do narcisismo hipócrita, que consiste em projetar a


ignomínia pessoal de seus seguidores em um sistema ou sobre "outros". Eu admito que vivo muito bem: eu proclamo em voz alta, emocional e fortemente todas as repugnâncias do homem-comum nojento, à direita e à esquerda. Eu nunca vou ser perdoado por isso. Desde a morte dos sacerdotes o mundo nada mais é que a demagogia, a merda está constantemente sendo lisonjeada, e a responsabilidade é rejeitada através do artifício ideológico e verbal.

Não há mais arrependimento, não há nada além de gritos de revolta e esperança. Mas esperar o quê? Essa merda vai começar a cheirar bem?

Meu caro amigo, eu não traí ninguém e não peço nada de ninguém. Talvez serei executado.

Lenin e Napoleão falharam em seus propósitos. Eles usaram cetros aquecidos e gritaram que uma cura havia sido efetuada. Nonsense. Todo esse cinismo revolucionário (não o seu) não é nada além de vulgaridade, egoísmo eterno armado com novos subterfúgios. Se isto se definir como o comunismo, então você vai realmente ver alguma coisa. Algo mais sórdido do que as coisas anteriores. Conheço-os bem, os apóstolos e os heróis, à direita e à esquerda. Eu vivi com eles dia e noite, durante trinta anos. Revolução. Imediatamente. Mas antes, eles próprios. Não essas almas preguiçosas e espíritos, cocktail ou aperitivo de Picon. Por que escolher?

LFC

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Abril, 1934 Caro Amigo:

Eu sempre fui um anarquista: nunca votei e nunca vou votar em nada nem ninguém. Eu não acredito no homem. Por que você quer que eu comece de repente a usar o megaphone só porque doze dúzias de falhas gritam em torno de mim - sou eu que tocarei o piano de cauda tão bem? Por quê? Para que eu possa estar à altura destes covardes, constipados, invejosos, bastardos cheios de ódio? Isso é realmente uma piada. Eu não tenho nada em comum com esses castrados que gritam suas suposições desajeitadas e acabam por não entender nada. Você se vê pensando e trabalhando sob a autoridade do super-imbecil Aragon , por exemplo? Esse é o futuro? Todos querem que eu bajule Aragon? Ptooey! Se todos fossem menos preguiçosos, se fossem de tão boa vontade como eles próprios dizem que são - fariam o que eu fiz ao invés de incomodar a todos com suas notas erradas. Eles estão empurrando a revolução ainda mais para o futuro, em vez de trazê-la à tona. Assemelham-se a esses homens que já não têm quaisquer instintos, que ferem as mulheres e nunca as atraem. Você não sente, meu amigo, a hipocrisia, a Tartufferie indizível de todos estes slogans de ventríloquo? O complexo de inferioridade de todos esses líderes é palpável. Seu ódio de tudo o que os supera, de tudo o que não entendem, pode ser visto claramente. Eles são tão ávidos para depreciar, para destruir, para sujar, para podar o próprio princípio da vida como o pior padre da Idade Média. Talvez um ou outro deles me executará. Os nazistas me odeiam tanto quanto os socialistas e os comunistas, para não mencionar Henri de Regnier e Comodia e Stavisky. Eles estão todos de acordo quando o caso é odiar-me. Tudo é permitido, exceto o homem que duvida. Então não é permitido se divertir. Eu sou a prova disso. Mas vou cagar em todos eles.


Carinhosamento, o seu: L-F Céline.

(Nas margens: Não peço nada de ninguém. Os jovens são inconscientes e irão para onde o seu lirismo diz.

http://www.marxists.org/subject/anarchism/celine/1936anarchist.htm

Perdigotos Em Céline, o segredo íntimo de cada ser está nessa humidade viscosa e agoniada, nessa baba intestina, nessa espuma aviltante das tripas e mucosas — o nuclear é o excremencial (…) O universo de Céline é um inferno visceral. — É aqui que eu entendo melhor a repugnância liminar que me suscita uma escrita que é feita de roncos, perdigotos e metáforas viscosas.

"O judeu não explica tudo, mas ele catalisa toda nossa decadência, toda nossa servidão… Ele só se explica – seu poder fantástico, sua tirania assustadora, pelo seu ocultismo diabólico… O judeu não é tudo, mas ele é o Diabo e isto é o bastante – o Diabo não cria todos os vícios, mas ele é capaz de engendrar um mundo inteiramente, totalmente vicioso… Deus sabe como o branco está podre!… Mas o judeu soube ganhar esta podridão em seu favor, explorá-la, exaltá-la,


catalisá-la, estandardizá-la como ninguém. Racismo! Racismo! Racismo! Todo o resto é imbecil – falo enquanto médico. Equidade? Justiça? Que casuísticas doentes e desastrosas – Elas contarão sempre contra nós! Esta é a regra do jogo. Desorganizados contra ferozmente organizados – Larvas contra formigas – Liberais contra racistas! Você não tem mais o instinto da perfeição física, do lirismo estético branco – Todo o “que” da coisa – Os livros o mataram – o sentido da vida branca – E, no entanto, você sabe como os judeus com o cinema apresentam esta terrível eliminação…"

“Escolhi-a (Lucette Almanzor) para que recolhesse minha alma depois de minha morte”

"É preciso recomeçar tudo da infância, pela infância, para todas as crianças… O desejo que toda a família seja bela, sã, vivaz, ariana, pura, redentora, resplandecente de beleza, de força, não somente sua pequena família, seus dois, três, quatro fedelhos, mas toda a família francesa, o judeu pelos ares, bem entendido, virado para suas Palestinas, ao Diabo, na lua."

“Fiquei surpreso e um pouco doído ao ver que nem Bagatelles nem L’École figuravam na livraria, enquanto se favorece a um enxame de peixes pequenos, abortos laçados à ultima hora, cabelos na sopa”

“Para recriar a França, seria preciso reconstruí-la inteiramente sobre bases racistas comunitárias. Nós nos afastamos todos os dias deste ideal, deste fantástico projeto (…). Os gauleses (…) estão amarrados ao cú dos judeus”

“Tenho constantemente a morte a meu lado”, e dizendo isso ele parece apontar o dedo para um cãozinho que estivesse deitado ao lado de sua poltrona.


“Se os bolcheviques estivessem em Paris eles fariam vocês verem como se lida com isso; eles mostrariam a vocês como se depura a população, quarteirão por quarteirão, casa por casa. Se eu carregasse a baioneta, eu saberia o que fazer.”

“O inimigo ocupa todos os postos, todas as trincheiras, todos os desfiles – todas as inteligências… Todos os bancos… Estamos a descoberto, sob suspeita, pouco numerosos, divididos, amanhã talvez desarmados…”

“Curioso ver como seres capazes de exigir de sangue frio a cabeça de milhões de homens se inquietam com sua vidinha suja”

“o artigo 75 no cú… Esse deus de pacotilha me gela o saco. Vacilo… Me acovardo… me confundo… não digo tudo… Ah! ah! Nem de longe”

“Absolutamente nada, nada. Só tenho uma vontade, dormir e não ser chateado.”

Quando o Mundo Transformar sua Alma eu Mudarei meu Estilo


Querido Mestre,

Os críticos de uma forma geral estão mostrando a prova de uma parcialidade nojenta em relação ao meu novo livro. Eles pretendem me fazer pagar caro pelo sucesso de Viagem (conseguido em grande parte graças a vocês). Eles tentarão de tudo para me fazer passar por conspirador, palhaço, excêntrico lunático e por ultimo, não menos importante, e muitos mais a sério, um tedioso!... Nada está faltando! Eles nem ao menos me leram. O ataque é completo! A intenção é deliberadamente me insultar, tanto quanto possível. Sem qualquer princípio moral ou integridade artística.

Claro que tudo isto é típico. Não importa qual arte, a taxa de formas fracassadas tem a proporção de 999 para 1000, os sucessos que permanecem provocam a revolução, um dilúvio de ódio. Muito bem. No entanto, me entristeceria enormemente se essa onda biliosa o impedisse de, ao menos, me ler. Eu sinceramente me dediquei a este trabalho, ardorosamente, uma grande oferta como a questão dos fatos. Eu passei os últimos quatro anos nisto, dia e noite, além do meu miserável trabalho na clínica (1.500 francos por mês). Eu não sou rico, tenho uma filha e uma mãe para cuidar. Viagem me trouxe uma renda mensal de 1.200 francos por mês. Eu menciono essas somas porque elas explicam como as coisas estão no presente. Por Morte à Crédito eu literalmente trabalhei para a morte. Fiz meu melhor. Se aqueles que se permitem de uma forma tão covarde, com a impunidade de me envergonhar, possuíssem um décimo de minha integridade e aplicação, o mundo se tornaria um antro edênico e eu admito que minha literatura se mostraria injustificável. Este não é o caso. Há também o ressentimento, orgulhosamente sentido, acredito eu, contra minha quebra do estilo acadêmico sagrado tradicional. Eu escrevo uma espécie de fala, prosa transposta. Este estilo tem suas regras e leis, igualmente terríveis, como você bem sabe. Deixe que os outros tentem. Eles verão. Eu sucumbi o trabalho depois de mim, mas isso existe. Outra coisa, eu sou censurado por não ser Latino, clássico, meridional (características bem definidas... elegância, temperança...


graça... etc.). Sou muito capaz de apreciar as diversas belezas de gênero, porém eu sou totalmente incapaz de me submeter a eles... Não sou Meridional. Sou parisiense, Bretão, e de ascendência flamenga. Escrevo como sinto. Sou censurado por ser sujo, por falar cruelmente. Se esse é o caso, então Rabelais, Villon, Brughel e tantos outros, deveriam ser acusados. Nem tudo vem da Renascença. Eu sou censurado por ser sistematicamente cruel. Somente quando o mundo mudar sua alma eu mudarei meu estilo. De onde é que subitamente esses puristas saem? Eu não os vejo protestar contra os filmes de gangsters! Contra a Detective Magazine! Contra tanta pornografia que é, em si, indesculpável. Esses puristas também são covardes! Eles não arriscam, especialmente permanecem anônimos, cuspem seu veneno em cima de um escritor solitário, arriscam muito mais contra os formidáveis interesses do Cinema ou de Hachette. Eles são os lambepé ou defensores ferozes da moral, dependendo do tamanho de sua tarefa.

Seguramente, eu nunca fui para a escola. Eu estudei para o meu bacharelado e meu diploma de médico enquanto trabalhava para ganhar a vida. Aprende-se muito desta forma. E parece que não vou ser facilmente perdoado por isso. Após tudo, eu sou um médico de periferia. Médicos são desprezados, junto com sua experiência. Ao escrever esses tipos de livros, neste estilo que você conhece, eu corro o risco de ser descartado em qualquer lugar, e perder o trabalho. Eu não produzo literatura sedada.

Finalmente, eu sou censurado por algo que chamam de confusão... Acho que é pouco provável o contrário. Eu escrevo na fórmula dos sonhos acordados... Ah! quão feliz você me faria se você reservasse um artigo para mim, mas não para me elogiar (este pedido não seria digno), mas para definir claramente, pois só você pode, o que não é e o que o é no meu livro. Eu estarei em dívida com você, meu querido amigo. Sinceramente e amigavelmente o seu,


Louis Destouches (L.-F. Céline)

Excerto de "Progrès" Provavelmente escrito em Maio de 1927, Progrès é a segunda (e última) peça de teatro escrita por Céline. A peça foi elaborada logo depois de sua outra peça, "L'Église". Céline enviou o manuscrito para a Gallimard, qual recusou, em outubro do mesmo ano. As edições Mercure de France publicou a peça em 1978 e em seguida foi incluída no Cahier 8: Progrès, suivi de Oeuvres pour la scène et l’écran (Ed. Gallimard, 1988). O primeiro nome da peça foi Périclès, subtitulado ""Farce en trois tableaux et petits divertissements". Esta peça apresenta evidentes imperfeições, mas possui o mérito de ter muitos pontos em comum com Morte à crédito.

Progrès

Personagens:


Marie: Ela não é bonita, é gentil, possui um ligeiro coxear, é bem humorada, ainda lúcida. Vinte e seis anos de idade.

Madame Punais: Mãe de Marie, cinquenta anos de idade, sobriamente vestida, não triste, previamente uma retalhista de vestidos para senhoras, ela leva uma boa vida como comerciante de antiguidades.

Gaston: Trinta anos de idade, marido de Marie, irritável e inseguro, apaixonado e emocional, empregado em um escritório de seguros.

Mme. Doumergue: Muito, muito velha, ela dá aulas de piano, e é também manicure.

Criada: Uma típica empregada doméstica, parcialmente Breton.

Homem do Gás: Um típico trabalhador de empresas de gás.

Ato Primeiro:

As personagens estão vestidas de um modo um tanto fantástico, embora não excessivamente, d'uma forma colorida, divertida, de um jeito simbólico parecido a um sonho, embora também não tão excessivamente-iluminado como num sonho, exceto em certos momentos específicos. Primeira cena - Marie está num lounge, muito luxuoso. No palco: Marie e Madame Punais. Marie está tocando o piano com dificuldade, um fox-trot que ela tenta tornar efervescente e cínico. Ela está achando difícil, muito difícil. Sua mãe assiste e ouve. Mas Marie fica um pouco iritada e se levanta para fechar a janela. No momento em


que vai fechar a janela nós percebemos que ela tem um coxo. Enquanto Madame Punais vê o andar molenga de sua filha, observa Marie ainda mais de perto, mas não diz nada. Marie volta ao piano e toca, sua mãe sai de cena por um momento então volta e remoceça a ler o jornal.

Mme. PUNAIS: Honestamente, Marie!... apenas ouça isto!... (Marie continua tocando o piano) Marie! Eu digo!... você acreditaria?

MARIE: (um pouco impaciente) Mãe!...

Mme. PUNAIS: Você acredita nisto? Escute!...

Marie: (ainda tocando) O que?

Mme. PUNAIS: Honestamente, o Bois de Boulogne!...

Marie: O que é isso de Bois de Boulogne?

Mme. PUNAIS: Bem, maníacos sexuais...

Marie (não impressionada): Aah!...

Mme. PUNAIS: Bem, abençoe-me, você ainda acha que não há nada de errado com isso! Está acontecendo há 4 anos... eles dizem que vão pra lá em grupo, e de carro.

Marie: Oh Mãe!


Mme. PUNAIS: Oh! Jovem moça!

Marie: Que?

Mme. PUNAIS: Vá é tocar piano, já... eu sou a única que lhe deu isto.

Marie: Eu já lhe agradeci por isso.

Mme. PUNAIS: Oh, não direi que paguei muito por ele, você sabe melhor que eu... Nos últimos 15 anos esteve na loja... é a única coisa que não foi vendida em 15 anos.

Marie: Ah, ele esteve no lugar errado, cercado por bugigangas - se você o tivesse colocado perto da janela, como eu costumava dizer-lhe, teria sido levado embora, mas foi escondido por toda essa tralha invendável, você não poderia vê-lo lá de fora, também.

Mme. PUNAIS: Enfim, você herdou, não se queixe... você quer ter aulas novamentes, eu fico feliz em pagar por elas... pelo piano... agora deixa isso pra lá e dê as cartas.

Marie (passando-as): Você lerá as suas?

Mme. PUNAIS (dividindo-as): Não! Eu vou ler as suas, você parece ansiosa.

Marie (sem prestar muita atenção nas cartas): Quem te deu a ideia de me dar aulas?


Mme. PUNAIS: Madame Doumergue...

Marie: Velha Mãe Doumergue?

Mme. PUNAIS: Sim!... Vamos, você certamente se lembra dela.

Marie: Claro, mas pensei que ela estava morta - você lembra, ela subia as escadas assim... Ah!... Ah!... (ela fica ofegante)

Mme. PUNAIS: Ela ainda sobe assim! ah! ah!

Marie: Você tem certeza que é ela?

Mme. PUNAIS: Claro que tenho, ela ainda dá as mesmas aulas.

Marie: Ela deve ser centenária, então!

Mme. PUNAIS: Eu vou perguntar a ela.

Marie: Você foi onde ela mora?

Mme. PUNAIS: Sim, em Asniéres, ela ainda tem sua casinha com treliças trabalhadas no primeiro andar e um jardim com pequenas bolas suspendidas, que ainda são ligeiramente brilhantes. Ver isso não me faz sentir mais jovem, posso lhe dizer, especialmente as bolinhas! Isso me faz lembrar que seu pai costumava circular com uma lambreta ao longo do aterro de Asniéres, com uma camisa solta e


uma gravata fina com bolotas fantásticas desenhadas na parte que cobre o umbigo. Suas panturrilhas eram soberbas. Essa moda ainda voltará, você verá homens com gravatas finas, mas não da forma fantasiosa, não se verá homens jovens em forma fantasiosa, a moda nunca mais será fantasiosa, eu acho porque nos vendemos muito aos créditos, e é isso que faz as pessoas ficarem tristes, elas todas têm dívidas. No meu tempo só artistas tinham dívidas, mas por eles se recusarem a pagar essas dívidas, nunca ficaram tristes.

Marie: Então o que Madame Doumergue lhe disse?

Mme. PUNAIS: Que estava muito feliz em ver-me, mas, como cheira sua casa! Você não acreditaria! Eu não estou interessada no passado quando ele fede tanto quanto isso! De qualquer forma, você não irá lá, ela virá aqui.

Marie: Mas mãe, você matará ela, fazendo-a viajar naquela idade!

Mme. PUNAIS: Não, ela me disse que prefere vir aqui, no verão, ela pegaria o barco desde Saint-Cloud e voltaria de bonde elétrico.

Marie: De barco ela estaria bem - mas na sua idade, de bonde?... Você tem certeza que estamos falando da mesma pessoa?

Mme. PUNAIS: De fato estamos! Além de tudo, nós não mudamos nada!...

Marie: O que fez você pensar em entrar em contato com ela, em particular?

Mme. PUNAIS: Ela me deve dinheiro, o mesmo que ela me deve de 20


anos atrás. Ela está na categoria dos artistas. Quando se trata de dívidas ela não paga e isso não a desconforta.

Marie: Quanto ela te deve?

Mme. PUNAIS: É segredo.

Marie: OH!

Mme. PUNAIS: Sim.

Marie: OH!

Mme. PUNAIS: Isso foi após nossa formatura, você acabava de se tornar noiva de Gaston La Garenne, seu marido (silêncio)... evitando assim o casamento com Jean Bart, que era perfeito.

Marie: Sim, mamãe.

Mme. PUNAIS (resignada): Não vamos voltar a isso agora... Eu realmente gosto de Gaston, também.

Marie: Ainda melhor.

Mme. PUNAIS: Foi nesse momento que você parou com o piano, a fim de ficar noiva de Gaston, e não se casar com Jean Bart, 13 anos atrás.


Marie: TREZE ANOS ATRÁS!

Mme. PUNAIS: Treze.

Marie: E então...?

E. Doméstica: Sou eu de novo!

Mme. PUNAIS: Venha!

Marie: Vá embora!

Mme. PUNAIS: Nãe se mova, posso dizer que você tem algo a contar.

Doméstica: É a cera-polaca!

Marie: Muito bem, então!

Mme. PUNAIS: Vá-te!

Doméstica (enquanto sai): Que seja!

Mme. PUNAIS: Aqui. (lendo as cartas) oh!... Marie!... um pequeno problema... outra vez... eu vejo... pequenos problemas... muitos deles...


Marie: Isso soa como se tivesse algumas novidades para mim!

Mme. PUNAIS: Ah! Problemas de saúde!... mas nada para se preocupar, são constipações...

Marie: Quanto ela irá te cobrar pelas aulas de piano?

Mme. PUNAIS (lendo as cartas): Eu sempre posso ver a Saúde, você sabe.... É Saúde.

Marie: Oh! Eu não sei nada sobre isso! Diga-me então se ela ainda toca piano com sua idade, você escutou ela tocar?

Mme. PUNAIS: Mas ela sempre foi uma artista, essa mulher, ela tocava e cantava singularmente, há trinta e cinco anos atrás ela ainda tinha bons ombros, seu pai falava dela muitas vezes para não acabar dormindo com ela.

Marie: Oh! Mãe!

Mme. PUNAIS: Sua mãe sabe que foi traída, isso me deixava triste à toda hora, ainda mais triste é ser viúva.

Marie: Então, mãe, você conhece M. Doumergue há muito tempo?

Mme. PUNAIS: Eu a conheço de dentro para fora. Não apenas por ela ter sido amante de seu pai, mas também nunca pagou pela pequena penteadeira Luís XV, uma pequena joia, que comprou de mim. Eu


nunca vou esquecer aquele dia antes do Dia de Todos os Santos, no ano de 1900. Ela comprou, 120 francos. Oh! Pode-se dizer com segurança que ela não está preocupada com a dívida, de vez em quando eu vou lá lembrá-la, e ela diz: "Oh! Madame Punais, nós nos conhecemos há muito tempo, agora, venha agora! Não falaremos disso outra vez!" Eu não consigo nada mais com ela. É verdade, nos conhecemos há muito tempo! De qualquer maneira, ela ainda tem, aquela minha penteadeira, a original. Eu vendo cópias dela, desde então. A preços altíssimos! Mas ela tem a original, e nunca pagou por ela. (lê as cartas) Veja: Problemas. (Nós ouvimos alguém tocando piano no apartamento vizinho).

Marie: Você pode ouvir mesmo através do concreto armado, nós podemos ouvir tudo... Não sinto mais a casa. E é o mesmo com todas as novas-casas.

Mme. PUNAIS: Ele toca bem, não é? Ele coloca coração nisso... talvez esteja tocando para você...

Marie: Para mim?

Mme. PUNAIS: Você não acha?

Marie: Eu não sei mãe, porque ele tocaria para mim? É nosso vizinho!

Mme. PUNAIS: Oh... afinal toca bem, ele não é professor?

Marie: Não, é funcionário público.

Mme. PUNAIS: Ah! Ah! Bem, vocês poderiam, talvez, tocar à quatro


mãos, vocês dois.

Marie: Quatro mãos? Mas pela Graça de Deus, Mãe, um homem já me basta. O que você espera?

Mme. PUNAIS: Oh, eu, você sabe! Enfim, você quer agradá-lo ao mesmo tempo que não quer que ele seja ciumento. É difícil agradar um homem que já não é ciumento. - agora, você vê nas cartas.. um pequeno problema... Ah!, Sim... certamente há!

Marie: Você está obcecada com isso! (A doméstica entra na sala).

Mme. PUNAIS (para a doméstica) : É uma senhora? (a doméstica balança a cabeça) Então vá se arrumar minha garota, é um cavalheiro.

Marie: Mas porque mãe?

Mme. PUNAIS: Oh, vá se ajeitar minha filha. Como você é irritante!

Marie: Mas porque?

Mme. PUNAIS: Oh! Vá! (Entra Monsieur Berlureau, muito reservado e pouco à vontade)

M. Berlureau: Madame... Tomei a liberdade de visitar-lhe... uma pequena visita, sou Berlureau.


Mme. PUNAIS: Muito prazer em recebê-lo, senhor.

M. Berlureau: Sou seu vizinho.

Mme. PUNAIS: Oh! Você toca tão bem! Você veio pela minha filha. Você a conhece?

M. Berlureau: Eu não a conheço, Madame, mas me desculpo por tocar, talvez já um pouco tarde da noite... nossas paredes são tão finas que talvez pode-se perturbar alguém sem estar ciente disso, então tomei a liberdade de perguntar, sou Berlureau.

Mme. PUNAIS: Mas como você toca bem o piano!

M. Berlureau: Oh, Madame, eu só me aventuro.

Mme. PUNAIS: Você não conhece ela. Ela ficará feliz. Ela sempre me diz: "Quão bem toca piano nosso vizinho!"

M. Berlureau: Oh, Madame, estou envergonhado, vou-me embora!

Mme. PUNAIS: Definitivamente não, senhor, é fato! Sua execução nos leva a um sonho.

M. Berlureau: É uma correspondência espiritual.

Mme. PUNAIS: É isso! Você conhece meu genro, também?


M. Berlureau: Não, Madame, eu não tive o prazer ainda, mas você sabe, eu só vim pedir desculpas por tocar tão tarde, às vezes.

Mme. PUNAIS: Oh! É estranho. Eu sempre tenho a impressão de que todo mundo conhece ele ... minha filha quer agradá-lo, ela tenta iluminar o quarto com o piano ... isso é uma idéia ...

M. BERLUREAU: Sim, isso é uma idéia ... (Gaston entra).

GASTON: Olá, Madame.

Mme. PUNAIS: Olá, Gaston. (Berlureau está envergonhado).

Mme. PUNAIS: Ele é o nosso vizinho, ele veio para nos dar uma breve visita e eu tive o prazer de me familiarizar com ele, ele é o pianista que ouvimos, você sabe.

GASTON: Que ouvimos com muito prazer.

Mme. PUNAIS: Bem! Ele veio para se certificar de que não nos perturba quando ele ocasionalmente toca à noite.

GASTON: Oh! Certamente que não, a sério, senhor, pelo contrário, é um verdadeiro prazer.

Mme. PUNAIS: Por que teríamos que pagar um tanto em outro lugar, mas eu vou pedir-lhe para vir e nos ver mais vezes Monsieur - você estaria disposto a tocar música com a minha filha?


GASTON: Oh! Madame! Isso é pedir muito, Marie está aprendendo.

Mme. PUNAIS: Não, eu acho que seria adorável.

[e, desgraçadamente, o piano continua ...]

A Lenda do Rei Krogold (excerto de Morte à Crédito) [1/2] Minha história não tinha ganho nada com o tempo. Depois de anos de esquecimento, uma obra de imaginação não passa de uma festa antiquada... Afinal, Gustin ia me dar sua opinião sincera e imparcial. Fui logo fazendo com que ele entrasse na atmosfera da lenda.

- Gustin, você nem sempre foi o boçal que é hoje, endurecido pelas circunstâncias, pela profissão, pela bebida e pela necessidade de aceitar tanta coisa ruim... deixar o coração e o pau pulsarem com mais força, ouvindo uma epopéia, trágica, naturalmente, mas nobre... brilhante!... Você ainda é capaz disso?...

Gustin deixou-se ficar, no banquinho, sonolento, diante das amostras e do armário escancarado... Sem dar um pio... não queria me interromper... - Eu tinha avisado que se tratava de Givendor o Magnífico, Príncipe da Critiânia... Chegamos... Agora mesmo, enquanto eu falo com você, ele está agonizando... O sangue escorre de vinte feridas...


O exército de Givendor acaba de sofrer uma derrota tremenda... O próprio rei Krogold, durante a luta, encontrou Givendor... Golpeou-o de alto a baixo... Krogold não perdoa... Faz justiça por suas próprias mãos... Givendor traiu... A morte se abate sobre Givendor e vai terminar sua tarefa... "O tumulto do combate esmorece com os derradeiros clarões do dia... Desaparecem ao longe os últimos guardas do Rei Krogold. Na sombra levantam-se os estertores da imensa agonia de todo um exército... Vitoriosos e vencidos entregam a alma como podem... O silêncio abafa pouco a pouco os gritos e gemidos, cada vez mais fracos, cada vez mais raros... Esmagado sob um monte de correligionários, Givendor o Magnífico esvai-se em sangue... De madrugada a morte chega perto dele. - Compreendeste Givendor? - Compreendi, oh Morte! Compreendi desde o começo deste dia... Senti no coração, no meu braço, nos olhos de meus amigos, até no passo de meu cavalo, uma espécie de sortilégio triste e lento que se assemelhava ao sono... Minha estrela se apagava entre tuas mãos geladas! Tudo começou a fugir! Oh Morte! Que remorsos! Sinto uma vergonha imensa!... Olha esses pobres corpos!... nem uma eternidade de silêncio pode acalmá-la!... - Não há paz neste mundo, Givendor! Só lendas! Todos os reinos acabam num sonho!... - Oh Morte! Deixa-me viver um pouco mais... um dia ou dois! Quero saber quem me traiu... - Tudo é traição, Givendor... As paixões não são de ninguém, o amor, principalmente, é só uma flor de vida no jardim da juventude.

E a morte, devagarinho, segura o príncipe... Ele não se defende mais... Ficou leve, sem peso... E depois um lindo sonho se apodera de sua alma... O sonho que sempre, quando era pequeno, no seu berço de peles, no quarto dos Herdeiros, perto de sua ama morávia, no Castelo do Rei René..." Gustin tinha deixado as mãos caírem entre os joelhos...


Estava desconfiado. Não queria voltar à juventude. Defendia-se. Quis que eu explicasse tudo... por quê?... como?... Não é fácil... É frágil como uma borboleta. Por qualquer coisa se desmancha, suja as mãos. O que é que se ganha com isso? Não insisti.

Para organizar bem a trama da minha Lenda eu poderia documentarme com pessoas finas,,, acostumadas aos sentimentos... às mil variantes das tonalidades do amor... Mas prefiro resolver tudo sozinho. O meu problema é o sono. Se eu conseguisse sempre dormir bem, nunca teria escrito uma linha. Muitas vezes as pessoas refinadas nada mais são do que gente que não pode gozar. É uma simples questão de disciplina. Essas coisas não se perdoam. Mesmo assim, vou descrever o castelo do Rei Krogold:

"... Um monstro tremendo no âmago da floresta , uma massa, acachapada, esmagadora, cortada no rochedo... formada de cloacas, cornijas carregadas de frisos e saliências... de outras torres... De longe, lá do lado do mar... as copas da floresta ondulam e vêm bater no sopé das primeiras muralhas... A sentinela que arregala os olhos com medo da forca... Mais alto... Bem no alto... No topo de Morehande, a Torre do Tesouro, o Estandarte tatala na tormenta... Leva as armas reais. Uma serpente com a cabeça cortada e o pescoço escorrendo sangue! Malditos os traidores! Givendor está expiando seu crime!..."

Gustin não aguentava mais. Estava cochilando... chegava a roncar. Virei-me para fechar o armário de remédios e lhe disse: "Vamos embora! Vamos dar um passeio pelo Sena!... Vai-te fazer bem..." Ele preferia não ter que se mexer... Afinal, como eu insisto, ele resolve. Proponho um cafezinho do outro lado da "Île aux Chiens"... Lá, apesar do café, ele torna a adormecer. Já devem ser quatro horas, é o momento em que sonham os botequins... Há três flores artificiais no vaso de lata. Tudo fica esquecido no cais. Até o velho bêbedo debruçado no balcão se convence de que a dona não vai mais escutar


suas histórias. Eu deixo Gustin em paz. O próximo rebocador que passar vai acordá-lo, com certeza. O gato largou a velhota para vir lamber as patas.

Carta d'África

Minha querida Simone,

[29 de Outubro, 1916]

Já se passaram exatos dois anos desde o dia em que fui ferido. Lembro-me que, naquela época, não havia trincheira de comunicação entre a primeira linha de trincheiras e o posto de comando. Após o anoitecer você poderia ficar horas tateando até encontrar o posto de comando, já que naturalmente não havia iluminação para mostrarlhe onde estava. Nós costumávamos chamar isso de "protegendo as vacas". Eu estava "protegendo as vacas" quando o meu número foi chamado. Hoje é domingo, e vou aproveitar para anunciar que detesto qualquer tipo de trabalho. Nasci ocioso e adoro preguiça. Eles alegam que o trabalho enobrece o homem, mas eu digo que o torna vil. Correndo o risco de errar fora da amoralidade, eu proclamo que não sou obrigado a ganhar minha vida, eu gostaria de não fazer nenhuma maldita coisa, nada e nada. Como é domingo, vou te recontar um pequeno conto que talvez você já conheçaUm dia o Bom Deus estava andando pelos Bálcãs- Ele encontra um nativo que parecia um tanto ofendido- e pergunta "o que acontece, amigo?" -Silêncio-"Bem, eu lha darei o que você quiser e para provar


que sou bom à todos, seus vizinhos receberão o dobro do que você pedir" - "Neste caso," disse o Bálcã, "me deixe cego de um olho". Aí está você -E ainda, porque é domingo, vou lhe dar um pequeno problema para resolver. Você já deve ter sido convidada a resolvê-lo antes. Duas vacas num prado verde - uma delas é branca, magra, só pele e osso - A outra é negra, couro brilhante - gorda e radiante de saúde. De repente,a enraivecida e furiosa vaca branca pula na pobre, plácida vaca negra, e espeta com o chifre sua bunda. E agora, qual das vacas poderá dizer "eu tenho chifres na bunda"?

Destouches.

Poemas de Céline [2] Retorno

1

Encontrarei você, fedendo como um pedaço de carne numa vil noite Eu farei dois buracos profundos negros em sua face Sua alma miserável irá escapar pelo ar! Você verá uma fina multidão lá! Você verá como nós dançamos! No Grande Cemitério des Bons Enfants!


Refrão:

Mas aqui está a tia Hortense e sua pequena Léo! Aqui está Clementine e o valente Toto! deveriam nossos amigos anunciar que a festa acabou?

Para o diabo com o seu jeito! Se esconda! Fodido do cu! Não importa para mim Ó vigaristas! Vocês ladrões! o vento irá levá-lo longe como as preocupações e a morte partem!

2

Por um longo tempo agora você se queixará porque você é um corno! E eu que sou o punk responsável pelos seus defeitos! Então não vá estragar esta ocasião ao ser aliviada Venha comigo e sinta o gume de meu punhal Para as grandes Ruínas de St. Mandé!


3

Todos sabem que você é um podre delator! Que você fecha acordos de rato para porcos como Houdini! Foi assim que Mimile caiu no cesto da guilhotina Eu lhe darei um bilhete só de ida para longe daqui direto em seu lombo!

4

Olhando para você Eu vejo uma questão que está me devorando Você será mais imundo Morto ou Vivo? E você repulsará os vermes ainda mais ao solo? Mas se você for estrangulado na fogueira Então eu enfrentarei Mimile! no Grande Cemitério des Bons Enfants!

(da "versão definitiva", 1956)


Katika (primeira possibilidade)

Eu amo Katika, a prostituta Ela que não ama a manhã Nem meu coração fiel, nem minhas rosas no alvorecer cinzento e derramado.

Quando Katika se tornar corcunda pelo fato de vender seu cu Nós iremos às cidadelas para ver o sino três vezes maior que ela

Que alguém toca toda a manhã Para acordar as putas Da Irlanda para os Dardanelles. Grande Batalha, Parcos Espólios.

Katika (segunda possibilidade)

Eu amo Katika, a prostituta Ela que não ama a manhã Nem meu coração fiel ou minhas rosas no alvorecer cinzento que precede a tempestade.


Quando Katika se tornar corcunda pelo fato de vender seu cu Nós iremos às cidadelas para ver mendigos três vezes maiores que ela

Que nós repeliremos aos berros todas as manhãs Para acordar as putas Da Irlanda para os Dardanelles. Grande Batalha, Pequena Recompensa.

(ambos os poemas são de um fac-simíle de um texto enviado para Henri Mahé, 1936)

Carta para o Jornal Combat Sirrah, senhor! Aposto que os Dardanelos desse puto do "Inventias"[sic] nunca leram uma linha de um dos meus livros! O que todo seu balbuciar quer dizer? O que eu tenho em comum com Sade, Sartre, Milner ou o Papa? Será que esse imbecil sabe algo sobre eles? Ele já leu eles? Eu acho que não. Ele pode escrever? Certamente não. Ele murmura coisas sem pé nem cabeça, escreve Deus sabe o que! Ele é pago! Ele confunde tudo, não entende nada, joga tudo para fora de uma maneira estúpida, cascas, e aqui estamos nós. Só de pensar que grandes impérios empregam esse tipo de besta... E como deveria ser com os mais importantes? Eu gostaria de falar sobre todas essas coisas tristes com o Dr. Braun ou Mr. Sokoline, que eu conhecia bem... Eles ficariam embaraçados... Que idiotas aqueles crassos do 'Inventias" são! É assim que estamos com o existencialismo! Bang!


Weez! Voltaire! Boom! A lua! Que confusão! Que vergonha!

Eu não me importo em fazer um outro leve esforço, que é um gesto de suprema bondade para os soviéticos, para corrigir um pequeno detalhe na História da Literatura Francesa para eles, aí então eles não mais zombarão disto. "Céline-o-literário-zero" irá ensiná-los (uma vez que eles não sabem nada, nem mesmo suas próprias preocupações, eles babam em-si mesmo!) que Viagem ao fim da Noite foi lançado através de um artigo publicado por Georges Altman e Henri Barbusse no seu Le Monde comunista em 1934. Os artigos de Daudet, Descaves ou Ajalbert só vieram mais "tarde". Eu, aliás, sempre tive relações muito cordiais com Altmann. Em segundo lugar, devo ensinar-lhes que Viagem foi totalmente traduzido pelos Soviéticos (nunca me perguntaram o que eu pensava sobre isto!) e que os tradutores eram nada menos que Elsa Triolet e seu marido Aragon - que não hesitou em retocar meu texto conforme as necessidades de sua propaganda. Por acaso, os Soviéticos ainda me devem dinheiro por essa tradução. Antes de discutir com as pessoas seria uma boa ideia pagar-lhes a dívida pendente. Para começar! Não estão os "Investians" cientes que embora eu seja um "criminoso fascista", "todos os meu livros" foram "proibidos" na Alemanha após a chegada de Hitler e em todo o reinado Hitleriano? Será que eles conhecem o meu último editor "alemão" Julio Kittel, um judeu que fugiu para Marich-Ostrau, Morovia (1936)? Tal estupidez desencoraja polêmicas e é fácil entender porque a palavras proferida está agora reservada às bombas, minas e o dilúvio!

Com os melhores cumprimentos, L.-F. Céline.

Cartas da África 1


[Liverpool, 6 ou 7 de Maio, 1916]

Queridos pais,

Após inúmeras dificuldades finalmente cheguei em Liverpool. Meu barco deverá sair daqui a três dias, o que me forçou a mandar este postal para vocês. A empresa pagará o postal depois de uns dias. Eu ainda estou sobre pressão e mandarei notícias em breve.

Afetuosamente, Louis

2 [Liverpool, tarde de domingo - Maio 7, 1916] Minha querida Simone,

Ser forçado a passar o domingo em Londres já é motivo suficiente para um desastre, mas rapidamente se torna uma catástrofe quando as circunstâncias o obrigam a passa-lo em Liverpool. Você nunca poderia imaginar um lugar tão repugnante, tão imundo e tão religioso. No entanto, por volta das 6 horas da tarde, possivelmente pela alegria ansiosa de ver este dia chegar ao fim, as diferentes seitas Protestantes saíram de seus retiros, folhetos voando, circulando por todas as direções da cidade ao som de hinos, que, devido às circunstâncias, davam uma vaga sensação de marcha militar. Eles, então, finalmente, se estabeleceram em diversas praças para continuar com mais ardor do que nunca o agradecimento ao Senhor por ter fodido todos nós. Eu tenho sido indiferente para este tipo de manifestação, mas estes de


Liverpool são bastante peculiares, devido ao incalculável número de estivadores que compõem o estoque antigo da população que esperam o bar abrir as 8:30h e então matam a sede ao som de música sacra. Verdadeiros profissionais, eles se espalham entre os crentes, contribuindo consideravelmente para a ressonância se não pela piedade - eu vi um, logo atrás de mim, que avidamente iniciou um Hino à Virgem no qual as virtudes físicas e morais desta eram repetidamente louvadas e então apareceu o adjetivo "bela", que ofereceu a oportunidade de sublinhar a palavra ao contemplar uma mulher perto dele, que parecia ter bastante conteúdo para apropriarse dos atributos originais destinados para a mãe de Deus - que, como você pode ver, constitui um sentido ambíguo e angustiante.

Seu sincero, Des Touches

3

[Telegrama aos pais] Maio - 10, 1916]

[Liverpool, quarta-feira,

Embarco hoje: Destouches.

4

Serra Leoa [ Freetown, 25 de Maio, 1916] Querido Pai,

Nos últimos três dias eu fui pego por uma febre violenta - envie de


minha conta-poupança 1.000 francos. Trabalharei com qualquer coisa em Paris para te pagar de volta, mas eu não posso ficar aqui, eu ainda estou em Duala. Escreva-me.

Afetuosamente, Louis

C.F.S.O. Duala-

5

[Cartão postal para seu pai] [Freetown, 27 de maio, 1916]

Não diga nada à mãe. Irei mandar outro cartão postal para casa. Essa febre violenta. Envie dinheiro para minha conta no Banco da África Equatorial. Não tocarei no dinheiro se conseguir aguentar. Perdoe-me, não é minha culpa. Dois mortos a bordo.

Louis

6

[Cartão postal para seu pai] [Freetown, 27 de maio, 1916]

Terrível calor.

Louis


7

[Cartão postal para seu pai] [Freetown, 27 de maio, 1916]

-está muito calor Um cruzamento muito ruim Com amor,

Louis

8

[Cartão postal para seu pai] [Freetown, 27 de maio, 1916]

Em quarentena.

L Des Touches.

9

[Cartão postal para Simone Saintu]

Estamos em quarentena. Inferno. Melhores votos,

[Freetown]


Louis-

10

[S.S. Accra-Lagos, 02 de junho de 1916]

Meu caro Milon-

A experiência é conclusiva - Absolutamente não há futuro aqui, e não por falta de oportunidade comercial mas como resultado das condições climatéricas que são pura e e simplesmente abomináveis Os Europeus consomem uma variedade enorme de alimentos, em parte devido aos excessos, mas também pelas situação sanitária. Qualquer vida saudável é impossível e só apenas com o custo de sua saúde que se consegue fazer algo aqui - Eu mesmo sofri um ataque abrupto de febre em Serra Leoa e não irei durar muito na África... nós iremos para Duala amanhã. Lá ficarei um ou dois meses para reparar os aspectos onerosos desta pequena experiência, tanto quanto possível - Se coloque em meu lugar e me deixe saber como as coisas estão. Se você souber de alguma oportunidade em Paris não se esqueça de mim. A região é excessivamente rica e, incontestavelmente aberta para um grande futuro. Não há esperança para quem quer manter sua saúde num estado tolerável. Nada mais triste do que os rostos amarelos destes colonialistas. Apáticos, parecem consumidos pelos destroços de uma febre triste - e a vida lentamente os engole, como se fossem absorvidos por um sol que afoga tudo e infalivelmente mata tudo que tenta resistir. Escreva para mim logo, não para a minha casa mas no endereço abaixo.


Louis des Touches Elder Dempster Agency Duala (Camerões) África

11

[Cartão postal para seu pai]

[Lagos, 5 de Junho, 1916]

Deixando Duala, me sentindo um pouco melhor agora - ainda está muito quente

Louis-

12

[Cartão postal para Simone Saintu]

[Lagos, 5 de junho, 1916]

Não é belo. Triste.

Louis-

Férias assaltadas, por Céline


Eu posso ver o clown em "O Gangster que pula fora". Eu sei muito pouco sobre ele, mas ele me parece estar bem apropriado para o trabalho.

Um fiscal de impostos vê uma montanha de dinheiro de passagem: ele está apaixonado... ele é desprezado... isso o desagrada... Ele vai para o Hipódromo. Ele perde... ele vai para o cinema... ele vê Chicago... ele espera pelas férias... "Férias assaltadas"... é como eu chamo. E lá vai ele, pela estrada... ele alugou um Rosengart, 1.500 francos por mês... Ele vai parar algumas limousines... eles irão saber o que ele quer... eles oferecem ajuda... eles percebem... para a Trou-Le-Ville. No Cassino, ele perde o controle. Ele tenta apostar a casa num jogo de baralho... mas ele parece muito honesto... eles se recusam a deixá-lo para trás, lá dentro... ele rouba um cone de sorvete de morango... ele é profundo... Etc, etc. Ele termina com honestidade... impostos. Então, seu tio morre. Está tudo arranjado. Ele vai comprar o Rosengart em dezoito parcelas.

Mas eu, eu não tenho o necessário. Ainda assim, esse é o caminho a percorrer.

Poemas de Céline Gnomographia

Istambul dorme sob a lua pálida O Bósforo cintila com mil chamas prateadas


Sozinho na grande cidade Maometana O velho pregoeiro ainda não dormiu Sua voz repercute e é amplificada pelo eco Anunciando para a cidade que já são 10 horas Mas através da janela, do alto de seu minarete Seu olhar inquieto mergulha num quarto Por um momento permanece, em silêncio, preso pela surpresa Ele acaricia nervoso a sua grande barba cinza Mas, fiel ao dever, ele equilibra a voz E então o eco atônito se repete três vezes Para a lua enrubescida, para as estrelas deslumbrantes Para Istambul - A Branca - em breve será meio-dia.

Ngobonbong, Augusto 28, 1916.

O grande Carvalho

Mas já, lentamente, o céu está caindo. Os raios ocidentais, perseguidos pela noite


Lutam contra a escuridão, e resistem novamente Velando o recuo do sol que foge Acima da rocha negra que encobre a floresta Como o orvalho que ainda mantém a luz decrescente Enquanto isso, pouco a pouco, a sombra levanta e leva embora E mergulha, por sua vez, no Todo perturbado Cada hora de nossa vida traz sua sombra Afugentando a esperança, que nunca irá retornar As ilusões perdidas, a amargura crescente Invade nosso coração, destruindo-o e matando-o -

Bikobimbo, Augusto 30, 1916.

O Presidente Vincent Auriol

Hey, veja o Presidente Este é um destino muito trágico Ele é bem pago, ele vive no Palácio do Presidente Ele começou sua Carreira numa campanha feroz Contra a Pena de Morte. Ele era um Anarquista E agora ele é Presidente Nenhum Presidente assinou tantos perdões. Há fantasmas que rondam o Palácio, lhe asseguro


Arrastando seus postos de Execução E a retórica do Presidente. Imaginem acabar assim! Ele não pode fazer nada sobre isso, é assim que é... Este é o Destino Esses são os desafios Ele é um homem corajoso Ele deve assinar Ou morrer.

1949.

Rabelais enfiou goela abaixo O escritor que Céline mais admirava certamente era Villon (1432, desaparecido em 1463), e ele vê Rabelais na mesma tradição - hostil ao Renascimento que considerava destrutivo. Há certamente um ponto onde se encontram Villon e Rabelais, mas esta visão é um pouco perversa na medida em que desconsidera o entusiasmo de Rabelais para a cultura da Grécia e Roma, cultura desprezada por Céline. Neste texto a seguir ele ressalta que o uso que Rabelais fez da língua francesa de fato não sobreviveu. O que triunfou linguisticamente - que, na sua visão, trouxe resultados terríveis - foi o estilo acadêmico de Amyot, o tradutor de Plutarco que foi admirado por Montaigne e outros de sua geração:

"Rabelais enfiou goela abaixo a língua francesa falada na língua francesa escrita: um erro. Enquanto que Amyot, as pessoas querem e querem Amyot, o gênio do estilo acadêmico, duhamélico¹. É ele, que escreve merda: a linguagem petrificada. As colunas do Figaro², que


se orgulha de ter editores que escrevem bem, está abarrotada desses tipos. Le Figaro, é uma cloaca verbal bem afiada, frases bem conduzidas, e com, no final de cada artigo, um pequeno truque pretensioso. Não é perigoso, nem muito forte, para não assustar o público. Da merda real, eu continuo. Rabelais realmente queria uma língua extraordinária e rica. Mas os outros, eles tem a língua castrada, fazem-se duhamélicos, giraldos e maurícios. Então, hoje, escrever bem é escrever como Amyot, mas, veja bem, nunca é uma língua traduzida. Germaine Beaumont disse uma vez, a leitura de um livro: " Ah! como é bom de ler! ainda mais a tradução!" É quem dá o mote. É essa a raiva moderna do Francês: ler as traduções, falar como as traduções. Alguns vieram me perguntar se eu havia tomado uma ou outra passagem de Joyce. Sim, você me pediu! Esta é a época... Porque o inglês, ah, é a moda... Eu falo inglês perfeitamente, como o francês. Vá buscar qualquer coisa de Joyce. Não, eu não falo aquela língua, aquela puta língua me irrita... Como Rabelais, eu encontrei tudo na língua francesa. Lanson (que não era um imbecil), disse: "a língua francesa não é muito artística". Não há poesia na França, tudo é muito cartesiano. Ele evidentemente tem razão. Este é o caso de Amyot, cá... Este é um pré-cartesiano, e assim tudo foi arruinado. Não é o caso de Rabelais: um artista. Rabelais, sim, ele falhou, e Amyot ganhou. A posteridade de Amyot, é tudo Gallimard, todos esses pequenos romances emasculados. Milhares por ano. Mas romances com esses, merda, escrevo em uma hora. No entanto, não serei publicado. Onde está a posteridade de Rabelais? A literatura real? Desapareceu. A razão é clara. Deve-se compreender de uma vez por todas (puritanismo suficiente!) que o Francês é uma língua estritamente vulgar, desde o Tratado de Verdun. Só que não queremos aceitá-la como vulgar e continuamos a desprezar Rabelais. "Ah, é Rabeleiro" às vezes dizem. Quer dizer, né, olha, isso não é difícil, que coisa ... essa falta de correção ... Delicada, delicada ... E o nome de um dos nossos maiores escritores ajudou a moldar um adjetivo difamatório. Monstruoso! Mas era um cara muito forte Rabelais, escritor, médico, advogado, bispo. Ele teve dificuldades , pobre, mesmo em sua vida, ele passou todo o tempo tentando não ser jogado à fogueira. Ele não acreditava muito em Deus, tampouco se atrevia a dizer isso. Além disso, ele não terminou mal: não houve tortura. Isso foi depois, a tortura, quando a academia esquartejou o francês que ele falava (escrevia), para fazer uma literatura de bacharel, patente militar e diploma. Mesmo Balzac não foi em nada ressuscitado. Este á o academicismo baixo, banal! É a vitória da


razão. Razão! Devem estar loucos! Nós não podemos fazer nada disso, todos castrados. Eles me fazem rir. Veja o que lhes contraria: nós nunca fomos capazes de fazer "razoavelmente" uma criança. Nada a fazer, é preciso um momento de delírio durante o coito... O bom em Rabelais é que ele colocou sua pele sobre a mesa, ele arriscou. A morte o espreita, ela o inspira! É mesmo a única coisa que inspira. Eu sei quando ela está lá, logo atrás. Quando a morte está brava... Eu tive em minha vida o mesmo defeito de Rabelais. Eu gasto meu tempo a me meter em situações desesperadoras. Eu sou exaustivamente meticuloso com o ódio. Como ele, eu não tenho nada a esperar dos outros. Eu espero só vômito dos outros, da goela em Meudon. O prefeito, todos, querem minha pele. Ainda encontra um monte de cartas sujas na minha caixa de correio. Nas paredes eles também escrevem... Contra Céline, o pornógrafo... " (Entrevista de Guy Bechtel, 27 de novembro de 1958)

Essas observações contém a essência das reflexões de Céline sobre o uso da linguagem. Emoção vale mais que razão, e naturalidade de expressão mais do que ordem e clareza. O Homem é condenado a morrer e se ele deseja alcançar a grandeza sendo artista, deve trabalhar como um lacaio para o povo. Não há outra maneira.

1- Duhamélico: ADJ M: Relativo ao escritor George Duhamel (18841966).

2 Le Figaro, fundado em 1826, ainda sob Charles X, é um influente e importante jornal francês, o mais antigo ainda hoje publicado. Recebeu o nome do personagem de Beaumarchais. Sua sede se encontra no 14, boulevard Haussmann, no 9e arrondissement (bairro) de Paris. É um jornal nacional que faz parte do grupo Socpresse, o primeiro da França no setor de imprensa, grupo inteiramente controlado pelo seu presidente, Serge Dassault, grande industrial francês e senador-prefeito de Corbeil-Essones.


Os que morrrerão vos saudam

Contra tudo e contra todos o Dr. Destouches. Inimigo do gênero humano - no fim, além de Lucette Destouches, Céline só se aproximava dos gatos e dos cachorros - e, por incrível que pareça, um médico de profissão. Médico de ambulatório de periferia. A medicina, neste caso, propicia sobretudo a perspectiva do asqueroso. E confirma o sentimento de perseguição. Nas últimas linhas do último romance, a sua gana destruidora aponta para um último perigo: o amarelo. Os chineses, alucina, vão tomar conta de todo o planeta. Por uma feliz coincidência, que os comentaristas não deixam escapar, o fim da nação francesa "bate" com o fim do escritor. De tal forma o catastrofismo celiniano, o antissemitismo, por exemplo, representam um movimento auto-direcionado, uma veia suicidária. Ao terminar "Rigodon", na constatação da invasão da França por hordas de asiáticos, o escritor, pessoalmente, está morrendo.

O resgate da dívida que Céline terá contraído então, na observância quotidiana da blasfêmia, vai ser diretamente proporcional. Mais que à morte vindicativa que lhe impõe, à revelia, um tribunal da Liberação, mais que a condenação à prisão, posteriormente, e a um "estado de indignidade nacional", mais que ao confisco da metade dos seus bens, aquela metade certamente que escapou ao saque da casa de Montmartre... o escritor vai ser condenado à supuração do seu lirismo desandado. Ou, o que talvez signifique o do veneno que secreta, profundamente entranhado.

Céline, em outras palavras, é um condenado à literatura. Entendida como único lugar de se estar. "Que comece a festa!". "Os que morrerão vos saudam!", escreve, nos últimos meses da Ocupação, de dentro de "Féeries pour Une Autre Fois". Antecipando assim o que será o auto-da-fé ultra-ofensivo, o espetáculo histérico do instinto


popular. Entregue às feras - dos males o menor para quem está, antes, entregue a si mesmo - mas romanescamente instalado. Essa não seria a primeira vez, em todo caso, nem muito menos a última, em que o escritor estaria, entre frágil e onipotente, em desacordo perfeito com a voz geral.

Toda essa desgraça decorre "Toda essa desgraça decorre de que temos de continuar sendo Jean Pierre ou Gaston, custe o que custar, anos a fio. Este nosso corpo, disfarçado em moléculas agitadas e banais, o tempo inteiro se revolta contra esta farsa atroz de durar. Elas, nossas moléculas, querem ir se perder o quanto antes no universo, essas gracinhas! Sofrem por serem apenas "nós", traídas pelo infinito. Explodiríamos se tivéssemos coragem, apenas beiramos a explosão, um dia atrás do outro. Nossa tortura querida ali está trancada, atômica, debaixo da nossa própria pele, com nosso orgulho." L.-F. Céline, Viagem ao fim da Noite.

quarta-feira, 23 de janeiro de 2013 CÉLINE | Michel Simon recita trecho de Viagem ao fim da Noite | Guerra

CÉLINE VIAGEM AO FIM DA NOITE TRECHO | LA GUERRE


RECITADO POR MICHEL SIMON DO CD « ANTHOLOGIE CÉLINE | 1894 – 1961 DOWNLOAD DO AQUIVO Postado por a.r.k. às 10:29 Nenhum comentário: Enviar por e-mail BlogThis! Compartilhar no Twitter Compartilhar no Facebook Compartilhar com o Pinterest

Marcadores: audio, Louis-Ferdinand Céline, Michel Simon segunda-feira, 21 de janeiro de 2013 Toda essa desgraça decorre

"Toda essa desgraça decorre de que temos de continuar sendo Jean Pierre ou Gaston, custe o que custar, anos a fio. Este nosso corpo, disfarçado em moléculas agitadas e banais, o tempo inteiro se revolta contra esta farsa atroz de durar. Elas, nossas moléculas, querem ir se perder o quanto antes no universo, essas gracinhas! Sofrem por serem apenas "nós", traídas pelo infinito. Explodiríamos se tivéssemos coragem, apenas beiramos a explosão, um dia atrás do outro. Nossa tortura querida ali está trancada, atômica, debaixo da nossa própria pele, com nosso orgulho." L.-F. Céline, Viagem ao fim da Noite. Postado por a.r.k. às 10:25 Nenhum comentário: Enviar por e-mail BlogThis! Compartilhar no Twitter Compartilhar no Facebook


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Marcadores: trecho, viagem ao fim da noite sábado, 19 de janeiro de 2013 A casa que vislumbramos atrás do portão enferrujado

Está escrito em letras grandes na caixa de correio: <<Destouches>>. Sem dúvida a casa que vemos atrás das barras do portão enferrujado é da viúva de Céline. O tempo a congelou desde a morte do escritor no 1º de Julho de 1961. Marie-Ange, a guardiã do templo, recebe visitantes mesmo com seus 96 anos, é chamada de "madame". "Você pode passear pela casa, se quiser". A neve range sob os pés. A árvore deixa cair os cachos e a casa é coberta por heras. Logo após a grande janela do andar térreo, um papagaio branco olha fixamente para os intrusos. Este é Toto, "A madame o encontrou 35 anos atrás em um dos bosques de Meudon, assim como Céline" diz Marie-Ange. Madame dorme no primeiro andar, no quarto onde seu marido morreu. Por lealdade, ela jamais quis sair daquele quarto. O olhar estremecedor entre os dois remonta à 1936. Ela tinha 23 anos, ele 41. Ela era uma dançarina sem o hábito da leitura, ele havia escrito Viagem ao fim da Noite. Céline, apavorado pela decadência da carne, tinha amado o rigor físico de Lucette. "O dia não passa sem que a madame fale amorosamente de Loius" sussurra a matrona. É como se o maldito de Meudon ainda vivesse lá. Á sombra de uma árvore, arqueou sua figura, envolta numa camisola, e emerge atravessando o jardim. Nos fundos da casa, o belo terraço tornou-se uma laje vulgar de concreto coberta de silvas. A banheira abandonada domina um amontoado de lembranças. As cadeiras de vime onde Céline costumava sentar estão caindo aos pedaços. Hoje, o que resta do gato Bébert descansa sobre um pinus. Um pouco mais adiante está a cadela Bessy, como Céline nos conta em De Castelo em Castelo. Há alguns anos Lucette não deixa o seu jardim. O mundo de hoje lhe desespera. Desde o seu enclave, ela vela por fantasmas, monta a guarda para o tempo que passa... Postado por a.r.k. às 19:31 Nenhum comentário: Enviar por e-mail


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Marcadores: Bébert, Bessy, Lucette Destouches, Meudon sábado, 12 de janeiro de 2013 Louis-Ferdinand Céline - Vida e Obra de Semmelweis (primeiro capítulo)

Mirabeau gritava tão alto que Versailles teve medo. Desde a Queda do Império Romano, jamais uma tempestade dessas se abatera sobre os homens, as paixões em vagas horrendas elevavam-se até o céu. A força e o entusiasmo de vinte povos surgiam na Europa, desventrando-a. Por todo lado eram só tumultos de criaturas e coisas. Aqui, tormentas de interesses, de vergonhas e de orgulho; ali, conflitos obscuros, impenetráveis; mais adiante, heroísmos sublimes. Todas as possibilidades humanas misturadas, desenfreadas, furiosas, ávidas de impossível percorriam os caminhos e os lamaçais do mundo. A morte uivava na esquina sangrenta de suas legiões desparatadas; do Nilo a Estocolmo e da Vendéia até a Rússia, cem exércitos invocaram ao mesmo tempo cem razões de serem selvagens. As fronteiras devastadas, fundadas num imenso reino de Frenesi, os homens querendo progresso e o progresso querendo homens, eis o que foram essas gigantescas festanças. A humanidade se entediava, queimou alguns Deuses, mudou de roupa e pagou à História com algumas novas glórias.

E depois, serenada a tormenta, enterradas as grandes esperanças por mais alguns séculos, cada uma dessas fúrias que partira "súbita" para a Bastilha voltou "cidadã" e retornou às suas insignificâncias, espiando o vizinho, dando de beber ao seu cavalo, chocando seus vícios e suas virtudes no saco de pele pálida que Deus nos deu.


Em 1793, um Rei pagou o pato. Mais exatamente, foi sacrificado na place de Greve. Do talho de seu pescoço jorrou uma sensação nova: a Igualdade. Todo o mundo quis um pouco, foi um furor. O Homicídio é uma função cotidiana dos povos, mas, pelo menos na França, o Regicídio parecia novidade. Ousou-se. Ninguém queria dizer, mas a Besta encontrava-se entre nós, aos pés dos tribunais, nos trapeados da guilhotina, de boca escancarada. Foi preciso lhe dar uma ocupação. A Besta quis saber quantos nobres vale o rei. Acharam que a Besta era genial. E em matéria de carnificina foi uma escalada fantástica. Primeiro mataram em nome da Razão, por princípios ainda a definir. Os melhores gastaram muito talento para unir a assassínio à justiça. Conseguiram a duras penas. Não conseguiram. Mas, no fundo, que importava? A malta queria destruir e bastava isso. Assim como o apaixonado primeiro afaga a carne que cobiça e pensa em demorar muito tempo nas confições, e depois sem querer se apressa. Assim a Europa desejava afogar numa terrível orgia os séculos que haviam educado. Era um desejo ainda mais premente do que ela imaginava. Não convém irritar as multidões ardorosas, como tampouco os leões famintos. Agora, dispensava-se, pois, a busca de desculpas para a guilhotina. Mecanicamente, uma seita inteira foi designada, morta, retalhada, como carne, mais a alma.

A flor de uma época foi cortada miudinha. Isso agradou, por um instante. Poderiam ter parado por aí, mas cem paixões que bocejavam de tédio diante da lentidão dessa minudência, numa noite de horror, derrubaram o cadafalso. Com isso, vinte raças se precipitaram num delírio medonho, vinte povos conjugados, misturados, hostis, pretos ou brancos, louros e morenos, dispararam rumo a conquista de um Ideal. Empurrados, machucados, sustentados por frases, guiados pela fome, possuídos pela morte, eles invadiram, saquearam, conquistaram a


cada dia um reino inútil que outros perderiam no dia seguinte. Viram-nos passar sob todos os arcos do mundo, um após outro, numa ronda ridícula e deslumbrante, arremetendo aqui, derrotados ali, enganados por todo canto, despachados sem cessar do Desconhecido ao Nada, tão contentes de morrer quanto de viver. No curso desses anos monstruosos em que o sangue flui, em que a vida esguicha e se dissolve em mil peitos ao mesmo tempo, em que os lombos são ceifados e esmagados na guerra, tal como as uvas no lagar, precisa-se de um macho.

Aos primeiros relâmpagos dessa imensa procela, Napoleão pegou a Europa e, por bem ou por mal, conservou-a quinze anos. Enquanto seu gênio durou, a fúria dos povos pareceu organizar-se, a própria tempestade recebeu ordens suas. Lentamente, voltou-se a acreditar no bom tempo, na paz. Depois, desejaram-na, amaram-na, terminaram por adorar a paz, como haviam adorado a morte, quinze anos antes. Não custou a que começassem a chorar a desgraça das pombinhas com lágrimas tão reais, tão sinceras quanto as injúrias com que cobriam, na véspera, a carroça dos condenados. Só quiseram saber de doçuras e ternuras. Proclamaram-se sagrados os esposos afetuosos e as mães zelosas com tantas exclamações quantas foram necessárias para decapitar a Rainha. O mundo queria esquecer. Esqueceu. E Napoleão, que insistia em viver, foi encerrado numa ilha junto com um câncer. Os poetas reorganizaram suas coortes alarmadas, cem pieguices foram ditas num dia de primavera para a volúpia das almas sensíveis. Criava-se com o mesmo excesso com que se destruíra. Uma brisa de ternura afagou os túmulos incontáveis. O sininho nunca mais saiu do pescoço dos carneirinhos. Em todosos riachos murmuraram-se versos. Bastava que a margarida entreabrisse para que uma senhorita sentimental de verdade se desmanchasse em lágrimas. E não mais que isso para que um homem de bem por ela se apaixonasse pelo resto da vida.

Foi por essa época de convalescença, numa das cidades mais coloridas do mundo, que nasceu Ignace-Philippe Semmelweis (Ignác-


Fülöp Semmelweis), quarto filho de um quitandeiro de Budapeste sobre o Danúbio, na ladeira da igreja Santo Estevão, no auge do verão, exatamente em 18 de julho de 1818.

Bessy de Céline "A cabeça é como uma fábrica que não funciona muito bem... como você quiser... pensar. Dois mil bilhões de neurônios absolutamente em pleno mistério... você está fresco! neurônios entregues à eles mesmos! você tem um acesso, bate o crânio em qualquer parede e em troca recebe mais ideias! você me envergonha... mas aqui estou eu, do seu lado, e eu quero falar ainda... tabelas, brasões, pilares, tintura! mas eu não sei mais... eu encontrei mais! a cabeça está-me girando... oh! mas espere! eu te encontrarei... você e meu castelo e minha cabeça!... mais tarde... mais além... Lembro-me de uma palavra! eu disse! ... sentido animal... de Bébert!... eu encontrei o fio!... Bébert nosso gato... ah! está voltando... que Bébert está como ele mesmo em um imenso castelo no alto de torres sobre cavernas... ele encontra Lili num corredor ou noutro... eles não se falam... pareciam nunca terem se visto... cada um por si! as ondas animais são assim, um quarto de milímetro fora, você é mais você... você existe mais... um outro mundo! o mesmo mistério com Bessy, minha cadela, mais tarde, na floresta, Dinamarca... ela gargalhava pelos campos... eu chamei... vem!... ela ouviu... e continuava fugindo... e isso é tudo... ela passava, nos esbarrava... dez vezes!... vinte vezes!... como uma flecha!... e a descansar em volta das árvores... as pernas tremelhicavam rápidas... bola de fogo! e então ela poderia acelerar, eu poderia dizer... eu existia mais! portanto uma cadela que eu adorava... ela também... acho que me amava... mas a vida selvagem vem antes... durante duas... três horas... eu contei mais... ela estava em fuga, em fúria dentro do mundo animal... através de florestas, prados, coelhos, veados, patos ... ela vem à mim com as pernas sangrando, carinhosa... ela morreu aqui em Meudon, Bessy, ela está enterrada lá, no jardim, daqui vejo o túmulo... ela sofreu para morrer... eu creio, d'um câncer .. ela queria morrer lá fora... eu segurei sua cabeça... eu beijei


ela até o fim... aquela besta era realmente esplêndida... uma alegria de lembrança... uma joia à vibrar... como ela era bonita!... sem defeitos... pelugem, corrida, prumo... oh! ninguém se aproximaria caso houvesse um Concurso!

De fato, penso todos dias nela, mesmo lá com aquela febre... em primeiro lugar eu não consigo me desligar de nada... nem de uma lembrança, nem de uma pessoa, muito menos de uma cadela... eu sou fiel, fiel, responsável... responsável de tudo!... uma verdade maldita.. anti-jean-foutre¹... o mundo que vocês gostam!... os animais são inocentes, até mesmo os fugitivos como a Bessy... eles são cegos juntos aos bandos...

Eu posso dizer que a amei, com suas fulgurantes escapadas, eu não a trocaria por todo o ouro do mundo... não mais do que Bébert, um mal-humorado agressivo dilacerado por gravetos cortantes, um tigre!... mas afetuoso, em alguns momentos... e terrivelmente fiel! atravessamos juntos a Alemanha... fiel como um leão... Em Meudon, Bessy, eu vi, lamentou ter voltado da Dinamarca... nada de fugir em Meudon!... um cervo não!... talvez um coelho?... talvez? ... eu a levei na floresta de Saint-Cloud... ela pululou um pouco, farejou... em zigue-zague... ela veio quase que imediatamente... dois minutos... nada de correr pelos bosques de Saint-Cloud!... ela continuou caminhando com a gente, mas muito triste... ela era uma cachorra muito robusta! ... nós levávamos uma vida infeliz lá, realmente atroz... muito frio – 25°... e sem nicho algum! por dias... meses... anos... o Báltico tomado...

De repente, com nós, tudo bem... ela passou por tudo!... ela comeu como nós... ela não se importava com o chão onde dormia, ela nunca reclamou... por assim dizer ela comeu em nossos pratos... o mundo nos tornou miseráveis e a ela também... ela sofreu para morrer... eu acabei por tentar amenizar a dor... lhe daria até mesmo um pouco de morfina... mas ela ficaria com medo da seringa... eu nunca queria assustá-la... eu a tinha, na pior das hipóteses, mais uns quinze dias... oh! ela não reclamava... mas eu vi... ela tinha força para enfrentar qualquer dor... ela dormia ao lado da minha cama... um momento, de


manhã, ela queria sair... eu queria me alongar sobre a palha... logo após o amanhecer... ela não queria se deitar na palha, se recusou... ela queria estar em outro lugar... do lado mais frio da casa e sobre as rochas... ela esta alongada sobre as rochas belamente... ela começa a gemer... era o fim... eu havia dito, sem acreditar... mas era verdade, ela parece recordar de algo... de onde ela vinha, do Norte, da Dinamarca, o focinho virado para o norte, voltado novamente ao norte... o cão fiel de uma forma, fiel à floresta para a qual sempre fugia, Korsor, lá... fiel à vida atroz que levávamos... os bosques de Meudon lhe dizem algo... ela morreu com dois... três suspiros pequenos... oh, muito discreta em tudo... sem nunca reclamar... por assim dizer... em um posição realmente bela... como em plena corrida, plena fuga... mas por outro lado... abatida, acabada... o nariz virado para a floresta, em fuga... lá onde ela esteve, onde havia sofrido.. Deus sabe!

Oh! Tenho visto muitas agonias... aqui... lá... por todos os lugares... mas de longe são bonitas, discretas... fiéis... e naquela noite a agonia dos homens não passava de um tralala qualquer... o homem é sempre o mesmo em cena... o mais simples..."

Louis-Ferdinand Céline, De Castelo em Castelo, 1957.

Ballet "La naissance d'une fée" 1937 O Nascimento de uma Fada é o primeiro dos três balés apresentados dentro de "Bagatelles por une massacre", reeditado em 1959 no Balé sem música, sem pessoa, sem nada. A relação de Céline com a dançarina Lucette Almansor, sua futura esposa, é provavelmente a origem da decisão d'o escritor se lançar neste gênero de escrita. Esse balé, escrito entre 1935 e 1937, é o mais longo dos três. Céline mescla sacro e mágico, algo já rascunhado na Lenda do Rei Krogold inserida


em Morte à Crédito. Como os outros argumentos de balés propostos por Céline, este balé não será apresentado em cena. Os temas de voyeurismo e dança aqui aparecem como obsessão de Céline.

Argumento

Céline assenta decoro bucólico à uma albergue de uma vila. Situando seu balé em "Louis XV", o escritor associa encantamento, leveza e dança ao universo da floresta e do bosque onde coabitam animais gentis, elfos e Evelyn, uma rapariga bonita.

Ela está envolvida com o Poeta, mas a velha Karalik, uma bruxa que pode ler o futuro, lança uma maldição sobre ele. Na vila, o diabo convida-os para espiar o interior do albergue, agora estúdio de dança onde se movimentam jovens bailarinas. O Poeta se apaixona por uma delas, esquecendo Evelyn. Desesperada, ela vai até uma clareira no meio da floresta, onde encontra um caçador que acabara de matar uma corça. Ela conta sua história e um dos espíritos da dança oferece a Evelyn uma 'cana de ouro' que lhe permite dançar divinamente. Um cigano, invejoso das dança de Evelyn, a apunhala sob ordens da bruxa Karalik. Morta, sozinha em cena, é logo cercada por pequenos espíritos, que lhe trazem de volta a vida, graças a algumas gotas da Lua. A última cena acontece no Castelo do Diabo. Todos os personagens se encontram para um banquete gargantuesco. O Poeta é acorrentado à uma mesa. Karalik e Evelyn se reencontram. Graças a um sinal de magia, Evelyn faz o Castelo desmoronar, e os dois amantes se encontram no bosque. O Poeta pede perdão à Evelyn, que se torna fada. Ela desaparece com seus íntimos, enquanto ele permanece sozinho no cume d'uma pedra, cantando seu amor impossível...


Céline Aprisionado Por qual crime Céline foi detido e preso na Dinamarca de 1945 à 1947? O próprio escritor parece não ter compreendido...

(Cartas de Cárcere para Lucette Destouches e Maître Mikkelsen, 19451947.)

Eis o caso. Em Dezembro de 1945, em Copenhague (legalmente vieram da Alemanha em março, munidos dum Passaporte Alemão), Céline e sua esposa foram detidos pela polícia dinamarquesa. Um mandado, por Traição, foi lançado contra ele em Paris, em Abril, pouco antes da entrada das tropas francesas em Sigmaringen, onde, alguns meses antes, o escritor, sua esposa e seu gato Bébert uniramse aos oficias do governo de Vichy e as milícias alemãs que haviam sido tomadas com o Marechal Petáin em sua derrocada no Agosto de 1944. Lucette foi libertada ao fim de dez dias.

Deixaram Montmartre, lugar em que viviam, no 17 de Junho de 1944, com a intenção de buscar refúgio na Dinamarca, onde Céline havia confiado suas reservas de ouro para um amigo. Antes da Guerra, ele converteu grande parte de seus direitos autorais em peças de ouro. Em 1942, foi à Berlin para entregar ao seu amigo a chave de seu cofre, que estava num banco dinamarquês. A posse de ouro por um estrangeiro era ilegal aos olhos das autoridades da Ocupação Alemã. Céline, então, "escondeu" seu ouro dos olhos alemães. Essas reservas de ouro foram chamadas de "crianças" em suas cartas, quando discutia sobre o assunto. Constitui, ao mesmo tempo que é essencial para sua sobrevivência, um segredo que o coloca dependente de seus agentes. Um deles é o Sr. Mikkelsen, que Céline tomou como advogado em 16 de maio de 1945, a fim de obter uma autorização para residir na Dinamarca, depois que o país foi libertado dos alemães por tropas inglesas.


França, naquele ano de 1945, a apuração do caso seguia em curso. Robert Brasillach é julgado e fuzilado; Pierre Drieu La Rochelle comete suicídio; o editor de Céline, Robert Denoel, foi assassinado nas ruas de Paris, por um desconhecido - o caso nunca foi esclarecido. Entre os líderes da colaboração, Philippe Pétain, voluntariamente voltou para a França, foi julgado e condenado à morte, Pierre Laval foi julgado e executado, o líder da milícia, Joseph Darnand, também; Marcel Deat e Abel Bonnard são condenados à morte por desobediência às autoridades.

BATALHA JURÍDICA

A presença ilegal de Céline em Copenhage foi denunciada por um informante anônimo. Sua prisão demandada ao governo dinamarquês por M. de Charbonniére, ministro Plenipotenciário da legação francesa na Dinamarca. Um pedido de extradição foi apresentado no dia seguinte. Toda a batalha jurídica vai avançar em torno das cargas contra Céline. Traição. Ajuda ao inimigo, antisemitismo. Os dois primeiros podem levar à pena de morte. O antisemitismo não. Céline então dita sua defesa ao Sr. Mikkelsen: ele jamais traiu seu país; pelo contrário, ele se envolveu em duas guerras; ele nunca colaborou com os alemães. A extradição iria entregá-lo aos torturadores, que o executariam sem julgamento algum - a depuração era um novo Terror. Paro o Anti-semitismo, é claro, ele escreveu panfletos patrióticos que clamavam, com uma certa veia "Rabelaisca", os judeus empurrados à uma nova guerra com a Alemanha; que não é a Alemanha que ele defendia - esta nova Alemanha ele odiava - mas sim seu país, que por meio do escritor, como ele tinha feito na primeira guerra, o deixou inválido em 3/4. Ele nunca pediu a morte de ninguém. Ele é inocente. Sua prisão foi uma injustiça. Um longo calvário imposto a um velho homem maldito por quadrilhas de escritores invejosos de seu gênio. Isto é tudo.

E eis, fora dessas cartas, o epílogo judicial: a Dinamarca acabou por recusar a extradição; Céline permanece encarcerado por um ano e meio em condições difíceis, trabalhando na enfermaria da prisão e


em seguida no hospital, antes de ser libertado em junho de 1947, sob a promessa de não mais deixar a Dinamarca. Em fevereiro de 1950 ele foi julgado em Paris, na sua ausência. Assistido por seus dois advogados franceses Maître Naud e Tixier-Vignancour, ele apresentou sua defesa através de cartas enviadas diretamente para o Presidente do Tribunal de Justiça. Ele então é condenado a um ano de prisão, uma multa de 50,000 francos, degradação nacional, e seus atuais e futuros bens são confiscados pela metade. Essa condenação é confirmada mas depois perdoada em abril de 1951 pelo tribunal militar, levando em conta que Céline é um combatente veterano de 1914-1918. Em Julho de 1951 Céline e Lucette retornam a Paris. Sem ter entendido nada. A relação entre seus escritos anti-semitas e o genocídio sofrido pelos judeus, Céline nem sequer vislumbrava isso. O lugar da literatura, para ele, é fora da jurisdição. Os escritos não se vinculam à pessoa, e ele não foi o mentor do anti-semitismo. Inocente, portanto, jamais. E vítima, sempre. Mas quem fará justiça em seus livros...

O debate sobre a irresponsabilidade transcendental do grande escritor, logo tornou-se um foco clássico em referência à Céline, e essas cartas de cárcere não têm grande valor literário - ao contrário, são as cartas enviadas, retificadas pela admiração que ele as dedica, ao seu editor Gaston Gallimard, que lançam uma vertiginosa comédia. Na Dinamarca, sob o olhar da administração, escreve um Céline deitado, entregue ao seu "choramingar" ( a palavra é sua, e que a julgar pelo tom de suas cartas que pedem perdão, por si só são soluços) um pobre rapaz propenso a explosões de ódio racial, com suas inspiradas declarações de amor à esposa, interrompidas por suspiros de reprimenda quando ela desperdiça infantilmente seu dinheiro, enfurecido quando tocam em seu ouro, remoendo sua defesa na qual ninguém acredita. O calvário, desta vez, são os celinianos que ele espera. Eles vão ter que ler esta correspondência que François Gibault já tinha lido e resumido no III Tomo de sua biografia, que ele edita com a precisão de um historiador e o zelo de um advogado aristocrata, que anuncia na primeira frase do seu prefácio: " Logo que está atrás das grades, todo homem digno de nome sonha com a fuga" Céline, conquanto, imagina sua fuga em " Féerie pour une autre fois". Mentir, fabular, andar em marcha.


<< Este mundo me parece extraordinariamente pesado>>

"Este mundo me parece extraordinariamente pesado com seus personagens apoiados, insistentes, chafurdando, presos aos seus desejos, sua paixões, seus vícios, suas virtudes, suas explicações. Pesados, intermináveis, engatinhadores, tal me parecem os seres, tontos, sofrem uma lenta insistência. Pesados. Eu posso finalmente classificar os homens e mulheres de acordo com seu <<peso>>. Eles pensam..."

Louis-Ferdinand Céline, Carta à Evelyne Pollet, 31 de maio, 1938.

E todas as mentiras são chamados... "Mais tarde, o sujeito toma partido... se arranja com tudo... se satisfaz... e canta ainda mais... divaga... depois sussurra... depois se fecha... Mas quando o sujeito é jovem... é árduo. Ele precisa de vento! Festa! ... Eu lutei gentilmente contra ele, tanto quanto poderia... comemora em rigodanças... festejos mirabolantes e mais e mais... embrulhados e exultados com cirandas tirulu-tirolá. Ai de mim! Eu sei que tudo rompe, cede, dá-se num momento qualquer... eu sei que um dia a mão tomba, larga do corpo. Eu vi esse gesto mil e mil vezes... a sombra... o peso dos mortos... E todas as mentiras são chamados! todos os convites enviados... os três golpes que rompam noutro lugar!... Ah!, farsa..."

Guignol's band II, 1964.


Céline imagina o ínicio e o fim de uma adaptação para cinema de Voyage au bout de la nuit:

(texto extraído da entrevista feita em 1° de Junho de 1961, por J. Darribehaude)

Bem, aqui está você. 14 de julho. Estamos na avenue du Bois. E aqui temos três parisienses um tanto atrevidas. Damas do tempo - tempo de Gyp. Aí então, pelo amor de Deus, nós ouvimos o que elas estão dizendo. E ao longo da avenue du Bois, ao longo da allée cavaliere, passa um general, seu aide de camp formando na retaguarda, a cavalo, é claro, a cavalo. Aí a primeira das damas, pelo amor de Deus, "Oh, veja só, é o general de Boisrobert, você viu?". "Sim, vi." "Ele acenou para mim, não?" "Sim, sim, acenou para você. Eu não o reconheci. Não estou realmente interessada, você sabe." "Mas o aide de camp é o pequeno Boilepere, oh, ele estava lá ontem, ele é impossível, não demonstre que você viu alguma coisa, não olhe, não olhe. Ele estava nos contando dos grandes exercícios em Mourmelon, você sabe! Oh, ele disse, isso significa guerra, eu vou partir, estou indo. " Ele é impossível, não é, com sua guerra... " Daí você ouve música a distância, música de guerra, troando. acha mesmo, de verdade?"

"Você

"Oh. sim. querida, eles são impossíveis, com essa tal guerra. Esses desfiles militares à noite, o que você acha que eles se parecem? É lúdrico, é uma comédia. Da última vez. em Longchamps, vi todos aqueles soldados com caçarolas na cabeça, uma espécie de capacete, você não acreditaria, é tão feio, isso é o que eles chamam de guerra, fazer todos eles parecerem feios. Ê ridículo, na minha opinião, muito ridículo. Sim, sim, sim, ridículo. Oh, olhe, é o attaché, a Embaixada da Espanha. Ele também está falando de guerra, querida, é tão


estarrecedor, oh, de verdade, estou tão cansada disso, faríamos muito melhor em ir a uma caçada e matar faisões. As guerras hoje em dia são ridículas, Deus do céu, é impensável, simplesmente não dá mais para se acreditar nelas. Eles cantam aquelas estúpidas canções, não mesmo, como Maurice Chevalier, na verdade ele é bem engraçado, faz todo mundo rir." Então aí está você, sim, isso é tudo. "Oh, eu gostaria muito mais de falar do carnaval das flores, sim, o carnaval das flores, estava tão bonito, tão encantador em todos os lugares! Mas agora eles estão indo para a guerra, tão estúpido, não é, é realmente impossível, não pode durar." Bom, ótimo, aí temos uma pequena peça para começar, estamos na guerra. Bom. Nesse ponto você pode ir a Paris e mostrar um ônibus, há uma porção de planos formidáveis, um ônibus indo em direção ao Carrefour Drouot, num ponto o ônibus se põe a galopar, é engraçado de se ver, o ônibus de três cavalos da linha Madeleine-Bastille, sim, filme essa tomada lá. Bom, certo. Nesse ponto você sai para o campo. Use as paisagens de Voyage. Você vai ter que ler Voyage de novo - que aborrecimento para você. Vai ter que encontrar coisas no Voyage que ainda existem. A passage Choiseul, certamente você vai poder usar essa. E haverá Epinay, a subida para Epinay, essa ainda vai estar ali para você. Suresnes, pode usar essa também, embora já não seja como antes... E você pode filmar as Tulherias, e a Praça Louvois, a ruazinha, precisa dar uma olhada nisso, ver o que se encaixa nas suas idéias. Aí há a mobilização. Muito bem. Nesse ponto você começa a Voyage. Aí é quando os heróis de Voyage partem para a guerra - trecho do grande filme. Vai precisar de um bocado de grana para isso... Então o fim. Estou lhe dando uma passagem de sonho aqui, então talvez você possa mostrar um pouco do interior do Meuse, aliás, foi ali que eu comecei na guerra, um pouco de Flandres, bom, excelente, você só precisa olhar para isso, é bastante evocativo, e aí, bem suavemente, começa a deixar o ruído das armas ir subindo. O modo como se sabia da guerra, o modo como as pessoas de 14 sabiam da guerra era o tiroteio, de ambos os lados. Era um BLOM BELOLOM BELOM retumbante, era um moinho, demolindo a nossa época. Quer dizer,


você tinha a linha de fogo ali na sua frente, era ali que você ia ser varrido do mapa, era onde todos eles morriam. É, e o que você devia fazer era subir até lá com a sua baioneta. Mas para a maior parte isso significava tiros e chamas. Primeiro os tiros, daí o fogo. Cidades pegando fogo, tudo pegando fogo. Primeiro os tiros, daí a carnificina. Mostre isso da melhor maneira que puder, é problema seu, resolva-o. Estou confiando no pequeno Descaves, ali. Você precisa de música para acompanhar o som das armas. Uma espécie de música sinistra, uma espécie de música profunda, wagneriana, ele pode conseguir isso nas bibliotecas de música. Música que se encaixa em tudo. Bem poucas falas. Bem poucas palavras. Mesmo para a grande cena, mesmo para os trezentos milhões. Tiroteio. BELOMBELOLOMBOM, tactactac. Metralhadoras - eles já as tinham então. Do mar do Norte à Suíça havia uma faixa de quatrocentos e cinqüenta quilômetros que nunca parou de mascar homens de um lado para o outro. Sim, ah, sim, assim que um cara chegava lá, dizia: Então é aqui que acontece, é aqui que é a matança, é? Foi ali que todos nós nos massacramos uns aos outros. Não era sonho, aquilo! Um milhão e setecentos mil morreram bem ali. Mais do que uns poucos. Com retiradas, ofensivas, retiradas, cada vez mais estrondosos BOBOOMS, armas grandes, armas pequenas, não muitos aviões, não, você pode mostrar um avião vagamente, mas não havia muitos, não, o que nos aterrorizava era o tiroteio, puro e simples. Os alemães tinham grandes armas e foram uma grande surpresa, pois o exército francês, os 105, nós não tínhamos nenhuma. Certo. E bicicletas que você dobrava ao meio e guardava. Então, para terminar a sua história, Voyage, veja, termina, bem, termina da melhor maneira possível, hein, mas ainda, há um fim, uma conclusão, uma assinatura depois de Voyage, uma realmente igual à vida. O livro termina em linguagem filosófica, o livro sim, mas não o filme. Aqui é como é para o filme. Esta é uma maneira como eu vi o fim, assim: Há um camarada velho - penso nele como Simão - que cuida do cemitério, o cemitério militar. Bem, ele está velho agora, tem setenta anos, está acabado. E o diretor do cemitério militar, o curador, é um homem moço e fê-lo saber que é hora de ele se aposentar. Ah, de qualquer modo, é o que eu mais queria, não posso mais andar por aí. Porque você entende, construíram-lhe uma pequena cabana, não longe de Verdun, você sabe, uma cabana, então essa cabana, essa espécie de cabana Nissen, ele a transformou num pequeno bar ao mesmo tempo, e tem um gramofone, mas, de verdade,


um gramofone da época, sim! Então, nesse bar, ele serve bebidas às pessoas e fala, sabe, conta a sua história, conta-a para um monte de pessoas, e você vê o bar, e gente entrando, muita gente costumava vir, e não vem mais, para visitar os túmulos dos seus queridos desaparecidos, mas depois de todas essas tumbas dos queridos desaparecidos ele se sente bastante velho, hein, e lhe custa um bocado de trabalho chegar até lá, tanto trabalho que ele não vai mais, ele mesmo, porque diz: Estou velho demais, eu não posso, não posso me mexer. Andar três quilômetros por cima daqueles sulcos, trabalho desgraçado demais, é, impossível, eu voltaria morto, voltaria mesmo, estou acabado, acabado, estou sim. E tem uma chance de dizer isso porque o diretor do cemitério encontrou alguém para ficar no seu lugar. E quem é esse alguém que vai ficar no seu lugar? Eu lhe digo É... são armênios. Uma família de armênios. É o pai, a mãe e cinco crianças pequenas. E o que é que eles estão fazendo ali? Bem, tinham ido para a África, como todos os armênios, e tinham sido chutados de lá, e alguém lhes disse que eles podiam ir e se esconder mais ao norte, eles encontrariam um cemitério e um camarada bem a ponto de se aposentar, e eles poderiam ficar com o seu lugar. E, ah. ele diz, isso é ótimo, porque os meninos estão doentes, a África é quente demais para eles, de qualquer modo. Então Simão os abriga. O guarda do cemitério. Está com seu gorro pontudo enfiado na cabeça e tudo mais. Bem, ele diz, você vai ficar com o meu lugar. Não vai ficar bem aquecido, porém. Se quiser fazer um pouco de fogo, há lenha para apanhar, embora a lareira seja apenas um velho fogão para a sua caçarola, e ele diz, eu, eu não posso durar mais, por causa de toda essa correria de cá para lá e de lá para cá. Costumava haver os americanos, nos velhos dias. Ainda há os americanos, também, lá debaixo, você vai ver, vai encontrá-los. .. Bem, vou lhe mostrar o portão pelo qual eles entram, não é longe, nem um quilômetro, mas não consigo mais fazer isso porque ele manca também, entende, ele também manca -, estou ferido, estou, oitenta e cinco por cento incapacitado depois de 14, isso faz uma diferença! Vou morar com a minha irmã. Que grande cadela ela era! Mora em Asnieres! Puta imunda, ela é! Diz que eu tenho que ir, diz que tenho, mas não sei se vou me dar bem com ela, não a vejo faz trinta anos agora, não mesmo, puta imunda ela era, deve ser mais puta do que nunca hoje em dia. Está casada, diz que eles têm um quarto, pode ser, não sei o que vou fazer lá, no entanto, não posso ficar aqui, posso?, não consigo fazer o serviço, não consigo. Não há muitos que o fazem hoje em dia, dois ou três deles ainda vêm, costumava haver muitos, costumavam vir em


bandos, nos velhos tempos, em memória deles todos, os franceses e os ingleses, há todos os tipos enterrados ali embaixo, mas você vai ver, como eles me disseram, ah, ponha as cruzes de pé, sim, algumas caíram, é claro que caíram, o tempo faz a sua parte, as cruzes não ficam de pé para sempre, então eu pus as cruzes de pé da melhor maneira que pude durante bastante tempo, mas não vou mais agora, não, não, não dá, tenho que me deitar depois, entende, não posso, e deitar aqui não seria nada agradável, e não tenho ninguém comigo, então os visitantes vêm e, como acontece, uma boa mulher, uma americana, uma americana bastante velha, e ela diz, "Eu quero ver o meu velho amigo John Brown, meu querido tio que morreu, você não o tem por aí?" Ah, ele diz, está tudo nos registros, espere um momento, vou dar uma olhada, sim, vou lhe mostrar o registro, ali, e ele lhe mostra o registro e diz, Eu o guardei bem, está vendo, aí não podem dizer que não fiz isso, hein, agora vamos ver, Brown, Brown, Brown. Ah, sim, sim, sim, sim, sim. Bem, você sabe, está lá no cemitério Fauvettes, por lá, senhora, difícil de achar, é sim. Não, não, por favor, ele por ali, com sua mulher e filhos, muito interessante, os terrenos são, eles porão tudo em ordem para você; e eu não posso, entende, não posso, eu lhe disse que não posso, não adianta, senhora, e acredite em mim se tentar ir até lá, eh, eh, deixe-me lhe dizer, encontrar onde ele está muito bem lá, no meu registro, mas já faz um longo tempo desde que fui dar uma olhada nele, no americano, é um caminho longo, dois quilômetros e meio pelo menos, não, não, deixe que eles façam, eles o farão. Posso lhe servir o que há, entretanto, suco de romã, limão. Ah, gostaria de uma xícara de café, ah, certamente, não se pode dizer não a uma xícara de café, vou lhe preparar uma xícara de café. E ele lhe prepara uma xícara de café, está me entendendo, ele tem um faro para senhoras ricas. Bem, diz, está vendo, minha irmã, lá em Asnieres, aqui está o café, aceita um cafezinho? Sabe, isso me lembra, não tenho certeza se ela sabe como prepará-lo. Uma rameira, ela é, eu mesmo o digo. Eh, eu não sei o que vou fazer, não sei, no entanto, tenho que ir, tenho realmente que ir. Então aí está. Sim. Estou indo. Sim, estou mesmo indo, vou deixá-la com eles. Não tenha medo, agora (os outros estão começando a parecer assustados). Ah, não é muito aconchegante aqui, mas é só pôr alguma lenha e isso se aquece, isso não é problema. Ah, você vai ver, não é brincadeira, por aqui. Que tal um pouco de música. Ah, era bom, o gramofone que havia, muito bom, ah, sim, um dos velhos tempos, era, era um... E ele tira fora um de dar corda e eles tocam os discos dos velhos tempos, mas realmente


dos velhos tempos, eh "Viens poupoule", "Ma tonkinoise" - aí está, está vendo, é melhor com isso ligado, não é, pode tocá-Ia durante todo o verão, pode sim, isso vai trazê-los para cá de novo, uma vez que tenham varrido um pouco esse lugar, está precisando, hein? Bem, madame, está voltando, é? Indo para Paris, é? Tem carro? Bem, então, devo dizer, isso seria uma ajuda, ah, seria, imagine só, hein, voltando de carro...

Tradução de Trecho de "L'ecole des cadavres." Louis-Ferdinand Céline. No outro dia eu vagava pensando pelo longo caminho entre Jatte e Courbevoie, pensando em coisas pequenas, eu tinha dificuldade ... eu não iria me afogar, é claro ... e quando estou incomodado não consigo encontrar uma solução. A vida não é engraçada todos os dias. Eu olho em volta um pouco, eu vejo uma barca no meio dos navios, deitada de cabeça para baixo, deitada, parecia uma espécie de imersão ... e então um guincho pequeno pingente, que movimentou-a sozinha ... Eu olho um pouco mais ... Eu vejo uma sereia que rema entre duas águas, em seguida, enlameada, tem aspecto desagradável ... cheia de bolhas de lama ... Eu estava envergonhado por ela ... eu fingia não ver ... me afastei com cuidado ... - Yop! Hey! Hey! Hop! Ferdinand! Você diz bom-dias engraçados! Grande deforme! Cabeça bruta! Para onde está fugindo? Eu sabia que como uma sereia, isso sem vergonha digo, eu já tinha conhecido, muitas vezes em circunstâncias difíceis em estuários diferentes, em outros momentos da vida, Copenhague, Saint-Laurent, ali, qualquer espuma frenética, alegre, jovem, vertiginosa e pulverizada. Seqüestro-me como esfera derramada no claro ... Dessa forma, no Sena ... tão sujo quanto a sarjeta...


- Porque você corre tão pensativo? vá Sujo ... Ela me chama. Intrigante ... Eu sabia que ela tinha se tornado muito grosseira, aos redores ... então eu olharia de perto. Que pobre imagem! - Você acha que eu sou feio ao seu lado agora? Terrível para simesmo! hu! Beije-me! Fui obrigado, cheirava a óleo ... peço desculpas ... - Você é avô! ela me diz. Ela ri. Ela sabia de todos os caipiras, de todas as fofocas, de todo o mal falar. - Você está bem informada, querida bacalhau! Eu respondo, olho por olho. Indiscreto! atrevido! Você ficou verde, esta manhã ...? - verde! verde! ... cadáver de si mesmo! Putassier desmoronando velho patife! Antigo perdedor! Isso te incomoda, vovô, hein? Digo-te! Trousseur velho! perdas de pragas! Vergonha! Próstata vergonha! Mangefoutre! - Ah! Eu disse à ela. Patético lixo! Flor do poço! vidangière! Abolirei-a! insólita!

Original:

L’autre jour je déambulais comme ça, tout pensif, le long du halage entre la Jatte et Courbevoie, je songeais à des petites choses, j’avais des ennuis… J’allais pas me noyer, bien sûr… mais quand même j’étais tracassé, je ne trouvais pas la solution. La vie n’est pas drôle tous les jours. Je regarde un peu les alentours, je vois une péniche en pleine vase, renversée dessus-dessous, gisante, ça faisait comme une sorte d’estacade… et puis un petit treuil, pendentif, qui remuait tout seul… Je regarde encore un peu loin… J’aperçois là-bas une sirène qui barbotait entre deux eaux, bourbeuses alors, très infectes… une fange pleine de bulles… J’en étais gêné pour elle… Je fis semblant de ne pas


la voir… Je m’éloignai délicatement… — Yop ! Eh ! dis donc ! Hop ! Ferdinand ! Tu dis plus bonjour folichon ! Grand tordu ! Crâneur malpoli ! Où c’est que tu te précipites ?... Je la connaissais comme sirène, cette effrontée, je l’avais déjà rencontrée assez souvent, dans des circonstances délicates, en des estuaires bien différents, à d’autres moments de la vie, de Copenhague au Saint-Laurent, là-bas, toute éperdue, toute effrénée de mousse, de joie, de jeunesse, vertigineuse dans les embruns. Cette déchéance me boule-[10]versait bien sûr… Comme ça dans la Seine… si poisseuse, si égoutière… — Où courez-vous ainsi songeur ? Belle bite !… qu’elle m’interpelle. Je la connaissais intrigante… elle était devenue bien grossière, dans les parages… Je la regarde alors de tout près. Quel pauvre visage ! — Tu me trouves vilaine à présent ? Affreux toi-même ! Allez ! Embrasse-moi ! J’étais bien forcé, ça sentait les huiles… je m’excuse… — Tu vas être grand-père ! qu’elle m’annonce. Elle s’esclaffe la garce. Elle savait tout cette bouseuse, tous les ragots, les bignoleries de la région. — T’es bien renseignée, chère morue ! que je lui réponds, tac au tac. Indiscrète ! effrontée ! Tu t’es mis du vert ce matin ?... — Du vert ! du vert !... cadavre vous-même ! Vieux croulant coquin putassier ! Vieux raté ! Ça te vexe hein grand-père ? que je te dise ! Vieux trousseur ! ravageur de pertes ! Honteux ! Honteux prostateux ! Mangefoutre ! — Ah ! que je lui dis. Navrante ordure ! Fleur de fosse ! vidangière ! je vais vous abolir ! insolente !

Entrevista de Louis Ferdinand Céline - 1° de


Junho de 1960

Entrevista conduzida por J. Darribehaude, J. Quenot, André Parinaud e Claude Sarraute, publicada na Paris Review, invernoverão de 1964 e republicada no livro; Os escritores: as históricas entrevistas da Paris Review. São Paulo: Cia. das Letras, 1988, de onde foi extraída.

Apresentação:

Louis-Ferdinand Destouches (Céline é um pseudônimo) nasceu a 27 de maio de 1894, em Paris, filho de um funcionário pobre e uma rendeira. Depois de receber uma educação primária, Destouches trabalhou em várias ocupações até 1912, quando ingressou na cavalaria. Logo no início da Primeira Guerra Mundial, foi ferido na cabeça e adquiriu neurose de guerra numa ação pela qual foi condecorado por bravura. O sofrimento, físico e mental, provocado por esses ferimentos perseguiu-o até o fim de sua vida. Após ser dispensado por invalidez, obteve um diploma médico; tornou-se então cirurgião assistente na fábrica Ford em Detroit. A seguir foi para a África, e aí, após um período na Liga das Nações, decidiu-se pelo trabalho médico extremamente mal remunerado entre os pobres de Paris. O primeiro romance de Céline foi Voyage au bout de la nuit (1932), que logo se tornou um sucesso internacional. Seu segundo romance, Mort à crédit (1936), consolidou sua reputação. Seu uso da linguagem


coloquial, suas visões da vida nos estratos mais baixos da sociedade, seu sarcasmo - aliados à compaixão - influenciaram Sartre, Queneau e Bernanos e, entre os norte-americanos, Henry Miller, Burroughs, Ginsberg e Kerouac. No fim dos anos 30, Céline começou a tender politicamente para o fascismo e proclamou seu anti-semitismo. Durante a ocupação alemã, seu comportamento foi ambíguo. Depois da libertação, teve que fugir para a Dinamarca, com a identidade disfarçada sob seu verdadeiro nome. Foi julgado in absentia, mas o veredicto foi posteriormente anulado e lhe permitiram retomar à França, onde passou seus últimos anos - parcialmente paralisado e à beira da loucura. Céline, entretanto, continuou a escrever, produzindo dois romances - D'un château à l'autre (1957) e Nord (1960) - considerados por alguns críticos como equivalentes aos seus dois grandes livros dos anos 30. Morreu em Paris, a 1.° de julho de 1961.

***

(Entrevista, 1º de junho de 1960)

L.F. Céline: O que posso lhe dizer? Não sei como agradar aos seus leitores. Essa gente com quem você tem que ser gentil... Não pode massacrá-los. Eles gostam de ser entretidos sem ser maltratados. Bem... Vamos conversar. Um autor não tem tantos livros dentro de si. Voyage au bout de ia nuit... já deveria ter sido o suficiente ... Entrei nisso por curiosidade. Curiosidade, isso custa. Tornei-me um cronista trágico. A maioria dos escritores está procurando a tragédia sem encontrá-la. Relembram pequenas histórias pessoais que não são tragédia. Você dirá: os gregos. Os trágicos gregos tinham a impressão de falar com os deuses ... Bem, é claro ... Cristo, não é todo dia que se tem a chance de telefonar para os deuses.


- E o trágico nos nossos tempos, para você?

L.F. Céline: É Stalingrado. Que tal isso para a catarse! A queda de Stalingrado é o fim da Europa. Lá houve uma catástrofe. O centro disso tudo era Stalingrado. Lá você pode dizer que acabou, e bem acabada, a civilização branca. Então aquilo tudo, aquilo fez algum barulho, alguma ebulição, as armas, as cataratas. Eu estive ali... Aproveitei isso. Usei esse material. Vendi-o. Evidentemente, meti-me em questões - a questão judaica - que não eram da minha conta, não era da minha conta estar ali. Mesmo assim eu as descrevi ... do meu jeito.

- Um jeito que provocou um escândalo com a publicação de Voyage. O seu estilo sacudiu um bocado de hábitos.

L.F. Céline: Eles chamam isso de invenção. Olhe os impressionistas. Um belo dia pegaram seus quadros e foram pintar do lado de fora. Viram como é que realmente se almoça na grama. Os músicos também trabalharam nisso. De Bach a Debussy há uma grande diferença. Provocaram algumas revoluções. Despertaram as cores, os sons. Para mim são as palavras, as posições das palavras. No que concerne à literatura francesa, aí eu serei o sabichão, não se engane. Somos pupilos das religiões - católica, protestante, judaica ... Bem, das religiões cristãs. Aqueles que dirigiram a educação francesa por séculos foram os jesuítas. Eles nos ensinaram a compor sentenças traduzidas do latim, bem balanceadas, com um verbo, um sujeito, um complemento, um ritmo. Em suma: aqui uma frase, ali uma oração, em todo lugar um sermão! Dizem de um escritor: "Ele tece frases tão belas!". E eu digo: "É ilegível". Dizem: "Que estupenda linguagem teatral!". Eu olho, eu ouço. É rasa, é nula, é nada. Eu enfiei a palavra falada na escrita. De uma só vez.


- É isso o que você chama de sua "pequena música", não?

L.F. Céline: Chamo de "pequena música" porque sou modesto, mas é uma transformação muito difícil de realizar. É trabalho. Do jeito que é não parece ser nada, mas tem qualidade. Para fazer um romance como um dos meus você tem que escrever oitenta mil páginas para conseguir oitocentas. Algumas pessoas dizem, quando falam de mim: "Há eloqüência natural... Ele escreve como fala... Aquelas são palavras do dia-a-dia... São praticamente idênticas... Pode-se reconhecê-las". Bem, aí, isso é "transformação". Simplesmente não é a palavra que você está esperando nem a situação que você está esperando. Uma palavra utilizada desse jeito se torna ao mesmo tempo mais íntima e mais exata do que o que você normalmente encontra nesse lugar. Você inventa o seu estilo. Ajuda a pôr para fora o que está querendo mostrar de você mesmo.

- O que você está querendo mostrar?

L.F. Céline: Emoção. Savy, o biólogo, disse algo apropriado: No princípio havia emoção, e o verbo não estava lá de jeito algum. Quando você cutuca uma ameba, ela se retrai, tem emoção, não fala mas tem emoção. Um bebê chora, um cavalo galopa. Só que, a nós, deram-nos o verbo. E isso lhe dá o político, o escritor, o profeta. O verbo é horrível. Não se pode cheirá-lo. Mas chegar ao ponto em que se pode traduzir essa emoção, essa é uma dificuldade que ninguém imagina... É feio... É sobre-humano... É um truque que pode matar um cara.

- No entanto, você sempre aprovou a necessidade de escrever.


L.F. Céline: Não se faz nada de graça. Você tem que pagar. Uma história que você inventa, isso não vale nada. A única história que conta é aquela pela qual você paga. Depois de pagá-la, tem o direito de transformá-la. De outro modo não presta. Eu trabalho... Tenho um contrato, ele tem que ser cumprido. Só que hoje tenho sessenta e cinco anos, estou setenta e cinco por cento mutilado... Na minha idade a maioria dos homens já se aposentou. Devo seis milhões a Gallimard... por isso sou obrigado a continuar... Já tenho outro romance em curso: sempre o mesmo negócio... Uma ninharia. Conheço uns poucos romances. Mas os romances são um pouco como renda... uma arte que desapareceu com os conventos. Os romances não podem competir com os carros, o cinema, a televisão, a bebida, Um cara que está bem alimentado, que escapou da grande guerra, de noite dá um picote na velha e o seu dia acabou. Findo.

(Entrevista, mais tarde em 1960)

- Você se lembra de ter tido um choque, uma explosão literária que o tivesse marcado?

L.F. Céline: Ah, não, nunca! Comecei na medicina e queria medicina, certamente; não literatura. Cristo, não! Se há algumas pessoas que me parecem dotadas, são - sempre os mesmos - Paul Morand, Ramuz, Barbuse, os caras foram feitos para isso.

- Na sua infância nunca pensou que chegaria a ser escritor?


L.F. Céline: Ah, não, de jeito nenhum, não, não, não. Eu tinha uma imensa admiração pelos médicos. Ah, isso parecia extraordinário, isso sim. A medicina era a minha paixão.

- Na sua infância, o que um médico representava?

L.F. Céline: Apenas um camarada que vinha à passage Choiseul para ver minha mãe doente, meu pai. Vi um cara milagroso, vi sim, que curava, que fazia coisas surpreendentes para um corpo que não estava funcionando bem. Achei isso tremendo. Ele parecia muito sábio. Achei absolutamente mágico.

- E, hoje em dia, o que um médico representa para você?

L.F. Céline: Bah! Agora ele é tão maltratado pela sociedade que sofre competição de todo mundo, não tem mais prestígio, mais nenhum prestígio. Já que anda vestido como um empregado de posto de gasolina, bem, pouco a pouco, vai se tornando um empregado de posto de gasolina. Não é? Já não tem muito a dizer, a dona-de-casa tem a Enciclopédia médica Larousse, e mesmo as doenças perderam o seu prestígio, há menos delas; então veja o que aconteceu: nem sífilis, nem gonorréia, nem tifo. Os antibióticos tiraram muito da tragédia da medicina. Então não há mais peste, não há mais cólera.

- E as doenças nervosas e mentais, o número delas não aumentou, por sua vez?


L.F. Céline: Bem, aí não podemos fazer nada. Algumas loucuras matam, mas não muitas. Quanto aos meio loucos, Paris está cheia deles. Há uma necessidade natural de se procurar excitamento, mas sem dúvida todas as bundas que se vêem pela cidade inflamam o desejo sexual até um grau... deixam os adolescentes malucos, não é?

- Quando estava trabalhando na Ford, teve a impressão de que o modo de vida imposto às pessoas que lá trabalhavam corria o risco de agravar distúrbios mentais?

L.F. Céline: Ah, de jeito nenhum. Não. Eu tinha um médico chefe na Ford que costumava dizer: "Dizem que até chimpanzés colhem algodão. Digo que seria melhor ver alguns deles trabalhando nas máquinas". Os doentes são preferíveis, são muito mais apegados à fábrica do que os saudáveis; os saudáveis estão sempre caindo fora, enquanto os doentes permanecem no emprego muito bem. Mas o problema humano, agora, não é a medicina. São quase só as mulheres que consultam os médicos. A mulher é cheia de problemas, pois tem nitidamente toda espécie de fraqueza que se conhece. Ela precisa... ela quer permanecer jovem. Tem a sua menopausa, as suas regras, toda a questão genital, que é muito delicada, faz dela um mártir, não, daí esse mártir vive de qualquer modo, sangra, não sangra, vai e vê o médico, faz operações, não faz operações, é re-operada; aí, no meio disso, ela dá à luz, perde a sua forma, tudo isso conta. Quer permanecer jovem, manter a linha, bem. Não quer fazer nada e não pode fazer nada. Não tem nenhum músculo. É um problema imenso... dificilmente reconhecido. E sustenta os salões de beleza, os charlatões e os farmacêuticos. Mas não representa uma situação médica interessante, o declínio da mulher. É sem dúvida uma rosa murchando, não se pode dizer que seja um problema médico ou um problema agrícola. Num jardim, quando você vê uma rosa murchar, aceita. Outra vai florescer. Ao passo que a mulher, não; ela não quer


morrer. Essa é a parte difícil.

- A sua profissão de médico trouxe-lhe um certo número de experiências e revelações que você transmitiu nos seus livros.

L.F. Céline: Ah, sim, sim, passei trinta e cinco anos clinicando, então isso conta um pouco. Andei um bocado na minha juventude. Subimos um bocado de escadas, vimos um bocado de pessoas. Ajudou-me um bocado de todas as maneiras, devo dizer. Sim, imensamente. Mas não escrevi nenhum romance médico, essa chateação abominável... come Soubiran.

- A sua vocação médica manifestou-se bem cedo em sua vida e, no entanto, você começou de modo inteiramente diferente.

L.F. Céline: Ah, sim. E como! Queriam fazer de mim um agente de compras. Um vendedor de grande magazine! Nós não tínhamos nada, meus pais não tinham meios, entende? Comecei na pobreza e é assim que estou terminando.

- Como era a vida para o pequeno comércio em 1900?

Terrível, terrível. No sentido de que mal tínhamos o suficiente para comer e tínhamos que manter as aparências. Por exemplo, tínhamos duas frentes de loja na passage Choiseul, mas apenas uma ficava sempre acesa, pois a outra estava vazia. E tínhamos que lavar a calçada antes de ir trabalhar. Meu pai não era brincadeira. Bem,


minha mãe tinha um par de brincos. Nós sempre o levávamos à loja de penhores no fim do mês para pagar a conta de gás. Ah, não, era horrível.

- O senhor viveu bastante tempo na passage Choiseul?

L.F. Céline: Bem, dezoito anos. Até que me alistei. Era pobreza extrema. Pior de que pobreza, porque na pobreza você pode se abandonar, se arruinar. se embriagar, mas essa era uma pobreza que mantém as aparências, pobreza digna. Era terrível. Toda a minha vida comi macarrão. Porque minha mãe costumava consertar renda antiga. E o que acontece com essa renda é que os cheiros grudam nela para sempre. E você não pode entregar renda que fede! Então o que é que não fedia? Macarrão. Comi bacias de macarrão. Minha mãe fazia macarrão em bacias. Macarrão cozido, ah, sim, sim. toda a minha juventude, macarrão e mingau. Coisas que não fediam. A cozinha na passage Choiseul era no segundo andar, do tamanho de um armário, você chegava ao segundo andar por uma escada em caracol, assim, e tinha que subir e descer infinitamente para ver se estava cozinhando, se estava fervendo, se não estatava fervendo, insuportável. Minha mãe era aleijada, uma das suas pernas não funcionava, e ela tinha que subir aquela escada. Costumávamos subi-la umas vinte e cinco vezes por dia. Que vida! Uma vida insuportável! E meu pai era um funcionário. Ele voltava para casa às cinco. Tinha que fazer as entregas para ela. Ah, não, aquilo era pobreza, pobreza digna.

- O senhor também sentiu a agrura de ser pobre quando entrou para a escola?


L.F. Céline: Não éramos ricos, na escola. Era uma escola do Estado, você sabe, então não havia nenhum complexo. Nem muitos complexos de inferioridade, também. Eram todos como eu, garotinhos cheios de pulgas. Não, não havia gente rica naquele lugar. Nós conhecíamos os ricos. Eram dois ou três. Nós os venerávamos! Meus pais costumavam me dizer: aquelas pessoas são ricas, o comerciante de linho local. Pru'homme. Tinham caído lá por engano, mas nós os reconhecíamos, com horror. Naqueles dias nós venerávamos o homem rico! Pela sua riqueza! E ao mesmo tempo pensávamos que era inteligente.

- Quando e como o senhor se deu conta da injustiça que isso representava?

L.F. Céline: Bem tarde, devo admitir. Depois da guerra. Aconteceu, percebe´, quando vi gente ganhando dinheiro enquanto os outros estavam morrendo nas trincheiras. Você via isso e não podia fazer nada. Aí, mais tarde, eu estava na Liga das Nações, e lá vi a luz. Vi realmente que o mundo era governado pelo Bezerro, pelo Dinheiro! Ah, sem brincadeira! Implacavelmente. A consciência social certamente veio tarde para mim. Eu não a possuía, eu era resignado.

- A atitude de seus pais era de aceitação?

L.F. Céline: Era de frenética aceitação! Minha mãe sempre costumava me dizer; "Pobre menino, se não tivesse as pessoas ricas (porque eu já tinha umas pequenas idéias a esse respeito), se não houvesse pessoas ricas nós não teríamos nada para comer. Os ricos têm responsabilidades". Minha mãe venerava gente rica, percebe. Então, o que é que se pode esperar, isso me contagiou também. Eu não


estava inteiramente convencido. Não, Mas não ousava ter uma opinião, não, não. Minha mãe, que vivia mergulhada nas rendas até o pescoço, jamais sonharia em usar alguma. Isso era para os fregueses. Nunca. Não era feito para nós, entende. Nem mesmo o joalheiro, ele não usava jóias, a mulher do joalheiro nunca usou jóias. Eu era um dos seus garotos de recado. No Robert, na rue Royale; no Lacloche, na Rue de la Paix. Eu era muito ativo naqueles dias. O, la la! Fazia tudo muito depressa. Agora estou cheio de gotas, mas naqueles dias costumava ser mais rápido que o metrô. Nossos pés sempre doíam. Meus pés sempre doeram. Porque nós não mudávamos de sapato com muita freqüência, você sabe. Nossos sapatos eram muito pequenos, e nós estávamos crescendo. Eu fazia todas as minhas tarefas a pé. Sim... Consciência social. .. Quando eu estava na cavalaria, ia às festas de caça do príncipe Orloff e da duquesa de Uzès, e nós costumávamos segurar os cavalos dos oficiais. Isso era o mais longe a que se chegava. Puro gado, nós éramos. Claramente compreendido, é lógico, esse era o pacto.

- Sua mãe teve muita influência sobre o senhor?

L.F. Céline: Tenho o caráter dela. Muito mais do que qualquer outra coisa. Ela era muito severa, era impossível, aquela mulher. Devo dizer que possuía um certo temperamento. Não desfrutava a vida, é tudo. Sempre preocupada e sempre atordoada. Trabalhou até o último minuto de sua vida.

- Como ela o chamava? Ferdinand?

L.F. Céline: Não. Louis. Ela queria me ver num grande magazine, no Hôtel de Ville, no Louvre. Um encarregado de compras. Isso era o ideal para ela. E meu pai pensava o mesmo. Porque ele tinha tido tão


pouco sucesso com o seu diploma de literatura! E meu avô tinha feito doutorado! Eles tinham tido muito pouco sucesso, costumavam dizer; comércio, ele vai se dar bem no comércio.

- Seu pai não poderia ter tido uma posição melhor lecionando?

L.F. Céline: Sim, pobre homem, mas veja o que aconteceu: ele precisava de um diploma de licenciatura e tinha apenas um diploma de formação geral, e . não podia continuar porque não tinha dinheiro algum. Seu pai tinha morrido e deixado esposa e cinco filhos.

- E seu pai morreu tarde na vida?

L.F. Céline: Morreu quando Voyage foi publicado, em 32.

- Antes que o livro saísse?

L.F. Céline: Sim, pouco antes. Ah, ele não teria gostado. Além disso, era ciumento. Não me via como um escritor de modo algum. Nem eu mesmo, afinal de contas. Concordávamos pelo menos num ponto.


- E como sua mãe reagiu aos seus livros?

L.F. Céline: Achava que eram perigosos, obscenos e que trariam problemas. Viu que aquilo ia terminar muito mal. Tinha uma natureza prudente.

- Ela leu os seus livros?

L.F. Céline: Ah, ela não podia, não estava ao seu alcance. Teria achado tudo muito vulgar, e também não lia livros, não era o tipo de mulher que lê. Não tinha vaidade alguma. Continuou trabalhando até morrer. Eu estava na prisão. Ouvi dizer que ela tinha morrido. Não, eu tinha acabado de chegar a Copenhague quando soube de sua morte. Uma viagem terrível, vil, sim - a orquestração perfeita. Abominável. Mas as coisas só são abomináveis de um lado, não esqueça, hein? E, você sabe... a experiência é uma lâmpada fraca que só ilumina aquele que a carrega... e incomunicável... Tenho que manter isso para mim mesmo. Para mim, você só tinha o direito de morrer quando tivesse uma boa história para contar. Para entrar, você conta a sua história e passa. Isso é o que Morte a crédito significa, simbolicamente. a recompensa da vida sendo a morte. Vendo que... não é o bom Deus que rege, é o demônio. O homem. A natureza é repugnante, olhe só para ela, a vida dos pássaros, a vida animal.

- Alguma vez o senhor foi feliz em sua vida?

L.F. Céline: Muito feliz, nunca, acho. Porque o que você precisa, quando fica velho... Acho que, se me dessem bastante grana para ficar


a salvo das necessidades. .. eu adoraria isso. . . eu me daria a oportunidade de me aposentar e ir a algum lugar, daí eu não teria que trabalhar e poderia ficar observando os outros. A felicidade seria estar sozinho à beira-mar e ser deixado em paz. E comer muito pouco; sim. Quase nada. Uma vela. Eu não viveria com eletricidade e trecos. Uma vela! Uma vela, e aí eu leria o jornal. Os outros, eu os vejo agitados, acima de tudo excitados por ambições, a vida deles é um show, uma intensa troca de convites para continuar a performance. Já vi isso, vivi entre pessoas da sociedade uma vez - "Eu digo, Gontran, ouça o que ele lhe disse; ah, Gaston, você estava realmente em forma ontem, eh! Mostrou a ele o que é o que, hein! Ele me contou novamente ontem à noite! Sua mulher dizia: ah, Gaston nos surpreendeu!" É uma comédia. Passam seu tempo nisso. Caçando-se uns aos outros, encontrando-se nos mesmos clubes de golfe, nos mesmos restaurantes.

- Se pudesse passar por tudo de novo, o senhor procuraria suas alegrias fora da literatura?

L.F. Céline: Ah, absolutamente! Não peço alegria. Não sinto alegria. Desfrutar a vida é uma questão de temperamento, de dieta. Você tem que comer bem, beber bem, daí os dias passam depressa, não? Coma e beba bem, dê um passeio de carro, leia alguns jornais, o dia logo se acabou. O seu jornal, algumas visitas, o café da manhã, meu Deus, já está na hora do almoço quando você acabou de dar o seu passeio, hein? Veja alguns amigos à tarde, e o dia se acabou. À noite, cama, como sempre, e olhos fechados. Aí está. E ainda mais assim, com a idade, as coisas vão mais depressa, não vão? Um dia é infinito quando você é moço, ao passo que, quando se está velho, bem cedo ele se acaba. Quando se está aposentado, um dia é um lampejo, quando se é garoto, passa muito devagar.


- Como preencheria o seu tempo se estivesse aposentado e com renda?

L.F. Céline: Eu leria o jornal. Daria um pequeno passeio num lugar onde ninguém pudesse me ver.

- Pode passear por aqui?

L.F. Céline: Não, nunca, não! Melhor não!

- Por que não?

L.F. Céline: Eu seria notado. Não quero isso. Não quero ser visto. Num porto, você desaparece. No Havre.. acho que não notariam um camarada nas docas do Havre. Você não nota nada. Um velho marinheiro, um velho louco...

- E o senhor gosta de barcos?

L.F. Céline: Ah, sim! Sim! Adoro observá-los. Observá-los ir e vir. Eles e o quebra-mar, e eu; fico feliz. Eles soltam fumaça, vão embora,


voltam, não é da sua conta, hein? Ninguém lhe pergunta nada! É, e você lê o jornal local, Le Petit Havrais, e... e é isso. Isso é tudo. Ah, eu viveria minha vida de novo de modo diferente.

- Houve, alguma vez, pessoas exemplares para o senhor? Pessoas que o senhor gostaria de ter imitado?

L.F. Céline: Não, porque tudo isso é magnificente, tudo isso; não quero ser magnificente de modo algum, desejo nenhum por tudo isso, só quero ser um velho ignorado. Essas são as pessoas das enciclopédias, não quero isso.

- Quero dizer pessoas que o senhor possa ter encontrado na vida de todo dia.

L.F. Céline: Ah, não, não, não, as vejo sempre ferrando os outros. Elas me dão nos nervos. Não. Aí eu tenho uma espécie de modéstia da minha mãe, uma insignificância absoluta, verdadeiramente absoluta! Aquilo em que estou interessado é ser completamente ignorado. Tenho um apetite, um apetite animal por reclusão. Sim, eu gostaria bastante de Boulogne, sim, Boulogne-sur-Mer. Estive muitas vezes em Saint-Malo, mas isso já não é mais possível. Sou mais ou menos conhecido lá. Lugares a que as pessoas nunca vão...

(Última entrevista de Céline, 1." de junho de 1961)


- O amor tem muita importância nos seus romances?

L.F. Céline: Nenhuma. Não se precisa disso. É preciso ser modesto quando se é romancista.

- E a amizade?

L.F. Céline: Não mencione isso também.

- Bem, o senhor acha que deve se concentrar em sentimentos sem importância?

L.F. Céline: Você tem que dar conta do recado. É tudo o que conta. E, além do mais, com muita discrição. Fala-se disso com muita, mas muita publicidade. Somos apenas objetos de publicidade. É repulsivo. Tempo virá em que todo mundo tomará uma cura de modéstia. Em literatura como em tudo o mais. Estamos infetados pela publicidade. É realmente ignóbil. Não há nada a fazer senão dar conta do recado e calar-se. Isso é tudo, O público o olha, não o olha, lê ou não lê, e isso é problema dele. O autor tem apenas que desaparecer.


- O senhor escreve por prazer?

L.F. Céline: De jeito nenhum, absolutamente não, Se tivesse dinheiro nunca escreveria. Artigo número um.

- Escreve por amor ou ódio?

L.F. Céline: Ah, de jeito nenhum! É problema meu, se aprovo esses sentimentos de que você está falando, amor e amizade, mas não é problema do público!

- Seus contemporâneos lhe interessam?

L.F. Céline: Ah, não, de jeito nenhum. Eu me interessei por eles uma vez para tentar impedi-los de correrem para a guerra. De qualquer modo, eles não foram para a guerra, mas voltaram carregados de glória. Bem, quanto a mim. meteram-me na prisão. Eu me meti em apuros ao me importar com eles. Não devia ter me importado, Só tinha a mim mesmo com que me importar.

- Em seus últimos livros ainda há um certo número de sentimentos que o revelam.


L.F. Céline: Você pode revelar a si mesmo de qualquer maneira. Não é difícil.

- Está dizendo que quer nos persuadir de que não há nada de mais intimamente seu em seus últimos livros?

L.F. Céline: Ah, não, íntimo, não, nada. Pode haver uma coisa, uma única coisa, que é que eu não sei como gozar a vida. Tenho uma certa superioridade sobre os outros, que são, no fim das contas, podres, já que estão sempre gozando a vida. Gozar a vida, isto é, beber, comer, arrotar, foder, um monte de coisas que deixam um cara vazio ou tolerante. Eu não sou um gozador, de jeito nenhum. Então, bem, isso funciona muito bem. Sei selecionar. Sei provar, mas, como diz o romano decadente: Não é só ir ao bordel, é não sair de lá que conta, não é? Eu estive lá - toda a minha vida nos bordéis, mas saía de lá depressa. Não bebo. Não gosto de comer. Tudo isso é para os merdas. Tenho o direito, não tenho? Tenho só uma vida: é dormir e que me deixem sozinho.

- Quem são os escritores em quem o senhor reconhece um verdadeiro talento literário?

L.F. Céline: Há três pessoas que eu sentia, no grande período, que eram escritores. Morand, Ramuz, Barbusse eram escritores. Tinham o pique. Foram feitos para isso. Mas os outros não são feitos para isso. Pelo amor de Deus, são impostores, são um bando de impostores, e os impostores são os mestres.


- Acha que ainda é um dos maiores escritores vivos?

L.F. Céline: Ah, de jeito nenhum! Os grandes escritores... não tenho que sair por aí lidando com adjetivos. Primeiro você tem que morrer, e, quando você está morto, daí eles o classificam. A primeira coisa que você tem que estar é morto.

- O senhor está convencido de que a posteridade lhe fará justiça?

L.F. Céline: Mas, Deus meu, não estou convencido! Deus meu, não! E talvez não vá nem existir uma França então. Serão os chineses ou os bárbaros que farão o inventário, e vão ficar bem intrigados com a minha literatura, meu estilo de trama e as minhas reticências... Não é difícil. Eu terminei, já que estamos falando de "literatura". Eu terminei. Depois de Morte a crédito eu disse tudo, e não era muito.

- O senhor detesta a vida?

L.F. Céline: Bem, não posso dizer que a adoro, não. Eu a tolero porque estou vivo e porque tenho responsabilidades. Sem isso, sou bem da escola pessimista. Tenho que esperar alguma coisa. Não espero nada. Espero morrer tão sem dor quanto possível. Como todo mundo. Isso é tudo. Que ninguém sofra por mim, por minha causa. Bem, morrer em paz, hein? Morrer, se possível, de uma infecção ou, bem, eu mesmo acabo comigo. Isso ainda seria de longe o mais simples. O que está por vir, isso é o que vai ser mais e mais difícil.


Agora eu trabalho muito mais dolorosamente do que há apenas um ano, e o ano que vem vai ser mais árduo que este ano. Isso é tudo.

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J. DARRIBEHAUDE, J. QUENOT, ANDRÉ PARINAUD e CLAUDE SARRAUTE

Caso Céline ou a vigilância platônica contra os poetas, por Leda Tenório da Motta

Os poetas gementes narram acontecimentos atrozes, inventam diálogos terríveis, supõem os deuses transportados, culpam-nos por todos os males existentes na terra, provocam o ânimo lamurioso, atentam contra a temperança, desencorajam os que lutam... Eis por que é preciso tirar-lhes o direito de mentir, afugentar as fábulas que fazem temer a morte, adotar imitadores capazes de modelar a alma dos jovens, estabelecer um plano de educação para a cidade. Assim escreve Platão, no Livro III de A República, aparentemente esquecido de que a sua própria filosofia é uma dramaturgia, de tal modo que é a personagem Sócrates quem fala, dirigindo-se, depois disso, à personagem Adimanto, para arrematar: “Para nosso uso, teremos de recorrer a um poeta ou contador de histórias mais austero e menos


agradável, que corresponda aos nossos desígnios, só imite para nós o estilo do homem comedido e se restrinja na sua exposição a copiar os modelos que desde o início estabelecemos por lei, quando nos dispusemos a educar nossos soldados”. [1] Mais de dois mil anos depois, é tentador pensar que os mesmos motivos se reencenam, quando outra excelente filosofia, que também recorre à dramaturgia, e também sonha com uma república dos justos, sentindo-se igualmente interpelada pelos excessos da poesia, volta a decretar a sua expulsão para fora dos muros. Não menos notável é que as desmesuras aqui em questão parecem ser, no fundo, as mesmas que levavam o governante-filósofo do passado a almejar a representação tão somente do bom e do belo. De fato, é o que o desencontro entre Sartre e Céline nos convida a conjecturar. Primeiro, porque a pintura mais que gemente de Céline é de tal modo excessiva que cabe com perfeição no rol dos vícios platônicos. Como terá percebido quem quer que tenha aberto qualquer página deste autor, mesmo que, escolhida ao léu, ela pertença ao que se considera, hoje, ser uma primeira fase da monumental obra celiniana, em que ainda não se cristalizou o estilo da imprecação, nem se fixou aquele narrador que surge ex abrupto, conversando consigo mesmo e fazendo o cômputo de sua vida desastrosa, tema baixo que é o leitmotiv das obras-primas finais, assim desencadeadas: “para falar francamente, muito cá entre nós, eu termino ainda pior do que comecei”. [2] Trata-se, como ressaltaram alguns, de um estilo particular para um mundo particular, o mundo das duas guerras mundiais que abrem o século xx, “immense, universelle moquerie”, [3] que o escritor pôde observar de muito perto, já que esteve particularmente ligado a elas, seja lutando na primeira, o que lhe valeria um ferimento na cabeça, seja inclinandose, na segunda, como um anti-herói, ao espírito de Vichy. Isso pede a mão de um colorista de tons fortes, menos interessado em ideias que na emoção, capaz de fazer no terreno das palavras o mesmo que os impressionistas e os pontilhistas que “arejaram e fizeram a pintura levantar voo”, como ele mesmo dirá, referindo-se com isso ao fato de que os pontilhistas, que vieram dos impressionistas, foram os precursores da violência fauve. [4] Segundo, porque, imbuído como estava do papel de maître à penser, e empenhado na reconstrução da França que sai da República de Vichy, Sartre vai inscrever o nome de Céline na lista negra de uma das


revistas do século xx: Les Temps Modernes. “Se Céline pôde defender as teses sociais dos nazistas, é que era pago para isso”, formula ele liminarmente em 1945, em um “Portrait de l’antisémite” que é preparado para o número inaugural do prestigioso periódico. Jamais comprovada, e hoje sabidamente falsa, a denúncia reaparece, um ano depois, na abertura das Réflexions sur la question juive, em meio à demonstração sartriana do caráter maniqueísta do antissemita, que, nos termos do filósofo, menos acredita no que pensa sobre os judeus e a conspiração judaica mundial do que precisa disso para explicar o mundo malfeito, imputando-o ao outro. Céline é um catastrofista desse tipo, escreve Sartre. [5] Em nome do ideal de uma literatura engajada, que ele recebe de André Gide, está assim lançado o anátema.

O asno de óculos Disseminada no campo espiritual do pós-guerra, desde suas fileiras mais bem-pensantes, a denúncia prospera, e eis o escritor banido, como Homero, Hesíodo e Píndaro por Platão. Com a diferença da réplica, que, neste caso, conhecemos. “Que que você quer? Que me assassinem?”, responde o poeta ao filósofo, que ele chama de “asno de óculos”, naquele francês curto e grosso que é a sua marca registrada. Isso está em uma carta mandada do exílio, em que se encontra desde a Liberação, intitulada, o mais poeticamente, À L’agité du bocal (o cara com a boca no trombone?). Editada por um amigo fiel, em uma plaquete datada de 1949, [6] contendo este e outros textos celinianos do período, hoje acessáveis na internet, ela circula por Paris como um direito de resposta da poesia, em um momento mais que delicado da história francesa – e da história da literatura francesa –, em que, por crime de escritura, executam-se autores e editores caídos em desgraça. É o que acontece com Robert Denoël, o jovem belga que se tornara o publisher de Voyage au bout de la nuit (1932), Mort à crédit (1936) e dos Panfletos celinianos – Mea culpa (1936), Bagatelles pour un massacre (1937), L’école des cadavres (1938), Les beaux Draps (1941), opúsculos contendo, entre outras coisas, e mais que qualquer coisa, um delírio antissemita, que radicaliza um discurso típico da França política que se tornaria colaboracionista. Dentre esses escritos, que resumem a obra até aí conhecida, os Panfletos – um gênero na verdade nobre, antes de adquirir o significado que tem hoje, e, aliás, praticado pelos


surrealistas, no encalço de Sade [7] –, são aquela parte a que se refere Sartre, antes disso um leitor de Voyage tão entusiasta quanto toda a esquerda francesa. [8] Proibida de circulação desde 1945, por sua injúria racial, essa retórica virulenta que, para alguns estudiosos, não é desprezível estilisticamente, nem deve ser atribuída a nenhuma ambição de convencimento, mas entendida como puro dispêndio verbal, também está hoje, para o bem e para o mal, ironicamente disponível na internet. Pode ainda ser consultada em um Centre Céline da Universidade de Paris VII, reduto de novos críticos criado no correr dos anos de 1980, em que se ousa pensar que é “de uma beleza selvagem”, [9] e até mesmo a associá-la à fatura do melhor Céline, o do último ciclo romanesco, que os especialistas chamam de trilogia alemã: D’un chateau l’autre (1957), Nord (1960) e Rigodon (1961).

Céline como objeto pensável Mas nada disso levanta o veto de Sartre. Tanto assim que teremos de esperar os anos de 1960, e a entrada em cena de outra revista francesa do século – a Tel Quel –, com sua predileção pelos poderes subversivos da literatura, em vez dos construtivos, e sua galeria de autores intratáveis, para que, ao lado de Artaud, Georges Bataille, Proust e Francis Ponge, Céline comece a se tornar um objeto pensável. É ao grupo reunido em torno de Philippe Sollers, plataforma amalgamada a outra surgida mais ou menos no mesmo momento, a da “nouvelle critique”, que devemos um progressivo e corajoso enfrentamento dessa verve perigosa, em plena vigência da autoridade sartriana. É graças à ação da Tel Quel, de par com colaboradores célebres tais que Roland Barthes, Gérard Genette e Julia Kristeva, e menos célebres, mas não menos aguerridos, tais que Henri Godard – o estabelecedor do texto dos romances de Céline para a coleção Pléiade da editora Gallimard – e Jean-Louis Houdebine – que viu no grande ataque de Céline a judeus e não judeus uma “arte do contratempo”, cultivada por todos os grandes cronistas clássicos, de Madame de Sévigné a Saint-Simon, que também escreveram no isolamento [10] –, que podemos reconhecer hoje, com certa tranquilidade, o lugar que esse romancista das duas grandes guerras mundiais, que as monumentalizou, como um Homero contemporâneo, ocupa, não


apenas na história da literatura francesa, mas na história da literatura em termos absolutos. De fato, note-se, a propósito, como já existe um desacato a Sartre, tão elíptico quanto marcante, em Le dégré zero de l’écriture,um dos primeiros livros deBarthes, publicado em 1953, ainda em vida de Céline. Aí, de saída, ele menciona o impronunciável nome do colabo, quando, assinalando a necessidade que tem o escritor moderno de situar-se na linguagem, porque não existe, justamente, o grau zero, o insere, a título de ilustração, entre alguns vultos das letras francesas. “Quase contemporâneos, Mallarmé, Céline, Gide e Queneau, Claudel e Camus, que falaram ou falam o mesmo estado histórico de nossa língua, valem-se de escrituras profundamente diferentes”, escreve Barthes. [11] Sabemos hoje, graças às obras póstumas barthesianas, que, se o crítico põe Céline ao lado de Camus, nem por isso vê aí grandezas iguais. Recuperada em um recente volume de inéditos, existe uma troca de farpas entre ele e o autor de A peste, em que deixa claro que não aprecia a maneira como Camus põe o tema da peste a serviço da moral da Resistência, fazendo dela uma metáfora política. “Pessoalmente, [...] acredito numa arte literal [...] em que as pestes não são nada mais que pestes, e em que a Resistência é toda a Resistência”, escreve ele a Camus. [12] Não se poderia esperar outra coisa de alguém tão ligado à corrente crítica que reabilitou Artaud, que, bem ao contrário de Camus, para quem a cidade deve ser salva da peste, o teatro é por definição pestilencial, a crueldade, uma encenação irrealista e convulsa, que recusa a dignidade intelectual da representação. [13]

O verdadeiro pai: um judeu Sem ter-lhe dedicado nenhuma longa reflexão – ao contrário de Kristeva, que trabalha com a hipótese de um Céline borderline, cujo substrato fantasmático a interessa e se torna o ponto culminante de um de seus melhores livros – Pouvoirs de l’horreur. Essai sur l’abjection (1980) –, Barthes desde então voltaria muitas vezes ao autor dos Panfletos. De tal modo que o surpreenderemos falando de Céline, nada mais, nada menos, que em sua aulainaugural de 1977 no Collège de France.Isso acontece no trecho do famoso speech, depois recolhido em livro, em que relembra que a “escritura” é um comprometimento do escritor unicamente com sua língua, e a língua


do escritor, uma espécie de idiotismo, e desta vez, sim, equipara Céline a alguns grandes homens de letras do passado, indo direto, aliás, à questão política aí envolvida. Esse trecho diz o seguinte: “As forças de liberdade que estão na literatura não dependem da pessoa civil, do engajamento político do escritor, nem mesmo do conteúdo doutrinal de sua obra, mas do trabalho de deslocamento que ele exerce sobre a língua: desse ponto de vista, Céline é tão importante quanto Hugo, Chateaubriand quanto Zola”. [14] Além dessas referências explícitas, e até onde pudemos pesquisar, há duas outras na última rodada de conferências de Barthes no Collège de France, pronunciadas em 1979 e hoje reunidas em La préparation du roman (2003). Em uma primeira, o escritor é associado a Artaud, e indiretamente a Proust, quando, falando nos diferentes regimes de vida dos autores, e evocando o exílio de Proust em seu quarto, ele pergunta: “Acaso imaginaríamos um Céline, um Artaud precisando de uma boa lareira para escrever?”. Em uma segunda, é a língua vulgar de Céline – sua escrita da fala, captada ao vivo, como dirão os pesquisadores de Paris VII, tomando o cuidado de acrescentar que isso não se confunde com nenhuma empreitada naturalista – que é trazida a campo, para referendar a briga dos modernos com quaisquer traços do beletrismo. Barthes lembra, nesse ponto, que Céline costumava ironizar o “style de bachot” (o estilo do professorzinho que ensina os autores do programa nas escolas), incluindo nesse linguajar a frase francesa de Voltaire, Renan e Anatole France. [15] É essa recepção, por certo, que explica a entrada de Céline em 1961, pouco antes de sua morte, na prestigiosa coleção Pléiade da editora Gallimard, que já tinha recusado Proust quarenta anos antes, para depois se retratar, e já tinha feito o mesmo com o autor de Voyage no início da década de 1930, terminando por incorporá-lo nos anos de 1960. A edição crítica do texto dos romances de Céline está hoje, na Pléiade, na altura do quarto tomo. Trata-se do resultado de uma revisão em que se empenhou toda uma brilhante geração, sob a batuta de Sollers, que participa ativamente do processo, não apenas como insuflador da revolta telquelienne, que continuaria a partir dos anos de 1980 em uma nova revista do grupo, a L’Infini, mas como estudioso e apresentador da imensa correspondência trocada entre o escritor e a Gallimard, desde suas primeiras tentativas frustradas de ingressar nesse catálogo prestigioso, até por considerá-la parte da melhor epistolografia francesa. [16]


Toda essa movimentação dos semiólogos repercute junto a outra plataforma de novíssimos, nascida nesses mesmos anos de 1950: a escola dos Cahiers du Cinéma, cujos homens acompanham a revolução dos críticos literários, os quais, por sua vez, também descobrem a nouvelle vague. [17] Como se pode depreender de uma surpreendente menção de François Truffaut a Céline no prefácio de 1966 à primeira edição de seu Hitchcock Truffaut. Ele repete aí os desagravos de Barthes, quando, já no final da apresentação do volume que se transformaria na bíblia dos cinéfilos, para realçar o voyeurismo de seu mestre, põe Céline lado a lado com Hitchcock e escreve: “Louis-Ferdinand Céline dividia as pessoas em duas categorias, os exibicionistas e os voyeurs, e é evidente que Hitchcock pertence à segunda categoria”. [18] A evocação do nome amaldiçoado pela gauche na abertura do hitchbook é tão mais surpreendente quanto Truffaut descobre, já na idade adulta, que é filho adotivo da família que sempre acreditou ser a sua família legítima, e que seu verdadeiro pai era um judeu, que teve de se esconder durante a Segunda Guerra. É esse trauma infantil que, de modo cifrado, está recolhido no ciclo Doineul, como mostraram os biógrafos, e depois deles os cultores do realizador. [19]

Um money maker vulgar Ora, o que há de especial nisso é que tudo se passa na mesma França por onde o autor dos Panfletos, há pouco, difundia seus delírios sobre o outro judeu, e onde este filho de pai judeu está, agora, mais atento à arte que à vida dos artistas, inclusive daqueles que injuriaram os judeus. Note-se, a propósito, que o próprio Hitchcock tinha sido posto no limbo pelos críticos nova-iorquinos, por pertencer ao sistema dos estúdios de Hollywood, e pelo mesmo motivo que está na base da acusação de Sartre a Céline, já que o ponto de Sartre é a venalidade do escritor. Do mesmo modo que Hitchcock, antes da intervenção dos homens dos Cahiers, é tido, na costa leste americana, por um money maker vulgar, que enriqueceu fazendo um cinema comercial. O que essa concatenação Céline & Hitchcock ressalta assim, pois, é o embate entre crivos críticos de que dependeu a sorte de alguns criadores importantes do século xx, geniais mas posicionados do lado errado da História. Temos, deste lado, os que passam por cima de considerações estranhas à trama interna das obras, interessando-se,


metodologicamente, por linguagens; de outro, os que leem as obras, à la Sainte-Beuve, desde a exterioridade da história que cerca a vida dos autores. Essa é toda a briga entre semiólogos da École des Hautes Études e sociólogos sorbonistas a propósito de como ler Racine, que está na origem rumorosa da nouvelle critique. [20] Acrescente-se que essa tradição crítica compreensiva representada pelos semiólogos, que revê o cânone da literatura francesa contemporânea, incorporando-lhe os malditos novecentistas, é caudatária das perspectivas críticas de ninguém menos que Walter Benjamin. Pois, antes de todos estes de que estamos falando, e por imprevisível que isso também seja, Benjamin já cita Céline, já o inclui, já lhe dá existência. E do modo mais incisivo: armando uma ponte entre ele e Baudelaire, ou fazendo Céline conversar com Baudelaire, do mesmo modo que Truffaut faz Céline dialogar com Hitchcock, e Barthes, com Proust e Artaud. Como poderá constatar quem abrir seu mais notável trabalho, o inacabado e inacabável Livro das passagens, que se acha, desde 2005, traduzido para o português do Brasil com o título Passagens. Ali, no arquivo temático “Baudelaire”, no qual Benjamin trabalhou, em Paris, ao longo dos anos 1937-1938, em plena era dos Panfletos, ele cita uma das muitas provocações politicamente incorretas do poeta em seu diário Mon coeur mis à nu, um breve fragmento que encerra um voto antissemita de Baudelaire, assim formulado: “Bela conspiração a organizar para o extermínio da raça judaica”. [21] Detendo-se sobre esse convite, não à viagem mas à passagem ao ato persecutório, Benjamin anota conscienciosamente em seu arquivo: “Céline deu prosseguimento a esta linha”. [22] É uma menção comovente, não só por vir de quem sofreu na pele a perseguição movida aos judeus, mas porque o que Baudelaire sonha assim, em voz alta, seria realidade no final do mesmo século em que ele escreve, com a eclosão do Caso Dreyfus, que Hannah Arendt chamou de “prelúdio ao nazismo”. [23] Além do mais, se quisermos dar todo o valor a essa inesperada nota, talvez seja preciso ouvir aí que Céline descende de Baudelaire. O que não contradiz a visão que o próprio Céline tem de si, embora ele tenha reivindicado a influência de Proust quase tão claramente quanto reivindica a dos pontilhistas e a dos surrealistas, de resto, no mesmo momento, ao sublinhar que o bom escritor é também aquele que sabe lançar mão do que a vida tem para lhe oferecer, que, nesse sentido, Proust estava “na linha dos salões”, enquanto ele, Céline, estava na das guerras. [24] Ele mostra assim, por certo, o quanto quer ombrear-se com Proust. Mas


Baudelaire não está longe, se admitirmos que Proust deve mais a Baudelaire que só a memória afetiva. Deve-lhe todo o continente das sensibilidades doentias, toda aquela degenerescência que a mãe e a avó proustianas consideram prejudiciais ao jovem narrador, e a Sra. de Villeparisis, ao seu salão, todas sabendo que isso é influência dos cenáculos deliquescentes em que se cultiva o poeta das Flores do mal. [25] Estamos em uma mesma família de espíritos. Outra prova é que Benjamin faz-se o tradutor e o intérprete de ambos: Baudelaire e Proust. Se, neste embate entre filosofias, a voz partida de Benjamin atenua a voz sonora de Sartre, salvo engano não existe muito mais que isso como fortuna crítica não aversiva a assinalar. O que se compreende, pois o século será, progressivamente, dos que se pautam pela divisa da lembrança do Holocausto. Dever de memória cuja imposição não vem só de Adorno, o companheiro de Benjamin, que, como se sabe, entendeu reiterativamente o Holocausto como a culminância da História catastrófica, e o pôs no centro de sua reflexão sobre as artes, notadamente a arte da palavra, a poesia. Mas de uma corrente de força tão influente quanto a adorniana, que, de resto, muito se refere a Adorno, aquela representada pelas assim chamadas “literaturas de testemunho” e pelos estudos em torno do tema “catástrofe e representação”.

A vigilância platônica sobre os poetas E o que é digno de nota é que essa outra corrente parte da seara mesma de Sartre. De fato, uma de suas fontes é Claude Lanzmann,seguidor de Sartre, amigo de Simone de Beauvoir, cofundador, juntamente com o casal, da Le Temps Modernes, e diretor da revista nos anos de 1960 e 1970, antes de voltar-se para o cinema e fazer, nesse campo, uma de suas mais impressionantes revoluções. Referência paradigmática daqueles outras plataformas críticas interessados nas correlações entre literatura e trauma, Lanzmann é o realizador de Shoah, memorável longa-metragem de 10 horas de duração, que demandou anos de pesquisa de campo antes de ser lançado em Paris, em 1985. Nesse filme estarrecedor, pela primeira vez a realidade dos Lager é mostrada através de depoimentos diretos, e não de documentos de arquivos. Dirigidos com firmeza por


Lanzmann, falam aí, longa e perturbadoramente, diante de uma câmera, no mais das vezes estática, que dá ao filme uma dimensão teatral, sobreviventes judeus encontrados por toda a Europa, carrascos nazistas e poloneses testemunhas oculares dos fatos. É esse trabalho colossal desse seguidor de Sartre, em que Beauvoir, reconhecendo a mão do artista, veria “uma mistura de horror e poesia”, [26] que vai introduzir a nomeação “shoah”, palavra hebraica que significa catástrofe, desde então preferida a “holocausto”, por ser um apelativo menos sacrificial. É ele também que, associado à obra mais notória do italiano Primo Lévi – É isto um homem? (1947) –, impulsiona uma safra de narrativas sobre os campos de extermínio, que, desde então, não cessam de nos chegar. Essa produção mobiliza, por seu turno, cada vez mais, estudiosos que, referindo-se aos ensaios de Freud sobre as neuroses de guerra, pautam-se por pensar que sem catástrofe não há representação, e por admitir que a catástrofe absoluta é a “shoah”, o que conecta, de pronto, a mais alta literatura a essa precisa missão testemunhal. Não é de estranhar que, sob o amparo de Lanzmann, ganhe força a vigilância platônica sobre os poetas. Isso faz recuar, novamente, as chances de Céline na França, e explica o fato de o escritor ser quase completamente desconhecido no Brasil, onde os críticos da “catástrofe e representação” são brilhantes e ativos, [27] e onde Céline inexistiria não fosse o trabalho tradutório de Rosa Freire d’Aguiar, [28] que realiza o impossível ao verter com extrema eficiência o parigot celiniano. Língua tão pouco convencional, tão capaz de “tirar as palavras do eixo” – para lembrar palavras do próprio Céline [29]–, que Henri Godard achou bom providenciar um Vocabulaire populaire et argotique para figurar em apêndice a todos os tomos dos Romans. Devemos também à tradutora a audácia de tomar Céline pela palavra e de colocá-lo “na linha de Proust”, como faz na sua introdução a Viagem, ao dizer que “tudo o que em Proust era delicadeza, fineza, meios-tons, harmonia, em Céline é grosseria, crueza, violência, deformação”, e que “foi este o grande achado de Céline, ser um Proust da plebe, segundo um crítico da época”. [30] Em que pese este seu retrato de Proust ser idealizado – a fineza, a delicadeza, a harmonia ... –, ela tem razão. Até porque, ao lado das reticências, que tanto o caracterizam, e que também o levam a remeter-se ao pontilhismo – “Seurat punha três pontos em tudo” [31]


–, e dos pontos de exclamação – que se multiplicam em seu texto vazado e reduzem a longa frase proustiana a enunciados curtíssimos, revertendo a puxada de ar proustiana em fôlego nenhum –, a hipérbole é a figura que mais recorre na letra do texto de Céline. E ela tem aí a mesma função que tem em Baudelaire, defensor da caricatura e do riso que a acompanha: a função sempre melancólica de conduzir para baixo. [32] Tome-se uma sequência de Nord, romance escrito na França em 1957, na volta do exílio, cuja ação se passa em Berlim, em 1944, às vésperas da tomada da cidade, em que o narrador, a mulher e um amigo vão tirar a fotografia para o visto de permanência na Alemanha, e as caras nas fotos ensejam a Céline dizer: “Lili, moi, La Vigue, on a changé de tronches! ... le flic de la Polizei a raison... je m’ocuppe pas beaucoup de ma figure, mais là vraiment de quoi s’amuser! ... des yeux, des calots qui ressortent ... et puis des joues du tout!... des bouches flasques... comme des noyés... tout les trois!... on est vraiment devenus horribles... trois monstres... pas niable!... comment on est passé monstres?”. [33] Não poderia haver representação mais perfeita de uma catástrofe pessoal. Mas a tradutora tem principalmente razão porque essa afirmação corajosa, que põe Céline no topo da literatura, justamente por ousar derrubar o melhor modelo literário disponível, tem a vantagem de chamar a atenção para o memorialismo de Céline, que, de fato, é proustiano. Primeiro, porque, a partir de determinado momento, a crônica memorial celiniana, que em Voyage, onde fala certo Robinson,se verte em terceira pessoa, vai se tornando puro solilóquio, e a única coisa palpável que se tem é a mesma que nos propõe Proust: o fio de voz. Segundo, porque, como acontece em Proust, o presente, o passado e o futuro estão aqui entrecruzados e confundidos, de tal modo que, lendo Céline, também não podemos saber de onde fala o narrador, se de Baden-Baden, para onde refluiu a República de Vichy, quando os aliados entraram na França, se da prisão na Dinamarca, onde o escritor em fuga da Alemanha é alcançado pelas autoridades franceses e preso, ou se de Meudon, subúrbio parisiense em que o médico-escritor abre seu último consultório e escreve suas derradeiras impressões sobre a tragédia de sua existência. Terceiro, porque, assim como Proust, sob o impacto do envelhecimento do salão Guermantes, chama de “féerie” o espetáculo do Tempo, que ele grafa com maiúscula, [34] o que Céline também faz, ocorre a Céline, perversamente, tomar a guerra como espetáculo e chamá-la “féerie”. É a palavra que vibra no título do livro


que faz a ponte entre Voyage e a trilogia alemã – Féerie pour une autre fois –, muito embora, por uma questão de ritmo de trabalho, este outro depoimento colossal, dividido em duas partes – Féerie I e Féerie II –, ocupe o quarto tomo dos Romans. Reivindicando Proust e Seurat, e de resto os refazendo, assim como Proust refaz os escritores que estão na chave de Bergotte e os pintores que supõe o ateliê de pintura de Elstir, Céline diz muito a que vem. Mas como não precisamos necessariamente da opinião que o escritor tem de si mesmo para tentar compreendê-lo, talvez pudéssemos acrescentar, a esses laboratórios artísticos em que se move imaginariamente o mais importante romancista francês do século xx ao lado de Proust, outra pintura excessiva, até porque ela também tem tudo para entrar no salão dos recusados. E se Céline, com sua escola de cadáveres, fosse, em literatura, o equivalente de um Francis Bacon?

Leda Tenório da Motta é professora no Programa de Estudos PósGraduados em Comunicação e Semiótica da PUC-SP, crítica literária e tradutora. Publicou, entre outros, Proust – A violência sutil do riso (Perspectiva, 2007), Prêmio Jabuti 2008 na categoria Teoria-Crítica Literária. ----------------------------------------Notas: Platão, A República, Livro III, 398 a. Tradução do grego de Carlos Alberto Nunes. Coordenação de Benedito Nunes. Belém: Editora Universitária EDUFPA, 2000, p. 154. Tradução cotejada com a edição francesa da Belles Lettres, Paris, 1948, pp. 191-192. Essa é a abertura de D’un chateau l’autre. Romans II. Paris: Gallimard-Pléiade, 1974, p. 3. Céline, Voyage au bout de la nuit, Romans I, op. cit., p. 12. Os verbos aqui empregados são “aérer” e “voltiger”. Cf. Céline, “Louis-Ferdinand Céline vous parle”, texto transcrito a partir de um depoimento gravado em 1957, inserido em apêndice ao Romans II, p. 934.


Jean-Paul Sartre, Réflexions sur la question juive. Paris: Gallimard, 1954, pp. 47-48. Col. Idées. Albert Paraz, Le gala des vaches. Paris: Lanauve de Tartas, 1948. De fato, note-se que o entremeio “Franceses mais um esforço ....”, que se insere entre os diálogos em A filosofia na alcova, é um panfleto. Trata-se de uma forma polemizante de que muito se valerão os surrealistas em seus textos de combate. Sobre a fortuna crítica dos primeiros romances de Céline, cf. o capítulo “Céline” de meu Lições de literatura francesa. Rio de Janeiro: Imago, 1997. Julia Kristeva, Pouvoirs de l’horreur. Essai sur l’abjection. Paris: Seuil, 1980, p. 205. O crítico refere-se a autores como Villehardouin, Joinville, Agrippa d’Aubigné, Madame de Sévigné e Saint-Simon. Cf. Jean Louis Houdebine, “La poésie est-elle mortelle?”, Revue L’Infini n. 37. Printemps 1992. Roland Barthes, Le dégré zero de l’écriture. Paris: Seuil 1972, p. 15. Col. Points. Roland Barthes, “Resposta de Roland Barthes a Albert Camus”. .Inéditos, Vl. 4. Tradução de Ivone Benedetti. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 59. Tudo isso magnificamente comentado por Jacques Derrida no capítulo “O teatro da crueldade e o fechamento da representação”, em A escritura e a diferença. Tradução de Maria Beatriz Marques Nizza da Silva. São Paulo: Perspectiva, 1995. Roland Barthes, Leçon. Paris: Seuil, 1977, p. 17. Roland Barthes, La préparation du roman. Cours et séminaires au Collège de France (1979-1979–1979-1980). Texte établi, annoté et présenté par Nathalie Léger. Paris: Seuil/IMEC, 2003, p. 354. Céline, Lettres à la NRF 1931-1961. Édition établie, présentée et annotée par Pascal Fouché. Préface de Philippe Sollers. Paris: Gallimard, 1991. Cf. Louis-Jean Calvet, Roland Barthes – Uma biografia. Tradução de


Maria Ângela Vilela da Costa. São Paulo: Siciliano, 1993, p. 163. O autor nota aí que La femme mariée (1964), de Godard, incorpora as Mitologias de Barthes. François Truffaut. Hitchcock Truffaut. Paris: Gallimard, 1993, p. 14. Antoine de Baecque, Serge Toubiana, François Truffaut – Une biographie. Paris: Gallimard, 1996. Col. Gallimard-Biographies. História, como se sabe, iniciada com a publicação do livro de Barthes Sur Racine (1963), que é inteiramente retomada pelo próprio Barthes em Critique et vérité (1966). Charles Baudelaire, Mon Coeur mis à nu LXXXIII, Oeuvres Complètes. Paris: Seuil, 1968, p. 640. Walter Benjamin, “Baudelaire”, Passagens. Organização de Willi Bolle. Tradução de Irene Aron, Cleonice Paes Barreto Mourão e Patrícia de Freitas Camargo. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2006, p. 344. Hannah Arendt, Origens do totalitarismo. Tradução de Roberto Raposo. São Paulo: Companhia das Letras, 1994, p. 119. Céline, “Louis-Ferdinand Céline vous parle”, op. cit., pp. 931-932. Grifo meu. Marcel Proust, À l’ombre des jeunes filles em fleurs / À la recherche du temps perdu. Paris: Gallimard-Pléiade I, 1954, p. 727. Simone de Beauvoir, “La mémoire de l’horreur”, texto de introdução a Claude Lanzmann, Shoah. Paris: Fayard, 1987,pp.7-10. Vejam-se, por exemplo, os esforços de Arthur Nestrovski e Marcio Seligmann, organizadores do volume Catástrofe e representação. São Paulo: Escuta, 2000. Volume em que eu mesma, por generosidade dos organizadores, assino um deslocado capítulo sobre Céline. Ela responde por Viagem ao fim da noite (1995), Vida e obra de Semmelweis (1998) e De um castelo para o outro (2005), todos pela Companhia das Letras. Enquanto a tradução de Morte a crédito foi realizada por Vera de Azambuja Harvey e Maria Arminda Souza Aguiar para a Nova Fronteira (1982). “Ce style est fait d’une certaine façon de forcer les phrases à sortir


légèrement de leur signification habituelle, de les sortir des gonds, pour ainsi dire”, declara Céline. “Louis-Ferdinand Céline vous parle”, Romans II, op. cit., p.933. Rosa Freire D’Aguiar, “Apresentação” em Céline, Viagem ao fim da noite. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, p. 6. Céline, “Louis-Ferdinand Céline vous parle”, Romans II, idem, ibidem. Charles Baudelaire, De l’essence du rire. Et généralement du comique dans les arts plastiques. Texto em prosa inserido na seção Curiosités Esthétiques da edição Gallimard-Pléiade das Oeuvres Completes. Paris: Gallimard, 1951. Céline, Nord, Romans II, op. cit., p. 348. Marcel Proust, Le temps retrouvé / À la recherche du temps perdu, Vl. III, op. cit., p. 924.

sexta-feira, 13 de maio de 2011 Caso Céline ou a vigilância platônica contra os poetas, por Leda Tenório da Motta Os poetas gementes narram acontecimentos atrozes, inventam diálogos terríveis, supõem os deuses transportados, culpam-nos por todos os males existentes na terra, provocam o ânimo lamurioso, atentam contra a temperança, desencorajam os que lutam... Eis por que é preciso tirar-lhes o direito de mentir, afugentar as fábulas que fazem temer a morte, adotar imitadores capazes de modelar a alma dos jovens, estabelecer um plano de educação para a cidade. Assim escreve Platão, no Livro III de A República, aparentemente esquecido de que a sua própria filosofia é uma dramaturgia, de tal modo que é a personagem Sócrates quem fala, dirigindo-se, depois disso, à personagem Adimanto, para arrematar: “Para nosso uso, teremos de recorrer a um poeta ou contador de histórias mais austero e menos agradável, que corresponda aos nossos desígnios, só imite para nós o estilo do homem comedido e se restrinja na sua exposição a copiar os


modelos que desde o início estabelecemos por lei, quando nos dispusemos a educar nossos soldados”. [1] Mais de dois mil anos depois, é tentador pensar que os mesmos motivos se reencenam, quando outra excelente filosofia, que também recorre à dramaturgia, e também sonha com uma república dos justos, sentindo-se igualmente interpelada pelos excessos da poesia, volta a decretar a sua expulsão para fora dos muros. Não menos notável é que as desmesuras aqui em questão parecem ser, no fundo, as mesmas que levavam o governante-filósofo do passado a almejar a representação tão somente do bom e do belo. De fato, é o que o desencontro entre Sartre e Céline nos convida a conjecturar. Primeiro, porque a pintura mais que gemente de Céline é de tal modo excessiva que cabe com perfeição no rol dos vícios platônicos. Como terá percebido quem quer que tenha aberto qualquer página deste autor, mesmo que, escolhida ao léu, ela pertença ao que se considera, hoje, ser uma primeira fase da monumental obra celiniana, em que ainda não se cristalizou o estilo da imprecação, nem se fixou aquele narrador que surge ex abrupto, conversando consigo mesmo e fazendo o cômputo de sua vida desastrosa, tema baixo que é o leitmotiv das obras-primas finais, assim desencadeadas: “para falar francamente, muito cá entre nós, eu termino ainda pior do que comecei”. [2] Trata-se, como ressaltaram alguns, de um estilo particular para um mundo particular, o mundo das duas guerras mundiais que abrem o século xx, “immense, universelle moquerie”, [3] que o escritor pôde observar de muito perto, já que esteve particularmente ligado a elas, seja lutando na primeira, o que lhe valeria um ferimento na cabeça, seja inclinandose, na segunda, como um anti-herói, ao espírito de Vichy. Isso pede a mão de um colorista de tons fortes, menos interessado em ideias que na emoção, capaz de fazer no terreno das palavras o mesmo que os impressionistas e os pontilhistas que “arejaram e fizeram a pintura levantar voo”, como ele mesmo dirá, referindo-se com isso ao fato de que os pontilhistas, que vieram dos impressionistas, foram os precursores da violência fauve. [4] Segundo, porque, imbuído como estava do papel de maître à penser, e empenhado na reconstrução da França que sai da República de Vichy, Sartre vai inscrever o nome de Céline na lista negra de uma das revistas do século xx: Les Temps Modernes. “Se Céline pôde defender as teses sociais dos nazistas, é que era pago para isso”, formula ele


liminarmente em 1945, em um “Portrait de l’antisémite” que é preparado para o número inaugural do prestigioso periódico. Jamais comprovada, e hoje sabidamente falsa, a denúncia reaparece, um ano depois, na abertura das Réflexions sur la question juive, em meio à demonstração sartriana do caráter maniqueísta do antissemita, que, nos termos do filósofo, menos acredita no que pensa sobre os judeus e a conspiração judaica mundial do que precisa disso para explicar o mundo malfeito, imputando-o ao outro. Céline é um catastrofista desse tipo, escreve Sartre. [5] Em nome do ideal de uma literatura engajada, que ele recebe de André Gide, está assim lançado o anátema.

O asno de óculos Disseminada no campo espiritual do pós-guerra, desde suas fileiras mais bem-pensantes, a denúncia prospera, e eis o escritor banido, como Homero, Hesíodo e Píndaro por Platão. Com a diferença da réplica, que, neste caso, conhecemos. “Que que você quer? Que me assassinem?”, responde o poeta ao filósofo, que ele chama de “asno de óculos”, naquele francês curto e grosso que é a sua marca registrada. Isso está em uma carta mandada do exílio, em que se encontra desde a Liberação, intitulada, o mais poeticamente, À L’agité du bocal (o cara com a boca no trombone?). Editada por um amigo fiel, em uma plaquete datada de 1949, [6] contendo este e outros textos celinianos do período, hoje acessáveis na internet, ela circula por Paris como um direito de resposta da poesia, em um momento mais que delicado da história francesa – e da história da literatura francesa –, em que, por crime de escritura, executam-se autores e editores caídos em desgraça. É o que acontece com Robert Denoël, o jovem belga que se tornara o publisher de Voyage au bout de la nuit (1932), Mort à crédit (1936) e dos Panfletos celinianos – Mea culpa (1936), Bagatelles pour un massacre (1937), L’école des cadavres (1938), Les beaux Draps (1941), opúsculos contendo, entre outras coisas, e mais que qualquer coisa, um delírio antissemita, que radicaliza um discurso típico da França política que se tornaria colaboracionista. Dentre esses escritos, que resumem a obra até aí conhecida, os Panfletos – um gênero na verdade nobre, antes de adquirir o significado que tem hoje, e, aliás, praticado pelos surrealistas, no encalço de Sade [7] –, são aquela parte a que se refere Sartre, antes disso um leitor de Voyage tão entusiasta quanto toda a


esquerda francesa. [8] Proibida de circulação desde 1945, por sua injúria racial, essa retórica virulenta que, para alguns estudiosos, não é desprezível estilisticamente, nem deve ser atribuída a nenhuma ambição de convencimento, mas entendida como puro dispêndio verbal, também está hoje, para o bem e para o mal, ironicamente disponível na internet. Pode ainda ser consultada em um Centre Céline da Universidade de Paris VII, reduto de novos críticos criado no correr dos anos de 1980, em que se ousa pensar que é “de uma beleza selvagem”, [9] e até mesmo a associá-la à fatura do melhor Céline, o do último ciclo romanesco, que os especialistas chamam de trilogia alemã: D’un chateau l’autre (1957), Nord (1960) e Rigodon (1961).

Céline como objeto pensável Mas nada disso levanta o veto de Sartre. Tanto assim que teremos de esperar os anos de 1960, e a entrada em cena de outra revista francesa do século – a Tel Quel –, com sua predileção pelos poderes subversivos da literatura, em vez dos construtivos, e sua galeria de autores intratáveis, para que, ao lado de Artaud, Georges Bataille, Proust e Francis Ponge, Céline comece a se tornar um objeto pensável. É ao grupo reunido em torno de Philippe Sollers, plataforma amalgamada a outra surgida mais ou menos no mesmo momento, a da “nouvelle critique”, que devemos um progressivo e corajoso enfrentamento dessa verve perigosa, em plena vigência da autoridade sartriana. É graças à ação da Tel Quel, de par com colaboradores célebres tais que Roland Barthes, Gérard Genette e Julia Kristeva, e menos célebres, mas não menos aguerridos, tais que Henri Godard – o estabelecedor do texto dos romances de Céline para a coleção Pléiade da editora Gallimard – e Jean-Louis Houdebine – que viu no grande ataque de Céline a judeus e não judeus uma “arte do contratempo”, cultivada por todos os grandes cronistas clássicos, de Madame de Sévigné a Saint-Simon, que também escreveram no isolamento [10] –, que podemos reconhecer hoje, com certa tranquilidade, o lugar que esse romancista das duas grandes guerras mundiais, que as monumentalizou, como um Homero contemporâneo, ocupa, não apenas na história da literatura francesa, mas na história da literatura em termos absolutos.


De fato, note-se, a propósito, como já existe um desacato a Sartre, tão elíptico quanto marcante, em Le dégré zero de l’écriture,um dos primeiros livros deBarthes, publicado em 1953, ainda em vida de Céline. Aí, de saída, ele menciona o impronunciável nome do colabo, quando, assinalando a necessidade que tem o escritor moderno de situar-se na linguagem, porque não existe, justamente, o grau zero, o insere, a título de ilustração, entre alguns vultos das letras francesas. “Quase contemporâneos, Mallarmé, Céline, Gide e Queneau, Claudel e Camus, que falaram ou falam o mesmo estado histórico de nossa língua, valem-se de escrituras profundamente diferentes”, escreve Barthes. [11] Sabemos hoje, graças às obras póstumas barthesianas, que, se o crítico põe Céline ao lado de Camus, nem por isso vê aí grandezas iguais. Recuperada em um recente volume de inéditos, existe uma troca de farpas entre ele e o autor de A peste, em que deixa claro que não aprecia a maneira como Camus põe o tema da peste a serviço da moral da Resistência, fazendo dela uma metáfora política. “Pessoalmente, [...] acredito numa arte literal [...] em que as pestes não são nada mais que pestes, e em que a Resistência é toda a Resistência”, escreve ele a Camus. [12] Não se poderia esperar outra coisa de alguém tão ligado à corrente crítica que reabilitou Artaud, que, bem ao contrário de Camus, para quem a cidade deve ser salva da peste, o teatro é por definição pestilencial, a crueldade, uma encenação irrealista e convulsa, que recusa a dignidade intelectual da representação. [13]

O verdadeiro pai: um judeu Sem ter-lhe dedicado nenhuma longa reflexão – ao contrário de Kristeva, que trabalha com a hipótese de um Céline borderline, cujo substrato fantasmático a interessa e se torna o ponto culminante de um de seus melhores livros – Pouvoirs de l’horreur. Essai sur l’abjection (1980) –, Barthes desde então voltaria muitas vezes ao autor dos Panfletos. De tal modo que o surpreenderemos falando de Céline, nada mais, nada menos, que em sua aulainaugural de 1977 no Collège de France.Isso acontece no trecho do famoso speech, depois recolhido em livro, em que relembra que a “escritura” é um comprometimento do escritor unicamente com sua língua, e a língua do escritor, uma espécie de idiotismo, e desta vez, sim, equipara Céline a alguns grandes homens de letras do passado, indo direto, aliás, à questão política aí envolvida. Esse trecho diz o seguinte: “As


forças de liberdade que estão na literatura não dependem da pessoa civil, do engajamento político do escritor, nem mesmo do conteúdo doutrinal de sua obra, mas do trabalho de deslocamento que ele exerce sobre a língua: desse ponto de vista, Céline é tão importante quanto Hugo, Chateaubriand quanto Zola”. [14] Além dessas referências explícitas, e até onde pudemos pesquisar, há duas outras na última rodada de conferências de Barthes no Collège de France, pronunciadas em 1979 e hoje reunidas em La préparation du roman (2003). Em uma primeira, o escritor é associado a Artaud, e indiretamente a Proust, quando, falando nos diferentes regimes de vida dos autores, e evocando o exílio de Proust em seu quarto, ele pergunta: “Acaso imaginaríamos um Céline, um Artaud precisando de uma boa lareira para escrever?”. Em uma segunda, é a língua vulgar de Céline – sua escrita da fala, captada ao vivo, como dirão os pesquisadores de Paris VII, tomando o cuidado de acrescentar que isso não se confunde com nenhuma empreitada naturalista – que é trazida a campo, para referendar a briga dos modernos com quaisquer traços do beletrismo. Barthes lembra, nesse ponto, que Céline costumava ironizar o “style de bachot” (o estilo do professorzinho que ensina os autores do programa nas escolas), incluindo nesse linguajar a frase francesa de Voltaire, Renan e Anatole France. [15] É essa recepção, por certo, que explica a entrada de Céline em 1961, pouco antes de sua morte, na prestigiosa coleção Pléiade da editora Gallimard, que já tinha recusado Proust quarenta anos antes, para depois se retratar, e já tinha feito o mesmo com o autor de Voyage no início da década de 1930, terminando por incorporá-lo nos anos de 1960. A edição crítica do texto dos romances de Céline está hoje, na Pléiade, na altura do quarto tomo. Trata-se do resultado de uma revisão em que se empenhou toda uma brilhante geração, sob a batuta de Sollers, que participa ativamente do processo, não apenas como insuflador da revolta telquelienne, que continuaria a partir dos anos de 1980 em uma nova revista do grupo, a L’Infini, mas como estudioso e apresentador da imensa correspondência trocada entre o escritor e a Gallimard, desde suas primeiras tentativas frustradas de ingressar nesse catálogo prestigioso, até por considerá-la parte da melhor epistolografia francesa. [16] Toda essa movimentação dos semiólogos repercute junto a outra plataforma de novíssimos, nascida nesses mesmos anos de 1950: a


escola dos Cahiers du Cinéma, cujos homens acompanham a revolução dos críticos literários, os quais, por sua vez, também descobrem a nouvelle vague. [17] Como se pode depreender de uma surpreendente menção de François Truffaut a Céline no prefácio de 1966 à primeira edição de seu Hitchcock Truffaut. Ele repete aí os desagravos de Barthes, quando, já no final da apresentação do volume que se transformaria na bíblia dos cinéfilos, para realçar o voyeurismo de seu mestre, põe Céline lado a lado com Hitchcock e escreve: “Louis-Ferdinand Céline dividia as pessoas em duas categorias, os exibicionistas e os voyeurs, e é evidente que Hitchcock pertence à segunda categoria”. [18] A evocação do nome amaldiçoado pela gauche na abertura do hitchbook é tão mais surpreendente quanto Truffaut descobre, já na idade adulta, que é filho adotivo da família que sempre acreditou ser a sua família legítima, e que seu verdadeiro pai era um judeu, que teve de se esconder durante a Segunda Guerra. É esse trauma infantil que, de modo cifrado, está recolhido no ciclo Doineul, como mostraram os biógrafos, e depois deles os cultores do realizador. [19]

Um money maker vulgar Ora, o que há de especial nisso é que tudo se passa na mesma França por onde o autor dos Panfletos, há pouco, difundia seus delírios sobre o outro judeu, e onde este filho de pai judeu está, agora, mais atento à arte que à vida dos artistas, inclusive daqueles que injuriaram os judeus. Note-se, a propósito, que o próprio Hitchcock tinha sido posto no limbo pelos críticos nova-iorquinos, por pertencer ao sistema dos estúdios de Hollywood, e pelo mesmo motivo que está na base da acusação de Sartre a Céline, já que o ponto de Sartre é a venalidade do escritor. Do mesmo modo que Hitchcock, antes da intervenção dos homens dos Cahiers, é tido, na costa leste americana, por um money maker vulgar, que enriqueceu fazendo um cinema comercial. O que essa concatenação Céline & Hitchcock ressalta assim, pois, é o embate entre crivos críticos de que dependeu a sorte de alguns criadores importantes do século xx, geniais mas posicionados do lado errado da História. Temos, deste lado, os que passam por cima de considerações estranhas à trama interna das obras, interessando-se, metodologicamente, por linguagens; de outro, os que leem as obras, à la Sainte-Beuve, desde a exterioridade da história que cerca a vida dos


autores. Essa é toda a briga entre semiólogos da École des Hautes Études e sociólogos sorbonistas a propósito de como ler Racine, que está na origem rumorosa da nouvelle critique. [20] Acrescente-se que essa tradição crítica compreensiva representada pelos semiólogos, que revê o cânone da literatura francesa contemporânea, incorporando-lhe os malditos novecentistas, é caudatária das perspectivas críticas de ninguém menos que Walter Benjamin. Pois, antes de todos estes de que estamos falando, e por imprevisível que isso também seja, Benjamin já cita Céline, já o inclui, já lhe dá existência. E do modo mais incisivo: armando uma ponte entre ele e Baudelaire, ou fazendo Céline conversar com Baudelaire, do mesmo modo que Truffaut faz Céline dialogar com Hitchcock, e Barthes, com Proust e Artaud. Como poderá constatar quem abrir seu mais notável trabalho, o inacabado e inacabável Livro das passagens, que se acha, desde 2005, traduzido para o português do Brasil com o título Passagens. Ali, no arquivo temático “Baudelaire”, no qual Benjamin trabalhou, em Paris, ao longo dos anos 1937-1938, em plena era dos Panfletos, ele cita uma das muitas provocações politicamente incorretas do poeta em seu diário Mon coeur mis à nu, um breve fragmento que encerra um voto antissemita de Baudelaire, assim formulado: “Bela conspiração a organizar para o extermínio da raça judaica”. [21] Detendo-se sobre esse convite, não à viagem mas à passagem ao ato persecutório, Benjamin anota conscienciosamente em seu arquivo: “Céline deu prosseguimento a esta linha”. [22] É uma menção comovente, não só por vir de quem sofreu na pele a perseguição movida aos judeus, mas porque o que Baudelaire sonha assim, em voz alta, seria realidade no final do mesmo século em que ele escreve, com a eclosão do Caso Dreyfus, que Hannah Arendt chamou de “prelúdio ao nazismo”. [23] Além do mais, se quisermos dar todo o valor a essa inesperada nota, talvez seja preciso ouvir aí que Céline descende de Baudelaire. O que não contradiz a visão que o próprio Céline tem de si, embora ele tenha reivindicado a influência de Proust quase tão claramente quanto reivindica a dos pontilhistas e a dos surrealistas, de resto, no mesmo momento, ao sublinhar que o bom escritor é também aquele que sabe lançar mão do que a vida tem para lhe oferecer, que, nesse sentido, Proust estava “na linha dos salões”, enquanto ele, Céline, estava na das guerras. [24] Ele mostra assim, por certo, o quanto quer ombrear-se com Proust. Mas Baudelaire não está longe, se admitirmos que Proust deve mais a Baudelaire que só a memória afetiva. Deve-lhe todo o continente das


sensibilidades doentias, toda aquela degenerescência que a mãe e a avó proustianas consideram prejudiciais ao jovem narrador, e a Sra. de Villeparisis, ao seu salão, todas sabendo que isso é influência dos cenáculos deliquescentes em que se cultiva o poeta das Flores do mal. [25] Estamos em uma mesma família de espíritos. Outra prova é que Benjamin faz-se o tradutor e o intérprete de ambos: Baudelaire e Proust. Se, neste embate entre filosofias, a voz partida de Benjamin atenua a voz sonora de Sartre, salvo engano não existe muito mais que isso como fortuna crítica não aversiva a assinalar. O que se compreende, pois o século será, progressivamente, dos que se pautam pela divisa da lembrança do Holocausto. Dever de memória cuja imposição não vem só de Adorno, o companheiro de Benjamin, que, como se sabe, entendeu reiterativamente o Holocausto como a culminância da História catastrófica, e o pôs no centro de sua reflexão sobre as artes, notadamente a arte da palavra, a poesia. Mas de uma corrente de força tão influente quanto a adorniana, que, de resto, muito se refere a Adorno, aquela representada pelas assim chamadas “literaturas de testemunho” e pelos estudos em torno do tema “catástrofe e representação”.

A vigilância platônica sobre os poetas E o que é digno de nota é que essa outra corrente parte da seara mesma de Sartre. De fato, uma de suas fontes é Claude Lanzmann,seguidor de Sartre, amigo de Simone de Beauvoir, cofundador, juntamente com o casal, da Le Temps Modernes, e diretor da revista nos anos de 1960 e 1970, antes de voltar-se para o cinema e fazer, nesse campo, uma de suas mais impressionantes revoluções. Referência paradigmática daqueles outras plataformas críticas interessados nas correlações entre literatura e trauma, Lanzmann é o realizador de Shoah, memorável longa-metragem de 10 horas de duração, que demandou anos de pesquisa de campo antes de ser lançado em Paris, em 1985. Nesse filme estarrecedor, pela primeira vez a realidade dos Lager é mostrada através de depoimentos diretos, e não de documentos de arquivos. Dirigidos com firmeza por Lanzmann, falam aí, longa e perturbadoramente, diante de uma câmera, no mais das vezes estática, que dá ao filme uma dimensão


teatral, sobreviventes judeus encontrados por toda a Europa, carrascos nazistas e poloneses testemunhas oculares dos fatos. É esse trabalho colossal desse seguidor de Sartre, em que Beauvoir, reconhecendo a mão do artista, veria “uma mistura de horror e poesia”, [26] que vai introduzir a nomeação “shoah”, palavra hebraica que significa catástrofe, desde então preferida a “holocausto”, por ser um apelativo menos sacrificial. É ele também que, associado à obra mais notória do italiano Primo Lévi – É isto um homem? (1947) –, impulsiona uma safra de narrativas sobre os campos de extermínio, que, desde então, não cessam de nos chegar. Essa produção mobiliza, por seu turno, cada vez mais, estudiosos que, referindo-se aos ensaios de Freud sobre as neuroses de guerra, pautam-se por pensar que sem catástrofe não há representação, e por admitir que a catástrofe absoluta é a “shoah”, o que conecta, de pronto, a mais alta literatura a essa precisa missão testemunhal. Não é de estranhar que, sob o amparo de Lanzmann, ganhe força a vigilância platônica sobre os poetas. Isso faz recuar, novamente, as chances de Céline na França, e explica o fato de o escritor ser quase completamente desconhecido no Brasil, onde os críticos da “catástrofe e representação” são brilhantes e ativos, [27] e onde Céline inexistiria não fosse o trabalho tradutório de Rosa Freire d’Aguiar, [28] que realiza o impossível ao verter com extrema eficiência o parigot celiniano. Língua tão pouco convencional, tão capaz de “tirar as palavras do eixo” – para lembrar palavras do próprio Céline [29]–, que Henri Godard achou bom providenciar um Vocabulaire populaire et argotique para figurar em apêndice a todos os tomos dos Romans. Devemos também à tradutora a audácia de tomar Céline pela palavra e de colocá-lo “na linha de Proust”, como faz na sua introdução a Viagem, ao dizer que “tudo o que em Proust era delicadeza, fineza, meios-tons, harmonia, em Céline é grosseria, crueza, violência, deformação”, e que “foi este o grande achado de Céline, ser um Proust da plebe, segundo um crítico da época”. [30] Em que pese este seu retrato de Proust ser idealizado – a fineza, a delicadeza, a harmonia ... –, ela tem razão. Até porque, ao lado das reticências, que tanto o caracterizam, e que também o levam a remeter-se ao pontilhismo – “Seurat punha três pontos em tudo” [31] –, e dos pontos de exclamação – que se multiplicam em seu texto vazado e reduzem a longa frase proustiana a enunciados curtíssimos,


revertendo a puxada de ar proustiana em fôlego nenhum –, a hipérbole é a figura que mais recorre na letra do texto de Céline. E ela tem aí a mesma função que tem em Baudelaire, defensor da caricatura e do riso que a acompanha: a função sempre melancólica de conduzir para baixo. [32] Tome-se uma sequência de Nord, romance escrito na França em 1957, na volta do exílio, cuja ação se passa em Berlim, em 1944, às vésperas da tomada da cidade, em que o narrador, a mulher e um amigo vão tirar a fotografia para o visto de permanência na Alemanha, e as caras nas fotos ensejam a Céline dizer: “Lili, moi, La Vigue, on a changé de tronches! ... le flic de la Polizei a raison... je m’ocuppe pas beaucoup de ma figure, mais là vraiment de quoi s’amuser! ... des yeux, des calots qui ressortent ... et puis des joues du tout!... des bouches flasques... comme des noyés... tout les trois!... on est vraiment devenus horribles... trois monstres... pas niable!... comment on est passé monstres?”. [33] Não poderia haver representação mais perfeita de uma catástrofe pessoal. Mas a tradutora tem principalmente razão porque essa afirmação corajosa, que põe Céline no topo da literatura, justamente por ousar derrubar o melhor modelo literário disponível, tem a vantagem de chamar a atenção para o memorialismo de Céline, que, de fato, é proustiano. Primeiro, porque, a partir de determinado momento, a crônica memorial celiniana, que em Voyage, onde fala certo Robinson,se verte em terceira pessoa, vai se tornando puro solilóquio, e a única coisa palpável que se tem é a mesma que nos propõe Proust: o fio de voz. Segundo, porque, como acontece em Proust, o presente, o passado e o futuro estão aqui entrecruzados e confundidos, de tal modo que, lendo Céline, também não podemos saber de onde fala o narrador, se de Baden-Baden, para onde refluiu a República de Vichy, quando os aliados entraram na França, se da prisão na Dinamarca, onde o escritor em fuga da Alemanha é alcançado pelas autoridades franceses e preso, ou se de Meudon, subúrbio parisiense em que o médico-escritor abre seu último consultório e escreve suas derradeiras impressões sobre a tragédia de sua existência. Terceiro, porque, assim como Proust, sob o impacto do envelhecimento do salão Guermantes, chama de “féerie” o espetáculo do Tempo, que ele grafa com maiúscula, [34] o que Céline também faz, ocorre a Céline, perversamente, tomar a guerra como espetáculo e chamá-la “féerie”. É a palavra que vibra no título do livro que faz a ponte entre Voyage e a trilogia alemã – Féerie pour une autre fois –, muito embora, por uma questão de ritmo de trabalho,


este outro depoimento colossal, dividido em duas partes – Féerie I e Féerie II –, ocupe o quarto tomo dos Romans. Reivindicando Proust e Seurat, e de resto os refazendo, assim como Proust refaz os escritores que estão na chave de Bergotte e os pintores que supõe o ateliê de pintura de Elstir, Céline diz muito a que vem. Mas como não precisamos necessariamente da opinião que o escritor tem de si mesmo para tentar compreendê-lo, talvez pudéssemos acrescentar, a esses laboratórios artísticos em que se move imaginariamente o mais importante romancista francês do século xx ao lado de Proust, outra pintura excessiva, até porque ela também tem tudo para entrar no salão dos recusados. E se Céline, com sua escola de cadáveres, fosse, em literatura, o equivalente de um Francis Bacon?

Leda Tenório da Motta é professora no Programa de Estudos PósGraduados em Comunicação e Semiótica da PUC-SP, crítica literária e tradutora. Publicou, entre outros, Proust – A violência sutil do riso (Perspectiva, 2007), Prêmio Jabuti 2008 na categoria Teoria-Crítica Literária. ----------------------------------------Notas: Platão, A República, Livro III, 398 a. Tradução do grego de Carlos Alberto Nunes. Coordenação de Benedito Nunes. Belém: Editora Universitária EDUFPA, 2000, p. 154. Tradução cotejada com a edição francesa da Belles Lettres, Paris, 1948, pp. 191-192. Essa é a abertura de D’un chateau l’autre. Romans II. Paris: Gallimard-Pléiade, 1974, p. 3. Céline, Voyage au bout de la nuit, Romans I, op. cit., p. 12. Os verbos aqui empregados são “aérer” e “voltiger”. Cf. Céline, “Louis-Ferdinand Céline vous parle”, texto transcrito a partir de um depoimento gravado em 1957, inserido em apêndice ao Romans II, p. 934. Jean-Paul Sartre, Réflexions sur la question juive. Paris: Gallimard, 1954, pp. 47-48. Col. Idées.


Albert Paraz, Le gala des vaches. Paris: Lanauve de Tartas, 1948. De fato, note-se que o entremeio “Franceses mais um esforço ....”, que se insere entre os diálogos em A filosofia na alcova, é um panfleto. Trata-se de uma forma polemizante de que muito se valerão os surrealistas em seus textos de combate. Sobre a fortuna crítica dos primeiros romances de Céline, cf. o capítulo “Céline” de meu Lições de literatura francesa. Rio de Janeiro: Imago, 1997. Julia Kristeva, Pouvoirs de l’horreur. Essai sur l’abjection. Paris: Seuil, 1980, p. 205. O crítico refere-se a autores como Villehardouin, Joinville, Agrippa d’Aubigné, Madame de Sévigné e Saint-Simon. Cf. Jean Louis Houdebine, “La poésie est-elle mortelle?”, Revue L’Infini n. 37. Printemps 1992. Roland Barthes, Le dégré zero de l’écriture. Paris: Seuil 1972, p. 15. Col. Points. Roland Barthes, “Resposta de Roland Barthes a Albert Camus”. .Inéditos, Vl. 4. Tradução de Ivone Benedetti. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 59. Tudo isso magnificamente comentado por Jacques Derrida no capítulo “O teatro da crueldade e o fechamento da representação”, em A escritura e a diferença. Tradução de Maria Beatriz Marques Nizza da Silva. São Paulo: Perspectiva, 1995. Roland Barthes, Leçon. Paris: Seuil, 1977, p. 17. Roland Barthes, La préparation du roman. Cours et séminaires au Collège de France (1979-1979–1979-1980). Texte établi, annoté et présenté par Nathalie Léger. Paris: Seuil/IMEC, 2003, p. 354. Céline, Lettres à la NRF 1931-1961. Édition établie, présentée et annotée par Pascal Fouché. Préface de Philippe Sollers. Paris: Gallimard, 1991. Cf. Louis-Jean Calvet, Roland Barthes – Uma biografia. Tradução de Maria Ângela Vilela da Costa. São Paulo: Siciliano, 1993, p. 163. O autor nota aí que La femme mariée (1964), de Godard, incorpora as Mitologias de Barthes.


François Truffaut. Hitchcock Truffaut. Paris: Gallimard, 1993, p. 14. Antoine de Baecque, Serge Toubiana, François Truffaut – Une biographie. Paris: Gallimard, 1996. Col. Gallimard-Biographies. História, como se sabe, iniciada com a publicação do livro de Barthes Sur Racine (1963), que é inteiramente retomada pelo próprio Barthes em Critique et vérité (1966). Charles Baudelaire, Mon Coeur mis à nu LXXXIII, Oeuvres Complètes. Paris: Seuil, 1968, p. 640. Walter Benjamin, “Baudelaire”, Passagens. Organização de Willi Bolle. Tradução de Irene Aron, Cleonice Paes Barreto Mourão e Patrícia de Freitas Camargo. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2006, p. 344. Hannah Arendt, Origens do totalitarismo. Tradução de Roberto Raposo. São Paulo: Companhia das Letras, 1994, p. 119. Céline, “Louis-Ferdinand Céline vous parle”, op. cit., pp. 931-932. Grifo meu. Marcel Proust, À l’ombre des jeunes filles em fleurs / À la recherche du temps perdu. Paris: Gallimard-Pléiade I, 1954, p. 727. Simone de Beauvoir, “La mémoire de l’horreur”, texto de introdução a Claude Lanzmann, Shoah. Paris: Fayard, 1987,pp.7-10. Vejam-se, por exemplo, os esforços de Arthur Nestrovski e Marcio Seligmann, organizadores do volume Catástrofe e representação. São Paulo: Escuta, 2000. Volume em que eu mesma, por generosidade dos organizadores, assino um deslocado capítulo sobre Céline. Ela responde por Viagem ao fim da noite (1995), Vida e obra de Semmelweis (1998) e De um castelo para o outro (2005), todos pela Companhia das Letras. Enquanto a tradução de Morte a crédito foi realizada por Vera de Azambuja Harvey e Maria Arminda Souza Aguiar para a Nova Fronteira (1982). “Ce style est fait d’une certaine façon de forcer les phrases à sortir légèrement de leur signification habituelle, de les sortir des gonds, pour ainsi dire”, declara Céline. “Louis-Ferdinand Céline vous parle”, Romans II, op. cit., p.933.


Rosa Freire D’Aguiar, “Apresentação” em Céline, Viagem ao fim da noite. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, p. 6. Céline, “Louis-Ferdinand Céline vous parle”, Romans II, idem, ibidem. Charles Baudelaire, De l’essence du rire. Et généralement du comique dans les arts plastiques. Texto em prosa inserido na seção Curiosités Esthétiques da edição Gallimard-Pléiade das Oeuvres Completes. Paris: Gallimard, 1951. Céline, Nord, Romans II, op. cit., p. 348. Marcel Proust, Le temps retrouvé / À la recherche du temps perdu, Vl. III, op. cit., p. 924.

Morte à Crédito; Trecho: "...Você nunca tentou saber como um cérebro está organizado?... O aparelho que o faz pensar? Hem? Mas claro que não! Não lhe interessa nem um pouco!... Precisa convencer-se, sinceramente, de que a desordem é a essência da nossa própria vida! de todo o ser físico e metafísico! É a sua alma... milhões, trilhões de circunvoluções... intrincadas, em profundidade, cinzentas, recortadas, mergulhantes, subjacentes, evasivas... Ilimitadas! Esta é a Harmonia! Toda a natureza! Uma fuga do imponderável e não passa disso... Ponho ordem em meus pensamentos; não substituo essa tarefa por outras, materialistas, negativas, obscenas... É preciso procurar o essencial! Você vai, por causa disso, cair em cima do seu cérebro, corrigi-lo, descascá-lo, mutilá-lo, forçá-lo a obedecer a regras obtusas? À faca geométrica? Refaze-lo, crucificá-lo às limitações da burrice?... Armálo em camadas como um bolo de aniversário? Com uma pedra dentro! Hem? Responda. Com toda a sua franqueza. Que tal? Seria bom? interessante! Iria coroar tudo!... É a grande desordem que importa! Os pensamentos prósperos! Tudo tem seu preço... Depois que passa a oportunidade, acabou-se!... Você vai ficar, infelizmente, firme na sua lixeira da razão para sempre! O míope, o cego, o absurdo, o surdo, o


maneta o palerma! É você que vem perturbar a minha desordem com esses seus pensamentos depravados... A Harmonia é a única alegria do mundo, a única liberdade, a única verdade. Em ordem! Merda! Em ordem! Habitue-se à Harmonia e a Harmonia descerá até você! E você achará tudo o que procura há muito tempo nos caminhos do Mundo... E muito mais! Uma emboscada inútil de armários! Uma barricada de folhetos! Uma vasta empreitada humilhante! Uma necrópole de mapas! Não sente a vida pululando, fremindo!? Ponha a mão só um pouquinho, um dedinho que seja... Tudo de agita! Vibra no mesmo instante! Está tudo prestes a se lançar, florescer, resplandecer... Não me acho com direito de dizer-te o que é... Muito menos de reduzir, corrigir, corromper, cortar, separar... Hem!?... Aonde é que eu ia achar esse direito? No infinito, na vida das coisas? Não, não é natural, sã manobras infames!... Eu continuo em paz com o universo, deixo-o assim como encontro... Não o retificarei nunca!"


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