Take 49

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10 ANOS . 100 FILMES

TAKE.COM.PT | ANO 10 | NÚMERO 49


CRÍTICAS

2008 12 Gran Torino 14 Synecdoche, New York 15 Tropic Thunder 16 The Wrestler 17 Lat den rätte komma in 18 Hunger 19 Gomorra 20 Vals Im Bashir 21 The Dark Knight 22 Revolutionary Road 2009 30 Inglourious Basterds 32 El Secreto de Sus Ojos 33 Antichrist 34 Moon 35 Enter the Void 36 The White Ribbon 37 Fantastic Mr. Fox 38 Kynodontas 39 Coraline 40 District 9 2010 48 Scott Pilgrim vs. the World 50 Toy Story 51 Black Swan 52 Shutter Island 53 Copie Conforme 54 Inception 55 Submarine 56 The Ghost Writer 57 The Social Network 58 Nostalgia de la Luz 2011 66 Melancholia 68 Shame 69 Drive 70 The Artist 71 Midnight in Paris 72 We need to talk about Kevin 73 Hugo 74 Bir Zamanlar Anadolu'da 75 Take Shelter 76 A torinói ló

CRÍTICAS

2012 84 Jagten 86 Django Unchained 87 The Act of Killing 88 The Master 89 Amour 90 Moonrise Kingdom 91 Frances Ha 92 The Hobbit: An Unexpected Journey 93 Holy Motors 94 Intouchables

2015 (cont.) 147 Star Wars: Episode VII The Force Awakens 148 The Big Short 2016 156 Arrival 158 Paterson 159 Elle 160 I, Daniel Blake 161 Manchester by the Sea 162 Silence 163 La La Land 164 Nocturnal Animals 165 Ah-ga-ssi 166 Moonlight

2013 102 Ida 104 The Wolf Of Wall Street 105 The Immigrant 106 Her 107 La Grande Belezza 108 Inside Llewyn Davis 109 Kaze tachinu 110 American Hustle 111 Under the Skin 112 Gravity

2017 174 Blade Runner 2049 176 Toivon tuolla puolen 177 A Ghost Story 178 Get Out 179 mother! 180 Logan 181 Loving Vincent 182 The Disaster Artist 183 Detroit 184 I don't feel at home in this world anymore

ARTIGOS

2014 120 Leviathan 122 Inherent Vice 123 Whiplash 124 Interstellar 125 Gone Girl 126 Boyhood 127 Birdman or (The Unexpected Virtue of Ignorance) 128 The Grand Budapest Hotel 129 Nightcrawler 130 Ex Machinaz

04 Obrigado . editorial 06 2008 24 2009 42 2010 60 2011 78 2012 96 2013 114 2014 132 2015

2015 138 Mia Madre 140 The Lobster 141 The Hateful Eight 142 Mad Max: Fury Road 143 Inside Out 144 Saul fia 145 Carol 146 Sicario

150 2016 168 2017

Director José Soares. josesoares@take.com.pt Editora Sara Galvão. Editor adjunto José Carlos Maltez. António Araújo. Colaboraram nesta edição Aníbal Santiago. António Araújo. António Pascoalinho. Bruno Ramos. Cátia Alexandre. Edgar Ascensão. Filipe Coutinho. Filipe Lopes. Joana Gonçalves. João Bizarro. J. B. Martins. João Paulo Costa. José Carlos Maltez. Laura Silva. Miguel Reis. Pedro Miguel Fernandes. Pedro Soares. Rui Alves de Sousa. Sandra Gaspar. Sara Galvão. Design José Soares. Ilustração Xico Santos Imagens Arquivo Take. Alambique. Big Picture Films. Cinemateca Portuguesa - Museu do Cinema. Cine Mundo. Columbia TriStar Warner Portugal. Costa do Castelo Filmes. Fox Portugal. Films 4 You. iStock. LNK Audiovisuais. Lanterna de Pedra Filmes. Leopardo Filmes. NOS Audiovisuais. Midas Filmes. Nitrato Filmes. Outsider Filmes. Pris Audiovisuais. Sony Pictures Portugal. Universal Pictures Portugal. Valentim de Carvalho Multimédia. Vendetta Filmes. Imagem de capa José Soares Design © 2018 Take Cinema Magazine - Todos os direitos reservados. As imagens usadas têm direitos reservados e são propriedade dos seus respectivos donos.

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© Xico Santos, 2018


OBRIGADO JOSÉ SOARES

Dez anos. Quando em 2007, desafiei meia dúzia de pessoas para embarcar neste projecto louco, nunca imaginei que, apesar de todas as dificuldades, ele ainda se mantivesse vivo ao fim de uma década. Uma década em que centenas de pessoas dedicaram o seu tempo e disponibilidade, transformando a Take Cinema Magazine na publicação mais duradoura existente em Portugal sobre cinema. A Take Cinema Magazine nasceu de conversas no Live Journal (provavelmente a maior parte de vocês nem fazem ideia do que seja) nos primórdios dos blogues, com a ideia de ocupar um espaço que tinha sido deixado vago pelo fecho da revista Premiere. Na altura, deixou de existir uma revista sobre cinema em língua portuguesa, deixando muitos cinéfilos abandonados pelo espaço virtual. O meu desejo foi juntar algumas dessas pessoas e dar-lhes voz através da criação visual de uma revista. Paralelamente, foi permitir ao espectador português o acesso gratuito a salas de cinema e isto apenas foi conseguido com o apoio incondicional das distribuidoras que têm vindo a colaborar com o projecto. Vai para eles também o meu obrigado. Ao longo desta década, foram inúmeras as pessoas que partilharam a sua opinião e conhecimento, criando textos originais sobre a Sétima Arte. Pessoas de todas as áreas e profissões que têm uma única coisa em comum: um profundo amor ao cinema. A elas, e a todos vós, só posso ficar eternamente grato. Obrigado a todos os que partilharam e partilham esta aventura comigo.



Wall-E, 2008


2008 LAURA SILVA

O ano de 2008 foi marcante em várias frentes. Tinha terminado o curso de jornalismo em finais de 2006 e procurava, como muitos jovens recém licenciados, um emprego na área. Durante o curso, aproveitava para ir ao cinema sempre que possível. Foi nesta altura que um amigo me falou de um projecto que estava a começar: uma revista para os amantes de cinema que seria disponibilizada gratuitamente para que chegasse ao máximo número de leitores. Quando me perguntou se queria fazer parte do projecto, aceitei logo! Assim juntava o útil ao agradável: ganhava experiência e construía o meu portefólio, ao mesmo tempo que alimentava um dos meus passatempos.

cereja no topo do bolo é mesmo a moral do filme: “Uma pessoa é uma pessoa, independente do tamanho”. Depois deste, viria a ver mais três filmes: A Lenda de Desperaux (The Tale of Despereaux, Sam Fell & Robert Stevenhagen), Bolt (Byron Howard & Chris Williams) e Wall-E (Andrew Stanton). Este último foi especialmente interessante pois fez uso quase exclusivo dos efeitos visuais, não havendo qualquer verbalização entre as personagens principais, que são dois robôs, Wall-E e EVE. Tive também a oportunidade de ver Vestida para casar (27 Dresses, Anne Fletcher) e Sexo e a Cidade (Sex and the City, Michael Patrick King). O primeiro revelou-se uma agradável surpresa, nada clichê, e o último foi uma surpresa ainda maior. Na altura nunca tinha visto a série, ao contrário de muitas das minhas amigas, que viam todos os episódios religiosamente. Estava à espera de um filme cheio de estereótipos, feito apenas para capitalizar com o sucesso da série. Apesar de começar uns anos depois de a série terminar, os espectadores que como eu estão a conhecer este universo pela primeira vez, não ficam à nora. Depois de ver este filme, procurei a série e vi todos os episódios. Não me arrependi.

Foi em 2008 que descobri que os filmes de animação não são só para crianças. O filme Horton e o Mundo dos Quem (Horton Hears a Who!, Jimmy Hayward & Steve Martino) mostrou-me que o cinema de animação pode agradar a miúdos e graúdos, fazendo com que todos os espectadores aprendam uma lição valiosa no final. Neste filme, baseado na obra homónima de Dr. Seuss, um elefante descobre um planeta microscópico, semelhante a um grão de pó, que foi levado pelo vento e se prendeu num dente de leão. Devido às suas orelhas enormes, é o único que consegue ouvir os pequenos habitantes de Quem Vila a pedir ajuda. Depois de convencer todos os outros animais de que não está louco, Horton entra num esforço titânico para proteger o planeta. A

2008 foi também um ano cheio de filmes biográficos: W., de Oliver Stone, 7


Milk, 2008 Milk, de Gus Van Sant, Fome (Hunger), de Steve McQueen, e Che - O Argentino de Steven Soderbergh. Destes quatro destaco Fome. Michael Fassbender é Bobby Sands, membro do IRA preso na Irlanda do Norte e líder da Greve de Fome de 1981. Em protesto por terem perdido o estatuto de presos políticos, Bobby e os restantes reclusos decidem iniciar uma greve de fome. O sistema estava montado para que não parassem: A cada duas semanas um novo voluntário iniciava a sua greve de fome. 11 mortes depois, Margaret Thatcher cederia às pressões internacionais para considerar todos os reclusos com ligações ao IRA presos políticos.

de serem excelentes, nunca os verei uma segunda vez: O Rapaz do Pijama às Riscas (The Boy in the Striped Pyjamas) de Mark Herman, e Adam Renascido (Adam Ressurrected) de Paul Schrader. Adoro filmes históricos e filmes de guerra. Em Adam Renascido, chamou-me a atenção o cartaz minimalista mas cheio de significado. Não estava de todo preparada para o “murro no estômago” que iria levar: Um circo destruído, um homem que se tenta transformar num cão na esperança de entreter o oficial alemão que o controla e a desumanização constante a que se sujeita para viver mais um dia. Em O Rapaz do Pijama às Riscas o “murro” foi ainda maior e completamente inesperado.

Ensaio sobre a Cegueira (Blindness) de Fernando Meirelles e O Estranho Caso de Benjamin Button (The Curious Case of Benjamin Button), de David Fincher, roçam os limites do fantástico. Destaque ao primeiro, uma adaptação primorosa do romance de José Saramago em que uma cidade é devastada por uma cegueira misteriosa. Os afetados são colocados num hospital psiquiátrico abandonado e, entre eles, está uma mulher que se finge cega para acompanhar o marido. Sem o saber, torna-se a única testemunha dos actos aberrantes cometidos por aqueles que abusam do poder que conseguiram conquistar à força, através do medo e da fome.

Ainda no nicho dos filmes sobre a Segunda Guerra Mundial está O Leitor (The Reader) de Stephen Daldry e Anonyma, de Max Färberböck. Ambos lidam com a temática do sexo em tempos de guerra de forma sóbria, sem cair na nudez gratuita ou em vulgaridades. Em O Leitor, Michael Berg é um adolescente que é ajudado por Hanna (Kate Winslet), quando este adoece subitamente. Quando ele vai a casa dela para lhe agradecer, os dois iniciam uma relação secreta. Apesar de ela ter o dobro da idade dela, une-os o amor pela literatura e o jovem Michael passa serões lendo para a amante, até que ela desaparece subitamente. Dez anos depois, tornam a reencontrar-se num tribunal: ele como estudante de direito e ela no banco dos réus, acusada de crimes de guerra. O segredo que os

Como nem tudo são rosas, incluo nesta lista os filmes que, apesar 8


une é a chave para a libertação de Hanna, mas esta recusa-se a dizer a verdade, mantendo o espectador em suspense até o fim do filme. Anonyma expõe um assunto que continua a ser considerado tabu: a violação como arma de guerra. Baseado no diário de uma mulher anónima, este filme relata com um realismo impressionante a invasão soviética de Berlim em finais da Segunda Guerra Mundial, entre 29 de Abril e 22 de Junho de 1945. Estima-se que o Exército Vermelho foi responsável por 100 mil violações durante este período. Inicialmente, a protagonista pensa estar segura, pois fala russo. Depois se ser atacada diversas vezes, decide procurar a proteção de um oficial soviético, o que gera descontentamento e desconfiança por todos os que a rodeiam. O livro foi banido na Alemanha após a sua publicação na década de 50, acusado de “denegrir a reputação da mulher alemã”. Foi republicado em 2003 e foi esta a versão que foi adaptada à Sétima Arte. Alguns meses depois, tornou-se impossível continuar na Take. Com muita pena minha, tive que abandonar o projecto, mas continuei a ler a revista (e a ver os filmes que me pareciam interessantes sempre que podia)! Foi uma experiência inesquecível!

Anonyma, 2008

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2008


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Título nacional: Gran Torino Realização: Clint Eastwood

GRAN TORINO

Elenco: Clint Eastwood, Bee Vang, Christopher Carley Ano: 2008

FILIPE LOPES

Um dos grandes filmes do início do século XXI é, sem sombra de dúvida, Million Dollar Baby – Sonhos Vencidos (2004), que triunfou junto da crítica, do público e dos Óscares, dando a Clint Eastwood o segundo galardão como melhor realizador e a segunda nomeação como melhor actor principal. Segundo o próprio, “era uma personagem que senti que poderia fazer; tinha a idade certa, et cetera. Quando terminei, pensei: ‘Chega disto! A partir de agora, vou só trabalhar atrás da câmara’. Mas já disse isto várias vezes e tenho voltado sempre atrás com a minha promessa.” Foi o que aconteceu, uma vez mais, quando lhe foi parar às mãos o argumento de Gran Torino (2008).

Mas um dia, Kowalski salva a sua jovem vizinha Sue de ser abusada por um gang e, pouco tempo depois, impede o mesmo grupo de fazer mal ao seu irmão mais novo, Thao. Anteriormente, este tentara roubarlhe o Ford Gran Torino Sport que ele tanto estima para entrar no tal gang, mas não foi capaz porque Kowalski o apanhou em flagrante e lhe pregou um susto de morte com a sua espingarda. O bando não gostou da incompetência de Thao, pelo que decidiu exercer sobre o rapaz uma retaliação feroz e violenta, da qual foi salvo pela mesma espingarda e pelas mesmas mãos que haviam impedido o roubo do automóvel. Gratos pelo acto heróico, os familiares começam a trazer oferendas a Walt e a convidá-lo para pequenas festas e encontros em família, e Thao começa a estar sempre presente para se oferecer para pequenos trabalhos nos quais o vizinho septuagenário possa necessitar de ajuda, mesmo contra a vontade deste. É aqui que se situa o que pode ser considerado como o ponto de viragem na narrativa. Aos poucos Kowalski vai percebendo que as diferenças entre ele e os vizinhos asiáticos não são assim tão profundas, bem pelo contrário, chegando até a considerar-se mais perto desta nova família (sobretudo de Thao que o segue para todo o lado) do que da sua própria. À medida que vão aprofundando a amizade, Walt vai ensinando ao vizinho adolescente pequenas coisas, que vão desde métodos de auto-defesa até à condução de um automóvel. Ao verificar que o bando de criminosos não vai deixar Thao em paz, decide, ele próprio, resolver a situação, num final magnífico e de apoteótica redenção.

A história gira em torno de um velho rabugento e resmungão que odeia praticamente toda a gente e se vê recentemente a viver sozinho porque acabou de perder a mulher e porque recusa veementemente ir para um lar, contra a vontade da família. Veterano da guerra da Coreia, trouxe consigo o preconceito contra asiáticos, a que acumula o facto de estar zangado com a vida e com o que o rodeia, um bairro que já não reconhece por estar invadido por imigrantes e já não ter americanos. “Não consegui pensar em ninguém que fosse mais certo para este papel do que eu próprio, pelo menos à superfície, por causa do historial de papéis que interpretei ao longa da vida”, explicou Eastwood. Assim volta a ficar atrás e à frente da câmara, dirigindo-se a ele próprio, e em boa hora o fez porque o Walt Kowalski que criou, mais do que uma caricatura de si próprio, é uma das melhores súmulas de todos os papéis que viveu ao longo de muitas décadas como actor que se poderia desejar. E tem uma deliciosa particularidade: rosna. Rosna como um cão a tudo o que não gosta e está à sua volta. O que significa que, durante uma grande parte do filme, rosna muito. Kowalski passa os dias a beber cerveja barata e a fumar cigarros fedorentos, enquanto repete impropérios racistas para si próprio, relacionados com a sua vizinhança e no que ela se transformou.

Clint Eastwood volta a acertar no registo, compondo, quer como maestro, quer como executante, mais um filme extraordinário para a sua filmografia.

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Título nacional: Sinédoque, Nova Iorque Realização: Charlie Kaufman

SYNECDOCHE, NEW YORK

Elenco: Philip Seymour Hoffman, Samantha Morton, Michelle Williams Ano: 2008

RUI ALVES DE SOUSA

Primeiro filme realizado por Charlie Kaufman (o argumentista de Queres Ser John Malkovich?, O Despertar da Mente ou Inadaptado), Sinédoque, Nova Iorque conta uma história labiríntica, cujos fragmentos se dispersam entre sucessivos recuos e avanços no tempo, ao longo de vinte e cinco anos da vida de Caden (Philip Seymour Hoffman num dos desempenhos maiores, elogiosa e literalmente falando, da sua carreira), um encenador que tem um sonho que é, no mínimo, invulgar: criar uma peça do tamanho da vida, ou a obra teatral mais universal de sempre, que reflita por isso a realidade de cada ser humano que habitou, habita e habitará o planeta.

período de tempo. Tendo em conta a megalomania do filme, tanto na narrativa como na sua (des)construção compulsiva, será normal que provoque um daqueles sentimentos extremos, no que ao gosto de cada um diz respeito. No entanto, esta empreitada, com tudo o que tem de fascinar ou repugnar espectadores, é uma das mais ambiciosas do cinema americano deste século. Se este grande teatro da vida é uma obra prima ou uma fraude cabe ao espectador decidir e/ou decifrar. As posições opinativas mais variadas continuam a manifestar-se, mas por mais arrebatadas paixões ou ódios que o filme de Kaufman consegue provocar, certo é que dez anos depois da sua estreia ainda não nos conseguimos livrar deste mosaico de singulares personagens, mais todas as suas estranhas idiossincrasias.

Com este mote, Kaufman aproveita para nos levar numa viagem bizarra pelas paixões, angústias, obsessões e paranóias do protagonista, intercalando o(s) passado(s), presente(s) e futuro(s) dele e das personagens que vão moldando a sua maneira de ser ao longo daquele

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Título nacional: Tempestade Tropical Realização: Ben Stiller

TROPIC THUNDER

Elenco: Ben Stiller, Jack Black, Robert Downey Jr. Ano: 2008

PEDRO MIGUEL FERNANDES

Ben Stiller é mais conhecido como actor, sobretudo de comédias (apesar de ser um óptimo actor de filmes dramáticos, mesmo que seja pouco aproveitado neste género), mas também conta com um punhado de filmes realizados por si que não deixariam a maior parte dos tarefeiros de Hollywood envergonhados por as ter no currículo.

da imagem de menino bonito dos primeiros filmes ou do herói de filmes de acção que começou a desenvolver a partir da participação na série Missão Impossível), ninguém fica a salvo. O que resulta no filme de Stiller, que com tantos bons actores juntos (e respectivos egos) no mesmo plateau facilmente podia tornar Tempestade Tropical um enorme falhanço, é precisamente o facto de que, em equipa, todos funcionam na perfeição. É quase um milagre como este grupo, mesmo deixado com rédea solta, não tornou o filme um desastre. Antes uma boa comédia feita em Hollywood, onde o género já teve muito melhores dias e ultimamente tem estado nas ruas da amargura. E prova que, quando quer (o que tem vindo a ser raro nos dias de hoje), Hollywood ainda consegue rir-se à sua própria custa.

Tempestade Tropical é uma comédia desbragada sobre a rodagem de um filme de guerra que é ao mesmo tempo uma das mais ferozes e agressivas sátiras à indústria cinematográfica norte-americana dos últimos anos, não poupando ninguém. Desde os actores (brilhante a solução para o arranque de Tempestade Tropical, que introduz os protagonistas a partir de falsos trailers, apresentando assim as características de cada uma das vedetas), aos produtores, encarnados por um Tom Cruise totalmente irreconhecível, careca e barrigudo, numa das criações mais sui generis da sua carreira (e bastante arriscada, longe

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Título nacional: O Wrestler Realização: Darren Aronofsky

THE WRESTLER

Elenco: Mickey Rourke, Marisa Tomei, Evan Rachel Wood Ano: 2008

JOÃO PAULO COSTA

Depois de se ter dado a conhecer ao Mundo com uma trilogia em estilo psicadélico-surreal, com Pi (1998), A Vida Não é um Sonho (2000) e O Último Capítulo (2006), o realizador americano Darren Aronofsky fez um inesperado desvio de rumo e assinou aquela que é, provavelmente, a sua obra-prima. Mantendo a tendência para seguir de muito perto as suas personagens, Aronofsky trocou a estilização muito marcada dos seus primeiros títulos por um realismo quase documental ao contarnos a história de Randy ‘The Ram’ Robinson, uma velha estrela em decadência da luta livre americana dos anos 80, agora relegada a um papel secundário em combates de exibição e a uma vida solitária numa auto-caravana distanciada da família.

Randy, Rourke era por esta altura um actor caído no esquecimento, cuja carreira desvaneceu após atingir o pico em títulos dos anos 80, como Nove Semanas e Meia (1986) ou Nas Portas do Inferno (1987), e essa nostalgia sente-se em cada fotograma de película, numa das mais comoventes composições de que há memória em tempos recentes no cinema americano. Tal como viria a fazer no seu filme seguinte, Cisne Negro (2010), Aronofsky não se inibe na altura de nos mostrar o sofrimento físico causado pelo ofício dos seus protagonistas, fazendo desse um elemento fulcral na nossa relação com um filme onde a dor permanece como um elemento sempre muito presente.

Mickey Rourke nasceu para dar corpo e alma a Randy, numa composição que vive das marcas de guerra físicas e mentais partilhadas pelo actor e a sua personagem, cujo corpo conta uma história por si só. Tal como

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Título nacional: Deixa-me Entrar Realização: Tomas Alfredson

LAT DEN RÄTTE KOMMA IN

Elenco: Kare Hedebrant, Lina Leandersson, Per Ragnar Ano: 2008

SARA GALVÃO

Anos 80, subúrbios de Estocolmo, Suécia. Oskar é gozado e atacado pelos colegas quase todos os dias, o que o leva a fantasiar vinganças sangrentas. Para a casa do lado, mudam-se novos vizinhos — Eli, uma rapariga da mesma idade, envolta em mistério, e o pai. Ambos marginais, rapidamente Oskar e Eli constroem uma amizade (e algo mais) entre si. Claro está, Eli é na verdade uma vampira, eternamente presa num corpo e imagem de criança, que tem de matar para sobreviver, com a ajuda do seu pai/criado. Quais as verdadeiras intenções de Eli em relação a Oskar, nunca é completamente claro — o final ambíguo é aberto a interpretações (destruídas no remake americano), e há perspectivas diferentes sobre o código moral da vampira (por um lado liberta as pessoas do corpo mortal, algo que ela é incapaz de fazer, e ajuda a “limpar” o mundo de mauzões, mas, por outro, é um ser carnívoro demoníaco que, quiçá, manipula emocionalmente os seus “servos” para se lhe dedicarem completamente.)

Deixa-me Entrar fez o mundo virar-se para o cinema escandinavo, meio esquecido desde os anos 90, e introduziu uma nova estética que muito deve à excelente cinematografia de Hoyte Van Hoytema (Dunkirk, Interstellar, Her) e à banda sonora atmosférica (com laivos de filme clássico de terror no meio de um certo “wagnerianismo” de tendências minimalistas) de Johan Soderqvist. Tomas Alfredson consegue interpretações realistas e pungentes tanto de Hedebrant como Leandersson (cuja face é, ao mesmo tempo, inocente e experiente), com parcos diálogos, imagens memoráveis (destacando-se a cena da piscina) e a reinvenção de um género — o filme de vampiros — num estilo que tem sido muitas vezes copiado, mas nunca superado.

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Título nacional: Fome Realização: Steve McQueen

HUNGER

Elenco: Brian Milligan, Michael Fassbender, Liam Cunningham Ano: 2008

RUI ALVES DE SOUSA

Com Fome, Steve McQueen assinou uma espantosa estreia — e dez anos depois permanece intocável. A história de Bobby Sands, membro do IRA que fez uma greve de fome depois de ser preso pelas autoridades irlandesas, é o pretexto para uma viagem dura, sem formalismos visuais ou paninhos quentes para facilitar a vida ao espectador, a um mundo em que esta e outras personagens irão descer ao mais fundo dos abismos humanos.

surpreendente em todo o conjunto do filme, maioritariamente com poucos diálogos e um maior foco na jornada de cada personagem, dentro e fora das paredes da cadeia. Três filmes depois, Steve McQueen continua sempre a surpreender. Para breve está a estreia de uma nova obra, aguardada, obviamente, com grande expectativa. Mas vale a pena voltar a Fome para perceber que este não é um daqueles filmes para causar efeitos fáceis no espectador, mas antes uma visão aprofundada sobre as ambiguidades do sistema prisional. Para além de um exímio investigador do pior dos homens, o realizador mostrou ser dotado de uma enorme sensibilidade nos pormenores de realização e acting que, nas mãos de outros seus colegas, seriam simplesmente inócuos.

No entanto, e entre todos os planos que demonstram a brutalidade e uma certa repugnância dos métodos daquela prisão, talvez o momento mais marcante e impressionante de Fome se encontre naquele que é o mais simples de todos: a discussão entre Sands e o padre Dominic Moran em dezassete intensos minutos, sem cortes ou mudanças de plano, de uma conversa que parece ter o tamanho da vida — uma autêntica masterclass de argumento e interpretação, um segmento completamente

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Título nacional: Gomorra Realização: Matteo Garrone

GOMORRA

Elenco: Gianfelice Imparato, Salvatore Abbruzzese, Toni Servill Ano: 2008

PEDRO MIGUEL FERNANDES

A publicação de Gomorrra, livro escrito por Roberto Saviano, um jornalista italiano que viveu anos infiltrado na máfia napolitana, caiu como uma bomba e tornou-se um documento fundamental para tentar perceber o intricado universo da máfia em Itália.

qualquer tentativa de romantizar um mundo que muitas vezes é retratado dessa forma no cinema. Romantismo esse que alimenta o sonho de dois dos protagonistas, dois adolescentes sem rumo para as suas vidas que almejam tornar-se bosses à imagem e semelhança de Tony Montana, o protagonista de Scarface, de Brian De Palma. Mas o seu trágico final prova que a máfia não vive para romantismos e em Gomorra não há lugar para heróis desses ou espaço para salvação.

Dois anos depois chegava o filme realizado por Matteo Garrone, que assinou um dos mais fortes e violentos filmes sobre a máfia. Ao contrário do livro que lhe deu origem que faz um retrato dos vários tentáculos de um gigantesco polvo que chega a toda a sociedade italiana, Gomorra opta por se focar em cinco histórias de cinco personagens enredadas numa complexa teia, nem sempre de forma voluntária.

Todos são vítimas, todos perdem. E o distanciamento com que Garrone filma estas personagens, como que ninguém pudesse fazer nada por elas, nem o realizador nem o espectador, é um dos trunfos deste filme duríssimo, um dos retratos mais realistas de uma realidade que nos parece tão distante, mas que está mesmo às nossas portas.

Ao centrar-se nestas cinco histórias de pessoas que se encontram na parte mais baixa da pirâmide (o topo dessa pirâmide e os jogos de poder seriam mais tarde o foco de uma série televisiva), Gomorra escapa a

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Título nacional: A Valsa com Bashir Realização: Ari Folman

VALS IM BASHIR

Elenco: Ari Folman, Ron Ben-Yishai, Ronny Dayag Ano: 2008

PEDRO MIGUEL FERNANDES

Em anos recentes, o cinema israelita tem dado algum espaço à história recente do país e aos conflitos com os seus vizinhos. Num país com alguma dificuldade em viver com estes temas, todos os esforços para tentar compreendê-lo são de saudar. A Valsa com Bashir faz parte deste grupo de filmes, no qual podemos incluir o também excelente Líbano, de Samuel Maoz.

companheiros. Essa descoberta é feita através de conversas com outros amigos que estiveram com ele na mesma situação e relatam episódios de guerra e como vivem com eles, anos depois do ocorrido. Tudo culmina num episódio específico: os massacres dos campos de refugiados palestinianos de Shaba e Shatila cometidos por milícias cristãs como vingança pela morte do presidente Bashir, massacres esses que tiveram conivência de Israel. Mais do que resolver um trauma pessoal, A Valsa com Bashir acaba por lidar com traumas nacionais sem paninhos quentes. São várias as referências a guerras anteriores e à normalidade da vida num país em permanente estado de conflito. A animação é excelente, bem acompanhada por uma banda sonora assinada por Max Richter. Um murro no estômago obrigatório.

No formato pouco utilizado de documentário em animação (com uma excepção na conclusão, numa sequência que animada talvez não tivesse a mesma força), o filme começa com alguém a contar um sonho recorrente ao realizador, sonho esse que remete para o tempo em que cumpria serviço militar. Esse sonho serve de ponto de partida para Ari Folman partir em busca do seu passado e questionar-se por que razão não se recorda do período em que esteve no Líbano ao serviço do exército israelita, excepto da imagem de estar numa praia com os seus

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Título nacional: O Cavaleiro das Trevas Realização: Christopher Nolan

THE DARK KNIGHT

Elenco: Christian Bale, Heath Ledger, Aaron Eckhart Ano: 2008

J. B. MARTINS

Exterminador Implacável 2: O Dia do Julgamento, O Padrinho: Parte II, Star Wars: Episódio V - O Império Contra-Ataca. A história do cinema já nos mostrou que, independentemente dos géneros e da má fama que as sequelas ganharam, as segundas partes podem superar em muito os seus antecessores.

de heróis: uma reflexão sobre o que eles simbolizam, sobre a eterna luta entre a ordem e o caos e sobre a debilidade da ordem social estabelecida. A humanidade sempre necessitou de heróis, reais ou fictícios. Super ou não super. Quer queiramos quer não, é inegável apontar o falecido Heath Ledger como a grande figura deste filme. O seu Joker nunca mais saiu das listas dos melhores vilões da sétima arte e há boas razões para isso. Ledger arrebata todas as cenas em que entra. Faz-nos rir e sentir medo. Faz-nos temer e admirar. Um trabalho imenso e exaustivo do actor.

O Cavaleiro das Trevas consegue ser superior ao seu antecessor em praticamente todos os aspetos. Nolan regressa aos dilemas morais levantados por Batman: O Início e dá-lhes um seguimento e consequências lógicas inevitáveis. O sistema de valores que o alter-ego mascarado de Bruce Wayne talhou (a tanto custo) no filme anterior é aqui mais uma vez posto em causa com o surgimento de um novo e poderoso vilão.

O panorama dos filmes de super-heróis mudou muito desde 2008. Mudou da fantasia para o ultra-realismo e acabou por encontrar um lugar entre os dois. Mas apesar de tudo O Cavaleiro das Trevas mantém-se fresco como no dia em que estreou. E isso quer dizer alguma coisa.

Mais do que um filme de super-heróis, O Cavaleiro das Trevas é um filme

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Título nacional: Revolutionary Road Realização: Sam Mendes

REVOLUTIONARY ROAD

Elenco: Kate Winslet, Leonardo DiCaprio, Christopher Fitzgerald Ano: 2008

RUI ALVES DE SOUSA

April (Kate Winslet) e Frank (Leonardo DiCaprio) têm tudo o que deseja uma família da classe média do American Way of Life durante os anos 50. Quando se conheceram, tudo parecia maravilhoso, mas quando já estamos na fase seguinte ao casamento, a beleza do namoro transformou-se numa criação constante de focos de tensão familiar e social. O importante é manterem-se sãos e pouco auto-destrutivos, enquanto têm dois filhos para criar e, ao mesmo tempo, lidam com as suas angústias e frustrações causadas pelas “regras” da vida real e por todas as pequenas (e grandes) armadilhas que vão colocando na sua relação. E tentam perceber se, com todos os problemas, haverá espaço para sonhar mais alto e seguir um caminho diferente daquele que todos dizem ser o “certo”.

Cameron, em Revolutionary Road, adaptação do romance homónimo de Richard Yates, Sam Mendes revelou a química entre ambos com outras camadas, colocando Winslet e DiCaprio frente a frente num filme que, para além de ser um retrato fascinante da América de uma perspectiva mais cínica, é uma verdadeira lição de cinema e de representação. Em Revolutionary Road, há o confronto intenso entre os sonhos do passado (que se querem manter vivos a todo o custo no presente) e o medo de perder o conforto proporcionado por uma forma segura de pagar as contas. O facto de todo este desencanto perante a vida ter sido recuperado tantos anos depois de Yates ter escrito o seu romance comprova que todas as suas ideias continuam relevantes. Afinal, não são estes alguns dos eternos dilemas da humanidade?

Se bem que, na memória de todos os cinéfilos com coração de manteiga, a dupla de actores seja mais reconhecida graças ao Titanic de James

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O Cavaleiro das Trevas, 2008

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Avatar, 2008


2009 ANTÓNIO ARAÚJO

Com 2009 aproximava-se o final da primeira década do novo século e do novo milénio, altura perfeita para tomar o pulso à produção cinematográfica. Num aspecto tudo se mantinha como dantes: o desligamento entre o(s) gosto(s) da(s) crítica(s) e do(s) público(s). Por isso, a Academia das Artes e Ciências de Hollywood anunciou o alargamento do número de nomeados a melhor filme com o objectivo de reconhecer filmes populares normalmente ignorados, atraindo também o interesse dos segmentos mais jovens para a cerimónia. O alargamento de nomeações nesta categoria a dez títulos referentes à produção de 2009 garantiu a presença do gigante fenómeno de bilheteira de James Cameron Avatar, bem como de títulos menos habituais como a animação Up - Altamente (Up, Pete Docter e Bob Peterson) ou a surpresa Distrito 9 (District 9, Neill Blomkamp), a ombrearem com títulos de prestígio como o premiado Estado de Guerra (The Hurt Locker, Kathryn Bigelow), marcando a primeira estatueta para melhor realização atribuída a uma mulher, a comédia negra subtil Um Homem Sério (A Serious Man, Joel e Ethan Coen) ou a fantasia de vingança revisionista Sacanas Sem Lei (Inglourious Basterds, Quentin Tarantino).

"serialização" das narrativas cinematográficas, 2009 recompensou como habitualmente títulos com elevado reconhecimento de marca. Por entre comédias originais – A Ressaca (The Hangover, Todd Phillips) – e catástrofes – 2012 (Roland Emmerich) –, no que respeita à bagalhoça, brilharam títulos como Harry Potter e o Príncipe Misterioso (Harry Potter and the Half-Blood Prince, David Yates), A Idade do Gelo 3: Despertar dos Dinossauros (Ice Age: Dawn of the Dinosaurs, Carlos Saldanha e Mike Thurmeier), Transformers - Retaliação (Transformers: Revenge of the Fallen, Michael Bay), A Saga Twilight: Lua Nova (The Twilight Saga: New Moon, Chris Weitz) ou Anjos e Demónios (Angels & Demons, Ron Howard). Ainda no capítulo das séries cinematográficas, enquanto Star Trek (J. J. Abrams), revolucionava o conceito de reboot, mostrando finalmente ao mundo como se faz tabula rasa de sequelas menores, revigorando no processo todo um universo para uma nova geração de espectadores, outros títulos lutavam por recuperar a glória dos seus antecessores, nalguns casos esforçando-se por manter a identidade das narrativas originais – Exterminador Implacável - A Salvação (Terminator Salvation, McG) –, noutros reinventando-se e relançando a série para voos mais alto – Velozes e Furiosos (Fast & Furious, Justin Lin). X-Men Origens: Wolverine (X-Men Origins: Wolverine, Gavin Hood) quase deitou tudo a

Outra coisa que também não mudou foram os invejáveis resultados de bilheteira de sequelas, independentemente da sua maior ou menor qualidade. Apesar de ainda não estar em curso por esta altura a actual 25


Up - Altamente, 2009 perder depois do sucesso das anteriores adaptações dos super-heróis mutantes da Marvel, empresa que tinha começado apenas no ano anterior a dar os primeiros e tímidos passos na direcção do seu universo cinematográfico na sombra do gigante da rival DC, O Cavaleiro das Trevas (The Dark Knight, Christopher Nolan). 2009 acabou por ser um ano parco em heróis dos quadradinhos, com a excepção digna de nota da ambiciosa e fiel adaptação de Zack Snyder da novela gráfica de Alan Moore e Dave Gibbons Watchmen: Os Guardiões (Watchmen).

no filme mais rentável de sempre, detendo ainda hoje esse recorde. No sempre prolífico capítulo do terror, por entre uma enxurrada de remakes de populares títulos do género – Sexta-Feira 13 (Friday the 13th, Marcus Nispel), São Valentim Sangrento (My Bloody Valentine, Patrick Lussier), A Última Casa à Esquerda (The Last House on the Left, Dennis Iliadis) ou Halloween II (Rob Zombie), neste caso uma sequela de um remake – davam-se os últimos estertores da variante da pornografia da tortura – Saw 6 - Jogos Mortais (Saw VI, Kevin Greutert). Enquanto o veterano Sam Raimi voltava a oferecer emoções fortes em Até ao Inferno (Drag Me To Hell), surgiam novos nomes com abordagens de baixo-orçamento ao género: Ti West (The House of the Devil) e Michael Dougherty (A Noite de Todos os Medos [Trick 'r Treat]). Mas o acontecimento do ano neste capítulo foi mesmo a abordagem low-fi de Actividade Paranormal (Paranormal Activity, Oren Peli) recuperando a estética found-footage que tinha trazido frutos vinte anos antes a O Projecto Blair Witch (The Blair Witch Project, Daniel Myrick e Eduardo Sánchez), colocando neste caso o horror no interior do lar.

Com a crescente popularidade das séries televisivas, o cinema começou a virar-se, tal como tinha feito no passado, para o dispositivo da tridimensionalidade, vulgo 3D. Utilizado maioritariamente em títulos de animação – Coraline e a Porta Secreta (Coraline, Henry Sellick), Monstros vs. Aliens (Monsters vs. Aliens, Rob Letterman e Conrad Vernon), Up - Altamente, A Idade do Gelo 3: Despertar dos Dinossauros, Chovem Almôndegas (Cloudy with a Chance of Meatballs, Phil Lord e Christopher Miller), Um Conto de Natal (A Christmas Carol, Robert Zemeckis) – esta engenhoca de qualidade discutível seria revolucionada por James Cameron ao filmar Avatar na íntegra em câmaras 3D, oferecendo uma profundidade às imagens nunca antes conseguida, onde antes apenas se espetavam objectos nos olhos dos espectadores. Apesar de um argumento banal e derivativo, Avatar capturou a imaginação dos espectadores e tornou-se

Como o cinema não se faz só de produções americanas nem de resultados de bilheteira, é importante apontar títulos independentes e de outros quadrantes geográficos que marcaram 2009: Moon - O Outro Lado 26


da Lua (Moon, Duncan Jones), Splice - Mutante (Splice, Vincenzo Natali), Em Inglês, S.F.F. (In the Loop, Armando Iannucci), Adventureland (Greg Mottola), O Sítio das Coisas Selvagens (Where the Wild Things Are, Spike Jonze), O Fantástico Senhor Raposo (Fantastic Mr. Fox, Wes Anderson), Canino (Kynodontas, Yorgos Lanthimos), O Laço Branco (Das weiße Band - Eine deutsche Kindergeschichte, Michael Haneke) Millennium 1. Os Homens que Odeiam as Mulheres (Män som hatar kvinnor, Niels Arden Oplev), O Segredo dos Seus Olhos (El secreto de sus ojos, Juan José Campanella), Anticristo (Antichrist, Lars von Trier), Enter the Void - Viagem Alucinante (Enter the Void, Gaspar Noé) revelaram-se como alguns dos melhores filmes do ano. Numa nota pessoal, resta-me partilhar que a melhor narrativa de 2009 não foi exibida no cinema: nasceu em Fevereiro e, se os realizadores não fizerem asneira, a sua vida dará com certeza origem a um belo filme…

O Sítio das Coisas Selvagens, 2009

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2009


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Título nacional: Sacanas Sem Lei Realização: Quentin Tarantino

INGLOURIOUS BASTERDS

Elenco: Brad Pitt, Christoph Waltz, Michael Fassbender, Diane Kruger, Mélanie Laurent Ano: 2009

ANTÓNIO ARAÚJO

Depois de mudar por completo o panorama do cinema norte-americano no princípio da década de noventa com os seus dois primeiros filmes — Cães Danados (Reservoir Dogs, 1992) e Pulp Fiction (1994) —, e enquanto o resto do mundo tentava acompanhar e emular o seu estilo com diferentes graus de insucesso, Quentin Tarantino trilhou, imperturbável, o seu caminho de reapropriação e revisão histórica do “seu” cinema. Não o cinema clássico que era ensinado nas escolas e universidades, mas aquele de género — despretensioso e muitas vezes de baixo orçamento — a que teve acesso em duvidosas salas de cinema de exploitation e clubes de vídeo de bairro. A sua filmografia, cedo se percebeu, é o resultado da paixão por estilos marginais que alimentaram uma cinefilia muito particular.

cinematográfica, como expressão equivalente de verdade e mentira, bem como da sua capacidade manipuladora, independentemente da sua natureza. As histórias têm o poder de nos suscitar emoções ou mesmo ideias, sejam elas verdadeiras ou falsas, sejam elas narradas por um orador dotado ou projectadas no escuro de uma sala de cinema. Por isso, a forma é tanto ou mais importante que o conteúdo — veja-se o factor decisivo da linguagem no desfecho da antológica cena de abertura com o Coronel Hans Landa, ou a relevância dos dedos levantados pelo disfarçado Tenente Archie quando, numa missão em pleno território inimigo, pede mais cervejas, denunciando a fraude da farda que enverga. No final, a própria sétima arte aparece como personagem salvadora e redentora, derradeira carta de amor à expressão artística a que o realizador se dedicou de corpo e alma. Sacanas Sem Lei é puro Tarantino em cenário sugerido pelos seus filmes da Segunda Guerra Mundial favoritos. É indulgente e até arrogante, no melhor sentido da palavra, e é o resultado de um autor em plena forma e no auge das suas capacidades.

Sacanas Sem Lei, o planeado projecto da Segunda Guerra Mundial que se seguiria a Jackie Brown (1997), mas que se viu ultrapassado pelo díptico de vingança e artes-marciais Kill Bill - A Vingança (Volume 1, 2003 e Volume 2, 2004) e pela experiência falhada (do ponto de vista das receitas financeiras) Grindhouse (2007) — com o segmento estreado em Portugal como À Prova de Morte (Death Proof) — só veria a luz do dia em 2009. O resultado não deveria ter sido uma surpresa para ninguém, dado o currículo do seu autor. Ainda assim, esta fantasia de vingança apanhou toda a gente desprevenida ao pegar numa ferida da história mundial recente e traçar uma realidade paralela aos livros que se ensinam na escola que procurava satisfazer os desejos mais básicos de meio-mundo com um desfecho alternativo, e à lei da bala, para o líder totalitário e assassino do partido nazi, inimigo público número um do século XX.

Sacanas Sem Lei viria também apresentar ao mundo os talentos do austríaco Christoph Waltz, como o volátil e assustador Coronel Hans Landa. Além desta revelação, encontramos no elenco Michael Fassbender, em fase de ascensão meteórica, Brad Pitt, numa interpretação maior que a vida — bem ao seu jeito, e em perfeita sintonia com o tom do filme —, Eli Roth, o amigo pessoal de Tarantino e realizador de filmes de terror, e, na senda de fortes personagens femininas no meio de muita testosterona, Diane Kruger e Mélanie Laurent, como peões imprescindíveis no tabuleiro do derradeiro e altamente gratificante jogo revanchista.

Sacanas Sem Lei não está interessado em ser uma lição de história nem um filme factualmente correcto. O que Tarantino conseguiu de forma brilhante foi uma exploração do poder da narrativa, especialmente a 31


Título nacional: O Segredo dos Seus Olhos Realização: Juan José Campanella

EL SECRETO DE SUS OJOS

Elenco: Ricardo Darín, Soledad Villamil, Pablo Rago Ano: 2009

ANTÓNIO PASCOALINHO

Esta grande revelação do cinema argentino é um filme notável, com uma intriga que agarra de princípio a fim e alguns desenvolvimentos surpreendentes que conduzem a um desenlace de todo inesperado.

país latino-americano. Fica na memória a solução final do enigma, mas também um conjunto de planos belíssimos (como a separação do casal numa estação de comboios ou as filmagens com drone num estádio de futebol completamente cheio). Os personagens secundários são fortíssimos, desde o polícia alcoólico companheiro do herói até ao assassino psicopata, passando pelo marido da vítima que busca (e encontra) a necessária força interior para continuar a viver.

Acompanhamos um polícia reformado, incapaz de esquecer o único caso que não foi capaz de resolver 25 anos antes, nem a mulher que amou durante todo esse tempo mas nunca conseguiu “ter”. Agora, no período da vida em que faz o balanço, o nosso herói Esposito (magnífico actor Ricardo Darín) resolve voltar a ambos os casos, o policial e o amoroso, pois nunca é tarde demais para atingir objectivos na vida, segundo as metáforas do filme.

A verdade é que, desde a originalidade nos guiões à maestria técnica que evidencia, o cinema argentino do século XXI é, de facto, algo que merece visionamento e descoberta. Tentem comparar este filme com o seu remake americano e constatarão até que ponto o original é tão melhor. E a seguir vejam Relatos Selvagens (Relatos salvajes, 2014), de novo com Ricardo Darín! Verão que vale a pena.

A intriga policial é fascinante, a história de amor poética e credível, e tudo se desenrola com a História da Argentina em pano de fundo, no meio de piscadelas de olho à corrupção dos tempos das juntas militares naquele

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Título nacional: Anticristo Realização: Lars Von Trier

ANTICHRIST

Elenco: Willem Dafoe, Charlotte Gainsbourg, Storm Acheche Sahlstrom Ano: 2009

PEDRO SOARES

Lars Von Trier é um deprimido do caraças e, para se vingar, quer deprimirnos a todos. Para si fazer um filme é o equivalente a cortar os pulsos, isto enquanto continua a esgravatar na miséria humana e na maldade do Homem. No entanto, enquanto que em Dogville e Manderlay essa maldade era uma coisa genérica, aqui é algo exclusivo das mulheres. Resumindo: Von Trier está deprimido e culpa as mulheres por isso.

para uma temporada isolados no bosque (Éden) para enfrentarem esses medos. Aí a racionalidade vai bater numa série de simbolismos satânicos, acontecimentos mefistófilos e imagens surreais. Anticristo é à partida um profundo drama familiar, mas o cruzamento de atmosferas faz com que o filme se transforme em algo assombrosamente poderoso: por um lado há o realismo cru e visceral, filmado pelas regras do Dogma 95 (adeus tripé!) e editado como nouvelle vague (não saltar o eixo? o que é isso?). Por outro lado há o sobrenatural denso, cheio de drones no ar e uma metamorfose da natureza em algo perturbador. Anticristo concentra num só filme toda a demência de Kenneth Anger, Edmund E. Merhige e Alejandro Jodorowsky.

O início de Anticristo é muito bom. A preto e branco, em câmara lenta e ao som de uma ária operática, Charlotte Gainsbourg e Willem Daofe descuidam-se a fazer amor e não dão pelo filho bebé dar uma queda fatal. Em poucos segundos, o filme está a transbordar de toda a dor do mundo. A sorte é que Dafoe é psiquiatra e vai “tratar” o luto, a dor e a angústia (o título dos capítulos em que o filme se divide) da esposa. E pela psicanálise, Dafoe descobre que o cerne do trauma está na cabana onde mãe e filho estiveram nas férias. Eis então ambos de malas aviadas

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Título nacional: Moon - O Outro Lado da Lua Realização: Duncan Jones

MOON

Elenco: Sam Rockwell, Kevin Spacey, Dominique McElligott Ano: 2009

PEDRO MIGUEL FERNANDES

Não são muitos os cineastas que se podem dar ao luxo de assinar uma boa primeira obra. Com Moon, Duncan Jones entrou para esse restrito grupo, apesar de posteriormente nunca mais ter alcançado o resultado deste seu filme de estreia. Em Código Base, talvez tenha andado por perto, mas não chegou lá. Passado num futuro próximo, em que a Terra deixou de depender tanto dos combustíveis fosseis, Moon segue os últimos dias da comissão de três anos de um astronauta contratado por uma empresa para controlar uma base lunar de onde é extraída energia para enviar de volta à Terra.

planos das corridas de Sam. Com muito poucos elementos (praticamente só há dois cenários — dentro e fora da estação de trabalho — e um elenco reduzido, com poucas aparições e sempre em ecrãs), Moon é um dos melhores filmes de ficção científica dos últimos anos, acessível mesmo a quem não é fã do género, sem complicar demasiado o que à partida poderia ser um argumento complexo, que no fundo é. Mas Duncan Jones resolve na perfeição todos os nós que vão surgindo ao longo do filme, para não deixar pontas soltas. Uma última palavra para a interpretação de Sam Rockwell, uma das melhores da sua carreira, num daqueles casos em que o filme está literalmente às costas do actor. E que interpretação arranca Rockwell neste belíssimo filme. Nota máxima para a estreia de Duncan Jones.

Um acidente na véspera do regresso vai estragar os planos de todos, quando aos poucos Sam começa a descobrir o que se passa realmente na base lunar, onde tem por única companhia um robot com a voz de Kevin Spacey que nos faz lembrar o HAL de 2001: Odisseia no Espaço, filme cuja influência se faz notar também no cenário da base ou nos

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Título nacional: Enter the Void - Viagem Alucinante Realização: Gaspar Noé

ENTER THE VOID

Elenco: Nathaniel Brown, Paz de la Huerta, Cyril Roy Ano: 2009

SARA GALVÃO

Sete anos depois de Irreversível, Gaspar Noé volta à carga com um filme sobre um toxicodependente e traficante de drogas em Tóquio. Nathanial Brown é Oscar, o protagonista a quem raramente vemos a cara, porque somos levados através da sua história por uma câmara, primeiro em ponto de vista, e depois no que pode ser descrito como “câmara-espírito”, montada atrás da sua cabeça.

Neste filme de carácter surreal e experimental, as regras do jogo sãonos dadas logo de início, após fortes créditos psicadélicos iniciais. Partindo da premissa do Livro Tibetano dos Mortos (que Oscar anda a ler), o espectador é levado através de uma forte mistura de cores fortes, drogas, e sexo, com muitos déjà vus à mistura, algumas sequências oníricas, e, claro, um trabalho de câmara incrível, para a qual parecem não haver limites físicos.

A narrativa é simples — Oscar vive em Tóquio com a irmã Linda, que trabalha num clube de striptease, e é traído por um colega, o que o leva a ser morto pela polícia japonesa. O espírito dele tenta então reencarnar novamente, vagueando sobre a cidade dos néons a alta velocidade, seguindo a irmã e os amigos, ao mesmo tempo que recorda os momentos marcantes da sua vida — a morte dos pais, a separação da irmã, o início de carreira como traficante para poder comprar o bilhete de avião à irmã.

Apesar de pecar na duração, e por vezes cair na tentação de chocar só por chocar (afinal, Noé nunca foi muito dado a subtilezas), Enter the Void é, como diz a tradução portuguesa, uma viagem alucinante pelo alémmorte, recusando o mero valor de entretenimento ou mesmo a “simpatia” geralmente associada ao cinema.

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Título nacional: O Laço Branco Realização: Michael Haneke

THE WHITE RIBBON

Elenco: Christian Friedel, Ernst Jacobi, Leonie Benesch Ano: 2009

PEDRO SOARES

Para quem conhece a obra de Michael Haneke, O Laço Branco não destoa: filmes crus e viscerais, que revolvem as entranhas do ser humano de forma hiper-realista e sem ser gráfico, sempre sem usar banda-sonora, uma das suas imagens de marca.

alvo de uma armadilha, o filho do barão é torturado e o deficiente da aldeia é espancado. No entanto, à medida que o narrador vai relatando a pasmaceira das vidas simples do barão e da baronesa, do feitor, da parteira ou, simplesmente, de algum agricultor, nós percebemos que as coisas já estavam podres há muito tempo…

O Laço Branco é o relato das peripécias de uma aldeola alemã em vésperas da Primeira Guerra Mundial. Naquele microcosmos concentram-se todas as tensões sociais que se acumulavam na Europa naquela altura, onde se consegue vislumbrar uma espécie de crítica social/limpeza de fantasmas do armário ao passado alemão e ao seu nacional-socialismo.

O Laço Branco disfarça-se então de um Buñuel e das suas crónicas de costumes, mas filmado à maneira gélida e racional de Ingmar Bergman (influência descarada) e como o cinema de antigamente de Jiri Menzel. Com uma fotografia irrepreensível a preto e branco (que serve também para acentuar a dicotomia do Bem e do Mal), Haneke limita-se a mostrar o que se passa, sem encenar nada. Eis a prova viva de que o cinema é, no limite, contar uma história. E que isso é possível da forma mais despegada possível.

Em tom coloquial, e aproveitando-se do professor da aldeia para narrador, Haneke relata o quotidiano daquela aldeia desde o início de uns acontecimentos estranhos até ao descambar de toda a ordem. Aparentemente, a paz parece ter sido quebrada quando o médico é

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Título nacional: O Fantástico Senhor Raposo Realização: Wes Anderson

FANTASTIC MR. FOX

Elenco: George Clooney, Meryl Streep, Bill Murray, Jason Schwartzman Ano: 2009

ANTÓNIO ARAÚJO

Na adaptação de O Fantástico Senhor Raposo, Wes Anderson e Noah Baumbach respeitaram o texto original de Roal Dahl ao qual acrescentaram personagens próprias e situações fiéis tanto ao estilo do escritor como do realizador. O senhor Raposo é mais uma variante da mesma personagem que Anderson coloca no centro dos seus filmes, tais como Royal Tenenbaum ou Steve Zissou. É um pai carismático, mas autocentrado, mais preocupado com as suas necessidades do que com as da sua família. A mudança de lar é um retrocesso na sua maturidade pois faz-se rodear de quintas recheadas de tentações, às quais rapidamente cede. Apesar da promessa feita na no início, onde a prisão é literal — as barras da jaula — e metafórica — a gravidez de Felicity —, o senhor Raposo cede aos seus instintos mais básicos, enquanto as relações familiares também são testadas pelo filho Ash, reflexo da frustração por não se sentir à altura do legado do pai.

A sagacidade do humor negro de Dahl encontra em Anderson o vocabulário cinematográfico ideal num stop-motion táctil e de travo artesanal que recria os recursos estilísticos do autor, desta vez com uma notória mudança de tom, onde ficam de fora o trauma e a dor explorados nos filmes anteriores. Anderson explora de forma divertida a tensão entre a responsabilidade e a liberdade, entre as perseguições criativas e a vida doméstica. Em suma, O Fantástico Senhor Raposo é mais uma fábula sobre tensões familiares que agradou tanto a miúdos como a graúdos. No final, a vivência da comunidade foi para sempre condicionada — recheada de comodidades, mas privada de liberdade. Esta, tal como a cauda do senhor Raposo, já há muito que desapareceu, desfeita em pedaços.

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Título nacional: Canino Realização: Yorgos Lanthimos

KYNODONTAS

Elenco: Christos Stergioglou, Michele Valley, Angeliki Papoulia Ano: 2009

SARA GALVÃO

Lembram-se quando ninguém sabia quem era o Yorgos Lanthimos? Nós também não. Canino seria o primeiro filme a marcar aquilo que seria chamado, muito pouco originalmente, como a Estranha Vaga Grega.

quando a audiência se apercebe do que realmente se está a passar — e das terríveis consequências que estão em marcha para se concretizar. Incesto, violência, castigos bizarros, perversões (sexuais?) e um uso minimal da linguagem cinematográfica (Lanthimos joga principalmente com os conceitos de som e silêncio) fizeram de Canino um filme memorável e marcante, capaz de despertar intensas emoções (de raiva, desespero ou paixão), e que gritou originalidade quando todos nos tínhamos esquecidos de que na Grécia também se faz cinema.

Uma comédia negra sobre o que só pode ser descrito como educação em casa levada aos extremos, Canino conta a história de três irmãos, um rapaz e duas raparigas (nunca nos são dados os nomes deles), que vivem fechados numa enorme casa, completamente isolados do mundo exterior através de um complicado e surreal sistema de mentiras criado pelos pais, que vai dar novo sentido a palavras como “auto-estrada” ou “zombie”, até dizer aos filhos que só poderão sair quando lhes cair o dente canino, ou que a mãe está grávida de dois gémeos e um cachorro (mas, que se eles se portarem bem, os gémeos podem esperar).

Lanthimos seguiria carreira com A Lagosta e O Sacrifício de um Cervo Sagrado, e outros realizadores gregos se lhe seguiriam — tais como a genial Athina Rachel Tsangari (Attenberg; Chevalier).

O início, cheio de nonsense, rapidamente dá lugar a algo mais terrível

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Título nacional: Coraline e a Porta Secreta Realização: Henry Selick

CORALINE

Elenco: Dakota Fanning, Teri Hatcher, John Hodgman Ano: 2009

JOSÉ CARLOS MALTEZ

Se no panorama das grandes produtoras norte-americanas que se têm especializado em cinema de animação na última década, uma se tem destacado pela capacidade de inovação temática, essa é a Laika, produtora iniciada por Henry Selick, o autor do conhecido filme O Estranho Mundo de Jack (The Nightmare Before Christmas, 2009) produzido por Tim Burton. Foi com realização do próprio Selick que a Laika lançou a sua primeira longa-metragem, Coraline, baseada no livro homónimo de Neil Gaiman.

que apenas se preocupam com os seus próprios interesses. Entregue a si própria, Coraline vai misturar realidade com fantasia, quando uma misteriosa porta a leva a um mundo espelho do seu, e onde tudo parece magnífico e colorido, se tirarmos o facto de as pessoas terem botões por olhos. Mas apesar de estar num mundo aparentemente perfeito, Coraline vai perceber que corre o sério perigo de perder o contacto com a realidade. Precisará então de lutar para recuperar o seu verdadeiro mundo e pais.

A partir de um universo onírico, ambientes soturnos e temas menos alegres que o que seria de esperar do cânone Disney, Pixar, Dreamworks ou Blue Sky, Selick usa a técnica de stop motion, sobre cenários desenhados, para contar a história de uma família recentemente mudada para uma casa de campo. Nela destaca-se a pequena Coraline, que ressente a mudança, não encontrando empatia nos cinzentos pais

Num cenário gótico, onde não falta uma casa vitoriana no cimo de uma colina, noites de assombrosas tempestades e todo o tipo de animais arrepiantes, Coraline é um irreverente e original (e por vezes terrífico) coming of age, passível de agradar a adultos e de assustar a criançada.

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Título nacional: Distrito 9 Realização: Neill Blomkamp

DISTRICT 9

Elenco: Sharlto Copley, David James, Jason Cope Ano: 2009

PEDRO SOARES

Um dos clichés dos filmes de extraterrestres é que eles invadem sempre os Estados Unidos. Só aqui, Distrito 9 sai logo a ganhar, já que a nave que chega à atmosfera terrestre vai parar, avariada, a Joanesburgo. No seu interior, uma horda de criaturas parecidas com camarões tornam-se refugiados terrestres, ficando alojados num bairro de lata na África do Sul — o Distrito 9.

Sharlto Copley é um burocrata geek que é encarregue de fazer a transferência dos camarões do Distrito 9 para um campo de concentração fora de Joanesburgo. Durante a operação, acaba contaminado por um fluído qualquer que começa a transforma-lo num deles, tipo A Mosca. E, ao ser vítima ele próprio de perseguição e de todas as injustiças apenas por ser diferente, Copley acaba por ficar do lado dos alienígenas. Olá Avatar!

Sempre foi uma tradição antiga da ficção científica pensar a actualidade através de sociedades futuristas, mas Distrito 9 leva a reflexão longe de mais ao erguer uma distopia que mais não é que uma variação do apartheid. No entanto, isto serve igualmente para abordar séculos de história de segregação das mais variadas formas. E como a história é também ela própria cíclica, falar sobre isto é alertar para os perigos de um futuro que pode não ser assim tão distante.

Utilizando as regras da ficção científica, Neill Blomkamp conta uma história numa estrutura narrativa próxima do documentário, recorrendo a found footage e a entrevistas, dando um aspecto híbrido ao filme que acaba por funcionar. Além disso, mantém um equilíbrio saudável entre forma e conteúdo, com a quantidade certa de acção, sem se deslumbrar com o CGI nem com demasiado espalhafato — apesar de o ter.

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O Laรงo Branco, 2009

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A Origem, 2010


2010 BRUNO RAMOS

“Non.” 2010. “Rien de rien.” Uma viagem de oito anos. “Non.“ E recordar o cinema de 2010. “Je ne regrette rien.“ Tanto tempo depois. “Ni le bien qu’on m’a fait.“ É como acordar de um sonho. “Ni le mal, tout ça m'est bien égal!“ Mas um sonho do qual não queremos acordar. “Non, rien de rien.“ Tal foi a magia cinematográfica desse ano. Aliás, tantos foram os encantamentos que o embalo musical de Édith Piaf, em vez de nos transportar para a terra do nunca, acordava-nos precisamente para o mundo real, onde fomos obrigados a reconhecer o facto de Christopher Nolan ter criado uma obra-prima. Iniciar uma análise ao que de melhor se fez no cinema em 2010 e não se começar por falar em A Origem é escolher o lado mau da “Força". E a “Força" foi muita neste ano. Um ano repleto de películas que se superaram e elevaram a sétima arte, escrevendo-a em potência de base 2.

Difícil também, mas não tanto, estamos em crer, é desfazermo-nos dos indivíduos com quem lançamos a maior e mais bem sucedida rede social do planeta. Pode ser trabalhoso. A coisa arranca, o mundo inteiro começa a fazer download, a criar conta e login, o dinheiro jorra de cima a baixo, e é vê-los a correr de um lado para o outro a ameaçar com processos judiciais o pequeno Zuckerberg. Nesse particular, David Fincher não conseguiu criar no espectador o sentimento de pena pelo jovem que deixou Harvard para trás para edificar o Facebook. A termos pena de alguma coisa será do facto de tanto rasgo inovador, empreendedor e, já agora, know how de programação, estar concentrado numa pessoa só. Com A Rede Social, Fincher brinda-nos com uma ode aos visionários que olham para o mundo como ele é e dizem: “Não, isto estava bem era de outra maneira.” E o mundo cinge-se a essa maneira. Como quem diz: “Pedimos desculpa por não ter pensado nisto antes.” O mundo começa a ter dificuldade em lembrar-se de uma era pré-Facebook. E a película de Fincher, suportada na pena mestra de Aaron Sorkin, ajuda-nos a compreender melhor esta era de transição, onde a própria maneira de interagirmos se altera. O que permanece intacto são os critérios para avaliação de um grande filme, e A Rede Social é tudo isso e ainda mais.

Ao sétimo filme, Nolan mergulhou nos meandros da mente humana, inquiriu a quanto estava o m2 do inconsciente, dividiu os sonhos em assoalhadas e arrendou o espaço para todo um elenco brilhar ao som da melodia intemporal de Piaf. O resultado foi uma bolha especulativa que chegou a alegar estarmos na presença do melhor filme de sempre. O que também não é verdade. Mas que Nolan deixou a semente dessa ideia ser possível, deixou. E, como ficámos a saber, essa é a tarefa mais difícil de levar a cabo.

Este ano de 2010 foi igualmente profícuo em excelentes interpretações individuais. Tivemos de tudo um pouco. Desde o surgimento de novos 43


O Discurso do Rei, 2010 rebentos cheios de potencial como Jennifer Lawrence (Despojos de Inverno) ou Hailee Steinfeld (Indomável), passando pela confirmação de velhas certezas que nunca haviam brilhado tão alto como James Franco (127 Horas) ou Christian Bale e Melissa Leo (The Fighter – O Último Round), culminando nas habituais tour de force que anualmente despontam para carregar títulos inteiros às costas, como foram o caso de Michelle Williams (Blue Valentine – Só Tu e Eu) ou Javier Bardem (Biutiful).

terreiro puxar a brasa à sua sardinha, mas foram as contas salomónicas de Aronofsky que serenaram os ânimos. O filme tem 139 cenas de dança; 111 são Portman sem qualquer retoque. 80% das cenas. 100% do mérito. Nenhum escrutínio a este ano poderá igualmente ficar completo sem um piscar de olhos a O Discurso do Rei. Um exercício narrativo um tanto ou quanto convencional, que aproxima a obra de Tom Hopper de outras tantas que procuraram o balanço perfeito entre o registo ficcional e documentarista, e que se refugia em meia dúzia de lugares-comuns difíceis de evitar quando o que temos à nossa frente é uma figura de relevo histórico ímpar perante um dos mais marcantes momentos do século XX. Acresce a tudo isto que esta pessoa, a fim de cumprir o seu desígnio, só se pode fazer valer da sua voz e esta, como dizer?, não funciona do mesmo modo que nos restantes comuns mortais. E é neste ponto que o filme de Tom Hopper nos toca a todos. No abate de diferenças ao mesmo tempo que as exponencia, evidenciando como somos todos iguais apesar de não termos nada a ver com a pessoa do lado. Colin Firth levou para casa, e bem, o Óscar de Melhor Ator por esta sua real interpretação de George VI.

Porém, ninguém captou tanto as atenções dos holofotes como Natalie Portman. A sua Nina Sayers em Cisne Negro cativou, comoveu, perturbou e remexeu com as mais profundas entranhas do nosso ser. Um triunfo em toda a linha para a atriz que se dedicou de corpo e alma a este papel 10 anos depois de Darren Aronofsky lhe ter dito que um filme sobre ballet era capaz de ser boa ideia. Portman iniciou os treinos 6 meses antes do início das filmagens e a maior parte das vezes que a vemos dançar no grande ecrã é mesmo a atriz que estamos a observar. Ainda assim, para algumas sequências, foi impossível não recorrer a duplos, nomeadamente à bailarina Sarah Lane. A polémica sobre quem é que estávamos verdadeiramente a ver nestes movimentos corporais majestosos de danças em pleno voo estalou quando o buzz em torno do filme o transformou num dos mais discutidos do ano. Vários vieram a

Este foi ainda o ano em que o terceiro título da saga Toy Story chegou às salas. Título esse que padece de uma incrível infelicidade. Se esta trilogia 44


fossem 3 irmãos, os dois primeiros tinham estudado e crescido para ser, respetivamente, vencedores do Nobel da Física e o primeiro astronauta em Marte. Ao terceiro filme, o que poderíamos esperar em termos de superação? Muito. Podíamos esperar muito. E a verdade é que a obra de Lee Unkrich acabou por se revelar como o filho mais novo que aprende a jogar à bola para ganhar 7 bolas de ouro. Conquistou o mundo à sua maneira e elevou a saga a uma das melhores da história da sétima arte. Não merecem ser notas de rodapé, mas 2010 foi ainda o ano em que vimos, entre outros, Os Miúdos Estão Bem, Um Ano Mais, Harry Potter e Os Talismãs da Morte: Parte 1; Como Treinares o Teu Dragão, Inside Job, Num Mundo Melhor, Kick-Ass: O Novo Super-Herói, Shutter Island, Incendies – A Mulher que Canta, e Scott Pilgrim Contra o Mundo. Não que esta peça revisionista ambicione atribuir o prémio de melhor ano cinematográfico da última década. Contudo, se a tanto almejássemos, estamos em crer que haveria matéria probatória suficiente para fazer de 2010 um sério candidato com legítimas aspirações. Mas só se o peão não parar e cair. Kick-Ass: O Novo Super-Herói, 2010

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2010


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Título nacional: Scott Pilgrim Contra o Mundo Realização: Edgar Wright

SCOTT PILGRIM vs. THE WORLD

Elenco: Michael Cera, Mary Elizabeth Winstead, Kieran Culkin, Anna Kendrick Ano: 2010

ANTÓNIO ARAÚJO

Scott Pilgrim nasceu nas páginas da banda desenhada de Bryan Lee O'Malley, que vendeu os direitos de adaptação à Universal Pictures, a qual convidou Edgar Wright para realizar e Michael Bacall para escrever o argumento. Os dois colaboraram no guião, com o envolvimento activo de O'Malley, incorporando na narrativa elementos dos cinco primeiros livros. O sexto (e último) volume da série ainda não estava completo e, apesar de O 'Malley contribuir com ideias e sugestões para o desfecho no grande ecrã, este foi alterado de acordo com o final da banda desenhada, entretanto editada, depois das audiências de teste reagirem negativamente à conclusão original.

computador e a energia da música de bandas de garagem, utilizando ecrã fraccionado, onomatopeias visuais para representar sons, corações flutuantes quando duas personagens se beijam, e até a lógica das várias vidas dos jogos de computador transposta para a realidade física do filme. Os gags visuais são constantes, os diálogos acelerados e, ocasionalmente, hilariantes. Scott Pilgrim aparenta ser um exercício com mais estilo do que conteúdo, mas o fogo-de-artifício visual complementa uma história de descoberta e crescimento pessoal. Tanto Scott como Ramona trazem bagagem que os impede de avançar sem constrangimentos. A nacionalidade americana de Ramona é sinónimo de exotismo e a personagem, a princípio, parece ser mais um exemplo do conceito de “manic pixie dream girl”, elusiva e imprevisível. Mas o seu comportamento, tal como a falta de confiança de Scott, são fruto dos demónios com quem este tem de lutar, literalmente, arriscando a vida pelo caminho. Quando Knives, a ex-namorada desprezada por Scott, também combate Ramona, este percebe o erro das suas acções, e é a capacidade de admitir as suas falhas, de contar a verdade e mostrar arrependimento que o permite derrotar o derradeiro adversário pela força do seu carácter, completando assim o seu arco narrativo mais adulto do que o tinha começado. Infelizmente, Scott Pilgrim Contra o Mundo foi um fracasso de bilheteira, mas esta é uma imperdível e hilariante experiência visual e sonora que enriquece com repetidas visualizações. A sua exuberância é o reflexo de um realizador jovem a filmar tanto com a cabeça como com o coração e, embora possa parecer excessiva, dificilmente encontrará melhor material para funcionar a tão larga escala. Mais cedo ou mais tarde, o cinema de Edgar Wrigth irá inevitavelmente ficar mais sóbrio. Resta saber se, na altura, não teremos saudades da loucura dos tempos em que nos ofereceu uma banda de garagem canadiana que cantava para nos fazer pensar sobre a morte e a infelicidade e cenas...

Scott Pilgrim, interpretado por Michael Cera, é um jovem adulto despreocupado e autocentrado que, depois de conhecer Ramona Flowers (Mary Elizabeth Winstead), a mulher dos seus sonhos, tem de se confrontar literalmente com as anteriores relações amorosas dela. Pilgrim não inspira propriamente simpatia, mas o charme desajeitado do actor evita a alienação do espectador, bem como a dinâmica do seu grupo de amigos que representa uma boa amostra do espírito indie alternativo e da moderna cultura popular. O filme apresenta Toronto como um bastião de juventude moderna, inteligente, cínica e sarcástica e, apropriadamente, a banda sonora original conta com nomes de peso da cena alternativa como Beck, Broken Social Scene e Metric, que contribuíram com composições para o filme. Apesar das páginas monocromáticas da banda desenhada de O'Malley, Scott Pilgrim Contra o Mundo é uma experiência alucinante de cor e som. O ritmo imposto por Wright oferece grande dinamismo às cenas, e a sua edição comprime tempo e espaço. Num contacto inicial pode ser desorientador, mas o resultado é uma narrativa num movimento de constante propulsão para a frente. Wright mescla o espírito da banda desenhada, o estilo da animação japonesa, a lógica dos jogos de 49


Título nacional: Toy Story 3 Realização: Lee Unkrich

TOY STORY 3

Elenco: (vozes de) Tom Hanks, Tim Allen, Joan Cusack Ano: 2010

FILIPE LOPES

Se já é difícil encontrarmos uma trilogia constituída por três obras-primas na História do Cinema, a trilogia Toy Story é mesmo a única que existe no domínio do cinema de animação. Isto significa que o tomo 3, estreado em 2010, é uma obra genial que se junta a outras duas, uma de 1995 e outra de 1999 (está ainda prevista uma quarta parte para 2019, que aguardamos ansiosamente).

que estão mortinhas para lhes fazer diabruras com os seus dedinhos pegajosos. Resta-lhes ter a esperança de não terem sido desprezados pelo dono original e empreender uma fuga épica daquela prisão cheia de perigos. O regresso do cowboy Woody, do astronauta Buzz, da cowgirl Jessie e de todos os bonecos da aventura ou das aventuras anteriores é feito com a mesma inteligência, o mesmo sentido estético e o mesmo bom gosto na forma de contar a história. Já sem o lendário John Lasseter na realização, a mudança também não é radical, já que o mesmo se mantém na equipa enquanto produtor e co-autor da história e a realização foi entregue a Lee Unkrich, que já tinha feito a montagem e co-realizado Toy Story 2 – Em Busca de Woody. Em equipa que ganha não se mexe (muito), e este é mais um exemplo. Definitivamente a não perder!

Para quem nunca viu nenhum dos filmes, o mínimo que podemos dizer é que não sabem o que perdem. As personagens são — quase todas — brinquedos que acompanharam Andy durante todo o seu período de crescimento e agora se vêem a braços com a ida dele para a universidade. Só que, em vez de rumarem para o sótão, onde ficariam guardados, os brinquedos são entregues, por engano, numa creche cheia de crianças pequenas e ainda por educar,

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Título nacional: Cisne Negro Realização: Darren Aronofsky

BLACK SWAN

Elenco: Natalie Portman, Vincent Cassel, Mila Kunis Ano: 2010

ANÍBAL SANTIAGO

Bailados, obsessões, inseguranças, egos incontroláveis e desejos reprimidos preenchem parte do enredo de Cisne Negro, uma obra delirante e intensa, que vagueia pelas margens do thriller psicológico, do estudo de personagem e do body horror. É filme pontuado pelas dualidades, sejam estas o Cisne Branco e o Negro, a repressão e a libertação, a glória e a tragédia, a vida e a morte, o sonho e a realidade, a loucura e a sanidade, a confiança e a desconfiança, com muitas destas dicotomias a tocarem umas nas outras e a aparecerem bem inculcadas no interior de Nina, uma bailarina que tem no papel de protagonista de uma nova adaptação de Swan Lake o grande desafio da sua vida.

A confusão que permeia a mente de Nina é muitas das vezes sublinhada pela câmara, com esta a movimentar-se com regularidade, pronta a captar as emoções e a potenciar a faceta desconcertante de alguns episódios.

Aronofsky parte desta personagem para se embrenhar pelas rivalidades, as dificuldades, as rotinas e o rigor que envolve o mundo do ballet, enquanto permite que Portman componha uma protagonista dotada de espessura.

O realizador cria um filme inquietante, perturbador e marcante, um pesadelo sedutor e extasiante, que nos transporta para o interior da mente instável de uma bailarina que anseia alcançar a perfeição e tarda em soltar-se dos seus grilhões interiores.

Diga-se que o design de som também contribui para exacerbar esse desassossego, um pouco à imagem do trabalho efectuado na decoração dos cenários. Observe-se a miríade de espelhos que se encontra pelos vários espaços, algo que acentua a já mencionada duplicidade que permeia a alma daquela que é uma das obras maiores de Aronofsky.

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Título nacional: Shutter Island Realização: Martin Scorsese

SHUTTER ISLAND

Elenco: Leonardo DiCaprio, Mark Ruffalo, Ben Kingsley Ano: 2010

JOÃO PAULO COSTA

Para a sua quarta colaboração consecutiva, Scorsese e DiCaprio debruçaram-se sobre um género pouco presente na filmografia de ambos, o terror, de forma a continuarem a explorar caminhos que vinham trilhando desde o seu primeiro trabalho em conjunto, nomeadamente a questão da identidade. Baseado no romance de Dennis Lehane, Shutter Island conta-nos a história de dois detectives à procura de uma mulher desaparecida num hospício de alta segurança situado numa ilha isolada, enquanto uma forte tempestade paira sobre o local. Com uma acção que decorre em 1954, em plena paranóia da Guerra Fria, a narrativa nunca nos oferece todas as peças de uma só vez, sabendo o espectador desde logo que algo não é exactamente aquilo que parece ser, embora não consiga apontar o dedo com precisão àquilo que não está certo.

o oposto daquilo que faz o género sobreviver: a paciência em deixar durar cada plano até ao limite dos nervos do espectador. Ainda assim, o realizador aproveita os seus pontos fortes, como fizera também no remake de O Cabo do Medo (1991), o seu outro título de género, e consegue construir um desconforto visual que captura na perfeição o estado de espírito do seu protagonista perturbado a quem DiCaprio se entrega com a intensidade a que nos habituou. Filme de muitos fantasmas psicológicos (reforçados pelos flashbacks, cujo imaginário é repleto de horror e surrealismo), Shutter Island abraça por completo o seu lado sombrio e caminha rumo a um destino inevitavelmente desolador, fazendo-o sem qualquer espécie de concessões.

O género do terror/suspense à partida parece não casar muito bem com Martin Scorsese, cujo estilo muitas vezes frenético é precisamente

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Título nacional: Cópia Certificada Realização: Abbas Kiarostami

COPIE CONFORME

Elenco: Juliette Binoche, William Shimell Ano: 2010

JOSÉ CARLOS MALTEZ

O iraniano Abbas Kiarostami terminou a sua carreira com um par de filmes rodados no estrangeiro. Um deles foi Cópia Certificada, filmado em Itália, o maior museu do mundo ao ar livre — como diz um dos seus personagens —, praticamente com apenas dois actores, Juliette Binoche e William Shimell, que num diálogo exigente e emocional discutem a originalidade e a transformação que o tempo exerce sobre as pessoas e casais.

em destaque por contraste com “cópia”). É que o par inicia diálogos académicos com a insegurança de dois desconhecidos, passa a um momento em que finge ser um casal quando alguém os toma por um, e termina discutindo como um casal em crise, numa relação agastada por muitas frustrações e desencontros. Deixando de lado o desconforto dessa transformação narrativamente inexplicável (mas afinal, não é de transformações que falamos?), ficam os diálogos intensos, avaliações dolorosas, pontos e contrapontos que vão do filosófico ao prático, que nos dão a ver duas pessoas que não parecem encaixar, fosse qual fosse o ponto de partida. Com o título, Kiarostami interroga-nos sobre o papel da originalidade. Somos todos cópias conformadas a repetir erros e caminhos que levam à tragédia pessoal?

O título francês, Copie Conforme, traz uma ambiguidade propositada (por exemplo em italiano — uma das línguas do filme —, coppie significa casais, e poderemos pensar em casais conformados), partindo do suposto livro escrito pelo personagem de Shimell, que atrai a atenção da livreira interpretada por Binoche. O que se segue é um passeio por Itália (com ecos de Viagem a Itália, de Rossellini) que coloca o par em confronto. E é aqui que o filme ganha a sua originalidade (palavra

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Título nacional: A Origem Realização: Christopher Nolan

INCEPTION

Elenco: Leonardo DiCaprio, Joseph Gordon-Levitt, Ellen Page, Tom Hardy, Marion Cotillard Ano: 2010

JOSÉ CARLOS MALTEZ

No século IV a. C., perguntava-se o sábio taoista Chuang-Tzu, “sou um homem que sonhou ser uma borboleta ou uma borboleta que sonha ser um homem”. É essa a base de partida de A Origem, a sétima longa-metragem de Christopher Nolan, um autor que, motivado pela ideia de ambiguidades de percepção e formas de sentirmos o tempo, tece uma trama onde o personagem principal é o sonho. Não num sentido poético, mas o sonho literal, como actividade intelectual de que o cérebro humano é capaz durante o período de sono.

extrair alguma informação, em contextos simbólicos. Difícil de entender? À boa maneira da megalomania nolaniana, há só que complicar, quando em vez de extrair uma informação se tenta colocar uma ideia (a tal inception) na psique da vítima, numa cadeia de sonhos dentro de sonhos, que dilua a separação entre sonho e realidade, algo que no passado levou o personagem de DiCaprio a perder esposa (Marion Cotillard), lutando agora para recuperar a família, a realidade, e alguma sanidade. Se é verdade que Nolan exagera na extravagância das sequências de acção, clímaces repetidos e justificação do orçamento, também o é que o resultado é visualmente deslumbrante e conceptualmente hipnótico, conseguindo que o último fotograma nos faça duvidar se o que vimos não foi afinal um sonho, onde a nossa incapacidade de discernir iguala a tragédia do protagonista.

Com Leonardo DiCaprio como cicerone, somos guiados à realidade em que é possível interferir nos sonhos de outrem, conduzindo-os, povoando-os com os cenários que entendermos e partilhando-os com os personagens que viajam connosco, para assim aceder a camadas recônditas do subconsciente de uma vítima (Cillian Murphy), para dele

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Título nacional: Submarino Realização: Richard Ayoade

SUBMARINE

Elenco: Craig Roberts, Sally Hawkins, Paddy Considine, Noah Taylor Ano: 2010

ANTÓNIO ARAÚJO

Celebrizado no Reino Unido pela sua participação na comédia televisiva A Malta das T. I. (The IT Crowd, 2006-2013), o actor Richard Ayoade estreouse na realização em 2010 com Submarino, uma adaptação do romance do mesmo nome de Joe Dunthorne. Sendo também responsável pelo argumento, Ayoade revelou-se imediatamente como uma voz autoral interessado em algo mais que meia-dúzia de gargalhadas fáceis. Se é verdade que é incontornável falar de Wes Anderson perante Submarino, é justo dizer que o peculiar realizador norte-americano serve como uma inspiração e ponto de partida para o cinema do britânico, e não como a bitola por onde este construiu a sua primeira obra. Esta é a história sobre as dores de crescimento de Oliver Tate (Craig Roberts), um adolescente sombrio e depressivo — como tantos adolescentes —, mas também auto-centrado e envolvido em demasia consigo próprio — como todos os adolescentes.

Com um elenco de secundários de luxo — Sally Hawkins e Noah Taylor como Lloyd e Jill, os pais de Oliver com o casamento tremido, e Paddy Considine como Graham, a antiga paixão da mãe que reaparece como um guru new age — e uma banda sonora recheada de baladas compostas e interpretadas por Alex Turner, o líder da banda Arctic Monkeys, Submarino contraria o retrato habitual da adolescência apresentando Oliver como uma personagem verosímil nas suas ansiedades, mas também nas suas fraquezas e momentos de imaturidade. Por entre a incapacidade em comunicar com o filho, Lloyd e Jill são o testamento vivo de que o passado não cristaliza e de como a intensidade dos sentimentos nos anos formativos não desaparecem de verdade; apenas são adormecidos e fechados a sete chaves na prisão da alma.

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Título nacional: O Escritor Fantasma Realização: Roman Polanski

THE GHOST WRITER

Elenco: Ewan Mcgregor, Pierce Brosnan, Olivia Williams Ano: 2010

PEDRO SOARES

A vida de Roman Polanski tem imitado muitas vezes a sua obra, enquanto que em outras tantas é a sua obra que tem imitado a sua vida. Prova a), O Pianista, biografia do pianista judeu Wladyslaw Szpilman durante o Holocausto, ecoa a sua infância em que teve de fugir de um campo de concentração na Polónia; prova b), em O Escritor Fantasma a figura do escritor fantasma a viver na sombra do seu biografado faz uma rima muda com o período em que passou em prisão domiciliária, na Suíça, à conta da acusação de violação que o persegue há décadas.

O Escritor Fantasma é um filme de mistério muito “hitchcokiano”, com uma trama política paralela, que cria uma atmosfera bastante paranóica, principalmente graças ao empregado que está sempre a varrer o alpendre, apesar de parecer que estamos na praia do Guincho com tanto vento. E McGregor chega quase a perder o juízo quando começa a tomar o lugar do tal primeiro-ministro suicida. Mas Polanski lembra-se que já fizera esse filme antes (olá, O Inquilino) e rapidamente volta ao filme de mistério. O Escritor Fantasma é um Polanski vintage, de bom gosto e pulso forte, ele que se sente aqui nas suas sete quintas. E é, de certa forma, um herdeiro do neo-noir Chinatown.

Ewan McGregor é o escritor fantasma do título, contratado para escrever a biografia de um ex-primeiro-ministro britânico, Pierce Brosnan, depois do seu antecessor ter cometido um suicídio muito suspeito. E de biógrafo a jornalista de investigação vai um pulinho, assim que começa a vir ao de cima informação comprometedora.

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Título nacional: A Rede Social Realização: David Fincher

THE SOCIAL NETWORK

Elenco: Jesse Eisenberg, Andrew Garfield, Rooney Mara, Justin Timberlake Ano: 2010

ANTÓNIO ARAÚJO

Quando a produção de A Rede Social foi anunciada, a notícia foi recebida com iguais doses de cepticismo e cinismo. Qual o interesse de um filme sobre o Facebook? A adaptação do livro Milionários Acidentais: A Fundação do Facebook, de Ben Mezrich, parecia um empreendimento prematuro, dada a história recente, não só do seu tema como do próprio conceito de redes sociais, para além de o projecto ter a aura de um oportunismo parco de relevância artística.

A Rede Social serviu como um comentário praticamente instantâneo à História enquanto a própria ainda se escrevia, com Jesse Eisenberg a encarnar Mark Zuckerberg, o criador da rede social que veio mudar a forma como comunicamos no mundo virtual (para o bem e para o mal), e a revelação Andrew Garfield a interpretar Eduardo Saverin, o amigo e sócio que entrou em rota de colisão com Mark e que, por isso, pagou o preço ditado pela dura realidade do jogo capitalista.

Porém, os nomes associados ao filme deveriam ter denunciado a relevância desta história de amizade, ambição, obsessão e traição. O verborreico Aaron Sorkin seria responsável por um argumento a ser realizado por David Fincher, um autor norte-americano dedicado a explorar o lado mais obscuro da psique humana, sempre com um olhar crítico e afiado sobre a cultura do seu país.

Este é um filme sobre o preço do sucesso e também sobre o outro lado dessa mesma moeda. E, acima de tudo, é uma reflexão a quente sobre a degradação da comunicação humana enquanto, paradoxalmente, mais ferramentas vão sendo criadas prometendo o seu estreitamento.

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Título nacional: Nostalgia da Luz Realização: Patricio Guzmán

NOSTALGIA DE LA LUZ

Elenco: Gaspar Galaz, Lautaro Núñez, Luís Henríquez Ano: 2010

PEDRO MIGUEL FERNANDES

Desde a célebre trilogia A Batalha do Chile que o olhar de Patricio Guzmán se tem debruçado sobre a ditadura de Augusto Pinochet. Em Nostalgia da Luz o realizador parte de uma recordação pessoal, de quando em pequeno sonhava com as estrelas num país em mudança.

afastado. Sociedade essa que, como refere Guzmán, tem o hábito de não conhecer a história recente. Nesse sentido é curiosa a comparação que o realizador faz sobre o facto de se saber tanto sobre o universo longínquo naquele local, mas ao mesmo tempo pouco ou nada se sabe sobre o que se passou com as vítimas de Pinochet aí despejadas ou as comunidades mineiras no século XIX, na sua maioria compostas por índios. Com Nostalgia da Luz Patricio Guzmán continua o seu trabalho para não deixar cair no esquecimento o que se passou no seu país, num excelente documentário sobre a memória e como é importante não esquecer. Ou, como termina, «os que têm memória conseguem viver nos frágeis momentos do presente. Os que não têm memória já deixaram de viver».

Daí segue para o deserto de Atacama, um lugar cujas características inóspitas permitiram aí a instalação de alguns dos mais poderosos telescópios do mundo, para uma fortíssima reflexão sobre a memória num país que ainda não cicatrizou as feridas abertas por um dos regimes mais sanguinários da América do Sul na segunda metade do século XX, colocando no mesmo plano os astrónomos que investigam as origens do universo, um arqueólogo que trabalha no deserto de Atacama e um grupo de mulheres que procura no deserto os restos mortais das vítimas de Pinochet. Em suma, uma reflexão sobre o impacto que a ditadura continua a ter na sociedade chilena, décadas depois de Pinochet ter sido

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Submarino, 2010

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A Ă rvore da Vida, 2011


2011 PEDRO MIGUEL FERNANDES

persona non grata e expulsou um dos realizadores a concurso — Lars von Trier — autor de outro dos filmes do ano, Melancolia) e a despedida de um colosso do cinema mundial, Béla Tarr que anunciou O Cavalo de Turim como o seu último filme. No campo dos blockbusters, despedimonos de Harry Potter, mas tivemos direito a novos capítulos de séries consolidadas (o quinto filme Velocidade Furiosa e o quarto Piratas das Caraíbas) ou em vias de o ser (Thor e Capitão América a entrarem no universo cinematográfico da Marvel) e surgiram os primeiros episódios de novos franchises, ambos reboots: X-Men: o Início e Planeta dos Macacos: A Origem.

APONTAMENTOS DISPERSOS PARA UM POSSÍVEL RETRATO DE 2011 É sempre curioso o exercício de escrever sobre um ano cinematográfico. Tanto mais quando não se trata de um ano recente, como usualmente se faz no final do ano, em jeito de balanço, mas um ano de certa forma longínquo. Será sempre um olhar pessoal, resultado de um regresso aos arquivos e assente em memórias dispersas, em que é impossível abarcar tudo e, sobretudo, agradar a gregos e troianos. De 2011 para cá muito aconteceu, não fossem estes tempos que avançam à velocidade da luz. Ou, mais concretamente, à velocidade de um post no Facebook. Basta lembrarmo-nos que nesse ano havia inúmeros blogues de cinema e hoje em dia poucos sobrevivem, um punhado de bravos resistentes a que se juntaram alguns projectos interessantes, nomeadamente sob o formato de podcasts. Foi também um ano em que as bancas chegaram a ter nos escaparates várias revistas de cinema escritas em português. Todas ficaram pelo caminho. O grande ecrã ficou marcado por títulos que dividiram (A Árvore da Vida no topo dessas divisões extremas), um filme que não era um filme (ou como Jafar Panahi conseguiu enganar as autoridades iranianas que o tinham impedido de filmar ao fazer um filme extraordinário a que deu o título de Isto Não é um Filme, curiosamente apresentado numa edição de Cannes que considerou

CANNES E A FORÇA DOS FESTIVAIS A edição de 2011 de Cannes foi mais uma prova de que é nos festivais que se encontra, cada vez mais, o que de melhor se faz em cinema. Referimos Cannes, e não outro qualquer festival, por ser um dos principais certames e porque esta foi uma edição cheia de casos, por onde passaram nomes consagrados e nomes a ter em conta. O grande acontecimento foi A Árvore da Vida, filme do até então raro Terrence Malick que dividiu tudo e todos. Obra-prima absoluta para alguns, incompreensível para outros, ninguém passou ao lado do filme de Malick, que acabou por levar para casa a Palma de Ouro num ano em que passaram pelo festival francês 61


Killer Joe, 2011 alguns dos filmes que figurariam nas inúmeras listas de melhores filmes de 2011: Era Uma Vez na Anatólia (a obra-prima de Nuri Bilge Ceylan), Drive - Risco Duplo (exercício de estilo muito cheio de si de Nicolas Winding Refn), Habemus Papam (Nanni Moretti a adivinhar o futuro num filme sobre um papa que não o quer ser, numa extraordinária interpretação do veterano Michel Piccoli), Melancolia (talvez um dos melhores filmes de Lars von Trier, que acabaria expulso do festival devido a polémicas declarações), O Artista (homenagem ao cinema mudo que iria conquistar os Óscares nesse ano), Temos de Falar Sobre Kevin (um filme de terror claustrofóbico sob a forma de drama familiar). Por lá passaram também nomes consagrados com filmes onde demonstraram, em maior ou menor grau, a sua maestria (Pedro Almodóvar com A Pele Onde Eu Vivo; os irmãos Dardenne com O Rapaz da Bicicleta; Aki Kaurismaki com Le Havre; Gus van Sant com Inquietos; Woody Allen com Meia-Noite em Paris; e Jafar Panahi com o já citado Isto Não é um Filme, assinado a meias com Mojtaba Mirtahmasb, que foi outro dos acontecimentos do ano do festival, com o filme a chegar dentro de um bolo, depois de ter saído do Irão clandestinamente) e novos cineastas que vale a pena seguir, como Nadine Labaki, Sean Durkin e Joachim Trier.

NOVOS NOMES E UM TOQUE DOS MOVIE BRATS No ano em que J.J. Abrams realizou um belo filme dedicado aos anos 1980 e a quem viveu a adolescência nesses anos (Super 8), foi curioso notar que a geração dos movie brats ainda tinha algo a dar. Em 2011, pudemos ver o último filme de Coppola (o praticamente invisível Twixt), um excelente filme de Friedkin (Killer Joe, com uma surpreendente interpretação de Matthew McConaughey, incompreensivelmente sem direito a estreia comercial por cá) e quatro novos filmes (dois de cada) de Spielberg (As Aventuras de Tintim e Cavalo de Guerra) e Scorsese (George Harrison: Living in the Material World e Hugo). Foi também um ano interessante para novos cineastas: o sueco Tomas Alfredson assinou uma brilhante adaptação de A Toupeira, a partir de John Le Carré, J.C. Chandor filmou um olhar sobre a crise da banca no muito recomendável Margin Call - O Dia Antes do Fim e Angelina Jolie estreou-se nas lides da realização com o interessante Na Terra de Sangue e Mel. Nos cineastas já com algumas provas dadas, destaque para o trabalho de Steve McQueen em Vergonha (o murro no estômago do ano), Jeff Nichols com Procurem Abrigo, Alexander Payne com Os Descendentes, George Clooney e o olhar sobre os meandros da política norte-americana em Os Idos de Março (depois disso, o trabalho do ator 62


como realizador eclipsou-se). Destaque ainda para o reconhecimento internacional do iraniano Asghar Farhadi, que com A Separação provou ser um nome a ter em conta. O ADEUS DE TARR Não podia terminar este texto sem referir outro acontecimento marcante de 2011: o anúncio de Béla Tarr de que iria deixar de filmar. Com O Cavalo de Turim o realizador húngaro pôs fim a uma das mais singulares obras das últimas décadas. Dono de um cinema em vias de extinção, que exige tempo e paciência ao espectador (o que nos dias de hoje talvez seja pedir demais), o seu último e mais desesperado filme só podia terminar como acaba: apaga-se a luz, ponto final na obra de um homem zangado e cansado por se ter apercebido que já nada mais tem para mostrar no grande ecrã. Corajoso, apesar de cansado, Tarr optou então por legar os seus conhecimentos aos mais jovens, criando uma escola por onde passaram alunos de todo o mundo, um espaço onde o próprio realizador e cineastas convidados transmitiram os seus conhecimentos a novas gerações de cineastas. Neste momento a escola de Tarr está encerrada, por falta de apoio, mas o esforço do húngaro é incansável para tentar reconstruir o seu sonho. Perdemos um realizador genial, mas ganhámos um verdadeiro mestre.

A Separação, 2011

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2011


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Título nacional: Melancolia Realização: Lars Von Trier

MELANCHOLIA

Elenco: Kirsten Dunst, Charlotte Gainsbourg, Kiefer Sutherland Ano: 2011

SARA GALVÃO

Naquele que é talvez um dos seus filmes mais acessíveis, Lars Von Trier conta em Melancolia a história de duas irmãs, Justine (Kirsten Dunst) e Claire (Charlotte Gainsbourg), cuja relação se deteriora entre o casamento da primeira e o Apocalipse. Como segundo volume da chamada “Trilogia da Depressão” (começada com Anticristo e fechada com Ninfomaníaca vols. 1 e 2), Melancolia é mais um estudo humanista do que um filme-desastre, com um ritmo lento, cinematografia que ainda tem algo de Dogma, mas chama mais aos grandes mestres renascentistas e pré-rafaelitas, e uma performance incrível de Dunst.

Apesar de Trier não gostar muito dele (acha-o demasiado bonito), Melancolia é talvez um dos seus melhores filmes, na medida em que não só retrata fielmente o estado depressivo, e como ele parece aos outros visto de fora, mas também nos dá a possibilidade de ver como é o mundo através do olhar de alguém sob depressão. Justine, extremamente criativa, vê que tudo à sua volta é desprovido de sentido. O casamento, a recepção, até a sua própria família, nada mais são do que ficções inúteis. A depressão dá-lhe o conhecimento absoluto (daí a cena onde ela adivinha, casualmente, o número de feijões dentro da jarra), e por isso ela sente-se atraída pela doença. Não há como negar que as cenas onde Claire encontra Justine a banhar-se, nua, na luz do planeta fatal, são dotadas de uma beleza extrema — e os momentos finais, quanto Melancolia destrói a Terra (novamente, com música de Wagner em fundo, e onde finalmente Justine aprende o valor dos rituais simbólicos como único modo de lidar com a morte inexorável), o fim de tudo o quanto conhecemos dificilmente poderia ser mais belo.

Escrito sob a influência de álcool e drogas, Melancolia é, infelizmente, mais conhecido por causa daquele desaire em Cannes do que pelo seu valor próprio. Um dos filmes favoritos do filósofo Slavok Zizek, Melancolia está dividido em duas partes, cada uma com o nome de uma das irmãs. Depois de um prólogo em câmara lenta que nos conta toda a história que estamos prestes a presenciar de maneira bastante simbólica — com Tristão e Isolda de Wagner de fundo —, “Justine” começa com o dia de casamento da mesma, com ela (aparentemente feliz) e o seu garboso noivo numa limusine que fica presa nas más estradas de acesso à majestosa casa de campo de Claire e do marido, onde ocorre a recepção. Mas à medida que o dia passa, Justine começa a ficar mais e mais melancólica, isolando-se da sua festa, evitando o marido, e mesmo traindo-o num assomo no campo de golfe. Rodeada de rituais vazios, Justine não consegue obrigar-se a ser feliz, apesar de todos os esforços (superficiais) das pessoas à sua volta. A segunda parte vê Justine, já divorciada e quase catatónica, a refugiar-se na casa de Claire, enquanto o marido desta (Kiefer Sutherland) se entusiasma com a passagem próxima do planeta Melancolia. À medida que o planeta se aproxima da terra, Justine ganha uma nova, estranha energia, enquanto Claire entra em paranóia com a possibilidade de uma colisão directa.

Misturando realidade e surrealidade (o cavalo que se recusa a atravessar a ponte, como se o mundo fora da mansão não existisse, o buraco 19, Justine que assume uma sabedoria quase divina), Melancolia brinca com a progressão do tempo e a criação de tensão. Ao permanecer uns segundos extra na cara de Claire antes de nos revelar o que tanto a assusta, ao alternar o grande plano com o estranhamente púdico plano geral, Trier manipula as emoções da sua audiência, colocando-a à beira da cadeira, e fazendo-a atingir o Nirvana quando o final (redentor) explode o ecrã e o Mundo ao som de Wagner. Uma espécie de redenção num mundo de Famílias Infelizes, Melancolia é um Trier mais operático do que o costume, mas ainda com o murro no estômago a que o dinamarquês nos habituou.

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Título nacional: Vergonha Realização: Steve McQueen

SHAME

Elenco: Michael Fassbender, Carey Mulligan, James Badge Dale Ano: 2011

JOÃO PAULO COSTA

Sem rodeios, podemos dizer que a primeira sequência de Vergonha, que se prolonga por largos minutos e recorre ao mínimo de diálogos, é uma das mais fortes expressões de puro cinema dos nossos dias. De uma assentada, percebemos que o sexo domina totalmente a vida de Brandon (Fassbender), seja ao contratar prostitutas para o seu apartamento, seja a seduzir estranhas no metro de Nova Iorque. Michael Fasbender, que já brilhara a grande altura em Fome (2008), confirmava todo o seu talento diante das câmaras sem praticamente ter de abrir a boca, comunicando com o seu rosto.

planos prolongarem-se no tempo de forma a transportar o espectador para o estado mental das personagens, seja acompanhando-as num longo travelling enquanto estas correm, seja à distância enquanto conversam num restaurante ou bem de perto durante a interpretação de uma versão sentida de New York, New York. Esta última referência remete para uma cena em que Carey Mulligan, como a irmã que vem desestabilizar a vida de Brandon, mostra que está perfeitamente à altura do seu co-protagonista, partilhando com ele uma dor interior que nunca é totalmente explicada, mas absolutamente palpável.

Ao retratar o vício sexual de uma personagem num meio urbano no séc. XXI, o realizador Steve McQueen faz também, automaticamente, uma espécie de retrato social do seu tempo, onde cada plano assume uma importância vital no panorama geral. A câmara parece estar sempre à distância certa e os actores no lugar exacto, deixando por vezes os

Por muito que possa haver quem se queixe da sua dureza e dramatismo excessivos, Vergonha é um autêntico tratado cinematográfico sobre o vício, a solidão e, enfim, a vida moderna.

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Título nacional: Drive - Risco Duplo Realização: Nicolas Winding Refn

DRIVE

Elenco: Ryan Gosling, Carey Mulligan, Bryan Cranston Ano: 2011

PEDRO SOARES

Foi assim que um realizador que andava a passar despercebido a meio mundo, um dos actores mais promissores da actualidade e um compositor de bandas-sonoras normalmente limitado às suas associações com David Lynch fizeram um dos filmes do ano a partir de um argumento fraquinho. São eles, respectivamente, Nicolas Winding Refn, Ryan Gosling e Angelo Badalamenti, e o filme chama-se Drive.

Errado! E tudo graças a Nicolas Winding Refn, que estiliza Drive ao máximo, num filme muito cool e iconoclasta (e aqui o casaco de Gosling é o gostosão do pedaço — branco, com um escorpião dourado nas costas). Lembramo-nos automaticamente de León: The Professional, tanto pelas poucas palavras do herói, como pela sua relação com o filho da tal vizinha. Mas também nos vamos lembrar de Taxi Driver, pela forma como Gosling se transforma numa máquina de matar.

Gosling é um tipo solitário com um dom natural para conduzir carros, seja em corridas NASCAR, seja enquanto condutor de fuga de assaltos.

Com uma banda-sonora muito anos 80, cheia de sintetizadores manhosos, Badalamenti transforma o piroso em cool, dando uma profundidade maquinal ao filme e uma identidade muito própria. E, entretanto, lemos Cliff Martinez a dizer que foi ele o responsável pela banda-sonora do filme e que o nome de Badalamenti foi só um chamariz e ficamos tristes, sem saber no que acreditar. Se em factos, se na nossa própria teoria. Obviamente que preferimos a teoria.

Tudo muito certinho, até que um roubo a uma casa de penhores com o marido da vizinha por quem se apaixonou corre para o torto e Gosling vai ter que começar a sujar as mãos de sangue — mais uma variação de The Transporter, certo?

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Título nacional: O Artista Realização: Michel Hazanavicius

THE ARTIST

Elenco: Jean Dujardin, Bérénice Bejo, John Goodman, James Cromwell Ano: 2011

JOSÉ CARLOS MALTEZ

Num momento em que se questiona o papel dos novos formatos e tecnologias no futuro do cinema, parece anacrónico que, pelas mãos do (entre nós quase desconhecido) realizador francês Michel Hazanavicius, um filme que faz a homenagem ao cinema comercial mudo norteamericano do início do século XX, a preto e branco e — claro — mudo, tenha causado tamanha sensação, conseguindo inclusivamente o Óscar de melhor filme do seu ano.

A história pode parecer-nos banal — no contraste entre estrela em ascensão e queda lemos A Star is Born (que já vai com quatro versões no cinema); na paródia à transição entre mudo e sonoro já tínhamos o inesquecível Serenata à Chuva (1952) — e talvez o seja propositadamente. Afinal o que se quer é celebrar as histórias simples e quase inocentes de um tipo de cinema já desaparecido. Aquele cinema na sua infância, onde proporcionar o sonho escapista de romances pueris (em histórias quase sempre iguais, é certo) significava muito. E se calhar não foi só então que esse tipo de cinema fez sentido ao grande público. Os prémios e receitas de O Artista mostraram que ainda hoje uma história feita de clichês, com sorrisos fáceis e sentimentos comuns, continua a encontrar um público fiel.

O Artista é a história do galã do cinema mudo George Valentin (Jean Dujardin) — que se o nome, época e efeito perante as mulheres nos lembra Rudolph Valentino, a pose e sorriso recordam Clark Gable — que de repente se vê ultrapassado pelo surgimento do cinema sonoro, no qual ele não sente ter lugar. Por contraste testemunhamos a ascensão fulgurante da sua fã, Peppy Miller (Bérénice Bejo), que passa de figurante a estrela, sem nunca perder de vista aquele que ela sempre admirou.

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Título nacional: Meia-Noite em Paris Realização: Woody Allen

MIDNIGHT IN PARIS

Elenco: Owen Wilson, Rachel McAdams, Kathy Bates, Marion Cotillard, Corey Stoll Ano: 2011

JOÃO BIZARRO

Meia-Noite em Paris foi, até ao momento, o último grande filme de Woody Allen. Nele, Owen Wilson interpreta Gil, um argumentista de Hollywood que está de férias em Paris com a família da noiva, Inez (Rachel McAdams). Gil adora a Cidade Luz. É lá que está a nata da sociedade artística, e o seu sonho era viver nos anos 1920, quando F. Scott Fitzgerald, Ernest Hemingway, Pablo Picasso e outros grandes artistas circulavam pelos ateliês e cafés da cidade.

A maneira como Allen concebe os personagens-artistas não deixa de ser interessante: eles são uma espécie de fusão entre os lugares comuns deles próprios e da sua obra (assim como os conhecemos) e a forma como ele, Woody Allen, os vê através da sua personagem. É assim que vemos Hemingway a falar de guerras e caçadas e Dalí a falar de rinocerontes. Se em Manhattan (1979) Allen filmou a cidade encantadoramente contraditória à qual está umbilicalmente ligado, aqui ele filma a cidade pela qual é apaixonado, indo àquela que considera ser a sua belle époque, a década de 20 — e aqui podemos recorrer aos planos iniciais, onde se vê Paris e os seus símbolos, Torre Eiffel, Louvre, Arco do Triunfo, filmados com paixão, ao som de Si tu Vois ma Mère, de Sidney Bechet.

Numa noite, ao deambular pela cidade, já com umas boas doses de vinho ingeridas, Gil é misteriosamente transportado para essa época. Lá, interage com uma série de personagens, que vão de Scott e Zelda Fitzgerald a Gertrud Stein, passando por Cole Porter, Hemingway, Picasso, Dalí e Buñuel, entre outros. Todos eles vão servir como uma espécie de conselheiros para Gil, numa trama cheia de sequências carregadas de humor e referências acerca das obras desses artistas.

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Título nacional: Temos de Falar Sobre Kevin Realização: Lynne Ramsay

WE NEED TO TALK ABOUT KEVIN

Elenco: Tilda Swinton, John C. Reilly, Ezra Miller Ano: 2011

PEDRO SOARES

Temos de Falar Sobre Kevin devia ser visto obrigatoriamente por todos que queiram ter filhos. Anteriormente, já tínhamos tido O Bom Filho (Josep Ruben, 1993), mas este consegue ser ainda mais perturbador nessa ideia de que ter um filho pode ser... perigoso.

Não estava era à espera que lhe calhasse na rifa um miúdo mau. Muito mau. Tão mau, que, se pudesse, faria bullying ao Anticristo. Todos sabemos que não há nada mais assustador do que crianças. E todos estamos habituados a putos maléficos, seja em O Génio do Mal ou A Cidade dos Malditos. Contudo, Ezra Miller (que tem as mesmas feições de autómato de Tilda Swinton) é mais assustador que esses todos porque não necessita de nenhuma interferência exterior para justificar a sua maldade. É puramente mau.

Com uma edição fragmentada, Temos de Falar Sobre Kevin é um puzzle que se vai revelando aos poucos, entre prolepses e analepses, que deixam o espectador sem rede para ir identificando os códigos que são lançados. No entanto, é transversal a todo o filme uma sensação de tragédia e desesperança, que nos indica que algo de terrível aconteceu/ irá acontecer…

Temos de Falar Sobre Kevin baralha ainda as ideias do espectador até ao final, apesar de ser formalmente de uma precisão tão gélida que parece nórdico, remetendo para o thriller psicológico e para Polanski. Filme altamente indigesto e desconfortável, que certamente fez as delícias a Yorgos Lanthimos.

Tilda Swinton é uma mulher aventureira e viajada, que se vê obrigada a lançar âncora ao engravidar. Nem todas as mulheres nascem para terem filhos, mas ela está disposta a fazer um esforço para que tudo corra bem.

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Título nacional: A Invenção de Hugo Realização: Martin Scorsese

HUGO

Elenco: Ben Kingsley, Sacha Baron Cohen, Asa Butterfield, Chloë Grace Moretz Ano: 2011

JOÃO BIZARRO

Paris, 1930. Hugo Cabret é um órfão de 12 anos que após a morte do pai, cujo trabalho era cuidar do grande relógio da estação de comboios de Montparnasse, e do desaparecimento do tio, fica a viver em segredo no interior das paredes da estação. Enquanto sobrevive à custa de esmolas e pequenos roubos, tenta arranjar o autómato que o seu pai lhe deixou, convencido de que, quando funcionar, este lhe dará uma mensagem. Para isso vai roubando peças numa loja de brinquedos, e é aí que conhece Isabelle, uma menina orfã, tal como ele, que vive com o seu tio, o estranho e sorumbático dono da loja de brinquedos. Curiosamente (ou não), Isabelle tem a chave que abre a pequena fechadura do autómato.

era uma grande história e Scorsese, com a ajuda do argumento de John Logan e da cinematografia de Robert Richardson, dá-lhe aquele toque ainda mais especial. Apesar dos protagonistas serem crianças, esta não é uma história infantil. Temos o guarda da estação que quer mandar os órfãos que lá habitam para um orfanato, a história de George Méliès, desde a sua ascensão, com os primórdios do cinema, até à decadência, onde o pioneiro relata como toda a magia que criou foi por água abaixo e ele acabou arruinado. Pela primeira vez um filme merece ser visto em 3D e não será por acaso que a primeira vez de Scorsese neste formato seja uma homenagem ao próprio cinema e a Méliès.

Uma das mais-valias do filme são os efeitos visuais: foi a primeira incursão de Scorsese no 3D e não é por acaso que A Invenção de Hugo é o filme que melhor uso dá a esse recurso. Mas está enganado quem pense que o filme é só brilhantes efeitos visuais, A Invenção de Hugo já

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Título nacional: Era Uma Vez na Anatólia Realização: Nuri Bilge Ceylan

BIR ZAMANLAR ANADOLU'DA

Elenco: Muhammet Uzuner, Yilmaz Erdogan, Taner Birsel Ano: 2011

PEDRO MIGUEL FERNANDES

Nuri Bilge Ceylan tornou-se desde o início do século XXI um dos autores fundamentais do cinema europeu dos últimos anos. Oriundo de um país bastante complexo, situado na fronteira entre a Europa e o Médio Oriente, é sobre a complexidade de um país como a Turquia que o seu cinema se tem debruçado, nomeadamente na relação entre mundos distantes que coabitam num mesmo território.

O crime serve de pretexto para um retrato das diferenças entre as várias personagens, que vão desde o silêncio dos autores do crime, aos longos diálogos dos polícias, passando pelo olhar do procurador e do médico que os acompanham na investigação, personagens que representam o olhar distante e de fora, sobretudo o médico. Em pano de fundo a paisagem da Anatólia, que tem tanta força que se torna uma das personagens, como aliás, a natureza costuma ser nos filmes de Ceylan.

Era Uma Vez na Anatólia é o filme onde vai mais longe nesse retrato. Depois das relações familiares (Longínquo e Três Macacos) e da vida de um casal em crise (Climas), em Era Uma Vez na Anatólia Ceylan vai mais longe nesse retrato, alargando o espectro a um conjunto de personagens envolvidos numa investigação criminal passada numa pequena cidade do interior.

Se em Climas a meteorologia ajudava a pintar o ambiente da história do casal, desta vez tem um papel menos visível, mas está lá, como prova a maravilhosa cena da maçã que cai da árvore e desce um riacho. Prova que os homens passam, mas a natureza fica. E o cinema de Ceylan prova que os filmes passam, mas só os grandes permanecem connosco. É esse o caso de Era Uma Vez na Anatólia.

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Título nacional: Procurem Abrigo Realização: Jeff Nichols

TAKE SHELTER

Elenco: Michael Shannon, Jessica Chastain, Shea Whigham Ano: 2011

ANTÓNIO ARAÚJO

Depois da colaboração em Histórias de Caçadeiras (2007), Michael Shannon e Jeff Nichols voltaram a encontrar-se quatro anos depois em Procurem Abrigo para mais uma história com a América rural como pano de fundo. Nascido no Arcansas, o autor — assina tanto o argumento como a realização — parece decidido a retratar uma fatia da população norte-americana normalmente ignorada pelo resto da indústria, não para explorar os estereótipos normalmente a ela associada, mas para a humanizar em narrativas que exploraram o lado mais obscuro da alma e da psique humana.

pela vida da mulher e da filha, decide construir um abrigo subterrâneo que colocará em causa a sua sanidade, o seu lugar na comunidade e, tragicamente, a coesão familiar que tanto quer proteger. Michael Shannon consolida aqui o seu estatuto como um dos mais intensos actores norte-americanos da actualidade, e Jessica Chastain inicia o seu reinado omnipresente de interpretações irrepreensíveis. Por sua vez, Nichols confirma o seu olhar subtil e metódico ao desenhar uma narrativa ambígua que sugere uma linha muito ténue entre a possibilidade de doença mental e um verdadeiro dom profético, além de revelar uma comunidade impregnada nos costumes da religião, se bem que não no verdadeiro espírito, incapaz de ajudar um dos seus membros perante a imprevisibilidade do seu comportamento.

Procurem Abrigo é um drama cozinhado a lume brando que retrata um jovem marido e pai, Curtis, que trabalha para uma empresa petrolífera. Para além dos desafios da responsabilidade de providenciar para a família — dever intensificado pela surdez da filha —, é assombrado por assustadores visões de uma tempestade apocalíptica. Temendo

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Título nacional: O Cavalo de Turim Realização: Béla Tarr

A TORINÓI LÓ

Elenco: János Derzsi, Erika Bók, Mihály Kormos Ano: 2011

SARA GALVÃO

O último filme de Béla Tarr não é para os impacientes. Com apenas 30 planos nas suas duas horas e meia de duração, O Cavalo de Turim eleva o conceito de cinema lento a um novo patamar, onde uma história minimal — a sobrevivência de um homem, a sua filha e o seu cavalo, durante uma estranha tempestade num lugar isolado — é dividida em seis dias, durante os quais somos confrontados com uma existência parca de pequenas rotinas que se recusa a ser interrompida. A preto e branco (a paleta preferida de Tarr), as comparações com Tarkovsky saltam à vista; mas enquanto o russo utilizou a sétima arte para evocar misticismo, Tarr parece fazer exactamente o oposto, criando um mundo onde a única força maior que o Homem é a Natureza.

história de como Nietzsche, ao tentar poupar um cavalo de ser chicoteado pelo dono, tem um ataque e perde a posse das suas funções racionais. O filme é assim uma possível prequela (ou sequela) da existência desse mesmo cavalo e do seu dono. Mas nesta história poética, onde a steadycam nos conduz labirinticamente entre as personagens, quase como um transe, não há um só nível de interpretação.

Um microcosmos onde os diálogos são parcos, com a música minimalista de Mihály Vig (colaborador habitual de Tarr) a (mais que insinuar-se) impor-se em determinadas sequências, O Cavalo de Turim parte da

Mas, tal como quaisquer obra de arte que se preze, O Cavalo de Turim não existe para dar respostas.

Classificada pelo seu criador como uma história de anti-criação, é fácil ler neste filme um cenário pós-apocalíptico, assegurado pela tempestade constante, pelas palavras de destruição do vizinho, pelo estranho comportamento do cavalo e pela súbita escuridão final.

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Vergonha, 2011

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O Hobbit: Uma Viagem Inesperada, 2012


2012 SARA GALVÃO

2012 foi um ano relativamente feliz, apesar de iniciar a época em que o Sporting terminou em sétimo lugar na tabela da Liga. Felizmente para todos, tanto os Maias como Rolland Emmerich falharam a previsão, tornando completamente desnecessária toda aquela roupa de inverno que comprámos nos saldos “só para prevenir”. 2012 foi também o ano em que o Netflix começou a produzir o seu próprio conteúdo (olá, procrastinação!).

esta fantochada só para poder existir na Internet. Entretanto, do outro lado do muro na DC, Christopher Nolan fechou a sua negra trilogia sobre Batman com O Cavaleiro das Trevas Renasce. 007: Skyfall marcou os 50 anos de James Bond, e uma viragem na franchise — Sam Mendes e o cinematógrafo Roger Deakins deram ao mundo um filme bom sobre o espião mais famoso (e, por conseguinte, pior espião) de todos os tempos. O choque foi tanto que, de repente, tudo se tornou possível no Reino Unido: um James Bond Negro, uma Doutora Who e até a saída com sucesso da União Europeia.

No mundo cinematográfico, 2012 foi marcado pela tentativa dos estúdios de tentar lançar à parede, qual puré de batata, o famoso high frame rate, ou 48 fps, no filme O Hobbit: Uma Viagem Inesperada (Guillermo del Toro Peter Jackson). O primeiro de uma trilogia baseada num livro dez vezes mais pequeno que O Senhor dos Anéis fez suficiente dinheiro na bilheteira para justificar os dois volumes seguintes. E no tópico de formatos técnicos que já se extinguiam, este foi também o ano em que os estúdios decidiram relançar velhos êxitos de bilheteira em 3D. Assim, Os Salteadores da Arca Perdida, Titanic e A Guerra das Estrelas: Episódio I - A Ameaça Fantasma voltaram ao grande ecrã, para gáudio das pipocas mundiais.

Mas nem só de amadas franchises viveu 2012. A Saga Twilight: Amanhecer Parte 2 (Bill Condon) fechou a coisa, enquanto O Fantástico Homem-Aranha (Marc Webb) mostrou que a saturação de super-heróis é possível. Que o diga John Carter (Andrew Stanton), que com uma quase inexistente campanha de marketing e após um development hell de 79 anos, falha miseravelmente nas bilheteiras e com os críticos. Claro está, marketing não faltou a Prometheus, do Universo Alien (no qual ninguém te consegue ouvir gritar PÁRA COM AS BRINCADEIRAS RIDLEY SCOTT!) Não sendo tão mau como os críticos quiseram fazer crer, mas que para ser bom faltou um bocadinho assim, Prometheus consegue ter mais razões para existir do que o remake de Desafio Total (Len Wiseman),

Os Vingadores foi o grande sucesso de bilheteira de 2012, reforçando o poder da Marvel e obrigando o comum dos mortais a ter de seguir 79


Argo, 2012 que substitui Arnold Governador da Califórnia por Colin Farrell e Sharon Stone por Kate Beckinsale — um filme tão desnecessário como um terceiro seio.

Chbosky) e, claro, David Cronenberg (Cosmópolis), com Robert Pattinson a tentar redimir-se dos seus anos de Twilight. Além das apostas seguras de A Idade do Gelo 4: Deriva Continental (Steve Martino, Mike Thurmeier), Madagáscar 3 (Eric Darnell, Tom McGrath, Conrad Vernon) e Frankenweenie (Tim Burton), 2012 também nos deu três grandes filmes de animação. Indomável (Brave, Mark Andrews, Brenda Chapman e Steve Purcell) irá arrecadar o Óscar, o que irritou bastante os fãs de outro nomeado, Força Ralph (Rich Moore). Mas a pérola escondida é, sem dúvida, It’s Such a Beautiful Day, de Don Hertzfeldt, que provoca longas crises existenciais muito após o seu visionamento.

Em 2012, nenhum nerd queria matar Rian Johnson, que aproveitou isto para realizar Looper - Reflexo Assassino, um filme sobre como viagens no tempo podem ser utilizadas para encobrir assassinatos. Tom Tykwer e os irmãos Wachowski deram-nos Cloud Atlas, uma espécie de versão dos pobres de O Último Capítulo. Outras menções dignas de nota na ficção científica incluem Dredd (Pete Travis), Homens de Negro 3 (Barry Sonnenfeld) e aquele filme que ninguém viu, Battleship: Batalha Naval (Peter Berg).

Em outras crises, os Óscares de 2012 deram o título de melhor filme a Argo e de realizador a Ben Affleck. Nomeados nesse ano estavam também 00:30 A Hora Negra (Kathryn Bigelow), Lincoln (Steven Spielberg), The Master - O Mentor (PT Anderson), Guia para um Final Feliz (David O. Russell), Django Libertado (Quentin Tarantino), Bestas do Sul Selvagem (Behn Zeitlin — todos os anos há “aquele” filme que a Academia nomeia para fingir que se importa com produções independentes, e este foi esse filme em 2012), os 10 minutos em Os Miseráveis (Tom Hooper) em que a Anne Hathaway canta e nos faz arrepiar os pêlos de trás do pescoço e Amour (Michael Haneke), também nomeado para Melhor

No reino das Sequelas, tivemos Taken - A Vingança (Olivier Megaton), Os Mercenários 2 (Simon West), O Legado de Bourne (Tony Gilroy), Actividade Paranormal 4 (Henry Joost, Ariel Schulman), Resident Evil: Retaliação (Paul W.S.Anderson) e Piranha 3DD (John Gulager). Nas adaptações literárias: The Hunger Games: Os Jogos da Fome (Gary Ross); Anna Karenina (Joe Wright); aquele filme com o tigre e com a polémica dos efeitos especiais (A Vida de Pi, Ang Lee); mais uma versão moderna de um conto de fadas (A Branca de Neve e o Caçador, Rupert Sanders); o tal livro que de toda a gente gosta (As Vantagens de Ser Invisível, Stephen 80


Filme Estrangeiro no mesmo ano, o que prova que a Academia realmente devia contratar alguém para verificar este tipo de coisas antes que algum desastre sério aconteça, tipo anunciarem o filme errado como vencedor ou assim. Nem só de prémios vive o homem, nem mesmo quando o prémio é um presunto. 2012 também nos deu filmes com que encher a programação dos canais generalistas. Filmes como Jack Reacher (Christopher McQuarrie), A Idade do Rock (Adam Shankman) e outros sem Tom Cruise: Um Ritmo Perfeito (Jason Moore), o niilista Magic Mike (Steven Soderberg), O Ditador (Sacha Baron Cohen), Aguenta-te aos 40! (Judd Apatow), Decisão de Risco (Robert Zemeckis), Ted (Seth MacFarlane), Agentes Secundários (Phil Lord, Christopher Miller), A Casa de mi Padre (Matt Piedmont), Robô & Frank (Jake Schreier), Hitchcock (Sacha Gervasi), John Morre no Final (Don Coscarelli), Seis Sessões (Ben Lewin; o filme que toda a gente viu por causa da Helen Hunt); A Mulher de Negro (James Watkins), o início de uma nova era de terror com A Casa na Floresta (Drew Goddard), o estranho Diário Secreto de um Caçador de Vampiros (Timur Bejmambetov) e, impossível de esquecer, o clássico Attack of the Jurassic Shark (Brett Kelly). Para os que gostam de Wes Anderson, tivemos Moonrise Kingdom. Para os que costumavam gostar de Terrence Malick, A Essência do Amor. Para os problemáticos, Sombras da Escuridão (Tim Burton) e Para Roma com Amor (Woody Allen). Independente? Sete Psicopatas (Martin McDonagh). Velha Guarda? Terra Prometida (Gus Van Sant) e Verão em Red Hook (Spike Lee). Obscuro? Spring Breakers: Viagem de Finalistas (Harmony Korine). Fã do humor negro britânico? Assassinos de Férias (Ben Wheatley). 2012 foi também o ano em que Miguel Gomes coroou o topo da lista dos melhores filmes da Sight and Sound com Tabu. Leos Carax voltou com Holy Motors, e Pablo Larraín com No. Thomas Vinterberg choca com The Hunt - A Caça, Jacques Audiard faz das suas em Ferrugem e Osso e Pablo Berger reinterpreta a história da Branca de Neve. Finalmente, no mundo do documentário: À Procura de Sugar Man (Malik Bendjelloul), How To Survive a Plague (David France), O Acto de Matar (Joshua Oppenheimer), O Impostor (Bart Layton) e, um favorito pessoal, A Rainha de Versailles (Lauren Greenfield).

A Rainha de Versailles, 2012

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2012


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Título nacional: The Hunt - A Caça Realização: Thomas Vinterberg

JAGTEN

Elenco: Mads Mikkelsen, Thomas Bo Larsen, Annika Wedderkopp Ano: 2012

PEDRO MIGUEL FERNANDES

Mais conhecido pela sua participação no movimento Dogma 95, que criou com Lars von Trier e um punhado de cineastas dinamarqueses em 1995 para celebrar os 100 anos do Cinema com um manifesto que defendia um regresso às origens da Sétima Arte o mais natural possível, sem recurso a efeitos especiais, Thomas Vinterberg nunca teve o mesmo sucesso do seu companheiro de luta. Com excepção de A Caça, que a par de A Festa é o seu filme mais conhecido. Esta é uma parábola assente na história de uma comunidade que se vira contra um dos seus membros a partir de uma mentira contada por uma criança. Um dos grandes filmes europeus deste século, assustadoramente premonitório dos dias de hoje.

E é aqui que Vinterberg, que admitiu por alturas da estreia do filme que o objectivo de A Caça foi mostrar uma caça às bruxas nos dias de hoje, nos leva a pensar a sério no assunto. O que se passa ali podia passar-se em qualquer sítio. Não terá sido à toa que o realizador não quis dar um nome à localidade onde decorre a acção do filme, e a acção é condensada em escassos dois meses em que tudo acontece (só o citado epílogo é noutra altura). Poderá ser difícil para o espectador, que conhece os pormenores ao contrário dos amigos de Lucas, compreender o lado da comunidade, que lá está para dizer que se uma criança diz algo tão grave, isso não pode ser mentira. Mesmo que não esteja provado e implique a destruição da vida de alguém. Mas Vinterberg acaba por não julgar ninguém, por isso A Caça é um filme tão complexo, cheio de zonas cinzentas. Numa das entrevistas a propósito da estreia do filme o realizador admitiu que estas personagens são inocentes naquilo que fazem — e no fundo talvez assim seja, pois têm uma reacção que muitos julgam ser a normal num caso daqueles em que é preciso proteger os mais fracos.

Tendo como cenário uma pequena localidade onde todos se conhecem, A Caça relata o que acontece a Lucas (Mads Mikkelsen, antes de se tornar Hannibal Lecter na série televisiva dedicada ao serial killer de O Silêncio dos Inocentes), um funcionário de um jardim-de-infância, quando uma das crianças afirma ter tido contactos sexuais com ele. Nós sabemos que isso é mentira, tal como Lucas e a criança. Mas numa comunidade pequena o rumor espalha-se num instante e o antigo cidadão exemplar acaba por ser posto de parte e ninguém acredita na sua versão dos acontecimentos, condenando-o por algo que não fez e com base num relato confuso. Os próprios adultos, sem saberem muito bem o que fazer com a situação, acabam por dizer à criança, após esta admitir que o que disse era mentira, que ela estava confusa. No final, tudo leva a crer que o assunto ficou resolvido, a comunidade está de novo junta, mas as últimas sequências, em jeito de epílogo, provam que não será bem assim e há certas coisas que não voltarão a ser as mesmas. Por muito que as aparências nos tentem contradizer, é isso que nos quer dizer aquele brilhante final na floresta, onde não sabemos quem ataca Lucas (podia ser qualquer um dos seus amigos ou um simples membro da comunidade).

No meio disto tudo temos uma excelente interpretação de Mads Mikkelsen, que dá tudo o que tem para criar aquela personagem, sem nunca parecer demasiado forçado no papel do inocente condenado por algo que não cometeu. Faz-nos lembrar, com as devidas distâncias, um outro inocente: Joe Wilson, de Fúria, o clássico de Fritz Lang. Mas em A Caça o tema é muito mais actual e os acontecimentos relatados no filme de Vinterberg bem poderiam ter lugar noutras latitudes, pois no fundo o filme não é mais do que um retrato de uma comunidade (e porque não um retrato de pessoas) a braços com um caso específico. E dá que pensar sobre o que uma mentira inocente pode fazer para destruir a vida de alguém.

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Título nacional: Django Libertado Realização: Quentin Tarantino

DJANGO UNCHAINED

Elenco: Jamie Foxx, Christoph Waltz, Leonardo DiCaprio Ano: 2012

FILIPE LOPES

Na sua primeira incursão pela época do western, e pelo género propriamente dito, Tarantino volta a fazer aquilo que faz melhor: distribuir piscadelas de olho e conceder homenagens, mais ou menos veladas, a filmes da sua predilecção. Dois bons exemplos disto mesmo são o surgimento, num pequeno papel, de Franco Nero, que tinha encarnado o Django original no filme com o mesmo nome, realizado por Sergio Corbucci em 1966, e a utilização da música de Trinitá – Cowboy Insolente (1970), composta por Franco Micalizzi. Os exemplos não se esgotam aqui (longe disso), mas Django Libertado é muito mais do que a soma de pequenas homenagens.

Jackson, responsável, desta feita, por uma transformação admirável (em vários sentidos). A história junta um escravo chamado Django (Jamie Foxx) a um caçador de recompensas de origem alemã e de nome Schultz (Waltz). Este compra aquele e oferece-lhe a liberdade em troca de ajuda na procura e reconhecimento de uma série de criminosos que valem bastante dinheiro. Desenvolve-se nesse percurso, entre eles, uma estranha mas calorosa amizade e será a vez de Schultz retribuir o favor a Django, que pretende encontrar a sua apaixonada, que também havia sido feita escrava e comprada pelo poderoso e perverso rancheiro Calvin Candie (Leonardo Di Caprio). A mente inventiva de Tarantino oferece-nos quase três horas magníficas de empolgamento e diversão. Nem damos pelo tempo passar!

É um grande filme, por direito próprio, de onde sobressaem, desde logo, o fabuloso argumento (escrito, como é habitual, pelo próprio realizador) e as interpretações fantásticas dos actores, sobretudo a de Christoph Waltz, que faz um portentoso trabalho, e de (uma vez mais) Samuel L.

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Título nacional: O Acto de Matar Realização: Joshua Oppenheimer

THE ACT OF KILLING

Elenco: Anwar Congo, Herman Koto, Syamsul Arifin Ano: 2012

PEDRO MIGUEL FERNANDES

O Acto de Matar é um filme bastante difícil de digerir. Por mais que estejamos preparados, não estamos preparados para o que vamos assistir nas duas horas e meia do documentário sobre o massacre de comunistas na Indonésia nos anos 1965-1966 que vitimou mais de um milhão de pessoas, e cujos autores continuam sem ser responsabilizados.

para um suposto filme, cujas sequências acabam por ser mais chocantes do que as horríveis descrições que os protagonistas fazem, roçando até um certo surrealismo, como quando alguns deles dão ordens como um realizador no plateau. Apesar de toda a glorificação das suas acções no filme dentro do filme, o comportamento de Anwar vai mudando um pouco ao longo de O Acto de Matar. Começa como fanfarrão e acaba como alguém com enorme sentimento de culpa que se vai apercebendo de tudo o que fez à medida que revive o passado. Esse reconhecimento culmina numa das cenas mais difíceis de digerir, quando o protagonista regressa ao terraço de casa, onde anteriormente já tinha exemplificado um dos métodos que utilizava para matar as vítimas. Um temendo murro no estômago.

Os acontecimentos são relatados por vários dos mandantes, entre os quais Anwar Congo, “personagem” principal de O Acto de Matar, que passou de pequeno criminoso a líder de um esquadrão da morte com a cumplicidade das autoridades. Ao longo do filme acompanhamos Anwar e os seus ex-companheiros — alguns dos quais se tornaram homens de negócios e políticos bem-sucedidos — na recriação destes acontecimentos. Para a sua execução, Joshua Oppenheimer deu luz verde aos protagonistas para encenarem os acontecimentos como bem entendessem. E o resultado é uma espécie de making of dessas cenas

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Título nacional: O Mentor Realização: Paul Thomas Anderson

THE MASTER

Elenco: Joaquin Phoenix, Philip Seymour Hoffman, Amy Adams Ano: 2012

JOÃO PAULO COSTA

Abrindo com um belo plano do mar, e rapidamente passando para um plano muito próximo do rosto de Freddie Quell (Phoenix) a caminho de um desembarque na Segunda Guerra Mundial ao som da maravilhosa banda sonora de Johnny Greenwood, O Mentor revela-se imediatamente como um filme estranho e indecifrável, mesmo vindo de um autor que anteriormente assinara algo como Haverá Sangue (2007).

Ainda que vagamente inspirado na criação da Cientologia (tendo Dodd como uma versão de L. Ron Hubbard), o filme é acima de tudo a jornada de um homem imprevisível num processo inconsciente de auto-descoberta, e menos sobre possíveis esquemas fraudulentos disfarçados de religião. Joaquin Phoenix é absolutamente fabuloso na sua composição de Freddie, quer física quer interior, ficando especialmente na memória uma cena de um interrogatório entre Freddie e Dodd em que dominam apenas e só os rostos dos maravilhosos actores e as palavras de Anderson. Ao contrário do que acontecia com Jogos de Prazer (1997) ou Magnólia (1999), por exemplo, Anderson está menos preocupado em dar nas vistas com a sua câmara, preferindo uma maior contenção de movimentos e edição. E o resultado é simples de resumir numa pequena expressão: um dos filmes maiores do séc. XXI.

Depois de sobreviver ao conflito, Freddie tenta readaptar-se à vida na sociedade, vagueando de trabalho em trabalho, de terra em terra, bebendo todo o álcool que consegue arranjar, metendo-se em escaramuças e atirando-se a qualquer mulher que mostre algum interesse. Até que, por mero acaso, se torna membro de um culto denominado “A Causa” e desenvolve uma relação de grande proximidade com o seu líder, Lancaster Dodd (Philip Seymour Hoffman).

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Título nacional: Amor Realização: Michael Haneke

AMOUR

Elenco: Jean-Louis Trintignant, Emmanuelle Riva, Isabelle Huppert Ano: 2012

JOSÉ CARLOS MALTEZ

Com o seu conhecido olhar doloroso e realista sobre facetas da vida que talvez queiramos deixar no fundo das nossas mentes, Michael Haneke filmou em Amor a vulnerabilidade física nos últimos dias de um casal. Eles são Georges (Jean-Louis Trintignant) e Anne (Emmanuelle Riva), antigos professores de música, que vivem sós, quando um acidente vascular deixa Anne progressivamente incapacitada e em demência acelerada.

Situação a situação, somos nós, melhor que ninguém, a compreender o esforço, sofrimento e amor de Georges, no seu apego a uma realidade que já não existe — a memória da Anne que ele amou, que foi uma mulher sensível, criativa, e que construiu uma vida com ele. Num realismo onde nenhum momento de desconforto nos é negado, com os seus habituais planos fixos, em enquadramentos dos quais os personagens entram e saem, com muitas das acções a ocorrerem fora de campo, Haneke traz-nos um ensaio sobre a decrepitude humana, onde tudo parece estar a acontecer em tempo real à frente dos nossos olhos, sem que nós — também impotentes — possamos fazer mais que compreender que Georges finalmente aceda ao pedido da mulher, de a matar. Se por piedade suprema, num gesto último de amor, ou por necessidade de escape, que o julgue quem quiser.

Numa vulnerabilidade sugerida por pequenas coisas (de um assalto ao simbolismo de um pombo que fica preso no apartamento), vamos da rotina doméstica à tentativa de normalizar o que já não é normal, com Georges a lutar pela dignidade de Anne, mesmo que contra todos — incluindo a filha (Isabelle Huppert) —, teimando em mantê-la sob os seus cuidados, que incluirão alimentá-la, levá-la à casa de banho e finalmente mudar-lhe as fraldas.

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Título nacional: Moonrise Kingdom Realização: Wes Anderson

MOONRISE KINGDOM

Elenco: Bruce Willis, Edward Norton, Bill Murray, Frances McDormand, Tilda Swinton, Jared Gilman, Kara Hayward Ano: 2012

JOSÉ CARLOS MALTEZ

Se há realizador que atingiu uma identidade estética tal, que bastam segundos de um seu filme para sabermos de imediato quem estamos a ver, esse realizador é Wes Anderson. Com uma meticulosidade de cenário que nos faz parecer estarmos numa casa de bonecas, uma obsessão doentia com a simetria, movimentos panorâmicos vertiginosos, como se passássemos slides em frente dos olhos, e todo um colorido tingido de modo a sentirmos que estamos a folhear uma revista antiga, Anderson vai compondo, filme após filme, um universo próprio, cuja estética serve uma forma de estar onde as histórias são comédias de tema dramático, como se fossem tragédias contadas pela inocência infantil, onde tudo surge mais garrido, e a lógica está entre o desconcertantemente simples e sincero e o surreal.

encontra para fugir com a sua namorada secreta, menina de boas famílias, em necessidade de rebelião. O que se segue é uma epopeia de fugas, reencontros, alianças e planos mirabolantes, para onde muitas personagens vão sendo arrastadas, e onde cada vez mais pensamos que a complexidade dos adultos é acriançada, que a simplicidade infantil é o verdadeiro bom senso e que o que a princípio nos parecia absurdo tem talvez todo o sentido. Com um elenco de luxo — e muito constante na obra de Anderson — Moonrise Kingdom diverte, comove, surpreende e ainda nos põe a pensar, por mais irrealismo que o enredo revele no momento em que o tentemos contar a alguém. É que o universo andersoniano só resulta se for visto tal qual ele o filma. E esse é um mérito de um verdadeiro autor.

E é isso que temos em Moonrise Kingdom, a história de um rapaz desajustado que decide abandonar o corpo de escuteiros onde se

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Título nacional: Frances Ha Realização: Noah Baumbach

FRANCES HA

Elenco: Greta Gerwig, Mickey Sumner, Adam Driver Ano: 2012

RUI ALVES DE SOUSA

Frances Ha (Greta Gerwig) é uma jovem aprendiz de bailarina que vive pouco com os pés na terra, sempre a espalhar alegria e irreverência, enquanto a idade adulta se aproxima e, com ela, todas as mudanças, receios e desilusões que a caracterizam. Esta personagem tão peculiar acabará por sentir na pele as consequências do fim da sua “inocência” ao ser confrontada com as mudanças na sua vida e na de Sophie, a sua melhor amiga. Ambas sabem que, ao seguirem caminhos opostos, será difícil que a sua amizade se possa manter com os mesmos contornos. Será que, apesar de todas as agruras da vida, é possível não perder totalmente o nosso lado mais infantil ou destemido ou sonhador?

adiantar ou adiar a seu bel-prazer), olham para a história da protagonista e aproveitam para reflectir sobre si próprios. Frances Ha toca-nos por abordar os sonhos e as ambições dos seres humanos através de uma figura tão ingénua, mas ao mesmo tempo tão reveladora da forma como a juventude e a idade adulta se afastam em termos de coragem, felicidade e sensatez. Um filme de uma alegria contagiante, sobre a juventude tardia de uma ou várias gerações e se será possível haver um equilíbrio entre o que ambicionamos e o que todos os “muggles" querem de nós. Ou, por outras palavras, aqui encontramos uma enérgica e inigualável comédia inusitada sobre a procura da felicidade num mundo quase governado pelo caos organizado da vida mundana.

O filme de Noah Baumbach, com uma bela cinematografia a preto e branco, é sobre isto e outras coisas mais, sendo um forte elo de ligação para todos os que se sentem na mesma situação que Frances ou que, muito depois de ultrapassada essa crise (cuja ocorrência cada um pode

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THE HOBBIT: AN UNEXPECTED JOURNEY

Título nacional: O Hobbit: Uma Viagem Inesperada Realização: Peter Jackson Elenco: Martin Freeman, Ian McKellen, Richard Armitage Ano: 2012

ANTÓNIO ARAÚJO

Depois do sucesso da épica adaptação de O Senhor dos Anéis por Peter Jackson, o próximo passo seria adaptar O Hobbit, o livro infantil de J. R. R. Tolkien onde tudo começou. O que parecia um prolongamento simples e natural foi, no entanto, uma aventura de contornos épicos que levaria nove anos até ver a luz do dia. Enredado em diversos processos legais, O Hobbit viu Guillermo del Toro ser apontado ao leme de um empreendimento que iria ser constituído por dois capítulos, onde o primeiro contaria a história do livro e o segundo faria a ponte com a trilogia já adaptada. Atrasos na produção levariam o realizador mexicano a afastar-se do projecto, com o Jackson a regressar para assumir novamente a direcção desta aventura na Terra-Média, entretanto inflacionada de forma a resultar numa nova trilogia de filmes.

Martin Freeman a assumir o papel central de Bilbo Baggins, O Hobbit foi recebido com muita expectativa à data de estreia, mais pelas suas particularidades técnicas do que pelo regresso ao universo de Tolkien. Filmado em 3D, com as câmaras de última geração Red Epic, a um ritmo 48 fotogramas por segundo, Uma Viagem Inesperada foi um fenomenal sucesso de bilheteira, apesar da morna recepção crítica e de nos oferecer uma revisitação de um universo que já foi cativante, mas que, apesar dos valores de produção, carece da paixão do seu anteriormente entusiasta autor, aparentemente mais preocupado em justificar a existência de três filmes de longa duração do que em contar uma história infantil perfeita para um modesto e curto filme familiar.

Repetindo grande parte da equipa responsável pelo sucesso anterior, incluindo o regresso de Ian McKellen no papel de Gandalf, e com

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Título nacional: Holy Motors Realização: Leos Carax

HOLY MOTORS

Elenco: Denis Lavant, Edith Scob, Eva Mendes Ano: 2012

SARA GALVÃO

Quem vem à procura de narrativa aos filmes de Leos Carax só poderá ficar desapontado. Holy Motors, o regresso em grande do estranho realizador francês ao grande ecrã após o falhanço de Pola X em 1999, é um excelente filme experimental (sim, experimental, apesar de mais polido que o habitual para o género) sobre a natureza do simulacro. Os fãs de Alejandro Jodorowsky, Matthew Barney e Sion Sono sentir-se-ão em casa no universo de Carax; para os outros, o melhor é evitar e passar de longe.

o contratou para o efeito. Para quem o faz, contudo, é aludido — para câmaras tão pequenas que não se vêem, em suma, para nós, audiência. Perto do final, somos ludibriados com a esperança de uma explicação — Oscar não é o único, há uma garagem onde todas as limusinas se reúnem no final do dia (chamada, evidentemente, Holy Motors), mas quando as luzes se apagam, Carax espeta-nos o dedo do meio à frente da cara (figurativamente) e ri-se da nossa necessidade de um final de história convencional.

Denis Lavant é aqui o estranho Monsieur Oscar, que passa o seu dia a interpretar personagens tão diversas que vão de uma mendiga a um assassino mafioso, passando por um velho às portas da morte, um pai que vai buscar a filha a uma festa, um louco que rapta uma modelo e mesmo um actor de mocap. Guiado numa limusina branca pela cidade de Paris, nunca nos é explicado porque é que Oscar faz o que faz ou quem

Com uma banda sonora ecléctica, várias piadas visuais críticas da modernidade, e quase como que uma showreel para o génio de Lavant, Holy Motors é para ser apreciado sem quaisquer expectativas e saboreado nos seus pequenos momentos.

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Título nacional: Amigos Improváveis Realização: Olivier Nakache e Éric Toledano

INTOUCHABLES

Elenco: François Cluzet, Omar Sy, Anne Le Ny Ano: 2012

ANÍBAL SANTIAGO

Buddy movie inspirado numa história real, Amigos Improváveis utiliza uma série de lugares-comuns associados ao subgénero, enquanto beneficia das dinâmicas convincentes de Sy e Cluzet e da perícia de ambos para dominarem os ritmos do humor. Uma dessas convenções é a reunião de dois personagens de características antagónicas ou oriundos de meios distintos, um ingrediente que é inserido com perícia por Nakache e Toledano. A dupla de protagonistas é reunida quando Philippe (Cluzet), um milionário francês tetraplégico, contrata os serviços de Driss (Sy), um senegalês que habita nos subúrbios e inicialmente não parece qualificado para a função de cuidador.

Nakache e Toledano não têm problemas em recorrer ao humor negro ou a alguns estereótipos ou a prosseguirem pelo caminho mais simples, com a proposta de ambos a passar acima de tudo pela criação de algo leve. Essa singeleza é particularmente notória na construção dos personagens, bem como na abordagem das temáticas, tais como o choque de culturas, com algumas das limitações do argumento a serem ultrapassadas graças à empatia e genuinidade que Sy e Cluzet transmitem como Driss e Philippe. Com uma miríade de momentos de humor que funcionam com enorme precisão, uma humanidade assinalável e uma leveza que aos poucos nos conquista, Amigos Improváveis parte das convenções dos buddy movies para proporcionar uma agradável, cómica e comovente experiência cinematográfica.

Os dois formam gradualmente uma relação de amizade, respeito e proximidade, com as suas diferenças a complementarem-se e a contribuírem para uma série de momentos que variam entre o terno, o cómico e o dramático, algo arquitectado de modo eficiente.

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Moonrise Kingdom, 2012

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Lincoln, 2013


2013 JOANA GONÇALVES

Percorrer 2013 em filme é relembrar imediatamente aquele dia chuvoso de janeiro em que Lincoln, de Spielberg, passou no Vasco da Gama. Duas horas e meia de talento que focam os últimos quatro meses da vida de Abraham Lincoln e da sua luta para adicionar a Décima Terceira Emenda à Constituição dos Estados Unidos. Daniel Day-Lewis desaparece nesta personagem, cuja gravidade, presente nos seus trejeitos, voz solene e pose de Atlas, deve hoje, mais do que nunca, ser relembrada. Aliás, curioso pensar no impacto que um objeto como este pode ter em função do contexto em que é recebido.

acomodar algum cinismo, confronto e temas escatológicos que a epopeia da vida de casal torna inevitáveis. O mais encantador será perceber que o mundano e o corriqueiro entraram nas vidas de Céline (Julipe Delpy) e Jesse (Ethan Hawke), mas não põem pontos finais nos seus diálogos. Muitas interrogações, reticências, divagações e discussões, mas… aguardem a última cena e voltem a acreditar. E voltem a acreditar ainda mais na deusa caída que é Cate Blanchett em Blue Jasmine. A descida aos infernos posta em marcha por Woody Allen estilhaça a identidade da nossa heroína que, despida, qual cebola, de dinheiro, estatuto e orgulho, regressa às suas origens humildes e ao seu nome verdadeiro, Janette. E lá é acolhida pela luminosa irmã, interpretada por Sally Hawkins. As neuroses quase sempre servem bem as atrizes, mas esta leva a sua protagonista ao Olimpo do… Tártaro.

Na altura, estando Obama no poder, este retrato da luta sangrenta pela abolição da escravatura parecia o primeiro capítulo da história conturbada da libertação racial que culminaria na eleição de um presidente negro, cuja solenidade e eloquência fariam dele um sucessor digno de Lincoln. Receber este filme hoje seria uma experiência de contraluz pelas razões que bem conhecemos.

Mas o Olimpo não é apenas habitado por deusas. Essa é também a morada de Leonardo DiCaprio, garantida há muito e confirmada com O Lobo De Wall Street (The Wolf of Wall Street). Scorsese pega-nos pelos colarinhos nesta vertigem insana, para não mais nos largar ao longo da também descida aos infernos de Jordan Belfort, o corretor da bolsa de Nova Iorque apanhado em esquemas nada lícitos nos anos 90. O registo histérico de DiCaprio ecoa a ânsia pela acumulação de riqueza, drogas,

O melhor é avançar para o Verão e pensar com um sorriso em Antes da Meia Noite (Before Midnight, Richard Linklater), o filme que completa a trilogia de Richard Linklater iniciada com Antes do Amanhecer, a que se seguiu Antes do Anoitecer. A adolescência etérea do primeiro e a maturidade doce do segundo não dão lugar, antes criam espaço para 97


12 Anos Escravo, 2013 mulheres e prazer, o que leva à instrumentalização de quase tudo o que o rodeia. Tema já antes explorado por Scorsese em Casino e agora tão visceralmente revisitado. Há qualquer coisa de operático, ao estilo MTVcool, neste Lobo, uma experiência que perpassa o corpo do próprio espectador.

desfiarem as ligações entre o poder político e a máfia, com direito a quadrado amoroso. Os corpos vivos destas personagens movem-se num quadro de comédia screwball, ancorado nas mais imprevisíveis situações e diálogos. Como a explosão de um micro-ondas pode ser o pretexto para belas deixas... “empty just like your deals”.

Nem só de descidas se fazem os filmes de 2013. Sandra Bullock é catapultada para a estratosfera em Gravidade (Gravity), pelas mãos de Alfonso Cuarón. Mas é o planeta Terra, filmado como nunca antes, a protagonista deste filme. O mais curioso é perceber que neste espaço sideral 3D absolutamente colossal vive uma ambiência particularmente intimista, pontuada por um George Clooney e uma Sandra Bullock que só querem regressar a casa. Raramente a tecnologia serve tão bem uma narrativa simples, mas tocante sem se sobrepor a ela. É nesse cuidado de não deixar o colossal esmagar o singelo que Cuarón merece o nosso profundo respeito. E já agora… que grande moca visual (o Lobo de Wall Street teria gostado certamente).

Em 12 Anos Escravo (12 Years a Slave), Steve McQueen, que nos deu Vergonha e Fome, opta por uma narrativa clássica que prevalece sobre um estilo visual mais vincado. Interessa-lhe sobretudo contar a história de Solomon Northup, um afro-americano livre que em meados do século XIX é vendido como escravo. Se em Lincoln, a palavra, a lei, é a trave mestra que enquadra o tema da escravatura, este filme de McQueen é o zoom out que foca a vida de um escravo que bem podia ser um figurante do filme de Spielberg, mas que aqui assume uma textura e contornos muito particulares. Solomon, nas suas agruras diárias, representa um fenómeno que urge não esquecer, é verdade, mas é também Solomon, o indivíduo Solomon, tão bem representado por Chiwetel Ejiofor. É também por McQueen que somos apresentados a Lupita Nyong’o, que tem na doce e sofrida Patsey a sua estreia, e que estreia, em cinema. Já para não falar na terceira colaboração com Michael Fassbender, o odioso e bêbedo Edwin Epps. Essencial.

Mas há um filme de 2013 que é um verdadeiro vórtice do talento dos seus actores. Na verdade, existe para sugá-lo e ostentá-lo descaradamente: Golpada Americana (American Hustle). David O. Russell lança o tapete para Amy Adams, Jennifer Lawrence, Christan Bale e Bradley Cooper 98


2013 é também o ano de A Vida de Adèle (La vie d’Adèle), Palma de Ouro em Cannes, a história de amor de Adèle e Emma. O amor como substância que abre alas à verdade de quem somos. É com essa lente que Abdellatif Kechiche filma cada gesto, cada olhar, cada beijo, cada hesitação das suas protagonistas. Com erotismo, sim, o erotismo que envolve a expressão e a vivência do mais íntimo dos sentimentos, e que não está, nem pode estar, circunscrito à mera nudez. Aliás, é no mais discreto dos movimentos que ele se faz anunciar. Comovente a entrega destas duas atrizes, Adèle Exarchopoulos e Léa Seydoux.

A Vida de Adè, 2013

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2013


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Título nacional: Ida Realização: Pawel Pawlikowski

IDA

Elenco: Agata Kulesza, Agata Trzebuchowska, Dawid Ogrodnik Ano: 2013

PEDRO SOARES

Ida colecionou prémios atrás de prémios, entre eles um Óscar para melhor filme estrangeiro (a primeira vez que um filme polaco o conseguiu), além da distinção de filme mais bonito de 2013, atribuída por mim próprio. Cada um dos seus planos é um quadro incrível, onde o preto e branco de alto contraste acentua o lado estético. Além disso, são sempre planos imprevistos e pouco ortodoxos, com cada cena a ser composta com um formalismo bem preciso.

basta lembrar-nos de Manhã Submersa, de Lauro António). Mas o que torna Ida especial é a marca autoral do realizador Pawel Pawlikowski e a forma como o filma. Pawlikowski, que tem um daqueles apelidos impronunciáveis, e que mais parece que o senhor do notário estava a tentar limpar as migalhas do teclado do computador, tem uma curta filmografia, mas que não deve ser subestimada. Os temas de Ida já se encontram nos filmes anteriores: um certo fascínio pelos coming of age (e Amor de Verão (2004), com uma muito jovem Emily Blunt, é um excelente exemplo do género), pelas personagens femininas e um certo pendor político (se bem que A Última Oportunidade [2000] é mais “kafkiano” do que outra coisa). Agora, depois de Ida, o seu primeiro filme de sempre feito em solo polaco (ele que é um inglês "adoptado"), diz-nos o IMDB que vem aí novo filme feito na Polónia. Veremos o que terá para nos dizer.

Esta composição dos planos atira normalmente a protagonista do filme, Agata Trzebuchowska, para os cantos ou para o fundo do enquadramento, o que combina com a sua natureza tímida e humilde e que a leva a querer desaparecer do seu próprio filme. É quase como se fosse uma intrusa na sua própria história, e isso não podia dizer mais da sua personagem. Além disso, o preto e branco consolida o tempo passado (Ida passa-se no pós-Segunda Guerra Mundial), acentua a dicotomia entre o bem e o mal e, claro, dá-lhe um certo ar artesanal, o que lembra também O Laço Branco (Haneke, 2009), nem que seja pela quase ausência de banda-sonora (excepto os prelúdios ao piano de Bach e de Mozart, claro).

Pawel Pawlikowski faz de Ida um road movie introspectivo, de uma forma minimalista, que apesar de tudo nunca resvala para o miserabilismo, como era tão fácil acontecer. Afinal de contas estamos a falar de temáticas pesadas e brutais. Ai se o filme tivesse sido feito por Teresa Villaverde... A forma delicada como trata os silêncios, os não-ditos e a sugestão pode não fazer dele o mais expansivo dos filmes, mas mesmo assim é um dos que mais diz sobre a Polónia, tanto a de ontem como a de hoje (como se o presente não estivesse sempre umbilicamente relacionado com o passado, não é?). E, olhando para a actualidade e para o que se anda a passar, talvez a Polónia precise de reflectir um bocadinho mais sobre estas coisas. Não sei, é só uma sugestão...

Ida é a história de uma freira (a estreante Agata Trzebuchowska, que garante não ter pretensões de seguir qualquer carreira na interpretação e que tem algo de Renée Jeanne Falconetti na forma como encara a câmara) que, na véspera de cumprir os seus votos, vai tentar descobrir mais sobre a sua família e o seu passado, o qual acabará por descobrir estar relacionado ao Holocausto nazi. Com a ajuda de uma tia com gosto pela pinga, Ida irá descobrir-se e reavaliar a sua vida, ao mesmo tempo que expia os esqueletos que tem no armário, trazendo-os cá para fora e desempoeirando-os. É uma história de redenção pessoal que estamos fartos de ver no cinema, é certo. Também a austeridade conventual não é propriamente uma novidade (e nem é preciso irmos para muito longe,

Ida é uma espécie de pequeno milagre que, nem por acaso, também sacou o prémio Lux do Parlamento Europeu, que distingue uma obra que ilustre os valores europeus. 103


Título nacional: O Lobo de Wall Street Realização: Martin Scorsese

THE WOLF OF WALL STREET

Elenco: Leonardo Dicaprio, Jonah Hill, Margot Robbie Ano: 2013

PEDRO SOARES

Vemos The Wolf of Wall Street e percebemos que continua quase tudo na mesma na obra de Martin Scorsese: DiCaprio mantém-se como actor fetiche, continua a filmar histórias de mafiosos (mafioso como em “bandido vigarista” e não como “membro da Máfia”) e mantém os temas do costume — violência, drogas... O que mudou então? Em O Lobo de Wall Street Scorsese trocou os Rolling Stones do costume pelos bluesmen de Chicago.

A história é o relato verídico de Jordan Belfort (DiCaprio), o corrector da bolsa que dominou Wall Street no final dos anos 90, numa vida de esquemas e excessos. Lembramo-nos de Goodfellas, não tanto pela glorificação dos bandidos, mas pela estrutura e pelo ritmo infernal. E, claro, com menos violência, mas com mais drogas. Há trips fodidas, orgias, lançamento de anões, coca “snifada” do cu de prostitutas e muitas mais maluquices, provando pela milésima vez que a realidade é sempre mais estranha que a ficção.

O estilo continua igual — o ritmo a cem à hora, se bem que aqui há mas drogas do que em qualquer filme anterior (e no Scarface também), os diálogos atropelam-se, e a violência e os excessos fazem parte do pão nosso de cada dia —, mas a banda-sonora tem, pela primeira vez, algumas falhas. Uns Greenday ou uns Foo Fighters lá pelo meio soam demasiado aleatórios, mesmo que haja a contrabalançar alguns momentos à Casino, em que há tanta música que é quase um teledisco.

No entanto, se tirarmos todo esse deboche, chegamos à conclusão que o que fica é um biopic pálido, à sombra do que Scorsese já fez. E isso é mau? Não, obviamente que não. Até porque tem 10 minutos geniais de Matthew McConaughey, um Jonah Hill transformado em actor sério(!) e Margot *suspiro* Robbie.

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Título nacional: A Emigrante Realização: James Gray

THE IMMIGRANT

Elenco: Marion Cotillard, Joaquin Phoenix, Jeremy Renner Ano: 2013

JOÃO PAULO COSTA

Depois de um início de carreira bastante conturbado nos anos 90, James Gray parece ter finalmente conseguido construir uma filmografia estável, com lançamentos mais regulares e uma liberdade criativa considerável após as confusões ocorridas com o infame Harvey Weinstein aquando do lançamento de Nas Teias da Corrupção (2000), que ainda assim acabou por ser um dos responsáveis pela desastrosa distribuição deste título.

Marion Cotillard dá corpo a Ewa, a emigrante do título, uma jovem mulher polaca que, em 1921, chega a Nova Iorque com a irmã em busca do Sonho Americano, mas depressa percebe que a realidade é bastante mais suja do que esperava. Salva da deportação por uma figura duvidosa (Phoenix), Ewa terá de sobreviver numa terra desconhecida enquanto tenta resgatar a irmã, detida em quarentena, e descobrir um rumo para a sua vida.

Cineasta de sensibilidade clássica, Gray baseou o argumento de A Emigrante nos relatos dos seus avós e da chegada destes aos Estados Unidos no início do séc. XX, rodando-o ao estilo das suas maiores influências cinematográficas (nomeadamente, segundo o próprio, o cinema americano da década de 1970), e o resultado final revela-se muito próximo do brilhante.

A Emigrante é simultaneamente um belo retrato histórico pessoal do realizador e um conturbado conto de amor entre duas personagens moralmente opostas, mas dispostas a tudo para sobreviver num mundo difícil. Além das excelentes composições por parte de todo o elenco, o filme é também visualmente deslumbrante e, além de uma belíssima reconstituição de época, ainda culmina naquele que será certamente o mais belo dos planos de toda esta lista.

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Título nacional: Uma História de Amor Realização: Spike Jonze

HER

Elenco: Joaquin Phoenix, Amy Adams, Scarlett Johansson Ano: 2013

JOSÉ CARLOS MALTEZ

Vindo da publicidade e vídeos musicais, Spike Jonze destacou-se no cinema com as duas longas-metragens que realizou em parceria com o argumentista Charlie Kaufman, Queres Ser John Malkovich? (Being John Malkovich, 1999) e Inadaptado (Adaptation., 2002). Nelas, Jonze mostrou a sua irreverência, capacidade de arriscar com novas ideias visuais e narrativas difíceis de seguir, que seriam a sua imagem de marca.

lhe fala (ainda por cima com a voz de Scarlett Johansson), como mostra capacidade de aprender com ele, desenvolvendo uma relação que Theo começa a sentir mais real e completa que qualquer outra que tenha tido ou julgasse ser possível ter. A partir daí — numa estética muito própria que torna o mundo de Her não futurista em relação ao nosso, mas talvez alternativo —, são-nos lançados inúmeros desafios sobre o que é a interacção com o elemento virtual, e a importância da empatia, capacidade de comunicação, compreensão e companheirismo na felicidade humana. Todo o filme se torna então um ensaio sobre relacionamentos humanos por contraste com o papel do virtual, a que repetidos visionamentos trazem sempre mais pontas de um véu que a nossa espécie parece estar neste momento a levantar.

Essa busca de realidades provocadoras levou-o, em 2012, a escrever um argumento de ficção científica, onde inteligência artificial e humanidade se tocam, no drama romântico Uma História de Amor (Her). Her é uma história de inadaptação, problemas de personalidade, de relacionamentos e de solidão — afinal temas queridos ao realizador —, na pessoa do protagonista, Theo (Joaquin Phoenix), que um dia instala no computador o mais recente sistema operativo do mercado, que não só

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Título nacional: A Grande Beleza Realização: Paolo Sorrentino

LA GRANDE BELEZZA

Elenco: Toni Servillo, Sabrina Ferilli, Carlo Verdone Ano: 2013

CÁTIA ALEXANDRE

A Grande Beleza, filme realizado pelo italiano Paolo Sorrentino, é um dos mais magníficos filmes que os últimos anos nos deram. Nele seguimos Jep Gambardella, um escritor abastado que faz parte da alta sociedade Italiana. Na sua vida diária, vai a muitas festas e eventos importantes.

O desempenho de Toni Servillo é excelente, intenso e melancólico, conseguindo-nos fazer olhar para o homem charmoso e importante, mas com tanta vulnerabilidade, capaz de nos transmitir as emoções mais profundas e bonitas.

Os seus amigos são boémios como ele, sempre em busca daquilo que eles chamam de felicidade, amigos que, tal como ele, incluem boas festas, bebidas, drogas e sexo casual no dia-a-dia, mas que, apesar toda a luxúria, se revelam pessoas frustradas, presas a si próprias, fingindo estar satisfeitas com as suas vidas miseráveis​​. É assim que também se sente Jep. Aos 65 anos, Jep não tem família nem ninguém que realmente se preocupe com ele. A dor está sempre presente, enquanto finge viver uma vida incrível. A Grande Beleza tem um poder emocional muito forte que nos absorve completamente para dentro dele.

A cinematografia é arrebatadora, onde cada imagem é tão simples mas tão elegante, sempre acompanhada pela fantástica banda sonora que se adapta perfeitamente a cada um dos momentos que estamos apreciando. Paolo Sorrentino fez uma obra-prima moderna que merece total reconhecimento. Apaixonei-me por este filme e afirmo que se tornou num dos meus preferidos de sempre. Grandes filmes ficam connosco durante a nossa vida, este é um exemplo disso.

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Título nacional: A Propósito de Llewyn Davis Realização: Joel e Ethan Coen

INSIDE LLEWYN DAVIS

Elenco: Oscar Isaac, Carey Mulligan, John Goodman Ano: 2013

CÁTIA ALEXANDRE

Llewyn Davis é um cantor de folk frustrado, de momento a passar por um mau bocado depois do suicídio do seu parceiro musical. Sem sucesso algum nesta fase da carreira, ele parece estar perdido, sendo completamente indiferente para muitos, quer como indivíduo quer pelo amor ao que faz. Ele tenta todos os dias não ser um completo falhado, mas a vida não lhe facilita o caminho, como se o fracasso já fosse algo que estará para sempre presente até ao resto dos seus dias.

humorístico e inteligente característicos dos irmãos Coen em mais uma obra memorável e infelizmente subestimada. É daquelas experiências em que tudo que possa dizer não é nada comparado com o que sentimos quando o vemos. A Propósito de Llewyn Davis é um filme não só sobre música, mas também sobre uma carreira musical, sendo primeiramente e acima de tudo um filme sobre um homem e as suas complexidades. Mais uma vez Joel e Ethan Coen foram capazes de provocar várias emoções em mim. Nunca me canso de lhes agradecer. Das melhores e mais marcantes experiências que tive numa sala de cinema, especialmente tocante.

Oscar Isaac tem um desempenho fantástico, e ficamos aqui a saber que também é óptimo cantor — as cenas que envolvem algumas das canções são absolutamente mágicas de se ouvir e de se ver, já para não falar da influência enorme que a bela cinematografia faz por esses momentos, tornando-os emocionais e íntimos. Com banda sonora de grande qualidade, que por si só também ajuda a contar a história, esta é uma odisseia melancólica que ao mesmo tempo encontra o tom

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Título nacional: As Asas do Vento Realização: Hayao Miyazaki

KAZE TACHINU

Elenco: Hideaki Anno, Hidetoshi Nishijima, Miori Takimoto Ano: 2013

PEDRO MIGUEL FERNANDES

Apesar de ultimamente terem surgido algumas produções de animação bastante interessantes fora dos EUA, é inegável que o monopólio dos melhores títulos dentro deste género continua a ser americano. A única excepção é a filmografia nipónica, com grande destaque para Hayao Miyazaki, autor de personagens como Chihiro, Totoro ou a Princesa Mononoke, entre muitos outros, e de um belíssimo trabalho nos seus estúdios Ghibli.

Miyazaki, como sempre, trata Jiro com a mesma justeza com que trata todas as suas personagens, com uma poesia ao alcance de poucos. A profissão de Jiro nem é o mais importante em As Asas do Vento, pois o que interessa ao realizador é contar a história de um rapaz que quer ser piloto, mas por razões de saúde não pode cumprir o seu sonho, acabando por seguir as pisadas de um dos seus heróis que desenha aviões. Um filme optimista, como a frase que o inspirou ("Le vent se lève!... Il faut tenter de vivre!”, de Paul Valéry), que apesar de se afastar do universo fantástico de Miyazaki (apenas presente nos sonhos de Jiro), mantémse fiel à animação tradicional, com o mínimo recurso a técnicas digitais, que sempre foi a imagem de marca do seu autor.

A estas veio-se juntar de pleno direito Jiro Horikoshi, protagonista de As Asas do Vento, um engenheiro aeronáutico japonês que nasceu no início do século XX e durante a II Guerra Mundial desenhou os principais aviões do Japão. À partida a figura de alguém que trabalhou num dos exércitos do Eixo, criando o que poderíamos chamar de máquinas de morte, não seria a figura mais simpática para retratar. Esta opção valeu mesmo algumas críticas fortes vindas de alguns quadrantes políticos. Mas

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Título nacional: Golpada Americana Realização: David O. Russell

AMERICAN HUSTLE

Elenco: Christian Bale, Amy Adams, Bradley Cooper Ano: 2013

SARA GALVÃO

O primeiro filme de David O. Russell após Guia para um Final Feliz (Silver Linings Playbook, 2001) estava destinado a ter grandes expectativas à volta dele. E, aquando da sua estreia, Golpada Americana parecia não desiludir. As críticas negativas vieram depois, apesar do filme ter sido nomeado para dez Óscares (incluindo Melhor Filme e Realizador) —sem, contudo, concretizar um único.

Sydney ajuda Irving nas suas trafulhices, e torna-se a sua parceira no trabalho e no quarto. Quando o inspector do FBI Richie DiMaso (Bradley Cooper) os apanha e os obriga a colaborar numa operação anti-corrupção contra políticos, Irving e Sydney têm a sua relação posta à prova. Num mundo de manhas e contra-manhas, onde o amor e a atracção são usados como armas, Golpada Americana é uma comédia de enganos com uma banda sonora de deixar baba no queixo e um leque de actores que, só por si, fazem valer o filme. Apesar de haver melhores argumentos no género (O. Russell não consegue surpreender com o seu twist final), Golpada Americana consegue entreter, quanto mais não seja pela (mais uma vez) completa transformação física de Bale e a sua luta com o seu terrível capachinho. O que leva à pertinente pergunta — é este o filme que temos de culpar pela terrível moda do dad bod?

Estamos nos anos 70, como podemos adivinhar pelo estilo dos créditos, cabelos, roupas, banda sonora e o título inicial a dizer “1978”. Irving Rosenfeld (Christian Bale) é um vigarista de carreira, casado com uma mãe solteira (Rosalyn, interpretada por Jennifer Lawrence) que finge, entre outras coisas, ser um investidor bancário. Quando ele conhece a exstripper Sydney Prosser (Amy Adams), Irving apaixona-se perdidamente.

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Título nacional: Debaixo da Pele Realização: Jonathan Glazer

UNDER THE SKIN

Elenco: Scarlett Johansson, Jeremy McWilliams, Lynsey Taylor Mackay Ano: 2013

SARA GALVÃO

E se, de repente, a Scarlett Johansson te oferecer boleia? O melhor que tens a fazer é mesmo fugir a sete pés. Debaixo da Pele, do realizador Jonathan Glazer, é considerado um dos melhores filmes de ficção científica do presente século — e não é para menos. Johansson interpreta uma criatura que, qual sereia do espaço sideral, atrai homens sozinhos para a sua destruição. Com visuais ousados (que remetem para 2001: Odisseia no Espaço, misturando luzes e cores em sequências psicadélicas), gosma negra e momentos horripilantes (pele a flutuar, alguém?), Debaixo da Pele reverte o tradicional papel dos géneros — aqui é a mulher perigosa que caça homens solitários. Sem qualquer explicação de quê ou porquê, a narrativa prossegue enquanto tentamos adivinhar os pensamentos e sentimentos de um ser que nem sequer temos a certeza se pensa ou sente — mas que claramente não aprecia bolo de chocolate.

Facilmente interpretável como uma crítica da sociedade machista (a reparar no tipo de homens que Ela decide sacrificar, e quem ela decide poupar), Debaixo da Pele quase que surge como um grito de misandria, onde os homens — nus, frágeis, de pénis erecto — desaparecem no negrume do qual não há volta. Aquando da estreia deste filme, Glazer foi comparado a Kubrick, mas parece-nos que a comparação com Tarkovsky será mais adequada. O simbolismo da morte dos pobres tipos que se deixam seduzir pelas curvas mortíferas de Johansson — e pelo seu batom vermelho — está ao nível do cineasta russo. Um realizador comum mostrá-la-ia a matálos com todo o gore e tortura possível. Espetar gosma negra movediça no chão do primeiro andar está reservado aos verdadeiros génios cinematográficos.

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Título nacional: Gravidade Realização: Alfonso Cuarón

GRAVITY

Elenco: Sandra Bullock, George Clooney Ano: 2013

JOSÉ CARLOS MALTEZ

Apelidado de 2001: Odisseia no Espaço (1968) do século XXI, Gravidade, de Alfonso Cuarón, é um festim visual sem a dimensão metafísica do seu modelo.

soluções miraculosas, a personagem de Bullock vive uma luta desigual entre si e o Universo. E é aí que o filme ganha alguma dessa metafísica, como se os seus 90 minutos fossem uma analogia de gestação e nascimento humanos (note-se como Bullock — até então presa à vida por cordões quase umbilicais — renasce dentro de água, num regresso à luz e a um primeiro respirar natural na Terra), com o papel do homem (e seus primeiros passos) no Universo como tema escondido nas entrelinhas. Por essa beleza cinemática perdoa-se um enredo forçado (o papel de George Clooney, estendido só porque sim, a série de coincidências que fazem com que tudo seja destruído à passagem de Bullock, excepto o metro cúbico por ela habitado, ou a história triste da sua vida) e, excessos à parte, a experiência visual merece um grande ecrã para sofrermos com a protagonista a claustrofobia de um infinito tão vazio.

O realizador mexicano já tinha dado nas vistas ao assinar o melhor dos filmes da série Harry Potter — Harry Potter e o Prisioneiro de Azkaban (2004) — e ao dar-nos um dos mais irreverentes filmes de ficção científica recentes — Os Filhos do Homem (2006). Agora, com maior orçamento e ambição, Cuarón quis dar-nos o céu, num filme que arrasaria nos festivais e prémios internacionais. Partindo de um acidente numa estação espacial em órbita da Terra, Cuarón traz-nos uma sobrevivente — Sandra Bullock — que vive na pele a famosa linha de Alien - O 8.º Passageiro (1979) de Ridley Scott: “no espaço ninguém te ouve gritar”. De salto em salto, entre catástrofes e

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A Propรณsito de Llewyn Davis, 2012

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O Homem Duplicado, 2014


2014 EDGAR ASCENSÃO

Poderia iniciar este resumo cinematográfico de 2014 como “O ano do Sony Hack, do Fappening e da bronca com Uma Entrevista de Loucos (The Interview, Evan Goldberg e Seth Rogen). Mas também houve filmes! E não é que até foi dos melhores anos deste milénio?

O Homem Duplicado (Enemy, Denis Villeneuve) é outro que vem por arrasto, neste subsubgénero dos “Weird Movies”. Apesar de estrear com algum atraso, foi quando José Saramago voltou a ser primorosamente adaptado ao cinema, ainda que de um livro menor da sua obra. Com este filme, Denis Villeneuve já ia chamando a atenção, antes de puxar pelos galões orçamentais. Ou O Senhor Babadook (The Babadook, Jennifer Kent), a subverter o terror, ainda que com com os seus jump scares, mas esmurrando-nos com uma interpretação assombrosa de Essie Davis (a que só faltou a nomeação ao Óscar). Em todos estes filmes, fomos descodificando imagens, entendendo metáforas e multiplicadores de camadas simbólicas, entre realidades difusas quando afinal é tudo farinha do mesmo saco.

Começando com uma história das estrelas, Interstellar de Christopher Nolan volta a brincar com as noções reais de tempo — depois de A Origem (Inception) — para nos contar uma história com humanidade (com e sem H maiúsculo). Foi a estrear quase no final do ano, mas marcou-o de forma incomparável. Houve trincheiras de preferências, “Nolanites” e “Anti-Nolan”, tudo a falar dele. Fez lembrar o de Kubrick, aquele 2001 que metade odeia (e a outra metade ama). É preciso é falar dele. Decifrar e imortalizar. Para que daqui a umas décadas ainda se fale nele.

Por falar em farinha, há que também separar o trigo do joio. Transcendence: A Nova Inteligência (Wally Pfister), Eu Frankenstein (Stuart Beattie), Umas Férias Inesperadas (Blended, Frank Coraci), Ouija - O jogo dos Espíritos (Stiles White), Left Behind - A Última Profecia (Vic Armstrong), Pompeia (Paul W. S. Anderson), tudo “ahahah”, riso de doer a barriga, de tão maus que foram. Foi também ano em que algumas sequelas medonhas patinaram os franchises correspondentes, já que Transformers: Era da Extinção (Michael Bay), O Fantástico Homem-Aranha 2: O Poder de Electro (Marc Webb) e O Hobbit: A Batalha dos Cinco Exércitos (Peter

Mas quando se fala demasiado em apenas uma coisa, há outras que passam ao lado. Quem não teve tempo de remexer no oceano cinematográfico pode ter perdido algumas gemas desconhecidas. Coherence (James Ward Bykirt) e Predestinado (Predestination, The Spierig Brothers) formam um duo poderoso de ficção científica. Os dois mindfuck. Nenhum deles mainstream. Mais ou menos lineares, alguns mais complexos que outros, ou até surrealistas, mas todos eles enigmáticos o suficiente para criar um culto imediato em redor deles. 115


Frank, 2014 Jackson) foram cada um deles xaropadas monumentais. Mas sem me alongar muito com a lista das (intermináveis) sequelas, há que salientar os bons frutos recolhidos desta macrocultura. Desde o subgénero de super-heróis, tão em voga desde o início desde milénio, que têm conseguido altos rendimentos. Tais como Capitão América: O Soldado do Inverno (Anthony e Joe Russo), tendo-nos agraciado com o (até à data) melhor filme do Marvel Cinematic Universe. E no outro universo X-Men, com X-Men: Dias de Um Futuro Esquecido (X-Men: Days of Future Past, Bryan Singer) baralhando cartas e puxando pelos naipes todos, para uma sólida sequela/prequela da saga dos mutantes. Outro franchise da Fox viu também bons dias, com Planeta dos Macacos: A Revolta (Dawn of the Planet of the Apes, Matt Reeves), mostrando-nos a fase decadente da espécie humana, apontando-nos os defeitos através deste espelho distorcido.

E prémios? A malta só liga aos Óscares. E ainda assim são vulgarizados. Mas vá, que o deste ano foi valente. Valente barrete também houve, pois quando nem Jake Gyllenhaal consegue a nomeação por Nightcrawler Repórter na Noite (Dan Gilroy), obra do Demo, ainda a provocar suores frios à TMZ. Do lado dos bons há Whiplash - Nos Limites (Damien Chazelle), também a provocar outro tipo de suores às gentes da música. Sem esforço não sai nada. Mais rápido! Damien Chazelle, boa, estás convocado para a próxima década de cinema. Mas Birdman ou (A Inesperada Virtude da Ignorância) (Alejandro G. Iñárritu) vem fechar este teclado. Um vencedor dos Óscares a contornar os (maus) hábitos da cerimónia e elevar outros temas. A estrutura também não é vulgar e não se acomoda nada nas banalidades das introspecções psicológicas, nas preocupações de querer fazer um desenho explicativo ao espectador. A primeira vez em que vemos um mindfuck a ganhar o maior troféu cinematográfico? “Oh yeah!”

2014 foi também ano de indies memoráveis. Destacando alguns, The Guest (Adam Wingard) trouxe atrelada uma banda sonora espantosa, Frank (Lenny Abrahamson) escondeu as feições de Michael Fassbender em praticamente todo o filme, John Wick (Chad Stahelski e David Leitch) explicou-nos porque nunca se deve fazer mal a um cão, e o que dizer de Infectado (Afflicted, Derek Lee, Clif Prowse), um dos melhores exemplos em estilo found footage dos últimos anos?

E a lista já vai longa e nem tinha dado conta. Caramba, estes blockbusters não são para deitar fora, desenfreados, divertidos, para colocar ali no pedestal dos enormes do entretenimento moderno. Guardiões da Galáxia (James Gunn), outro da Marvel, a trocar as voltas dos popularuchos da Casa. O Filme Lego (Phil Lord, Christopher Miller), que nos limpa a cabeça de preconceitos iniciais (quem nunca disse que era má ideia quando foi 116


anunciado, que atire a primeira pedra). Kingsman: Serviços Secretos (Matthew Vaughn), lunático, veloz e a meter o senhor Bond outra vez a suar. 2014 foi também aquela altura em que pudemos ver Tom Cruise morrer tantas vezes quanto as que quisemos, no filme No Limite do Amanhã (Edge of Tomorrow, Doug Liman). Para ele deu-lhe jeito, enquanto foi aprendendo os “ossos do ofício”. E nós fomos aprendendo com ele. Até mesmo um Godzilla (Gareth Edwards) maior que nunca respeita as normas da série e deixou os fãs a salivar (irritados) pela pouca duração de cena. Para quando outro como este 2014? É rezar ou fazer figas, depende da religião de cada um. É esperar que corra pelo bem, sem o dinheiro a falar (mais) alto. Marvel, Star Wars ou A24 a rebentar (quase sempre) a casa toda, logo se verá como tudo isto dos filmes se sai. Antes que os trolls da internet lhes ponham as mãos.

O Filme Lego, 2014

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2014


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Título nacional: Leviatã Realização: Andrey Zvyagintsev

LEVIATHAN

Elenco: Aleksey Serebryakov, Elena Lyadova, Roman Madyanov Ano: 2014

SARA GALVÃO

Na desértica e agreste Península de Kola, junto ao mar de Bering, Kolya (Aleksey Serebryakov) vive com a jovem mulher Lilya (Elena Lyadova) e um filho de um primeiro casamento numa casa isolada que pertenceu à sua família durante várias gerações. Infelizmente, um político rico local decidiu que o terreno seria seu e, usando da sua prepotência, tem arrastado Kolya por tribunais para o forçar a vender a casa por uma quantia ridícula. Kolya não é homem para desistir e pede ao seu melhor amigo, Dima (Roman Madyanov), um advogado em Moscovo, para o ajudar. Mas a chegada de Dima à pequena povoação vai desencadear uma série de eventos que levarão a família de Kolya à tragédia.

nos filmes de Zvyagintsev, é cuidada, naturalista, de luz baixa e num cinzento chiaroscuro que fecha a porta a qualquer esperança ou cor. Não há planos próximos neste mundo — com takes longos e uma preferência pelo plano médio ou afastado, é uma narrativa púdica, sem espaço para a exploração emocional das personagens, deixando o melodrama de lado para dar lugar à verdadeira tragédia grega. Mesmo as cenas de sexo ou violência acontecem fora de cena (ou nas suas bordas); o momento mais violento de todo o filme é visto através de uma dashcam, qual piscadela de olho à cultura russa. E essa mesma cultura russa é fielmente retratada, enquanto Kolya e os amigos bebem vodka, fazem churrascos no meio do nada e praticam tiro ao alvo com retratos de antigos presidentes.

Há apenas dois momentos musicais em Leviatã — no início e no final. Ambos da autoria de Philip Glass, como música de fundo a uma paisagem dramática e inexorável. Ruínas, destroços de barcos, o esqueleto de uma baleia. Símbolos de um lugar que é tão belo quanto cruel, onde sonhos são esmigalhados contra as ondas e o tempo não perdoa, servindo de prólogo e epílogo a esta versão da história bíblica de Jó. A atmosfera é tão opressiva que sentimos o peso à nossa volta enquanto as personagens, numa economia narrativa de mestre, se vão revelando aos poucos e poucos, embriagadas de vodka, angústia e desamor. Kolya recusa-se a desistir, e é essa teimosia que o levará, ironicamente, à sua queda; enquanto Dima, o homem de factos e desligado de misticismos, vê-se a lidar com poderes magnânimos aos quais não consegue escapar num Este Selvagem onde a sofisticação de Moscovo de nada lhe serve. Ambos tentam ir contra a corrente, e ambos se afogam no processo.

Em vários momentos da narrativa, parece haver esperança para as personagens — Dima consegue material para chantagear o político, Lilya tem a oportunidade de fugir da sua vida miserável com o amante, Kolya poderia comprar um apartamento em Moscovo e começar do zero. Mas tanto Kolya como Lilya são parte da paisagem agreste que os rodeia e jamais ousarão deixar o lugar a que pertencem, uma escolha pela qual ambos pagarão caro. O acto final, de certo modo ambíguo — foi tudo orquestrado pelo político ou houve mão do Fatal Destino? — fecha com uma Rússia que recusa tanto estranhos e nativos, um território onde a sobrevivência só é possível a evitar e evadir-se dos predadores. Vencedor do melhor guião em Cannes, do Globo de Ouro para Melhor Filme Estrangeiro, e nomeado para o Óscar de Melhor Filme Estrangeiro, Leviatã é uma das cinco longas-metragens de Zvyagintsev, um actor tornado realizador por acidente, e que é já um dos grandes nomes da filmografia russa e mundial.

Incrivelmente patrocinado pelo Ministério Russo da Cultura, Leviatã é uma fábula controversa de hipocrisia e corrupção, uma história moderna de David vs Golias onde David perde, e onde política e religião andam de mãos dadas para manter os fracos debaixo de um jugo invisível contra o qual não podem vencer. A cinematografia, como é habitual 121


Título nacional: Vício Intrínseco Realização: Paul Thomas Anderson

INHERENT VICE

Elenco: Joaquin Phoenix, Katherine Waterston, Josh Brolin Ano: 2014

JOÃO PAULO COSTA

Baseado no épico romance “detectivesco” e alucinatório de Thomas Pynchon, Vício Intrínseco retoma a parceria de Paul Thomas Anderson com Joaquin Phoenix, desta vez para uma história coberta pelo fumo da erva hippie de Los Angeles na passagem da década de 1960 para a de 1970, quando o amor livre deu lugar à paranóia de Manson e Nixon. Mais do que a comédia tresloucada que a sua promoção dava a entender, trata-se de um noir coberto de nostalgia com um olhar definitivamente desencantado sobre o ideal americano.

Tal como os grandes film noir da história do Cinema, Vício Intrínseco está menos preocupado com a lógica interna do enredo do que com as suas personagens, nomeadamente como lida com a relação mal resolvida de Doc com Shasta ou com o ódio de um detective da polícia de Los Angeles (Josh Brolin) à cultura hippie da época em que vive e que, claramente, parece não conseguir compreender. O mais próximo que Anderson esteve nos últimos anos de regressar aos filmes-mosaico de início de carreira, o realizador é exímio na forma como agarra todas as pontas de uma narrativa demasiado complexa, oferecendo a cada uma das suas muitas personagens (e respectivos actores) pelo menos um momento para que possam brilhar ao mais alto nível.

Phoenix dá corpo a Doc Sportello, um detective privado permanentemente ganzado que, a pedido de Shasta, uma ex-namorada (Waterston), investiga o desaparecimento de um poderoso magnata do imobiliário local. Durante essa investigação irá cruzar-se com toda a espécie de lunáticos de ambos os lados da lei e tentará encaixar devidamente as peças do puzzle que se vai formando.

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Título nacional: Whiplash - Nos Limites Realização: Damien Chazelle

WHIPLASH

Elenco: Miles Teller, J. K. Simmons, Melissa Benoist Ano: 2014

J. B. MARTINS

Um ano antes de La La Land: Melodia de Amor, Damien Chazelle tomou de assalto o mundo da sétima arte com Whiplash – Nos Limites, um drama sobre a obsessão e a procura cega da perfeição. Sem ser perfeito, Whiplash – Nos Limites, tal como o seu protagonista mais jovem (Miles Teller numa excelente interpretação), procura incessantemente essa perfeição. E da mesma forma que o personagem de Teller sacrifica praticamente a totalidade da sua vida pessoal para conseguir fazer aquilo que faz melhor — brilhar atrás da bateria —, Chazelle sacrifica parte da narrativa para brilhar na sala de música.

em cena, as certezas desvanecem-se. Sentimos a ambição e o poder. Duvidamos dos pretos e dos brancos e entramos no jogo. Será que não vale mesmo a pena sacrificar tudo por aquele momento de adrenalina? Será? Mas a dúvida não dura muito tempo e quando esses momentos acabam, Whiplash – Nos Limites torna-se rotineiro. Diria mesmo maçador. Óbvio nas referências e pobre em subtexto. No filme que nos interessa não há espaço para a namorada nem para a família. É evidente que esses personagens só servem para ligar aquilo que realmente interessa a Chazelle: a música.

Quando Teller e Simmons estão em cena a fazer o que fazem de melhor (confrontarem os egos ao som do jazz mais caótico), Whiplash – Nos Limites é intensidade no estado mais bruto — uma explosão de som e de cortes rápidos que nos demonstram porque é que a montagem é tão importante para o cinema. Quando o aluno e o professor se enfrentam

No fim de tudo, e feitas as contas, Whiplash – Nos Limites não é mais do que uma curta-metragem esticada e isso acaba sempre por se notar. Mas a experiência, essa ninguém nos tira. E que experiência, meus senhores!

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Título nacional: Interestelar Realização: Christopher Nolan

INTERSTELLAR

Elenco: Matthew McConaughey, Anne Hathaway, Jessica Chastain Ano: 2014

FILIPE LOPES

Falar de Interstellar não é falar num filme comum; muito menos num comum filme de ficção científica. É falar num poema em imagens, som e música; num filme que se ultrapassa e nos ultrapassa a nós; que nos faz sonhar, pensar e reflectir, mas também sentir. Se tivesse que fazer uma comparação (e dou, nela, o meu peito às balas, assumindo-a por completo) este filme é tudo o que A Árvore da Vida (2011, de Terrence Malick) não é e pretendia ser.

Chastain e Anne Hathaway, dos veteranos Michael Caine, John Lithgow e Ellen Burstyn, e dos novatos Mackenzie Foy e Timothée Chalamet. Quem, no entanto, esperava de Interstellar mais um filme de ficção científica com explosões e acção a rodos não poderia ficar mais defraudado já que a narrativa usa o tempo, e até a temporalidade, da maneira que mais convém ao que pretende ilustrar. Este é, sem dúvida, um dos melhores, talvez mesmo “O” melhor filme americano de 2014, e um dos melhores, se não mesmo “O” melhor de Christopher Nolan. É curioso, ou talvez nem por isso, notar a sua ausência na luta pelos principais galardões da Academia. Ganhou o Óscar para os Melhores Efeitos Visuais, mas nem foi nomeado para Melhor Filme, Melhor Realização, ou Melhor Actor. E merecia!

Um grande filme sobre a espécie humana; sobre o “De onde vimos?”, o “Para onde vamos?” e o “O que fazemos aqui?”. Uma obra de arte que Christopher Nolan soube pincelar maravilhosamente a partir de um argumento que o próprio escreveu em conjunto com o irmão mais novo, Jonathan, assente na música de um incrível Hans Zimmer, na magnífica direcção de fotografia de Hoyte Van Hoytema e das soberbas interpretações dos consagrados Mattew McConaughey, Jessica

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Título nacional: Em Parte Incerta Realização: David Fincher

GONE GIRL

Elenco: Rosamund Pike, Ben Affleck, Neil Patrick Harris Ano: 2014

CÁTIA ALEXANDRE

No dia do 5º aniversário de casamento de Amy e Nick, Amy desaparece e Nick torna-se o principal suspeito no desaparecimento ou possível morte. Mas Em Parte Incerta é mais que uma investigação criminal, estudando características do ser humano e até onde é capaz de ir pelos seus objectivos. Andando para trás e para a frente entre a investigação no presente, e flashbacks de Amy, vemos cenas enquanto ela narra momentos do seu diário, seguindo os passos desde que ela e Nick se conheceram, até ao casamento e aquilo em que se tornaram, num estudo de personagens interessante.

sociedade é também abordado de forma inteligente, até porque é realmente assim que funciona. Ben Affleck interpreta um tipo descontraído, numa performance simples que não exige muito dele, mas que resulta bem. A estrela do filme é Rosamund Pike — digna de reconhecimento —, absolutamente fascinante e muitas vezes assustadora. A atmosfera sombria e envolvente a que David Fincher já nos habituou continua presente. É impossível descolar o olhar por um segundo e o ambiente misterioso arrasta-nos para dentro da investigação, colocando toda a gente a tentar desvendar os segredos de Amy.

O argumento é estruturado e cativante, utilizando humor negro na primeira hora, especialmente no que toca ao personagem Nick, mas é na segunda parte que as coisas mudam de tom, ficando mais assustadoras com o desenrolar da história, tudo de braço dado com uma brilhante banda sonora. A relação com os média e o efeito que têm sobre a

Em Parte Incerta é um dos mais diabólicos filmes sobre relações conjugais. Seremos capazes de tudo para conseguir o que queremos? Até onde poderá ir a maldade humana em prol de caprichos?

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Título nacional: Boyhood: Momentos de Uma Vida Realização: Richard Linklater

BOYHOOD

Elenco: Ellar Coltrane, Patricia Arquette, Ethan Hawke e Lorelei Linklater Ano: 2014

JOÃO BIZARRO

“What is drama, after all, but life with the dull bits cut out?” — Alfred Hitchcock Gravado ao longo de doze anos (com apenas 39 dias de filmagens, entre 2002 e 2013), Boyhood acompanha o crescimento de Mason Evans Jr. (Ellar Coltrane) dos seis aos dezoito anos. Mason vive com a mãe, Olivia (Patricia Arquette), e com a irmã mais velha, Samantha (Lorelei Linklater, filha do realizador). O pai, Mason Sr. (Ethan Hawke), está separado da mãe, mas está com os filhos aos fins-de-semana e nas férias.

próprias mudanças — formando-se, encontrando emprego e conhecendo novos amores —, Mason Jr. vê familiares, amigos e até namoradas, entrar e sair de sua vida. É de sublinhar a elegância, o rigor narrativo e a sensibilidade de Richard Linklater, que aparenta ser obcecado pelas narrativas temporais e pelas relações pessoais, basta recordar que são dele os filmes da trilogia “Before” — Antes do Amanhecer (1995), Antes de Anoitecer (2004) e Antes da Meia-Noite (2013) —, com Ethan Hawke e Julie Delpy como protagonistas, e também uma viagem temporal ao longo de duas décadas na vida das suas personagens.

Ano após ano, vamos assistindo ao crescimento desta criança, que podia ser qualquer um de nós, com as mesmas crises, os mesmos problemas, alegrias e tristezas. À medida que Mason Jr. cresce, a sua família mudase de cidades pequenas para maiores, e de apartamentos de renda baixa para casas de classe média/alta, com todas estas mudanças afectando os protagonistas. Enquanto Olivia e Mason Sr. passam pelas suas

Boyhood foi um dos melhores filmes do seu ano, ganhando vários prémios e nomeações, o que não deixa de ser brilhante para um projecto independente e inovador.

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BIRDMAN OR (THE UNEXPECTED VIRTUE OF IGNORANCE)

Título nacional: Birdman ou (A Inesperada Virtude da Ignorância) Realização: Alejandro Gonzalez Iñarritu Elenco: Michael Keaton, Emma Stone, Edward Norton Ano: 2014

CÁTIA ALEXANDRE

Birdman é a ambiciosa obra de Alejandro González Iñarritu, fascinante em todos os sentidos. Original e completo, abrange temas como a fama e a forma como Hollywood trata e idolatra os seus actores. Apesar de nos fazer visitar os bastidores daquilo que é a vida de um deles (um actor que já não vive os seus dias de glória) também nos mostra um lado profundo e sentimental de um homem comum que no fundo só quer ser reconhecido por todo o seu trabalho.

Michael Keaton interpreta uma das personagens da sua carreira, numa performance excelente, extremamente vulnerável e profunda. Facto curioso é que esta história se assemelha com a própria carreira de Keaton, que está bem marcada pelas suas duas interpretações na pele de Batman, entre 1989 e 1992. Com um elenco de luxo, capaz de nos dar grandes interpretações secundárias, o filme conta com actores como Edward Norton, Emma Stone, Zack Galifianakis ou Naomi Watts, que dão ainda mais ênfase e cor a todo este drama de vida da personagem de Keaton, também eles a lutar contra algum tipo de problema interior, o que os faz ligarem-se-se a um nível mais íntimo.

A cinematografia é incrível, criando a impressão de que está filmado num único plano-sequência do início ao fim, acabando por nos dar uma maior proximidade com os personagens, fazendo-nos sentir como se estivéssemos ao seu lado constantemente, enquanto é feito um estudo sobre cada um deles. A banda sonora é outro dos aspectos que é importante frisar, contribuindo também para toda a originalidade que paira sobre o filme.

Birdman merece ser vivido mais que uma vez, pois encontramos sempre elementos que nos escaparam na primeira visualização. Daqueles que roça mesmo o genial.

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Título nacional: Grand Budapest Hotel Realização: Wes Anderson

THE GRAND BUDAPEST HOTEL

Elenco: Ralph Fiennes, F. Murray Abraham, Mathieu Amalric Ano: 2014

PEDRO MIGUEL FERNANDES

Com Grand Budapest Hotel, Wes Anderson conseguiu finalmente chegar ao grande campeonato dos Óscares ao conquistar nove nomeações. Não que fosse um nome habitualmente esquecido pela Academia, que ao longo dos anos tem nomeado o cineasta na categoria de argumento. Mas com Grand Budapest Hotel foi reconhecida a outra grande característica de Wes Anderson: um cinema meticuloso e atento ao pormenor, muitas vezes comparado a uma casa de bonecas, que lhe garantiu os Óscares para caracterização, guarda-roupa e decoração de interiores. A estes três somou-se ainda a banda sonora, assinada por Alexandre Desplat, um dos cúmplices do realizador nos últimos filmes.

primeiro e as portas do segundo) e dos livros de Stefan Zweig, um dos escritores que melhor conseguiu retratar a vida na primeira metade do século XX na Europa Central (bastaria apenas ter escrito o obrigatório O Mundo de Ontem para alcançar tal título), inspiração assumida por Wes Anderson. Ou seja, o ambiente perfeito para o cinema “andersoniano”, sempre nas franjas da comédia em tons dramáticos (e neste caso as terríveis sombras do fascismo e o destino de M. Gustave assim o obrigam) num dos poucos filmes do cineasta onde se nota um tom político, longe das tramas familiares a que Anderson nos habituou, mas a que não falta a história de crescimento.

Para tudo isto contribui o pano de fundo de Grand Budapest Hotel, uma história passada em Zubrowka, um país fictício da Europa Central do tempo entre as duas guerras mundiais, habitado por personagens que parecem saídas dos filmes de Ophuls e Lubitsch (a Madame D. do

Em suma, um enorme Anderson, não o nosso favorito, mas aquele onde o realizador chega finalmente à idade adulta.

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Título nacional: Nightcrawler - Repórter na Noite Realização: Dan Gilroy

NIGHTCRAWLER

Elenco: Jake Gyllenhaal, Rene Russo, Bill Paxton Ano: 2014

J.B. MARTINS

O primeiro mérito de Nightcrawler - Repórter na Noite (entre muitos outros) está na incapacidade de o inserirmos facilmente dentro de um género.

que de pior existe na sociedade que o rodeia. Porque em último caso, Bloom pode afirmar que não passa de uma engrenagem do ciclo vicioso do voyeurismo. Tal como a imprensa sacode a culpa para o público com a velha norma do “dar ao público o que ele quer”, Bloom descobre um talento inesperado quando responde a uma necessidade específica do mercado.

Não estaremos totalmente errados se o arrumarmos na gaveta dos thrillers. A tensão inquietante transmitida pela câmara de Gilroy é parceira ideal da falsa pacatez de Lou Bloom, o personagem do extraordinário Jake Gyllenhaal. Se aliarmos tudo isso à banda-sonora de James Newton Howard e à narrativa policial que visita a determinada altura, temos todos os elementos de um poderoso thriller clássico.

Através dos seus silêncios (ou da forma como tenta encher esses silêncios com frases feitas e boas maneiras), conseguimos senti-lo a absorver os vícios do lado negro da sociedade urbana e capitalista, para a qual tudo (incluindo o sofrimento humano) não passa de uma relação comercial com a qual se pode lucrar. E é nesse momento que sentimos o murro no estômago e percebemos porque é que os melhores filmes são aqueles que nos abrem os olhos e não permitem que os contrariemos. Pelo menos sem mentirmos a nós próprios.

Mas mais do que se limitar a ser um thriller, Nightcrawler - Repórter na Noite funciona sobretudo como uma peça de observação: um pequeno e saboroso estudo de personagem que se desenrola à volta de um indivíduo fascinante que se vai moldando e retorcendo até absorver o

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Título nacional: Ex Machina Realização: Alex Garland

EX MACHINA

Elenco: Alicia Vikander, Domhnall Gleeson, Oscar Isaac Ano: 2014

ANTÓNIO ARAÚJO

Ex Machina é um filme de câmara com três protagonistas centrais. Oscar Isaac é Nathan, o excêntrico e genial magnata — ao mesmo tempo sedutor e repelente, amigável e ameaçador — que escolhe o programador Caleb (Domhnall Gleeson) para uma experiência irresistível: testar a inteligência artificial do robô Ava, a revelação Alicia Vikander. Esta funciona como uma ilusão dupla: em conjunto com os efeitos especiais que lhe retiram o elemento carnal, acreditamos estar na presença de uma unidade robótica, mas, depois do logro inicial, é convincente como uma entidade consciente, senciente e de vontades e inclinações humanas.

Ex Machina alterna entre as sessões de Ava e Caleb e as conversas entre este e Nathan. Os diálogos nunca traem a inteligência das suas premissas e personagens, e envolvem debates sobre a consciência e o seu papel na evolução da inteligência humana e artificial, o papel da intencionalidade e da aleatoriedade do caos na natureza humana e nas artes, os conceitos de desígnio e de livre arbítrio ou a função e a natureza da sexualidade. Nathan sofre de um complexo de Deus, contornando factos e dobrando verdades na construção da sua própria mitologia em tempo real. No final, Caleb não passou de um peão num jogo perigoso que coloca em confronto o criador com a criação que o despreza.

É o eterno confronto entre a simulação e o real. Qual a diferença entre pensamento, estímulo, sentimento ou acção simulados ou reais? Não faz tudo parte de uma capacidade intrínseca de percepção e interacção préprogramadas, sejam elas artificiais ou genéticas?

Alex Garland tem aqui uma estreia triunfal na realização que o coloca como uma referência da melhor ficção científica actual.

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Grand Budapest Hotel, 2014

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Kung Fury, 2015


2015 CARLOS MIGUEL REIS

mundo em alguns festivais de cinema de pequena dimensão. Mas aqui, neste documentário que mostra como toda esta homenagem surgiu, muito mais importante do que a adaptação caseira do clássico de Spielberg, é absorver o desenrolar das relações entre o trio, a forma como o filme sempre os uniu e protegeu do mundo exterior, dos divórcios dos pais, da vida complicada que todos tinham. E como, com o crescimento, as namoradas, os quinze segundos de fama, as drogas e tudo o mais, três amigos quase se odiaram de morte.

O DESPERTAR DA FÚRIA No ano em que os Estados Unidos e Cuba reataram relações cinco décadas passadas da invasão da Baía dos Porcos, Charlie Hebdo e Germanwings fizeram capas em todo o mundo pelas piores razões e David Letterman se retirou do Late Show da CBS ao fim de trinta e três anos de entrevistas e gargalhadas, nas salas de cinema muitos foram os sucessos, vinte e nove para ser mais exacto, que só nos EUA amealharam mais de cem milhões de dólares na bilheteira. Entre eles 007 Spectre (Sam Mendes), O Marciano (Ridley Scott), San Andreas (Brad Peyton), Velocidade Furiosa 7 (James Wan), Missão Impossível: Nação Secreta (Christopher McQuarrie) ou Mundo Jurássico (Colin Trevorrow), filmes que não voltarão a ser referidos daqui em diante; porque dinheiro não é sinónimo obrigatório de qualidade.

Festim para os olhos foi Sicário - Infiltrado (Denis Villeneuve), dono e senhor de uma cinematografia de excelência onde cada plano, cada sequência de acção ou introspecção, perto ou longe, de dia ou de noite, no interior de um túnel ou no meio de um deserto, é filmada e pensada ao mais ínfimo pormenor; um elenco todo ele irrepreensível, de Blunt a Brolin, onde o magnânimo Del Toro consegue, ainda assim, sobressair graças ao infinito imenso que é o seu olhar frívolo. Um possante exemplo da beleza do cinema enquanto arte visual.

Em Raiders!: The Story of the Greatest Fan Film Ever Made (Jeremy Coon, Tim Skousen), três rapazes de onze anos decidem recriar Os Salteadores da Arca Perdida cena por cena, recorrendo a qualquer objecto ou cenário que tenham perto de casa; trinta e cinco anos depois (sim, leram bem, trinta e cinco!), finalmente terminam aquele que já foi considerado o fan film mais famoso do planeta quando Eli Roth descobriu uma cassete a circular na universidade com uma versão incompleta e apresentou-a ao

Numa faceta mais independente, o que dizer de Kung Fury (David Sandberg)? Minha nossa senhora. Dinossauros que falam, um Hitler paneleirote com jeito para as artes marciais, o Thor, o Triceracop (sim, um polícia metade humano metade dinossauro), a Barbarianna e a Katana. 133


The Invitation, 2015 Um Kung Fury cheio de estilo — mau actor que até dói — e uma banda sonora absolutamente irresistível. Uma curta-metragem tão ridícula que se torna deliciosa, um mash-up perfeito do cinema de acção, ficção científica e artes marciais dos anos oitenta, numa produção financiada pelo público através do Kickstarter que acabou a criar burburinho no Festival de Cannes e, surpresa das surpresas, a merecer uma adaptação a videojogo e uma sequela. Entretenimento rasca repleto de one-liners, aspecto muita foleiro e interferências típicas dos VHS. Tão mau que é bom ou tão bom que é mau, é amor puro — e, logo, tolo — à cinefilia. E ainda Turbo Kid (François Simard, Anouk Whissell), provavelmente o filme pós-apocalíptico mais naive cool de sempre, uma ode encantadora ao cinema underground de ficção-científica dos anos oitenta.

de turcos, programas estranhos nas televisões, miúdos com camisolas do Cristiano Ronaldo e em que todos têm acesso a uma tecnologia fantástica chamada... Google. Uma sátira tão deliciosa quanto impetuosa, que deambula entre um estilo Boratesco e um registo ficcionado do Mein Kampf, que num tom jocoso aborda uma mão cheia de problemáticas sociais e políticas que a Alemanha, em particular, e a União Europeia, em geral, enfrentam nos dias que correm. Duas cenas para dificilmente esquecer? Hitler a ser espancado por neo-nazis e a criação da sua conta de e-mail. O fim da picada? Quando Hitler dá cabo de um cão. Assim anda o mundo. Não nos esquecemos, claro, do grande vencedor dos Óscares, O Caso Spotlight (Tom McCarthy), um filme de uma importância extrema por duas razões primordiais: primeiro, relembra que o jornalismo não pode nunca perder a sua faceta de utilidade e serviço público em prol do negócio, das metamorfoses das redacções, das necessidades do momento, da falta de disponibilidade financeira ou pessoal para permitir investigações pertinentes e profundas que custam tempo e, consequentemente, dinheiro. Porque o jornalismo deve, mais do que nunca, servir como força em alerta constante para descortinar e revelar qualquer ilegalidade ou legalidade imoral que possa ter sido cometida longe dos olhos da justiça — ou mesmo perto dela, caso esteja corrompida. Em segundo lugar, porque

Num equilíbrio notável entre os factos improváveis de uma suspeição pavorosa e as razões prováveis de uma paranóia com origens familiares traumáticas, chegou-nos também The Invitation (Karyn Kusama), uma obra que sabe queimar lentamente os seus trunfos, vivendo e alimentandose da dúvida constante, enquanto deixa o semi-desconhecido elenco deambular entre comportamentos normais e momentos bizarros. Na poesia do ridículo, Ele Está de Volta (David Wnendt) parte de um pressuposto tão simples quanto polémico e audacioso: e se Hitler, como que por magia, voltasse à Alemanha dos dias de hoje? Um país repleto 134


recorda — ou apresenta, aos mais distraídos — a podridão que reina na mais poderosa e mafiosa das instituições mundiais: a igreja católica. Porque não se trata de um caso em específico, mas de um fenómeno. Para terminar, os dois grandes momentos cinéfilos de 2015: Star Wars: Episódio VII - O Despertar da Força (J. J. Abrams), meio reboot, meio reciclagem da fita que deu início a tudo, o sétimo episódio galáctico de Han Solo, Luke Skywalker, Chewbacca e companhia revitaliza uma saga cinematográfica histórica para novas gerações, conseguindo ainda assim agradar os fãs velhotes que olham agora para o futuro com esperança. J.J. Abrams e a Disney infantilizam um pouco os conceitos outrora complexos, imperfeitos (no melhor dos sentidos), ambiciosos e visionários de Lucas, tornando a chancela "Star Wars" acessível a toda a família. Uma espécie de Harry Potter no espaço, um hábil e sólido recomeço, ainda assim longe de ser a obra-prima aguardada e anunciada. E, por fim, o filmalhão não só do ano, mas da década. Mad Max: Estrada da Fúria (George Miller), uma orgia de acção contínua, que nunca pára para respirar, num mundo tão desconcertantemente surrealista e detalhado que parece palpável e genuíno. Um extravagante apocalipse de energia e movimento, fantasticamente maníaco, qual western sobre rodas repleto de personagens tão instantâneas quanto expressivas. Um poema de cores blasonadoras, de rimas excepcionais com o passado, de nome Max mas que, qual reviravolta inesperada, poderia muito bem intitularse Furiosa; é ela quem comanda as prosas da sobrevivência, dá sentido e propósito à hecatombe ecológica e serve de ícone à revolta contra o massacre moral de princípios e valores humanos que corrompe — ao mesmo tempo que o engrandece — o universo criado por George Miller. Que belíssima caminhada de redenção cinéfila.

Ele Está de Volta, 2015

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2015


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Título nacional: Minha Mãe Realização: Nanni Moretti

MIA MADRE

Elenco: Margherita Buy, John Turturro, Giulia Lazzarini Ano: 2015

RUI ALVES DE SOUSA

O último filme realizado por Nanni Moretti até à data situa-se num prisma semelhante a O Quarto do Filho (2001), também do cineasta italiano e com o qual venceu a Palma de Ouro em Cannes: o da família. Mas em vez de olharmos para o imediatamente antes e depois do momento em que um casal perde um dos seus filhos numa tragédia, vemos a maneira como dois irmãos (Margherita Buy e o próprio Moretti) lidam com a contínua degradação do estado de saúde da sua mãe. O desgosto e a perda serão sentimentos inevitáveis, dentro em breve, e ao longo da narrativa vemos como a filha, realizadora (que faz filmes políticos — tal como Moretti mais regularmente nos primórdios, e com O Caimão neste século) olha para as suas memórias e as conjuga com os pensamentos que invadem os seus sonhos.

narrativa, nunca deixando de se separar, e ao mesmo tempo entrelaçar, com os aspectos mais sérios do filme. A inspiração para a obra veio da própria experiência de Moretti e, graças a uma comovente construção narrativa, ganha dimensões totalmente universais. A obra do realizador pode ser acusada de estar numa fase de um certo “conformismo visual”. Estamos longe de uma outra época em que o cineasta arriscava concretizar ideias mais arriscadas nesse campo, como aquele longo e silencioso travelling de Querido Diário que segue o passeio de Vespa de Moretti por Itália. E Minha Mãe não é forte na técnica, assumindo evidentemente o convencionalismo da sua montagem, por exemplo. Mas no que perdemos aí ganhamos noutra parte, e de que maneira: o lado humano da história, das interpretações. John Turturro é perfeito como o comic relief, sendo o actor do filme dentro do filme. Margherita Buy, actriz que já colaborara com Moretti, tem uma das suas melhores prestações e um dos olhares mais belos e marcantes que vimos nestes últimos anos de cinema.

Muitos críticos designaram este como o filme em que Moretti atingiu a maturidade. Dizer isso é esquecer os filmes anteriores do realizador e que não é por ter mudado de registo (há uma grande diferença entre as suas primeiras obras, como os essenciais Bianca e A Missa Acabou, e os títulos mais recentes) e aqui voltar a usar o “dramalhão”, como no filme de 2001, que um autor de repente se torna “maturo”.

Esta é mais uma viagem melancólica à mente da protagonista e à sua relação com a mãe do que uma homenagem à figura materna propriamente dita, é certo — mas não será por isso que o filme consegue ser tão próximo dos seus espectadores? O que podemos afirmar, sem sombra de dúvida, é que Nanni Moretti é um cineasta que volta a surgir nas actualidades cinéfilas muito raramente, assinando um novo filme após um longo intervalo temporal. Mas se todos os seus filmes futuros (e esperemos que ainda venham muitos!) forem do calibre de Minha Mãe, a espera pode ser longa, mas será proveitosa ao contemplar o resultado final.

O humor do autor, sempre com uma ferocidade bastante afiada, conseguiu sempre colocar o dedo na ferida no que incomodava instituições ou figuras da vida pública italiana em particular (vale a pena lembrar a espantosa empreitada de O Caimão, sátira a Berlusconi e ao seu mundo de corrupção, amiguismos e restantes particularidades) Mas há de facto qualquer coisa de especial, e de particularmente tocante, em Minha Mãe: não só porque há uma enorme sensibilidade, sem ser de contornos de filme dramático de domingo à tarde das generalistas, sobre a perda da figura materna e tudo o que daí advém (e o pensar na morte quando, apesar de ela ainda não ter ainda aparecido, será um dado adquirido), como também pela forma como o humor se entranha na 139


Título nacional: A Lagosta Realização: Yorgos Lanthimos

THE LOBSTER

Elenco: Colin Ferrell, Rachel Weisz, Jessica Barden Ano: 2015

PEDRO SOARES

Já dizia a nossa poetisa que não há coincidências. É impossível não estabelecer uma relação entre a recente crise financeira (e tudo o que daí adveio) e a nova vaga de cinema que surgiu entretanto na Grécia. Gente como Yorgos Lanthimos ou Athina Rachel Tsangari, que costumam colaborar entre si, têm desenvolvido filmes acerca de uma certa crise de valores, alheamento social e um caos que é tanto físico como psicológico.

A Lagosta passa-se num futuro alternativo e distópico em que as pessoas têm de arranjar par romântico. Quem ainda não tem parelha tem de ir para um hotel e participar numas caçadas (literalmente) até se safar. Quem não o conseguir acaba transformado num animal à sua escolha. Colin Farrell está nesse hotel e já escolheu em que animal quer ser transformado: uma lagosta. E porquê? Sabe lá Deus. Mas tal como muitas outras questões que o filme levanta, as respostas são o menos importante.

De entre os seus colegas, Yorgos Lanthimos é aquele que tem uma marca autoral mais vincada. Além disso, o seu cinema é ainda caracterizado por um realismo absurdo muito próprio, que pode tornar-se perturbador por se levar tão a sério. Depois de Canino, A Lagosta continua a sua evolução formalista que, entretanto, atingiu o seu zénite “kubrickiano” com O Sacrifício de um Cervo Sagrado.

De todos os filmes da nova vaga do cinema grego, A Lagosta será possivelmente aquele que melhor funciona como metáfora à recente crise de que falámos no primeiro parágrafo. Além disso, é um filme desconcertante, desconfortável e… distinto?

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Título nacional: Os Oito Odiados Realização: Quentin Tarantino

THE HATEFUL EIGHT

Elenco: Samuel L. Jackson, Jennifer Jason Leigh, Kurt Russell Ano: 2015

JOÃO PAULO COSTA

Desde os primeiros minutos, em que os créditos iniciais correm ao som do fabuloso tema de Ennio Morricone sobre um único plano que enquadra Cristo crucificado e coberto com um chapéu de neve a fazer lembrar a farda do Ku Klux Klan, que percebemos o tom de Os Oito Odiados. Ao longo das suas três horas de duração passadas quase exclusivamente em dois cenários — uma carruagem e uma retrosaria que protege os protagonistas do nevão que cai no exterior — Quentin Tarantino parece descarregar toda a sua ira perante a América.

redes sociais e da era Trump, da digladiação de argumentos baseados em falta de informação. De certa forma, Os Oito Odiados seria o filme perfeito para terminar uma obra que começou também com um título onde os seus protagonistas se reuniam num espaço fechado durante a maior parte do tempo e onde algumas das personagens não são quem aparentam. Mas, quase 25 anos depois de Cães Danados (1992), Tarantino juntou verdadeiro conteúdo aos seus sempre refinados diálogos, aprimorou o seu sentido visual e trouxe para o primeiro plano a violência que anteriormente ocorria fora de campo, criando aqui uma das suas obras mais fortes e incisivas, ajudado por um elenco e equipa técnica em estado de graça, e sempre ancorado na sua inevitável cinefilia.

Apesar de situar a sua acção poucos anos depois da Guerra Civil, o filme revela-se particularmente actual na forma como olha para as tensões entre os vários grupos sociais que cada uma das suas personagens representa, e a verdade é que, tal como o título indica, nenhuma é vista como heróica ou particularmente virtuosa. Muito pelo contrário. Tratase, num certo sentido, de um filme-resposta à mentalidade vigente das

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Título nacional: Mad Max: Estrada da Fúria Realização: George Miller

MAD MAX: FURY ROAD

Elenco: Tom Hardy, Charlize Theron, Nicholas Hoult Ano: 2015

JOÃO BIZARRO

Para gáudio dos fãs de road movies, principalmente de “Mad” Max Rockatansky — imortalizado por Mel Gibson em 1979, e depois continuado por duas vezes, nos anos 80 —, George Miller volta à carga com o quarto filme da série.

está Nux (Nicholas Hoult), um ambicioso War Boy, cujo “saco de sangue” é Max, que, claro, irá reverter a situação. Se estes regressos, passado tanto tempo, nem sempre resultam bem — com George Miller, nos últimos 23 anos, num género diferente, onde surgiu apenas com Babe: Um Porquinho na Cidade (Babe: Pig in the City, 1998) e Happy Feet 1 e 2 (2006 e 2011) — após os primeiros minutos ficamos logo convencidos de que estamos perante um dos melhores filmes de acção dos últimos tempos, com um ritmo que vai crescendo e onde raramente se consegue respirar. A música de Junkie XL (o guitarrista pendurado num dos carros e o camião dos tambores são soberbos), a imagem bastante colorida (em contraste com os outros Mad Max) de John Seale e a montagem de Margaret Sixel e Jason Ballantine ajudam a este festim de duas horas bem passadas.

Nele, o solitário Max (agora interpretado por Tom Hardy) continua a sua viagem pela Austrália pós-apocalíptica, por entre paisagens áridas e batalhas ferozes, a alta velocidade, agora capturado logo no início pelos War Boys, o braço armado de Immortan Joe — Hugh Keays-Byrne, o actor que interpretava Toecutter, o assassino da família de Max no primeiro filme da série — líder supremo da Cidadela, que controla toda a água da região. Durante uma expedição por gasolina, Imperator Furiosa (Charlize Theron), foge com cinco das esposas de Immortan Joe, em direcção a um suposto local paradisíaco. Joe persegue-a com o seu exército, onde

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Título nacional: Divertida-Mente Realização: Pete Docter e Ronnie Del Carmen

INSIDE OUT

Elenco: Amy Poehler, Bill Hader, Lewis Black Ano: 2015

PEDRO MIGUEL FERNANDES

Não é segredo para ninguém que praticamente desde que entrou em cena, em meados da década de 1990 com Toy Story – Os Rivais, pé ante pé a Pixar se tornou numa das mais interessantes produtoras de cinema de animação. O que continua a ser segredo, e aquando da aquisição do estúdio pela Disney temeu-se o que seria da Pixar a partir daí, é como a Pixar continua, título após título, a colocar a fasquia tão alto. DivertidaMente é mais um exemplo disso.

alterações de humor constantes, consoante quem está ao leme é a Alegria ou a Tristeza. É a partir daí, após mais um daqueles prólogos que a Pixar tão bem sabe fazer, que Divertida-Mente começa a provar uma vez mais por que é que o estúdio é um nome grande na animação. Poucos são os estúdios de animação que nos continuam a desafiar com histórias inteligentes e bem construídas, onde a imaginação é o limite, com a vantagem de nunca se colocar acima do espectador, antes sempre em pé de igualdade, sem recorrer a truques que mascarem a falta de argumentos de grande parte das produções de animação actualmente, provando que a Pixar é a justa herdeira da Disney na animação feita nos EUA.

Aventurando-se por dentro da cabeça de uma menina, o filme segue cinco personagens correspondentes a outras tantas emoções (Alegria, Tristeza, Medo, Raiva e Nojo), que mais não são do que as emoções de uma menina que se muda para uma nova cidade com os pais e tem de lidar com uma nova realidade, longe de tudo o que conhecia. É aqui que a harmonia entre as emoções sofre um ligeiro sismo que vai provocar o caos em Riley e na forma como se habitua a este novo mundo, com

O segredo do sucesso, esse, continua bem escondido nalgum cofre.

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Título nacional: O Filho de Saul Realização: László Nemes

SAUL FIA

Elenco: Géza Röhrig, Levente Molnár, Urs Rechn Ano: 2015

SARA GALVÃO

A história de um sonderkommando num campo de concentração, O Filho de Saul não é para os fracos de estômago. No estranho formato de 4:3, seguimos Saul, um prisioneiro judeu forçado a limpar as câmaras de gás e a trabalhar para os seus captores. Quando Saul, por puro acaso, vê o corpo do seu filho, algo clica dentro dele, e a partir daí a sua existência terá um único objectivo: dar ao rapaz um enterro conforme os ritos judeus. Mas nessa procura de dignidade dentro de um lugar que não o aceita como pessoa, Saul terá de escolher entre enterrar os mortos ou tentar sobreviver.

A mistura e edição de som deste filme, aliás, são extraordinárias. Com elas, e sempre seguindo a cara carismática de Saul, um homem morto por dentro, praticamente um autómato, é-nos dada uma traumatizante visita guiada às várias secções e horrores de Auschwitz. Desde os primeiros minutos, onde uma carrinha de prisioneiros chega ao campo e Saul e os outros sonderkommando os guiam para os duches, o tom do filme vai ficando cada vez mais pesado, e, ao contrário de O Pianista ou A Lista de Schindler, não nos é dado um final redentor para nos aquecer por dentro e deixar-nos ir com um raio de esperança.

Lázlo Nemes filma O Filho de Saul num estilo aterrador, e se há imensos (talvez demasiados) filmes sobre o Holocausto, poucos conseguem ser tão viscerais como este. A câmara segue sempre Saul; os horrores à sua volta estão desfocados, e por vezes só os percebemos pelo design de som.

Para mostrar o quão horrenda pode ser a Humanidade — e para que não o esqueçamos nunca — O Filho de Saul deveria ser visionamento obrigatório.

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Título nacional: Carol Realização: Todd Haynes

CAROL

Elenco: Cate Blanchett, Rooney Mara, Kyle Chandler Ano: 2015

CÁTIA ALEXANDRE

Já perdi a conta a quantas vezes elogiei Carol, cujo efeito que tem sobre nós emana um grande poder emocional. Baseado no romance de 1952 The Price of Salt, de Patricia Highsmith, o relato hipnotizante de um amor proibido, é levado até nós de forma magnifica por Todd Haynes.

envolve até nos mais pequenos detalhes. Demonstra que o amor não escolhe idade nem género, e que todos têm direito à sua felicidade. São pequenos gestos e toques que, através da lente, nos fazem sentir como se estivéssemos com estas duas mulheres, bem de perto. Recheado de pormenores de uma grande subtileza feminina, é através de graciosas sequências que de forma única e visceral o filme vai demonstrando uma dor emocional imensa, ao mesmo tempo que consegue emanar um forte erotismo do início ao fim.

Visualmente vibrante, inquietante, onde a belíssima banda sonora nos envolve perante as emoções, nunca caindo em exagero, percebendo conflitos de cada um dos personagens, inseridos na atmosfera certa do período, até no que diz respeito ao guarda-roupa, peça essencial de sedução. Cate Blanchett é fabulosa, como umas das minhas actrizes preferidas seria difícil ficar desapontada. Rooney Mara está igualmente fantástica. A entrega das duas é tal, e a química tão forte, que carregam consigo sentimentos credíveis desde o primeiro minuto.

Um romance cheio de mistério que se revela simples de descodificar e nos absorve para dentro dele, como se estivéssemos a espreitar o íntimo destas mulheres. Carol é mais que uma história sobre homossexualidade, é sobre viver um grande amor que acarreta consequências. Dos mais belos romances dos últimos tempos.

Carol é um filme feito de momentos, de olhares, de silêncios que nos

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Título nacional: Sicário – Infiltrado Realização: Denis Villeneuve

SICARIO

Elenco: Emily Blunt, Benicio Del Toro, Josh Brolin Ano: 2015

CÁTIA ALEXANDRE

Podemos constatar que Denis Villeneuve tem um certo fascínio por histórias sombrias e misteriosas, que através de uma atmosfera envolvente nos transportam para dentro da tela da forma mais hipnotizante que pode haver. Sicário é o perfeito exemplo de um excelente thriller de acção, apenas com alguns aspectos previsíveis mas que não prejudicam em nada a experiência final.

As performances do elenco são extraordinárias, principalmente o desempenho de Emily Blunt, reflectindo o terror e contenção que o filme carrega consigo. Quase todas as cenas nos deixam entusiasmados e definitivamente intrigados com o que vemos, e o melhor de tudo é que a emoção durante a acção é tanta, que quase sentimos estar lado a lado com os personagens.

O filme lida com algumas das questões e consequências devastadoras das chamadas guerras da droga entre os Estados Unidos e o México, onde todo o mistério em torno dos personagens, que nos dão tão pouco de si em termos emocionais — e não nos podemos esquecer nunca com que tipo de pessoas e profissões está o filme a lidar — nos fazem agarrar tanto a eles, como se quiséssemos compreender detalhadamente cada uma das suas vontades e motivações.

Como também já é hábito nos filmes de Villeneuve, a cinematografia é belíssima, a construção da narrativa muito boa, a banda sonora aterradora e as questões que aborda deixam que pensar, tudo elementos que contribuem largamente para o efeito final. Absolutamente intenso, intrigante e cheio de grandes performances, Sicário foi das melhores coisas que o ano de 2015 fez nascer.

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STAR WARS: EPISODE VII THE FORCE AWAKENS

Título nacional: Star Wars: O Despertar da Força Realização: J. J. Abrams Elenco: Daisy Ridley, John Boyega, Oscar Isaac, Adam Driver, Harrison Ford, Carrie Fisher Ano: 2015

ANTÓNIO ARAÚJO

Depois das experiências das prequelas, nada faria prever que teríamos novos capítulos do Star Wars. No momento da verdade, J. J. Abrams demonstrou saber o que os fãs realmente queriam, recheando o filme de piscadelas de olho à trilogia original sem nunca sacrificar a narrativa presente para tal. Usando economicamente os aspectos familiares da saga — elenco original incluído — deixou brilhar a nova geração de personagens: John Boyega como Finn, Oscar Isaac como Poe Dameron e a luz e as trevas desta nova encarnação, Daisy Ridley como Rey e Adam Driver como Kylo Ren. O novo vilão aspirante a herdeiro de Darth Vader — imaturo, impulsivo, imprevisível e dilacerado entre a sua natureza e as suas escolhas — é o representante dos temas centrais da saga, da escolha entre o bem e o mal e dos conflitos familiares, e apresenta-se aqui, a par de Rey, como um dos elementos centrais à volta do qual certamente orbitará o desenvolvimento narrativo a ser concluído em 2019 no episódio IX.

Partindo de território familiar, O Despertar da Força construiu uma mitologia e identidade próprias. O ritmo é frenético e as cenas de acção emocionantes. Se é verdade que algumas personagens são pouco desenvolvidas, vítimas da propulsão da narrativa, também é justo dizer que as peças centrais têm tempo para respirar e desenvolver o seu arco. A passagem de testemunho é conseguida com uma química de humor natural e orgânico assente no carácter das personagens — vide o sucesso de BB-8 —, resultado de uma cuidadosa escrita de diálogos — obrigado Lawrence Kasdan — e de interpretações convincentes, factores decisivos para os laços emocionais que estabelecemos com elas no espaço de duas horas.

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Título nacional: A Queda de Wall Street Realização: Adam McKay

THE BIG SHORT

Elenco: Christian Bale, Steve Carell, Ryan Gosling, Brad Pitt Ano: 2015

JOSÉ CARLOS MALTEZ

Se há filmes cujo valor de documento de uma época ultrapassa o valor artístico, A Queda de Wall Street pertence a esse lote.

após o estouro da bolha, o governo injectou dinheiro público para salvar bancos e banqueiros.

Centrando-se nos acontecimentos que rodearam a crise financeira de 2008, Adam McCkay — um realizador vindo da comédia — partiu do livro homónimo de Michael Lewis para mostrar como o sistema de créditos e produtos financeiros cotados na bolsa a partir de hipotecas de imobiliário não era mais que um santo de pés de barro, de que alguns previram o fim. São esses “heróis” (protagonizados por Christian Bale, Steve Carell, Ryan Gosling, Brad Pitt, entre outros) que, a princípio descrentes em tal podridão, vão investigar e, assim, mostrar-nos como a tal linguagem hermética de swaps, ratings, CDO, primes e subprimes, é um verdadeiro lamaçal, primeiro porque todos tinham perdido o rasto à qualidade dos produtos financeiros que vendiam, segundo porque o sistema estava viciado por agências de rating fraudulentas, terceiro porque mesmo

Com descrença derrotista e cinismo (afinal os tais heróis querem apenas lucrar, mesmo que prevendo a ruína de milhões de famílias), McCkay usa um estilo scorsesiano — e Scorsese acabara de retratar o mundo da alta finança em O Lobo de Wall Street (The Wolf of Wall Street, 2013) — de diálogos acelerados, montagem vertiginosa, colagens de imagens documentais e apontamentos humorísticos com quebras da quarta parede. Para alguns, o excesso de hermetismo e formalismo prejudicou o filme, mas a verdade é que a força da sua mensagem mantém-no actual. E dez anos depois, nada se aprendeu, e continuamos à deriva nas águas turvas do capitalismo.

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Mad Max: Estrada da FĂşria, 2015

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Não Sou o Teu Negro, 2016


2016 ANÍBAL SANTIAGO

Não faltaram acontecimentos históricos marcantes em 2016. Marcelo Rebelo de Sousa foi eleito o 20º Presidente da República Portuguesa e começou a distribuir abraços e a tirar selfies como poucos. Barack Obama visitou Cuba e Donald Trump foi eleito Presidente dos EUA. Por sua vez, Dilma Rouseff foi afastada da Presidência da República do Brasil e David Cameron renunciou ao cargo de Primeiro-Ministro do Reino Unido. Pelo meio, ocorreram uma série de atentados que chocaram o Mundo, Portugal ganhou o Europeu de futebol com um golo do improvável Éder e estrearam uma série de obras cinematográficas que prometem deixar marca ao longo do tempo, bem como outras que vão ser esquecidas com uma facilidade assinalável. É precisamente sobre esses filmes que se centra este artigo que procura traçar um breve retrato de um ano profícuo em termos da Sétima Arte.

obras vai enfrentar o teste do tempo? Filmes como La La Land: Melodia de Amor (Damien Chazelle), Salve, César! (Hail Caesar!, Irmãos Coen) e Lumière! respondem a essa questão com um recuperar das memórias do cinema, enquanto fitas como I Am Not Your Negro - Não Sou o Teu Negro, Elementos Secretos (Hidden Figures, Theodore Melfi) Aquarius (Kleber Mendonça Filho), Martírio (Vincent Carelli, Tatiana Almeida), Moonlight (Barry Jenkins) envolvem-se por temas relacionados com os direitos LGBT, as questões raciais, os direitos indígenas ou a desregulação do mercado imobiliário. E como sobreviverão alguns dos campeões de bilheteira como Capitão América: Guerra Civil (Anthony e Joe Russo) e À Procura de Dory (Finding Dory, Andrew Stanton, Angus MacLane)? Ou os grandes vencedores da temporada de prémios? Ou fracassos de crítica e público como Os Deuses do Egipto (Gods of Egypt, Alex Proyas) e BenHur (Timur Bekmambetov)?

Desde A Criada (Ah-ga-ssi, Chan-wook Park), Lumière! (Thierry Frémaux) e Paterson (Jim Jarmuch), passando por I Am Not Your Negro - Não Sou o Teu Negro (Raoul Peck) e O Vendedor (Forushande, Asghar Farhadi), até A Minha Vida de Courgette (Ma vie de Courgette, Claude Barras), Ela (Elle, Paul Verhoven) e Silêncio (Silence, Martin Scorsese), a colheita cinematográfica de 2016 conta com uma série de exemplares extremamente recomendáveis, pontuados por alguma diversidade e oriundos de uma miríade de proveniências. Como é que cada uma destas

Para melhor enquadrar algumas das obras mencionadas vamos efectuar uma separação geográfica das mesmas, um método que conta com uma série de limitações, embora permita aflorar um pouco do que foi feito pelo Mundo em 2016. Do Japão chegou-nos o subtil e sensível Depois da Tempestade (Umi yori mo mada fukaku), um filme realizado por Hirokazu Koreeda que possui diversos traços deste mestre nipónico e alguns elementos transversais aos trabalhos de Mikio Naruse e Yasujiro Ozu. No 151


A Idade das Sombras, 2016 mesmo país, Harmonium (Fuchi ni tatsu, Kôji Fukada) e A Eterna Desculpa (Nagai iiwake, Miwa Nishikawa) deixaram marca, tal como filmes de animação como Neste Canto do Mundo (Kono sekai no katasumi ni, Sunao Katabuchi) e Teu Nome (Kimi no Na wa, Makoto Shinkai). No continente asiático, em particular, na Coreia do Sul, Chan-wook Park conquistou-nos com A Criada, um filme de enganos e seduções que inebria, contagia, repele e ludibria. Na Coreia do Sul foram ainda lançadas obras como o inquietante O Lamento (Gok-seong, Hong-jin Na) e o filme de zombies Busanhaeng (Sang-ho Yeon) ou A Idade das Sombras (Miljeong, Jee-woon Kim) o representante desta nação na lista de candidatos ao Óscar de Melhor Filme em Língua Não Inglesa.

França chegaram ainda obras como o arrojado Compte tes blessures, a estreia de Morgan Simon na realização de longas-metragens, o elogiado Quando se tem 17 Anos (Quand on a 17 ans, André Téchiné) o irreverente e peculiar Ma Loute (Bruno Dumont), o recomendável Lumière!, tal como uma série de co-produções como Frantz (François Ozon) e Raw (Grave, Julia Ducournau). Entre a França e a Bélgica foram co-produzidas obras como o emocionalmente intenso A Economia do Amor (L’économie du couple, Joachiom Lafosse) e o drama La fille inconnue (Jean-Pierre Dardenne, Luc Dardenne). Por sua vez, em Portugal tivemos o lançamento de Cartas da Guerra (Ivo Ferreira), São Jorge (Marco Martins), John From (João Nicolau), Axilas (José Fonseca e Costa), entre outras obras que assinalam ano relativamente positivo em termos de produções nacionais. Em Itália, a quantidade e a qualidade andaram de mãos dadas, algo demonstrado por fitas como Amigos Amigos, Telemóveis à Parte (Perfetti sconosciutti, Paolo Genovese), Loucamente (La pazza gioia, Paolo Virzì) e Sonhos Cor-de-Rosa (Fai bei sogni, Marco Bellocchio). Já Toni Erdmann (Maren Ade) extravasou as fronteiras da Alemanha e da Áustria para alcançar um sucesso quase generalizado em Cannes. No certame, Julieta marcou o regresso de Pedro Almodóvar, ao passo que The Last Face - A Última Fronteira (Sean Penn) saiu completamente queimado e Nicolas Winding

Se A Idade das Sombras não chegou a ser nomeado, já O Vendedor, o representante do Irão, venceu o prémio da Academia na categoria (em 2017) e consagrou novamente Asghar Farhadi. Na Europa, o britânico Eu, Daniel Blake (I, Daniel Blake) venceu a Palma de Ouro e exibiu mais uma vez as preocupações sociais de Ken Loach, enquanto Ela conquistou a crítica na mesma edição do certame e demonstrou que Paul Verhoeven continua a ser capaz de desafiar as expectativas, para além de dar mais um papel marcante a Isabelle Huppert. A actriz esteve ainda em destaque na co-produção entre a França e Alemanha O Que Está por Vir (L’avenir), um filme representativo da maturidade artística de Mia Hansen-Løve. Da 152


Refn provocou as reacções mais díspares com The Neon Demon - O Demónio de Néon. A edição de 2016 do Festival de Cannes contou também com o protesto da equipa de Aquarius contra o Impeachment, com Kléber Mendonça Filho a surgir não só como um dos expoentes da qualidade e diversidade do cinema brasileiro contemporâneo, mas também como uma figura interventiva. Neste ano chegaram ainda do Brasil Comeback (Erico Rassi), Cinema Novo (Eryk Rocha) e Mulher do Pai (Cristiane Oliveira). Da América do Sul, nomeadamente do Chile, chegou Neruda (Pablo Larraín), enquanto na Argentina tivemos o lançamento de fitas como o elogiado O Ilustre Cidadão (El ciudadano ilustre, Gastón Duprat, Mariano Cohn). Nos EUA, a colheita foi particularmente feliz. Observe-se o caso do melancólico e poético Paterson, de Jim Jarmusch, ou o poderoso Silêncio, de Martin Scorsese, ou o terno Kubo e as Duas Cordas (Kubo and the Two Strings, Travis Knight) ou o devastador Manchester by the Sea (Kenneth Lonergan) ou Animais Noturnos (Nocturnal Animals), uma fita que confirmou Tom Ford como um nome forte na realização. 2016 foi ainda o ano de Moonlight, um filme relevante quer pelo seu valor cinematográfico, quer pela pertinência das temáticas que aborda. Em 2016, as salas de cinema dos EUA receberam ainda uma série de outras películas que despertaram a atenção do público ou da crítica. Vejase os casos de O Primeiro Encontro (Arrival, Denis Villeneuve), Hell or High Water - Custe o Que Custar! (David Mackenzie), Deadpool (Tim Miller), Zootrópolis (Zootopia, Byron Howard, Rich Moore), Café Society (Woody Allen), Capitão Fantástico (Captain Fantastic, Matt Ross), Bons Rapazes (The Nice Guys, Shane Black), Miss Sloane - Uma Mulher de Armas (John Madden), American Honey (Andrea Arnold), Mulheres do Século XX (20th Century Women, Mike Mills), entre outros. Foi um ano recheado de filmes de relevo, em que Leonardo Dicaprio finalmente venceu o Óscar de Melhor Actor e Ennio Morricone viu o seu trabalho premiado pela Academia. Em termos de Óscares, O Caso Spotlight (Tom McCarthy) venceu na categoria de Melhor Filme, embora o galardão de Melhor Realizador tenha ido para Iñárritu. Já o troféu de Melhor Actriz foi para Brie Larson, enquanto os prémios nas categorias secundárias de interpretação ficaram nas mãos de Alicia Vikander e Mike Rylance. Por sua vez, o Urso de Ouro ficou para Fogo no Mar (Fuocoammare, Gianfranco Rosi) um filme de forte pendor social que aborda a crise de refugiados. Ficamos assim perante uma colheita cinematográfica de qualidade assinalável que, em certa medida, reflecte o período em que os filmes foram lançados.

São Jorge, 2016

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2016


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Título nacional: O Primeiro Encontro Realização: Denis Villeneuve

ARRIVAL

Elenco: Amy Adams, Jeremy Renner, Forest Whitaker Ano: 2016

CÁTIA ALEXANDRE

Quando gostamos muito de um realizador, é um pouco difícil não criar certas expectativas. Denis Villeneuve decidiu apostar no género sci-fi, diferente do que até então tinha feito, seguindo, em O Primeiro Encontro, os passos de Interstellar (2014), de Christopher Nolan, ou de Gravidade (Gravity, 2013), de Alfonso Cuarón, onde os sentimentos do ser humano são explorados, ao mesmo tempo que a imensidão de um universo, o futuro e as complexidades do desconhecido são abordadas.

emoções e situações inteligentemente exploradas através de metáforas, onde o poder das imagens é por vezes muito superior ao das palavras, algo já habitual na filmografia de Villeneuve. Amy Adams dá-nos uma interpretação fortíssima, com uma personagem que cria de imediato empatia connosco, demonstrando um lado misterioso e incompreendido que nos cativa e intriga ao mesmo tempo. Percebemos desde cedo que será ela a chave do sucesso deste filme, que tem muito de subtil e poderoso ao mesmo tempo. Tem o dom de nos tentar confundir algumas vezes, e é isso que faz com que o impacto do twist final seja ainda melhor, revelando-se por vezes estranho, mas classifico essa estranheza como boa, ou não fosse ela intencional. É detentor de uma belíssima banda sonora da autoria de Jóhann Jóhannsson, que ajuda a determinar as intenções de cada momento, onde as mensagens sociais e as teorias são mais que muitas e nada têm de descabido.

Misteriosamente, naves espaciais alienígenas aparecem em vários sítios no planeta Terra. Nada se sabe sobre elas, o que contêm ou o porquê de terem aparecido e escolhido aquelas localizações específicas. Louise Banks (Amy Adams), professora de linguística, é escolhida pelo exército norte-americano para fazer parte da equipa de investigação em campo devido a um trabalho de tradução de alta segurança que tinha feito em tempos para o governo. Também fazem parte da equipa o físico Ian Donnelly (Jeremy Renner) e o coronel Weber (Forest Whitaker), e todos estão focados na importância do primeiro encontro com os seres desconhecidos que comandam as naves e nas suas intenções. No início do filme, vemos imagens do passado de Louise e da filha, que morre na adolescência. No seu olhar sentimos o amor, a mágoa e a dor da perda de um filho, e sabemos que, apesar do seu pesar, ela terá um papel definitivo e propositado nesta história, onde o passado e o futuro se ligam de forma fortíssima, e os aliens não só têm algo a transmitir como abrem caminho a várias teorias.

A verdade é que a esperança no ser humano se traduz usando a linguagem do sobrenatural e do desconhecido, de forma bastante efectiva e importante. Denis Villeneuve é um dos melhores realizadores da actualidade, daqueles que nos deixa a pensar no que vimos dias a fio e esses são os bons filmes, os filmes que deixam a sua marca em nós.

Facilmente consigo ver muita gente a não se identificar aparentemente com o que aqui vê, não por falta de intelecto mas apenas por levar esta história como mais um sci-fi sobre aliens que é apenas isso mesmo. O Primeiro Encontro contém em si muito mais que aquilo que aparenta, suscitando a nossa curiosidade cada vez mais à medida que vai avançando na sua narrativa criativa e que nos vai envolvendo nas suas 157


Título nacional: Paterson Realização: Jim Jarmusch

PATERSON

Elenco: Adam Driver, Golshifteh Farahani, Nellie Ano: 2016

SARA GALVÃO

Jim Jarmusch é um realizador que apela a um certo tipo de audiência. Se há filmes seus que transcendem barreiras e chamam a atenção dos não-iniciados — como Flores Partidas (Broken Flowers, 2005) e Só os Amantes Sobrevivem (Only Lovers Left Alive, 2013) — a maior parte da sua filmografia requer um gosto pré-adquirido por filmes minimalistas, feitos de pequenos momentos em detrimento de grandes arcos narrativos, e onde as personagens vagueiam por uma existência que não é necessariamente digna de nota (no sentido hollywoodesco do termo).

o cão, vai ao bar do costume, bebe uma cerveja e volta para casa. As variações ao longo da semana adquirem assim extra relevância quando postas em contraste com uma rotina bastante definida. Antídoto do filme de acção (de acordo com o próprio Jarmusch), Paterson enaltece a poesia do quotidiano (os poemas de Paterson são sobre pequenos detalhes, como caixas de fósforos), onde encontros casuais e conversas ouvidas de passagem povoam e dão sentido a uma existência que não quer ser mais do que já é. Uma espécie de nirvana narrativo, onde há mais pares de gémeos do que rimas, Paterson quase que poderia ser uma sequela de Sempre em Férias (Permanent Vacation, 1980), onde o protagonista decide finalmente assentar e ser feliz.

Paterson é um desses filmes. Paterson (Adam Driver) é um motorista de autocarro na pacata cidade de Paterson. A namorada, Laura (Golshifteh Farahani), passa os dias em casa, com o cão, a pintar tecidos de preto e branco. Durante a semana retratada no filme, Paterson acorda sempre à mesma hora (sem alarme), vai a pé para a estação de autocarros, escreve poesia à hora de almoço no seu caderno secreto, volta para casa, passeia

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Título nacional: Ela Realização: Paul Verhoeven

ELLE

Elenco: Isabelle Huppert, Laurent Lafitte, Anne Consigny Ano: 2016

PEDRO MIGUEL FERNANDES

Paul Verhoeven nunca foi o que se pode considerar um cineasta consensual, apesar do culto recente que voltou a colocar a sua obra sob os holofotes. Ela, de 2016, foi o filme que surgiu nesse regresso do realizador holandês que deixou a sua marca em Hollywood no final dos anos oitenta e início da década seguinte antes de sucumbir ao desaire de Showgirls, obra maldita reavaliada nos últimos anos, tornando-se filme de culto.

os que estão à sua volta, passando de dominada a dominadora. E a partir do momento em que muda, quando diz ao amante que deixou de mentir, é como se Michèle fosse uma nova mulher. A catarse após o choque. No centro do furacão está uma actriz que pouco tem a provar, depois de anos a trabalhar com os maiores cineastas europeus, mas aqui volta a arriscar um papel fortíssimo e a ter uma interpretação de topo: Isabelle Huppert num daqueles casos em que a actriz leva o filme às costas, em que todas as personagens giram à volta de Michèle.

Neste regresso, Verhoeven conta a história de uma mulher que após ser violada passa em revista todas as relações que teve, no passado e no presente, para tentar descobrir o autor da violação.

Para todos os efeitos, Ela é o filme que marca o regresso de Paul Verhoeven ao centro da acção e um dos grandes retratos femininos do cinema nesta segunda década dos anos 2000.

Mais do que um simples filme de vingança, e muito longe do habitual filme de vingança, Ela é o retrato de uma mulher que ao ser vítima de uma experiência limite tenta perceber o que aconteceu e como lidar com

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Título nacional: Eu, Daniel Blake Realização: Ken Loach

I, DANIEL BLAKE

Elenco: Dave Johns, Hayley Squires, Sharon Percy Ano: 2016

JOÃO BIZARRO

Diagnosticado com um grave problema de coração, Daniel Blake (Dave Johns), um viúvo de 59 anos, tem indicação médica para deixar de trabalhar. Mas quando tenta receber os benefícios do Estado, vê-se enredado numa burocracia injusta e constrangedora. Apesar do esforço em provar a sua incapacidade, parece que ninguém está interessado em admiti-la.

2016, é um filme sobre questões humanas e sobre como as pessoas são influenciadas pelo tal sistema injusto, e Ken Loach, realizador de causas sociais e políticas não podia ter escolhido melhor tema para retratar. Afinal, o cinema também pode ser um retrato do mundo em que vivemos, e não há nada mais actual que falar sobre a maneira impessoal com que as instituições governamentais tratam os mais carenciados.

Durante uma espera numa repartição da Segurança Social, conhece Katie (Hayley Squires), uma mãe solteira, com duas crianças, que também necessita de apoio social. Daniel e Katie, dois estranhos cujas voltas da vida os deixaram sem forma de sustento, vêem-se obrigados a aceitar ajuda do banco alimentar e, no meio do desespero, tornam-se a única esperança um do outro.

Neste seu mais recente filme, Ken Loach voltou a contar com a ajuda do argumentista Paul Laverty, que consigo colaborou nos seus títulos mais conhecidos, como por exemplo Terra e Liberdade (Land and Freedom, 1995); O Meu Nome é Joe (My Name is Joe, 1998); Bread and Roses (2000) ou Brisa de Mudança (The Wind that Shakes the Barley, 2006), este último também Palma de Ouro em Cannes.

Eu, Daniel Blake, vencedor da Palma de Ouro no Festival de Cannes, em

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Título nacional: Manchester by the Sea Realização: Kenneth Logernan

MANCHESTER BY THE SEA

Elenco: Casey Affleck, Michelle Williams, Lucas Hedges Ano: 2016

CÁTIA ALEXANDRE

Há filmes que são experiências emocionais e nos colocam em posições nas quais nos envolvemos e ficamos vulneráveis. Manchester By the Sea é brilhantemente realizado por Kenneth Logernan, que aqui concretiza uma obra que transparece um sentido de realidade imenso através da dureza das palavras e da simplicidade e realismo com que tudo nele é apresentado.

se no papel da sua vida. A sua performance é perfeita, interpretando de forma impecável um homem aparentemente superficial, de difícil leitura, que se vai revelando e mostrando uma vulnerabilidade tremenda capaz de emocionar qualquer um. Michelle Williams continua a ser super competente na entrega aos seus papeis, dá tudo de si, num papel pequeno, mas muito bem construído e fulcral para o desenvolvimento do papel de Affleck.

Uma história sobre pessoas e situações reais, que retrata de forma honesta, brutal e cruel a vida e quanto o sofrimento e dor de uma perda podem influenciar comportamentos, assim como fortalecer e amadurecer personalidades através de experiências. A abordagem é a mais natural possível, assim como os momentos cómicos constantes, momentos que são contra-balançados com o peso enorme do lado dramático, momentos eles perfeitamente legítimos e inteligentemente inseridos na história. Casey Affleck nunca esteve tão bem, neste que poderá tornar-

O que torna este filme tão especial é o facto de fugir à fórmula do género. Kenneth Logernan recusou-se a seguir um caminho de clichês, num mundo onde os contos de fadas não existem e a vida é simplesmente aquilo que tem de ser. Manchester By the Sea dá-nos um murro no estômago tão grande que ficamos a pensar nele dias a fio.

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Título nacional: Silêncio Realização: Martin Scorsese

SILENCE

Elenco: Andrew Garfield, Adam Driver, Liam Neeson Ano: 2016

PEDRO MIGUEL FERNANDES

Acalentado durante décadas, Silêncio tornou-se um dos projectos mais pessoais e arriscados de Scorsese nos últimos anos. E talvez um dos mais incompreendidos, apesar de focar temas que lhe são caros: a religião e a relação com Deus.

Scorsese arriscou muito neste filme, mas ao contrário de outros projectos arriscados (lembramo-nos de Gangues de Nova Iorque, por exemplo) a aposta desta vez foi ganha. Silêncio não só consegue adaptar, e bem, um livro de difícil adaptação, como trouxe para o cinema de Scorsese mais um conjunto de personagens solitárias a juntar a uma longa galeria que vem desde Quem Bate à Minha Porta.

A partir do livro homónimo de Shusaku Endu, Silêncio relata a história de dois jesuítas que partem para o Japão à procura do seu mentor, depois de lhes terem dito que este tinha abandonado a fé cristã. Tudo se passa no século XVII, num período histórico em que os cristãos eram perseguidos pelas autoridades nipónicas depois de anos em que conseguiram ganhar alguma influência no país. Influência essa que deixou de ser bem vista, levando a uma perseguição violentíssima que vemos em algumas das cenas mais fortes de Silêncio. Este é o pano de fundo para uma reflexão sobre os limites da fé e em simultâneo sobre o confronto entre diferentes culturas.

A reconstituição histórica, como noutros filmes de época do realizador, é irrepreensível, e a belíssima fotografia de Rodrigo Prieto cria um ambiente que permite ao filme respirar, ou não fosse este um filme onde mais do que nunca se sente a necessidade de respirar, mesmo sendo um filme bastante interior e até, de certa forma, claustrofóbico. Um excelente título de um cineasta veterano, a provar que ainda sabe do ofício.

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Título nacional: La La Land – Melodia de Amor Realização: Damien Chazelle

LA LA LAND

Elenco: Emma Stone, Ryan Gosling, J. K. Simmons Ano: 2016

CÁTIA ALEXANDRE

Em 2013, a produção independente Whiplash tinha a qualidade de qualquer filme de um grande estúdio e aí os olhos do mundo ficaram postos em Damien Chazelle, jovem de 32 anos, que escreve e realiza como gente grande, e que já merecidamente podemos classificar como um dos melhores realizadores da nova era.

clichês com que nos deparamos em todos os filmes que aqui serviram como referência. O brilho e o glamour dos velhinhos clássicos está presente, mas é o toque imperfeito (e acreditem que esta afirmação é uma coisa positiva) que Chazelle lhe dá que o torna especial. O seu sucesso também cai sobre a faísca e o carisma que Emma Stone e Ryan Gosling transportam para a história, já para não falar da incrível química que os faz ser um dos casais mais perfeitos de sempre do cinema, conseguindo transparecer a emotividade e profundidade necessárias aos personagens que interpretam.

La La Land é tudo aquilo que esperávamos e muito mais. Uma obra cheia de energia e magia, que nos faz sonhar e transporta para o maravilhoso mundo, não só do cinema, mas também da música, onde o sonho comanda a vida, e a imaginação e perseverança triunfam num mundo que é dos loucos que arriscam tudo para se dedicarem ao sonho das suas vidas. A banda sonora é sublime, assim como os jogos de luz e de cores, e ajudam a dar vida a todo este imaginário de amor e romance, que nos envolve e faz sonhar. Uma bonita homenagem à era musical em Hollywood, dando-lhe um toque moderno que foge aos habituais

La La Land existe para nos relembrar que os sonhos podem ser reais, mas por vezes temos de abdicar do que mais amamos para os conseguirmos alcançar.

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Título nacional: Animais Nocturnos Realização: Tom Ford

NOCTURNAL ANIMALS

Elenco: Amy Adams, Jake Gyllenhaal, Michael Shannon Ano: 2016

CÁTIA ALEXANDRE

Escrito, produzido e realizado por Tom Ford, Animais Nocturnos foi das melhores surpresas de 2016. Não é a primeira vez que o estilista que se transformou em realizador surpreende, tendo grande habilidade para nos prender e encantar com os seus trabalhos, como já o tinha feito em 2009 com A Single Man.

género, o filme mexe connosco, causando um desconforto essencial em nós. Um filme de poderosas interpretações, onde todas as personagens parecem estar a debater-se com dilemas interiores. Amy Adams destacase com mais um papel arrebatador, feito de muitos silêncios, emoções e expressão corporal que dizem muito. Ao seu lado tem os grandiosos Jake Gyllenhaal e Michael Shannon, ambos a interpretarem papéis com características muito especificas, e Aaron Taylor-Johnson soberbamente perturbador.

Algures entre o art house e o thriller misterioso, o filme está repleto de momentos de horror psicológico, onde a realidade se mistura com a fantasia e os fantasmas do passado atormentam a consciência no presente. Bem equilibrado, tem tanto de previsível como de fascinante, pois apesar da sua premissa não ser nada de novo, consegue balançar bem as três narrativas que se vão interligando à medida que se cruzam a ficção e a realidade, passando por flashbacks onde as ideias se vão aprofundando cada uma delas distintas passagens. Com uma pitada de inspiração não só “hitchcokiana”, mas também de grandes obras do

Animais Nocturnos é capaz de nos sugar para dentro dele. Com detalhe e sofisticação, vai ao encontro de muitos dos principais temas da actualidade. Bem executado e bem interpretado, tem tudo para se poder afirmar, com as miras de Hollywood cada vez mais apontadas para o realizador estilista.

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Título nacional: A Criada Realização: Chan-wook Park

AH-GA-SSI

Elenco: Min-hee Kim, Tae-ri Kim, Jung-woo Ha Ano: 2016

JOÃO PAULO COSTA

O derradeiro salto para o sucesso planetário do realizador sul coreano Chan-wook Park deu-se quando, em 2003, apresentou ao mundo Oldboy. Esse thriller altamente estilizado, com violentas cenas de acção, muita perversão e uma narrativa recheada de surpresas, é ainda hoje um título querido por inúmeros cinéfilos.

herdeira japonesa e ficar-lhe com a fortuna), o filme vai-se revelando aos poucos de forma bastante sinuosa mas sempre perfeitamente segura, variando a quantidade de informação que oferece ao espectador enquanto caminha misteriosamente até ao final. Situado no início do séc. XX, durante a ocupação japonesa da Coreia, A Criada deslumbra-se e deslumbra-nos com os adereços e os figurinos, mas a sua construção narrativa nunca nos deixa cair no conforto do filme de época tradicional.

Mas, atrevemo-nos a dizer, a sua grande obra-prima dá pelo nome de A Criada. Visualmente deslumbrante, e também ele com inúmeras surpresas na manga, este filme de 2016 é ainda um comovente drama sobre o amor de duas mulheres cujas vidas foram maioritariamente passadas a cumprir os desejos dos homens que as rodeiam.

Capaz de surpreender, manipular e excitar em iguais partes, Chan-wook Park consegue também extrair espantosas performances do seu elenco, nomeadamente as duas principais actrizes (Min-hee Kim e Tae-ri Kim), e oferecer-nos algo muito próximo da perfeição.

Essencialmente dividido em três partes que correspondem a três pontos de vista distintos sobre a mesma história de enganos (onde uma criada coreana é contratada por um vigarista para o ajudar a seduzir uma

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Título nacional: Moonlight Realização: Barry Jenkins

MOONLIGHT

Elenco: Marhershala Ali, Naomie Harris, Trevante Rhodes Ano: 2016

SARA GALVÃO

Chiron (também conhecido por Little), um rapaz negro, vive num dos bairros mais pobres de Miami com a mãe toxicodependente. A vida não é fácil para ele, com rapazes mais velhos a meterem-se com ele, rodeado de crime e drogas, e com dúvidas acerca da sua própria identidade. Quando Chiron conhece Juan (Marhershala Ali), um traficante de drogas, encontra nele não só uma figura paternal como um compasso moral, que lhe ensina a nadar e a ser um Homem nos seus próprios termos.

das palmeiras e cores saturadas dos postais de férias. É um filme em que não há grande tensão narrativa, diálogos alucinantes ou mesmo voltas e reviravoltas no terceiro acto, e muitos se perguntaram como pôde ganhar Melhor Filme. Mas a sobriedade de Moonlight é a sua grande força. Três actos, três actores, a mesma personagem, numa história cheia de pequenos gestos (nadar, sentar à beira-mar sob o luar, cozinhar para um velho amigo), sem lugar para julgamentos morais, num estudo discreto de masculinidade, sem sapateados ou fogo-de-artifício.

Para sempre associado àquela famosa gaffe da noite dos Óscares, Moonlight é baseado na história de Tarell Alvin McCraney, e conquistou corações por colocar no ecrã algo raramente visto antes — uma história de crescimento de um rapaz pobre, negro e homossexual, deixando de lado estereótipos e melodramas. Barry Jenkins realiza com mão subtil, deixando a câmara flutuar atrás das suas personagens, retratando uma Miami deslavada (com fotografia de James Laxton), bastante diferente

A ver e rever, sem expectativas.

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Silêncio, 2016

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Dunkirk, 2017


2017 FILIPE COUTINHO

As vozes que ano após ano proclamavam a morte do cinema moderno silenciaram-se em 2017. Isto não quer dizer que tinham razão em anos prévios — não tinham — mas é preciso recuar até 1999 para encontrar outro ano com tamanha qualidade cinematográfica.

qual Andy Serkis, no papel de Caeser, comoveu os espectadores e Matt Reeves, na realização, concluiu uma das trilogias mais notáveis de sempre. Mais para o fim do ano chegou às salas Blade Runner 2049, o primeiro filme art house com um orçamento astronómico. O projeto de Dennis Villeneuve agradou aos fãs do original e aos apreciadores de filmes mais intelectuais. Dotado de excelentes interpretações e fotografia capaz de deixar qualquer um boquiaberto, esta narrativa que desconstrói a capacidade da inteligência artificial aprender emoções humanas através de desgostos existenciais será algum dia dificilmente replicada.

O nervoso miudinho do Y2K e a transição para um novo milénio resultou numa mescla de cinema de autor e entretenimento que mudaria para sempre o panorama internacional da cinefilia. O filme mais influente desse ano foi Matrix, das irmãs Wachowski. O prodigioso evento técnico cimentado em ideias filosóficas abriu as portas a cineastas sofisticados para explorarem conceitos mais cerebrais capazes de agradar a cinéfilos exigentes e, ao mesmo tempo, vender muitas pipocas. Salte-se no tempo duas décadas e foi exatamente isso que aconteceu, com três excelentes exemplos a mostrar que o cinema de entretenimento não precisa de personagens vestidas em licra e histórias presas a universos cinemáticos. Primeiro houve Dunkirk (Christopher Nolan), essencialmente um filme mudo sobre a segunda Guerra Mundial caracterizado por uma montagem esquizofrénica e uma narrativa claustrofóbica, encapsulando de forma eficaz o incessante horror e estado de confusão da guerra. Foi um sucesso crítico e de bilheteira, rendendo quase 530 milhões de dólares. No mesmo mês estreou Planeta dos Macacos: Guerra (War for the Planet of the Apes), um impressionante feito da tecnologia motion capture no

Mas o buraco de minhoca cultural que se abriu no ano passado estabelecendo uma ligação artística aos anos 90 deu aso a outro capítulo único na história da sétima arte: a rentabilidade do cinema independente. Se ’99 viu As Virgens Suicidas, Projecto Blair Witch, Anjo ou Demónio (Audition), Tudo Sobre a Minha Mãe e O Falcão Inglês (The Limey) representarem o culminar de uma década criativa sui generis, ’17 deu muitos cifrões a empresas de produção mais pequenas. Uma fita destaca-se acima das outras: Foge (Get Out). Juntando sátira social ao thriller, Jordan Peele deu vida a uma obra verdadeiramente original, incluindo a inesquecível sequência “sunken place”. Mas houve outros. A par de Foge, Fragmentado (Split), Lady Bird, Chama-me Pelo Teu Nome (Call Me By Your Name) e Amor de Improviso (The Big Sick) renderam 169


Baby Driver - Alta Velocidade, 2017 colectivamente quase 750 milhões de dólares, um marco notável para projetos económicos, e a prova máxima de que o cinema a uma escala tipicamente menos visível está vivo e de boa saúde.

O término do último milénio trouxe-nos também grandes trabalhos de auteurs como Michael Mann (O Informador), Spike Jonze (Queres Ser John Malkovich?), Guy Ritchie (Um Mal Nunca Vem Só/Lock, Stock and Two Smoking Barrels) e aquele que seria o último filme de Stanley Kubrick (De Olhos Bem Fechados). O seu sucessor espiritual, Paul Thomas Anderson é o único cineasta a dar cartas em ambos os anos, em ’99 com o épico intimista Magnólia, e 18 anos mais tarde com o refinado, trabalhado a traço fino, Linha Fantasma (Phantom Thread). A fita que detalha a relação entre um exigente mestre-alfaiate de renome internacional e a sua nova musa assinala a última performance de Daniel Day Lewis e conta com fotografia do próprio PTA, bem como uma composição sonora absolutamente hipnótica de Johnny Greenwood. Na verdade, Linha Fantasma é um filme como poucos nos dias que correm, uma homenagem a Powell & Pressburger e ao seu technicolor vibrante e mise-en-scène luxuoso e cativante. Foi o filme que fechou o ano e, como tantas vezes acontece, o melhor ficou para o fim. Ainda assim, foi apenas um dos vários que ficaram guardados para a conclusão de ‘17, uma táctica usada pelos estúdios para atraírem mais atenção dos Óscares. Entre Outubro e Dezembro estrearam ainda A Forma da Água (The Shape of Water, Guillermo del Toro), The Post (Steven Spielberg), Jogo da Alta Roda (Molly’s Game, Aaron Sorkin), Três Cartazes à Beira da Estrada (Three Billboards Outside Ebbing, Missouri, Martin McDonagh), Jumanji:

Em ’99 houve também fitas que beneficiaram do boom do home video e dos agora (praticamente) extintos videoclubes. Note-se Os Condenados de Shawshank (Frank Darabont, 1994) e Clube de Combate (1999, David Fincher), desastres de bilheteira que explodiram em influência social e cinemática. Em ’17, o panorama foi ligeiramente diferente, havendo poucos flops — destacam-se Valerian e a Cidade dos Mil Planetas, Rei Artur e A Torre Negra. Houve, no entanto, fitas que beneficiaram do VOD e dos serviços streaming. The Florida Project (Sean Baker), A Ghost Story (David Lowery) e Columbus (Kogonada) são exemplos de filmes que ganharam uma segunda vida nos serviços digitais. Entretanto, o filme de médio orçamento regressou em força e pelas mãos de cineastas muito talentosos. Darren Aronofsky assinou a maior controvérsia do ano com o seu extraordinário mãe!, e Kathryn Bigelow deu voz às tensões raciais que se faziam sentir nos EUA com o intenso Detroit, um filme merecedor de uma reavaliação crítica. Ainda assim, os grandes sucessos de bilheteira ficaram a cargo de Baby Driver - Alta Velocidade, Atomic Blonde - Agente Especial e It.

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Bem-Vindos À Selva (Jumanji: Welcome to the Jungle, Jake Kasdan), Eu, Tonya (I, Tonya, Craig Gillespie), O Grande Showman (The Greatest Showman, Michael Gracey) Coco (Lee Unkrich, Adrian Molina), Todo o Dinheiro do Mundo (All the Money in the World, Ridley Scott) e Star Wars: Os Últimos Jedi (Star Wars: The Last Jedi, Rian Johnson). No panorama Marvel há dois destaques: Logan e Thor: Ragnarok. O primeiro, de James Mangold, seguiu o exemplo de Deadpool e privilegiou um tipo de entretenimento mais maduro, com mais sangue, linguagem menos própria e uma narrativa inspirada pelo niilismo do cinema independente Americano dos anos 70. O segundo deu azo a uma evolução do franchise, uma reflexão do seu novo realizador, Taika Waititi, que injectou humor e um estilo retro à la anos 80. No entanto, foi a rival da Marvel que produziu o filme de super-heróis mais falado do ano: Mulher Maravilha (Wonder Woman, Patty Jenkins). “A DC acertou uma”, disseram as audiências e os críticos, incluindo o American Film Institute que colocou o filme de Patty Jenkins to seu Top 10. A nível internacional, 2017 trouxe-nos filmes provocantes, imagens controversas e sequências fantásticas que ficaram gravadas na retina. O Quadrado (The Square, Ruben Östlung), Raw (Julia Ducournau) e The Lure (Agnieszka Smoczynska) são exemplos máximos do que o cinema pode (e deve) ser, metáforas sociais ampliadas por uma visão única. Mas destacam-se também The Nile Hilton Incident (Tarik Saleh), Uma Mulher Não Chora (In the Fade, Fatih Akin), 120 Batimentos por Minuto (120 battements par minute, Robin Campillo), Thelma (Joachim Trier) e Okja (Joon-ho Bong).

Thor: Ragnarok, 2017

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2017


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Título nacional: Blade Runner 2049 Realização: Denis Villeneuve

BLADE RUNNER 2049

Elenco: Harrison Ford, Ryan Gosling, Ana de Armas Ano: 2017

ANTÓNIO ARAÚJO

Denis Villeneuve conseguiu o impossível e ofereceu-nos uma continuação de Blade Runner: Perigo Iminente (Blade Runner, 1982) que respira vida própria enquanto expande os seus temas e universo, espelhando-o subtilmente. Villeneuve opta por ecoar a narrativa e a estética do filme original através de momentos visuais e sonoros evocativos da memória daquele, sem se limitarem a uma função nostálgica e de referência gratuita. Este é um universo ainda mais sujo e menos convidativo do que aquele que conhecíamos. E, se a narrativa é mais épica e ambiciosa que anteriormente, a vivência das personagens parece ser ainda mais insular, mais isolada. Ryan Gosling é o agente K., um blade runner sintético que, ao completar uma das suas missões, descobre um segredo literalmente enterrado que pode estar relacionado com o seu próprio passado e com o do agente Rick Deckard, o regressado Harrison Ford.

holograma — traduz na prática o ideal do sonho americano da década de cinquenta. A sua relação assenta em reacções emocionais e, quando Joi ganha mobilidade, a sua capacidade de deslumbramento com algo tão singelo e mundano como a chuva é comparável ao de K. com os flocos de neve que caem na sua mão. Num mundo em ruínas, parecem ser as novas formas de vida as únicas a encontrarem o sublime nas acções da natureza. E não será esta capacidade de deslumbramento equivalente ao testemunhar de um milagre, ao despertar de um sentimento de transcendência? Num mundo hostil, é Joi quem (por concepção, configuração ou opção) diz a K. o que precisa de ouvir, fazendo-o sentirse como um rapaz de verdade. Assim, Blade Runner 2049 está mais próximo de A.I. Inteligência Artificial (Artificial Intelligence: AI, 2001), de Steven Spielberg, e de Uma História de Amor (Her, 2013), de Spike Jonze, do que do filme do qual é uma continuação.

Se na herança da história original de Philip K. Dick as principais preocupações temáticas eram a condição humana, o confronto com o que nos torna humanos e o encarar da nossa própria mortalidade, desta vez a perspectiva é a da experiência sintética. Olhando mais além, aponta-se um holofote à nossa vivência actual e relação com as máquinas e inteligências (artificiais ou não) que nos rodeiam, bem como às possibilidades que se avizinham no horizonte. Joi, a companheira virtual de K. interpretada por Ana de Armas, é a expressão maior desta reflexão. Para trás ficou o jogo do gato e do rato e o mistério neonoir de quem seria, ou não, um replicante. Em Blade Runner 2049, os sintéticos são facilmente identificáveis e, sem grande surpresa, alvo da intolerância dos humanos. Mas o que será que distingue um replicante de um ser humano? Será um conceito abstracto como a alma? Por certo que as memórias podem ser fabricadas, mas qual a diferença entre estas e as reais?

O regresso de Rick Deckard não mancha o mistério em relação à sua natureza — decisão acertada e que merece aplausos —, mesmo quando K. desenterra memórias dolorosas do seu passado — mais uma vez o poder da memória. Quando Deckard é confrontado com um simulacro do objecto do seu amor, renega o poder da sua falsa verosimilhança. É uma interpretação poderosa e discreta de Harrison Ford que, não só faz a ponte com o passado, como eleva esta sequela a novos patamares. Blade Runner 2049 não será revolucionário nem tão influente como Blade Runner: Perigo Iminente, mas porque haveria de o ser? Olhando para o filme pelos seus próprios méritos, Denis Villeneuve orquestrou uma obra contracorrente da linguagem contemporânea, com um ritmo e sensibilidade muito particulares e, como tem vindo a fazer sistematicamente, ofereceu-nos uma sublime experiência visual e sonora que, embora careça de alguma subtileza, envolve-nos tematicamente, arrebata-nos pela sua gravidade e deslumbra-nos pela audácia da sua ambição. Excepcional!

A vivência de K. — um replicante — e Joi — para todos os efeitos, um 175


Título nacional: O Outro Lado da Esperança Realização: Aki Kaurismäki

TOIVON TUOLLA PUOLEN

Elenco: Ville Virtanen, Kati Outinen, Dome Karukoski Ano: 2017

PEDRO MIGUEL FERNANDES

Abençoado pelos grandes do cinema, abençoado pelos deuses do rock and roll (o quadro de Jimi Hendrix lá está para nos dar essa piscadela de olho e apadrinhar os vários — e belíssimos — momentos musicais do filme, onde ainda se dançava no cinema de outros tempos), Aki Kaurismaki é um dos mais interessantes cineastas da actualidade. E O Outro Lado da Esperança é apenas mais uma das provas da segunda metade da frase anterior.

volta a fazer uma crítica mordaz aos tempos modernos, com a crise dos refugiados à cabeça, mas também abordando a forma como os desfavorecidos são tratados por uns serviços sociais burocráticos de tal forma cegos que não conseguem fazer nada pelos que estão à margem (em certas cenas O Outro Lado da Esperança bem poderia ser o irmão bem disposto de Eu, Daniel Blake, de Ken Loach), ou a genial aventura de empreendedorismo do dono do restaurante, que muda de cozinha consoante as modas. Tudo embrulhado naquele universo pessoal do realizador finlandês, feito de um humor sequíssimo e requintado, apenas ao alcance dos melhores. E abençoados sejam aqueles que entram na “kaurismakilandia”, quaisquer que sejam os vossos pecados.

Partindo da chegada de um refugiado sírio à Finlândia, onde procura asilo depois de fugir da guerra civil que assola o seu país de origem, Kaurismaki criou um filme que nos faz pensar no presente, mas parece que veio de um tempo em que o cinema era feito de outra forma. Lento, mas não sonolento, O Outro Lado da Esperança dá-nos tempo para respirar e aproveitar o filme como poucos conseguem em 2017 (ano de produção do filme). Como, aliás, é apanágio de todos os filmes de Kaurismaki, que

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Título nacional: A Ghost Story Realização: David Lowery

A GHOST STORY

Elenco: Casey Affleck, Rooney Mara, Will Oldham Ano: 2017

JOÃO PAULO COSTA

Ainda por estrear em Portugal, A Ghost Story marca o regresso às origens do jovem realizador David Lowery, que começou a carreira com trabalhos quase caseiros e, mais recentemente, andava pela Disney a assinar o remake de A Lenda do Dragão (Pete’s Dragon, 2016). Aqui, Lowery reuniu os protagonistas de Amor Fora da Lei (Ain't Them Bodies Saints, 2013), Casey Affleck e Rooney Mara e, com um orçamento insignificante para os parâmetros de Hollywood, produziu um belíssimo filme.

na verdade pouco acontece, a não ser uma profunda reflexão sobre a solidão, a vida, a morte, a passagem do tempo e o nosso lugar no Mundo — a recta final é o mais próximo da transcendência cinematográfica de que nos conseguimos recordar nos tempos mais recentes. A Ghost Story é um objecto único no cinema americano, na medida em que pega em dois nomes altamente consagrados da representação e os usa de forma bastante discreta. Affleck passa o tempo quase todo de rosto tapado e Mara tem, na sua “grande cena”, de comer uma tarte inteira num plano único que se prolonga no tempo muito para lá dos limites habituais do cinema dito comercial. Este é um filme que, nota-se, vem do mais pessoal dos lugares e aponta directamente à alma.

Em traços gerais, A Ghost Story conta-nos a história de um fantasma (literalmente um lençol com dois buracos no lugar dos olhos a cobrir uma forma humana) que ascende do corpo morto de um homem (Affleck) e volta para observar o sofrimento da sua mulher (Mara) que deixou para trás, e que tem agora de lidar com o vazio da casa de ambos, enquanto tenta ultrapassar a dor. Contar mais será desnecessário, não porque o filme nos reserve quaisquer surpresas bombásticas, mas porque

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Título nacional: Foge Realização: Jordan Peele

GET OUT

Elenco: Daniel Kaluuya, Alisson Williams, Catherine Keener Ano: 2017

CÁTIA ALEXANDRE

A maior parte das vezes em que a comédia se mistura com o horror, a probabilidade de sucesso não é garantida. Exige o balanço certo para que haja a resposta pretendida para provocar o interesse. Foge consegue esse equilíbrio, num tom perfeito que ilustra uma forte mensagem satírica das sociedades de hoje em dia, sobretudo do estigma racial americano que acompanha a América ao longo da sua história. Escrito e realizado por Jordan Peele, traz uma certa frescura ao género do thriller/horror psicológico, e também à usual trama em que famílias de namoradas acabam por se transformar numa valente dor de cabeça.

mesmo que aparentemente pareçam ter sido escolhidas aleatoriamente. O género do terror está a mudar e é óptimo ver esta ambição por parte de novos realizadores, fugindo às abordagens usuais, arriscando nos temas e desenvolvimento, surpreendendo ao apostar em novas ideias e novas formas de tratar essas ideias, apesar de ter como referência obras de culto mais antigas. Daniel Kaluuya é fantástico e o resto do elenco suficientemente creepy para nos intrigar desde o inicio. Cheio de tensão e sem uso de gore ou cenas demasiadamente sangrentas, o filme consegue chegar ao efeito pretendido de forma perspicaz, jogando com o factor psicológico e emocional. Foge sabe exactamente como agarrar quem o assiste.

Na primeira experiência como realizador, Peele constrói uma relevante obra racial, com toques de humor negro e elementos secundários importantes que ajudam a moldar atmosfera e intensidade. As referências cinematográficas são evidentes, assim como a atenção ao detalhe e a banda sonora, que nos vão dando pistas subtis do que está para vir,

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Título nacional: mãe! Realização: Darren Aronofsky

MOTHER!

Elenco: Jennifer Lawrence, Javier Bardem, Ed Harris, Michelle Pfeiffer Ano: 2017

JOSÉ CARLOS MALTEZ

Depois do aclamado Cisne Negro (Black Swan, 2010) e do repudiado Noé (Noah, 2014), pedia-se a Darren Aronofsky uma redefinição do seu caminho, entre a lógica mais exuberantemente “hollywoodesca” e as formas narrativas mais herméticas, em atmosfera intimista. A resposta foi algo a meio caminho.

de deusa-mãe, encarnação da natureza e símbolo de vida (Jennifer Lawrence), ligado à casa, família, amor e nascimento, que contrasta com o seu companheiro (Javier Bardem), masculinidade, necessidade de criação, de reconhecimento e de busca abstracta. Passando por faltas de inspiração criadora, fogos mais ou menos divinos, desrespeitos da mãe-natureza, chegada de visitantes (Ed Harris e Michelle Pfeiffer) que são expressão de sexualidade, um crime original, a adoração e martírio do Filho, e uma espécie de génese religiosa, nascida de hostilidade e incompreensões, tudo em mãe! é alegórico, desafiante e exuberante.

Vendido como thriller de terror sobrenatural — algo que o filme não é —, mãe! é mais uma página do mundo obsessivo de Darren Aronofsky, assim como que um Cisne Negro ainda mais intenso e surreal, que para muitos pode ser pretensiosamente alegórico, num estilo forçado, tremendamente complexo e excessivo, mas que é um filme ousado e arriscado que não deixa ninguém indiferente.

Como o é labiríntico, claustrofóbico, aflitivo e terrífico, não no sentido comercial que alguns fãs esperavam, mas como algo obscuro e indecifrável, que fica algures entre Buñuel e Dante.

Tratando espiritualidade com muito de surrealismo, Aronofsky parte de mitos de criação, centrando-se num arquétipo feminino pessoal

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Título nacional: Logan Realização: James Mangold

LOGAN

Elenco: Hugh Jackman, Patrick Stewart, Dafne Keen Ano: 2017

CÁTIA ALEXANDRE

Praticamente desde o início da carreira cinematográfica que Hugh Jackman é Wolverine. Vê-lo abandonar o percurso é doloroso, sendo este um dos mais interessantes e complexos personagens de BD de sempre. James Mangold apresenta-nos esta viagem com grandiosidade emocional, quase nunca vista antes num filme do género.

afundando em angústia, carregando no corpo as cicatrizes (literalmente) gravadas pelo passado. É difícil imaginar Hugh Jackman sem Logan e Logan sem Hugh Jackman, num papel que marcará para sempre a carreira do actor e cujo peso da despedida está também emocionalmente marcada por parte da interpretação sentida do actor. Ao vermos um filme sobre um homem triste e cansado de uma vida difícil, que carrega um fardo demasiado grande há demasiado tempo, esquecemo-nos que estamos a ver um filme sobre super-heróis mutantes.

Um dos aspectos mais interessantes de Logan é a forma como as referências cinematográficas se destacam e se encaixam, transformando a usual trama de filmes do género em algo mais substancial e profundo. Logan é duro, sombrio e brutal, capaz de chocar com alguns momentos de enorme crueldade e coreografias de luta absolutamente incríveis. A química entre actores é notória, e as relações entre todos eles sabem a sinceridade, assim como os vilões têm o carisma necessário para ser bem sucedidos. Damos por nós a percorrer todos os momentos da vida de Logan ao mesmo tempo que ele, de ar desgastado e moribundo, se vai

Logan serve como exemplo de que o entretenimento e a substância podem encontrar harmonia entre si. Sem dúvida um dos melhores filmes — se não mesmo o melhor — de super-heróis já alguma vez feito. O final memorável de um ciclo.

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Título nacional: A Paixão de Van Gogh Realização: Dorota Kobiela e Hugh Welchman

LOVING VINCENT

Elenco: Douglas Booth, Jerome Flynn, Saoirse Ronan Ano: 2017

JOSÉ CARLOS MALTEZ

O cinema tem destas coisas, e de vez em quando estende as asas para lá do já tentado, estabelecendo diálogos com outros meios, que usa como ferramentas. Foi o que pensaram os polacos Dorota Kobiela e Hugh Welchman ao decidirem dirigir um projecto inédito: construir um filme exclusivamente a partir de pinturas, filme esse que teria por motivo o pintor holandês Vincent Van Gogh, e onde cada fotograma seria um quadro independente, pintado ao estilo do artista.

Por esse lado, o filme de Kobiela e Welchman triunfa. Faltava depois o outro, fazer a forma servir o conteúdo, transformando o filme em mais que um exercício. Partindo da morte trágica de Van Gogh, de motivos ainda hoje discutíveis, os autores decidiram fazer uma investigação entre aqueles que conheceram o pintor e com ele conviveram nos últimos dias (com os flashbacks, a preto e branco, e num estilo diferente). Com vozes (rostos e movimentos fotografados para servirem de base às pinturas) de Robert Gulaczyk, Douglas Booth, Jerome Flynn, Saoirse Ronan e Helen McCrory, seguimos essa investigação que, se não compromete, cedo se torna supérflua, não acompanhando o fulgor que é vermos a arte de Van Gogh ser animada no grande ecrã.

Para filmar A Paixão de Van Gogh foram treinados mais de 100 pintores e produzidas cerca de 65 000 telas, pintadas e posteriormente fotografadas, no decorrer de seis anos, num processo que ele próprio dava um filme, e passou por plataformas de crowdfunding. Tratava-se de dar vida a quadros conhecidos, encaixando como personagens retratos feitos pelo pintor, quase como se nos quiséssemos convencer de que o próprio Van Gogh tinha feito um filme de animação no seu estilo inconfundível.

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Título nacional: Um Desastre de Artista Realização: James Franco

THE DISASTER ARTIST

Elenco: James Franco, Dave Franco, Ari Graynor Ano: 2017

RUI ALVES DE SOUSA

Tommy Wiseau, figura que parece vir de outro planeta, fez um filme que é uma abominação. Quinze anos depois, o mundo continua obcecado por The Room. E parte das suas histórias de bastidores encontram-se neste Um Desastre de Artista, uma história invulgar do American Dream. Equilibrando com alguma destreza o que há de hilariante e/ou quase aterrorizante em algumas das melhores histórias do making of do filme, James Franco fez a melhor adaptação possível do livro de Greg Sestero: nas modificações necessárias para a coesão do filme, nada do essencial se perde, e por vezes a recriação sai reforçada graças a acertadas decisões de corte e costura do guião.

um conto intemporal sobre as raízes obscuras do sucesso e da Arte, propícia ao regozijo de qualquer espectador, seja um iniciado na cultura “Wiseauniana” ou um autêntico obcecado nesse ícone improvável. E, se bem que era tentador, a transformação de Franco no infame autor/ ator/produtor/realizador nunca se desvia para a caricatura fácil, daquela que é uma tão grotesca personagem real que todos adoramos imitar: levou o seu trabalho muito a sério e, entre os nossos risos perante uma prestação tão completa, também acabamos por desconstruir o boneco Tommy Wiseau e o que esconde tão obscura máscara. E há muito mais para rir, ou para descobrir, do que nos momentos em que se “imitam” alguns dos melhores diálogos que esse "melhor pior filme de sempre" proporciona.

Não é que Um Desastre de Artista seja o Ed Wood do século XXI, como muitos insistiram apregoar na altura do seu lançamento, mas há algo em comum com o biopic de Tim Burton sobre esse outro anti-herói do cinema: entre todos os "desastres" provocados pelo "artista", encontramos

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Título nacional: Detroit Realização: Kathryn Bigelow

DETROIT

Elenco: John Boyega, Wlliam Poulter, Anthony Mackie Ano: 2017

CÁTIA ALEXANDRE

Ninguém pode negar que Kathryn Bigelow sabe criar tensão num filme. Detroit é a mancha agonizante do pesadelo que é a agressividade policial americana perante a comunidade afro-americana que ecoa nas suas raízes históricas. Com muito poder emocional, este é um retrato de exclusão social e controlo por partes das autoridades. O filme é todo ele suportado por um lado documental, nomeadamente na introdução que vai inserindo personagens no contexto histórico, uma época onde reinava a discórdia entre policias e negros, que lutavam pelos seus direitos sociais e civis.

quase todo composto por caras novas, mas é surpreendentemente bom. Para além do contraste racial, existe a ligação política e judicial, algo que até poderia ter sido evitado, pois temos um terceiro acto apressado, com momentos pouco esclarecedores dentro da linha temporal, mas é dada importância aos sobreviventes demonstrando que são episódios como estes que ecoam na História, sobretudo quando enquadrados numa era americana em que forças policiais continuam a abusar de vidas inocentes só pela cor da pele. Detroit ganha magnitude pela experiência cinematográfica que proporciona, pelo lado emocional e humano que faz passar ao demonstrar coisas reais que por vezes a humanidade gosta de negar. Não é perfeito, mas é mais um retrato significativo e bem conseguido na sua maioria.

Estamos perante uma experiência intensa, que Bigelow constrói muito bem em cenas com planos fechados ou movimentos bruscos que criam um ambiente de claustrofobia. A um ritmo lento, vamos chegando ao espectáculo de horror e humilhação que revolta qualquer um que não esteja de acordo com atitudes racistas e de extrema violência. O elenco é

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I DON'T FEEL AT HOME IN THIS WORLD ANYMORE

Título nacional: Já Não Pertenço a Este Mundo Realização: Macon Blair Elenco: Melanie Lynskey, Elijah Wood, Lee Eddy Ano: 2017

SARA GALVÃO

Ruth (Melanie Lynskey) vive num mundo cheio de idiotas. Desde racistas, a amantes de jipes poluentes, até encontros casuais que lhe revelam o final do livro que ela está a ler, parece que ninguém tem um pingo de solidariedade ou empatia pelo próximo. Ruth tudo sofre em silêncio, até que lhe assaltam a casa, levando o portátil, as pratas da avó, e a medicação. Quando a polícia nada faz para a ajudar a recuperar as coisas dela, é a gota de água que a faz transbordar. Ajudada por Tony (Elijah Wood), o vizinho irritante cujo cão usa o jardim de Ruth como casa-debanho, Ruth entra numa missão para recuperar as coisas dela — e, pelo caminho, fazer frente aos Idiotas do Mundo.

audiência. Desiluda-se quem achar que é um filme leve — o último acto é uma gorefest capaz de revirar os estômagos menos habituados a estas andanças. Uma espécie de Bonnie & Clyde onde ambos os protagonistas carecem de carisma ou charme e, em vez de roubar bancos, resolvem fazer justiça pelas próprias mãos (se bem que ambos têm definições muito diferentes de justiça), o filme é uma delícia de gags visuais, com Lynskey no papel de herói improvável e Wood quase irreconhecível. Um estudo do efeito borboleta levado ao extremo, fãs dos filmes de Shane Black vão encontrar aqui outro realizador para seguir e idolatrar.

Já Não Pertenço a Este Mundo ganhou Sundance em 2017 e foi imediatamente comprado pelo Netflix, levando esta comédia negra (a primeira longa-metragem de Macon Blair, que se baseou numa experiência pessoal de assalto para escrever o guião) a uma enorme

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Loving Vincent, 2016

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