Take 37

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1994

TAKE.COM.PT | ANO 7 | NÚMERO 37


THE PULP REDEMPTION CARLOS REIS

O desafio lançado à redacção para esta Take 37 era escolher o melhor ano da história do cinema e, de forma, retroactiva, dedicá-lo uma edição que seria escrita como se no final desse ano estivéssemos. O desafio acabou por ser demasiado audacioso (do mercado VHS à análise de grandes obras que só anos mais tarde tornaram-se reconhecidas e chegaram a Portugal) e, a meio caminho, decidimos que tal viagem no tempo, para se revelar eficaz, informada e competente, necessitaria de outras bases de investigação, de outra disponibilidade de uma equipa que não quer colocar em causa a excelência de um projecto que vive e sobrevive da sua unicidade. Ainda assim, escolhido o ano de 1994 de forma democrática - 1984 e 1995 foram os partidos da oposição mais votados -, pusemos mãos às obras no formato habitual da Take e orquestramos um verdadeiro compêndio nostálgico sobre o ano em que Simba, Forrest Gump, Léon, Red, Stanley Ipkiss e Vincent Vega, entre muitos outros, entraram para a história da sétima arte. A conclusão de que 1994 foi mesmo a melhor escolha chegou aquando da elaboração do Top 50 do ano; é que cinquenta espaços não foram suficientes para evitar que filmes que ainda hoje são recordados com saudade ficassem fora do grande artigo deste número. E, até na televisão o ano do cão marcou o início de séries que entrariam para a história, como Friends, ER ou Party of Five. Cinéfilos e saudosistas, eis o ano certo no sítio certo.



1994 . TOP 50

ARTIGOS

22 Pulp Fiction 83 Ashes of Time 28 Leon: The Professional 84 Before the Rain 30 Ed Wood 84 Death and the Maiden 32 Natural Born Killers 85 The Legend of Drunken 34 The Lion King Master 36 Bullets Over Broadway 85 Una Pura Formalità 38 Clerks. 86 Once Were Warriors 40 The Shawshank Redemption 86 Exotica 42 Chungking Express 87 Wolf 44 Interview with the Vampire 87 Ladybird Ladybird 48 True Lies 49 Quiz Show 50 Three Colours: Red 51 Forrest Gump 52 Il Postino: The Postman 53 Three Colours: White 54 Through the Olive Trees 55 Sátántangó 56 The Crow 57 Four Weddings and a Funeral 58 The Hudsucker Proxy 59 The Mask 60 Little Odessa 61 Heavenly Creatures 62 In the Mouth of Madness 66 Dumb and Dumber 67 Eat Drink Man Woman 68 Shallow Grave 69 Casa de Lava 74 Crumb 75 To Live 75 Maverick 76 Stargate 76 Speed 77 Vive L'Amour 77 La Reine Margot 78 Burnt by the Sun 78 Ace Ventura: Pet Detective 82 Little Women 82 Hoop Dreams 83 A Caixa

02 The Pulp Redemption. editorial 06 1994 para tótós 08 Como não adaptar uma obra cinematográfica 24 Pulp Fiction Teorias e simbologias 46 Crónicas de uma entrevista conturbada 64 Carpenter e a trilogia do Apocalipse 70 O cinema europeu de 1994 80 O ano em que Jim Carrey atingiu o sucesso 88 O Reino 92 Longa vida à série!

Director José Soares. josesoares@take.com.pt Editor Carlos Reis. editor@take.com.pt Editor adjunto João Paulo Costa. editor.adj@take.com.pt Colaboraram nesta edição Aníbal Santiago. Carla Rodrigues. Carlos Reis. Filipe Lopes. João Paulo Costa. Miguel Domingues. Pedro Miguel Fernandes. Pedro Soares. Samuel Andrade. Sandra Gaspar. Sara Galvão. Tiago Silva. Design José Soares. Imagens Arquivo Take. Alambique. Big Picture Films. Cinemateca Portuguesa - Museu do Cinema. Columbia TriStar Warner Portugal. Costa do Castelo Filmes. Fox Portugal. Films 4 You. iStock. LNK Audiovisuais. Lanterna de Pedra Filmes. Leopardo Filmes. ZON Lusomundo Audiovisuais. Midas Filmes. Nitrato Filmes. Pris Audiovisuais. Sony Pictures Portugal. Universal Pictures Portugal. Valentim de Carvalho Multimédia. Vendetta Filmes.

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Š Carla Rodrigues


1994 PARA TÓTÓS CARLOS REIS

1994 não foi apenas um dos melhores anos da história do cinema, um que mereceu da nossa equipa uma edição dedicada e exclusiva. O ano do cão - segundo o zodíaco chinês - ficou também na história como aquele em que eles mesmos, os chineses, tiveram pela primeira vez ligação à internet, o Príncipe Carlos de Gales foi atingido com dois tiros em Sidney, na Austrália e o colombiano Andrés Escobar marcou um autogolo no campeonato mundial de futebol nos EUA que acabaria por carimbar uma certidão de óbito emitida pelos barões de droga que muitos milhões perderam com a eliminação da selecção de Asprilla, Valderrama e companhia. Houve mais, muito mais. O heptacampeão Michael Schumacher, por exemplo, ganhou o seu primeiro título mundial de F1 no mesmo ano que o lendário tricampeão brasileiro Ayrton Senna morreu em Imola, durante o Grande Prémio de São Marino. A nível presidencial, Nelson Mandela foi eleito o primeiro presidente democrático da África do Sul, Richard Nixon faleceu em Nova Iorque vinte anos após ter abandonado o cargo mais importante do planeta e, em França, uma revista lança um escândalo ao publicar fotos de uma suposta filha secreta do presidente François Miterrand. Nada que a inauguração do Túnel da Mancha, após sete anos de trabalhos que envolveram mais de quinze mil trabalhadores, não ofuscasse, permitindo agora a ligação entre gauleses e britânicos em rápidos trinta e cinco minutos.

Jessica Tandy ou Burt Lancaster, o mundo viu nascer também Dakota Fanning, Harry Styles (One Direction) e Raheem Sterling (jogador do Liverpool), apenas para referir alguns. Numa época em que não haviam iPhones, iPads nem iNadas, os Oasis lançavam o seu álbum de estreia e "Don't Turn Around" dos Ace of Base e "All I Wanna Do" de Sheryl Crow tocavam a toda a hora, em todas as rádios. Bryan Adams, Bon Jovi e Sting estavam na berra e o punk rock finalmente tornou-se vital, com bandas como Green Day, Offspring e Bad Religion a pavimentarem uma estrada que depois seria usada por muitas outras nos últimos vinte anos. Michael Jackson tentava dar nas vistas ao casar-se com Lisa Marie Presley - ou seria o inverso? - e os Aerosmith tornavam-se a primeira banda de renome a lançar em exclusivo uma música na internet. A mesma internet onde a Amazon.com era inaugurada em Junho. "Need for Speed", "Tekken", "Sensible World of Soccer" e "Daytona USA" arrasavam nas lojas de videojogos, no ano em que a consola que mudaria o mundo foi lançada. Falamos, obviamente, da primeira Playstation. A Sega Saturn também saiu neste ano mas o destino traçou-lhe sorte diferente. Mas o que mais impressiona em 1994, é olhar para trás e ver a quantidade de super estrelas de Hollywood que estreou-se na representação nesse ano: Cate Blanchett (Police Rescue: The Movie), Cameron Diaz (The Mask), Jude Law (Shopping), Ewan McGregor (Being Human), Natalie Portman (Léon), Mark Wahlberg (Renaissance Man), Jonathan Rhys Meyers (A Man of no Importance), Liv Tyler (Silent Fall), Haley Joel Osment (Forrest Gump), Claire Danes (Little Women), Jessica Alba (Camp Nowhere), Greg Kinnear (Blankman), Chris Tucker (House Party 3), Kate Winslet (Heavenly Creatures), Liev Schreiber (Mixed Nuts), Scarlett Johansson (North), Michelle Williams (Lassie), entre tantos, tantos outros que hoje são parte da nossa vida enquanto cinéfilos. O resto, tudo o resto que envolva cinema e/ou televisão em 1994, segue-se nas próximas páginas. Porque recordar é viver.

Na mesma altura do ano, mas no outro lado do Oceano Atlântico, O.J. Simpson tentava escapar da polícia no seu Ford Bronco branco após assassinar a sua ex-mulher e namorado. Calma, eu sei que "The Juice" não foi condenado por estes crimes. Pinto da Costa também não pelo Apito Dourado, e isso não invalida que todos nós ignoremos os factos - e as chamadas telefónicas que circularam pela internet. E, por falar em malta que não batia bem dos carretos, o adorado compositor e cantor dos Nirvana, Kurt Cobain, suicidou-se em casa com um tiro de caçadeira, um mês após o nascimento de Justin Bieber. Já vi teorias de conspiração criadas por menos. No ano que morreram lendas como Cesar Romero, Matt Busby, Telly Savalas, John Candy Jacqueline Kennedy Onassis, 6



COMO NÃO ADAPTAR UMA OBRA CINEMATOGRÁFIA ANÍBAL SANTIAGO

Como se pode verificar no nosso top 50, 1994 foi um bom ano para ser cinéfilo, sobretudo se pensarmos que muitos bons filmes ainda ficaram de fora. Este também foi um ano de muitas recordações. O Brasil venceu o campeonato do Mundo, Luís Figo e Balakov ainda brilhavam no Sporting e João Vieira Pinto gelou o saudoso estádio José de Alvalade no célebre 3-6. Tivemos ainda a estreia de excelentes séries televisivas que perduraram ao longo do tempo, entre as quais Friends e Babylon 5, abordadas pelo Miguel Ferreira no seu artigo. Já para não falar nas séries de animação de grande qualidade como The Tick, Spider-Man, Aladdin, entre muitas outras, naquele que foi o ano que terminou The Dinossaurs, a célebre série onde o jovem bebé gritava com enorme convicção "não és a mamã" ao seu pai. Foi o ano em que Timon e Pumba celebrizaram o termo "Hakuna Matata" que significa algo como "não há problema". É exactamente com este tema, adaptado ao "não há problema em perder tempo", que nos dedicámos a ver Street Fighter, Richie Rich e The Flinstones numa sessão tripla.



Ano pródigo em bons filmes mas também em "pérolas" de fugir, 1994 trouxe-nos estes três exemplos de adaptações cinematográficas falhadas. Em alguns casos como The Flintstones, a bilheteira ao redor do Mundo até foi um sucesso, com os valores a rondarem os 341,6 milhões de dólares, superando e muito os 46 milhões de dólares do seu orçamento. Também existiram custos de marketing, mas as receitas de merchandising também não devem ter sido assim tão baixas quanto isso (um dos grandes problemas das análises aos lucros dos blockbusters actuais centra-se exactamente no "esquecimento" de alguns analistas em relação ao que os estúdios ganham com os produtos relacionados com os filmes). Já Street Fighter fez 33,4 milhões de dólares nos EUA (99,4 globais) e teve um orçamento de 35 milhões de dólares, tendo sido devastado pela crítica, ou seja, apenas mais um dia na carreira de Jean-Claude Van Damme. No caso de Richie Rich o filme não conseguiu igualar os 40 milhões de dólares do seu orçamento mas foi um sucesso em Home Video, quer a nível do aluguer das cassetes, quer a nível da venda das mesmas. Belos tempos esses onde íamos ao clube de vídeo, levávamos o filme aconselhados pela senhora simpática e tanto poderia sair uma descoberta brutal como uma desilusão enorme. No caso do argumento de alguns dos filmes em análise neste artigo, certamente teriam todo o direito a constar no clube de vídeo, naquela secção dos sete dias, mas bem perto da divisória onde durante alguns anos os meus pais não me deixavam aproximar. É que os diálogos deste trio de obras cinematográficas estão longe de primar pela qualidade, e provavelmente até Sasha Grey nos tempos em que era uma bad girl terá protagonizado filmes com argumentos mais elaborados do que o de Street Fighter. Na altura Sasha Grey não era actriz, por isso não chamemos o nome da senhora ao acaso, embora provavelmente tivesse mais jeito para a interpretação do que boa parte do elenco de Street Fighter.

STREET FIGHTER Existem duas grandes formas para encararmos Street Fighter: como uma paródia, ou uma adaptação a sério a uma popular saga de jogos de computador (neste caso adaptado de Street Fighter 2). Se considerarmos o filme uma paródia, então realmente alguns diálogos e momentos de Street Fighter passam a fazer sentido, a música intrusiva passa a constar apenas para exacerbar alguns trechos dolorosos para o nosso cérebro, as alterações em relação ao jogo deixam de fazer mossa, enquanto Jean-Claude Van Damme debita as suas falas com um sotaque muito próprio e Raul Julia mostra que não merecia ter como último papel da sua carreira o general Bison, ao mesmo tempo que tudo ganha alguma estranha piada. É que é tudo tão caricatural, tão sem sentido, sem coerência (Guile a dizer o nome do melhor amigo, Carlos Blanca aka "Charlie", na televisão num discurso para Bison, quando aquele se encontra cativo do antagonista, que desconhecia a proximidade entre o refém e o interlocutor), sem uma mínima capacidade de criar tensão em volta dos acontecimentos criados (veja-se quando Guile forja a sua morte para passados cerca de cinco minutos já sabermos que este se encontra vivo), ficando mais uma vez provada a dificuldade em adaptar de forma competente os jogos de computador ao grande ecrã (veja-se 10


que, mais tarde, Street Fighter: The Legend of Chun-Li conseguiu ser tão mau ou pior que o filme em análise). O enredo desenrola-se em Shadaloo, uma cidade ficcional localizada no Sudeste Asiático, que se encontra em plena guerra civil, com o general M. Bison (Raul Julia), um ditador megalómano com um exército numeroso, a procurar liderar o local e dominar o Mundo, enquanto as tropas aliadas procuram evitar este desiderato. As tropas aliadas são lideradas pelo Coronel William F. Guile (Jean-Claude Van Damme), contando com Cammy (Kylie Minogue) como sua ajudante, entre vários outros elementos. Bison capturou 63 assistentes das nações aliadas, exigindo 20 bilhões de dólares pelo seu resgate, encontrando-se entre estes Carlos "Charlie" Blanca, um amigo de Guile. Entretanto, Ryu Hoshi (Byron Mann) e Ken Masters (Damian Chapa), dois burlões, procuram vender armas falsas a Viktor Sagat (Wes Studi), o líder de um sindicato do crime, que negoceia directamente com Bison, tendo em Vega (Jay Tavare), um lutador, um dos seus aliados. Sagat conta com um bar onde efectua os seus negócios obscuros, que vão desde lutas ilegais, tráfico de armas, entre outros. Esse local é temporariamente encerrado por Guile, que captura estes elementos, até convencer Ryu e Ken a infiltrarem-se junto de Sagat para descobrirem a localização de Bison, algo que estes aceitam relutantemente forjando a morte do personagem interpretado por Jean-Claude Van Damme. Quem se acredita inicialmente na morte deste é Chun Li, uma suposta jornalista

que logo descobre o plano de Guile, pretendendo eliminar o antagonista, contando com a ajuda de Honda (Peter Tuiasosopo) e Balrog (Grand L. Bush), enquanto Bison procura dominar o território e gerir o mesmo de forma despótica. Este pretende ainda criar o soldado perfeito, utilizando as invenções de Dhalsim (Roshan Seth), um cientista a trabalhar de forma contrariada, para efectuar uma lavagem cerebral e corporal nos humanos que se encontram a ser alvos dos experimentos. Ryu e Ken traem temporariamente Chun Li, Honda e Balrog para ficarem nas boas graças de Sagat e Bison, mas tudo se complica quando o emissário das Nações Aliadas pede a Guile para abortar a missão. Este ignora as ordens e consegue reunir um conjunto de militares para atacar a fortaleza onde se encontra Bison e os reféns, contando ainda com o apoio de elementos como Chun Li, Honda, Balrog, Ryu e Ken, numa missão onde o protagonista quase que morre por várias vezes mas nunca duvidamos que este vai ter sucesso. Não deixa de ser curioso que Steven E. de Souza, argumentista e realizador de Street Fighter, também tenha escrito uma das versões do argumento de The Flintstones, outra das estreias de 1994 que desiludiu, tendo entre um dos motivos para o seu fracasso a nível de crítica a fraqueza do enredo e diálogos. Em Street Fighter a pobreza dos diálogos apenas aparece igualada pelas más interpretações de um filme que 11


gostei imenso de ver aquando da sua estreia. Tinha cerca de nove ou dez anos e rever o filme nos dias de hoje equivaleu a uma dor semelhante a um pontapé nas partes baixas. As reviravoltas são mais do que muitas mas pouco sentidas, as cenas de maior tensão geralmente provocam indiferença, os efeitos especiais estão datados, enquanto o último terço dá-nos alguns momentos onde Jean-Claude Van Damme exibe o seu talento para as artes marciais e a sua inépcia para a interpretação. Tem carisma, é certo, e isso esconde várias das limitações para a interpretação, mas é penoso tentar ver Van Damme a proferir discursos emotivos ou frases de efeito, enquanto o seu personagem procura travar os intentos do ditador e salvar os reféns. O mais desastroso é que Van Damme nem é dos elementos que está pior no elenco. Raul Julia, um actor que já dera provas de contar com algum talento, “brinda-nos” com uma interpretação marcada por overacting latente, com os planos do seu personagem a parecerem saídos de um desenho de animado para miúdos de seis anos. O actor viria a falecer passado pouco tempo depois, tanto que o filme foi dedicado à sua pessoa, embora este merecesse melhor homenagem. O filme conta ainda com um sem número de personagens secundários unidimensionais, tais como Zangief (Andrew Bryniarski) um ajudante de Bison que a certa altura anda vestido apenas com uma espécie de speedo, Sagat (um contrabandista completamente caricatural, com uma pala num olho), Vega (um lutador cujo visual pode resultar no

jogo mas não resulta no filme), Chun Li, Dhalsim (ridícula a participação do personagem no filme), Cammy, entre muitos outros que apenas parecem constar no enredo devido a Steven E. de Souza procurar juntar vários elementos integrantes do jogo (com algumas excepções). Nesse sentido, o filme até poderia ter beneficiado se contasse com um conjunto mais restrito de personagens, permitindo explorar melhor as suas personalidades e fazer evoluir as mesmas ao longo do enredo. Também beneficiaria se tivesse uma história mais elaborada, um argumento de melhor qualidade, cenas de acção coreografadas com alguma habilidade e criatividade, um conjunto de intérpretes mais talentosos, ou seja, se praticamente tudo tivesse sido diferente. Mesmo a forma como Van Damme e Raúl Júlia parecem levar a sério tudo o que estão a dizer não casa bem com o tom camp/trash do filme, que ganharia muito se assumisse a sua faceta completamente irrealista e espalhafatosa. Nem tudo é mau para Steven E. de Souza e Street Fighter: deu uma lição de como não fazer um filme baseado na célebre saga de jogos, mas mesmo assim Andrzej Bartkowiak não aprendeu a lição. Em qualquer dos casos, é um compêndio do que não se deve fazer num filme, não é para todos.

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do filme. Também contratar um realizador por ser fã do material que está a ser adaptado pode não ser a melhor opção, sobretudo quando este mostra ter o conhecimento para recriar os cenários e algumas situações da série, mas não consegue criar algo de sólido, coerente e interessante a partir daí. Inspirado na célebre série de animação criada por William Hanna e Joseph Barbera, The Flintstones parecia ter tudo para ser um sucesso aquando da sua estreia a 27 de Maio de 1994. Se é verdade que o filme foi um sucesso de bilheteira, tendo efectuado mais de 340 milhões de dólares em receitas, também não deixa de ser notório que foi um fracasso junto da crítica e o resultado final pouco tem para recordar a não ser a boa intenção dos envolvidos. Existe todo um cuidado notório para recriar o tom da série, adaptando piadas contemporâneas aos elementos pré-históricos, respeitando o facto das famílias Flintstone e Rubble utilizarem objectos adequados aos dias de hoje mas pensados como se existissem na pré-história, para além da procura em recuperar o genérico inicial e recriar o mesmo em live action. O problema é mesmo o argumento ser incapaz de criar uma história minimamente interessante e elaborada, com The Flintstones a surgir marcado por um enredo recheado de situações pueris, plot holes, personagens unidimensionais e caricaturais, algo que não ajuda quando no elenco secundário temos elementos como Rosie O'Donnell, Kyle MacLachlan e Elizabeth Perkins que nunca escondem estar a representar.

THE FLINTSTONES Pegando novamente no nome de Steven E. de Souza, esse senhor que chegou a trabalhar no argumento dos dois primeiros filmes da saga Die Hard (com ajuda, é certo), também colaborou na escrita de The Flintstones. Aos nove anos de idade o filme até conta com alguma piada, aos vinte e nove percebemos que o jovem dentro de nós ainda pode continuar vivo mas já não tem os mesmos gostos cinematográficos. No caso dos três filmes em análise tive a oportunidade de ver na Academia Almadense com os meus pais, numa sala de cinema a sério, onde me davam um bilhete e não um talão e ainda tínhamos umas pessoas simpáticas a indicarem os lugares, mesmo que os mesmos estivessem marcados. Bons tempos, embora a reacção a regressar a alguns filmes desse período não seja das melhores. O projecto conheceu vários avanços e recuos. Em 1985 Steven E. de Souza foi contratado para escrever o argumento da adaptação mas logo foi dispensado, Richard Donner era visto como potencial realizador, mas tudo mudou quando a Amblin Entertainment de Steven Spielberg adquiriu os direitos de adaptação. Brian Levant, fã da série de animação, foi contratado para realizar, tendo ainda contribuído para a contratação de quase uma dezena de argumentistas, algo que talvez explique as incoerências do argumento 13


A história é bastante simples, com os momentos iniciais a explorarem a amizade entre a família Flintstone, composta por Fred (John Goodman), Vilma (Elizabeth Perkins) e a filha de ambos, a jovem Pebbles (Elaine Silver), e a família Rubble, formada por Barney (Rick Moranis) e Betty (Rosie O'Donnell). Fred e Barney trabalham juntos na pedreira do Sr. Slate, sendo amigos e compinchas de longa data, jogando na mesma equipa de bowling, apresentando uma cumplicidade ao ponto do primeiro emprestar o dinheiro necessário para o segundo poder adoptar o jovem e irrequieto Bam-Bam (Hlynur Sigurðsson), uma criança com uma força acima da média que até então tinha sido criada com Mastodontes. Um concurso para o cargo de vice-presidente efectuado por Cliff Vandercave (Kyle MacLachlan), um executivo corrupto que procura encontrar o elemento perfeito para enganar e assim desviar os fundos da empresa, promete trazer mudanças latentes na vida dos Flintstones e dos Rubbles. Barney decide trocar o seu teste com o de Fred, de forma a pagar o favor pelo amigo o ter ajudado a adoptar Bam-Bam, com o personagem interpretado por John Goodman a vencer o concurso, sendo obrigado a despedir o vizinho devido a este ter contado com o resultado mais baixo. Fred passa a contar com a sensual Miss Sharon Stone (Halle Berry) como secretária, num dos exemplos da procura do filme em utilizar elementos contemporâneos para o humor, tal como acontecia na série. Esta é uma ajudante de Cliff, procurando seduzir Fred e convencê-lo a assinar

todos os documentos sem os ler, algo que o Dictabird (Harvey Korman), uma espécie de pássaro que funciona como gravador, desaconselha. Enquanto isso, as finanças dos Rubble vão de mal a pior, com os Flintstones a procurarem ajudar inicialmente, embora a ascensão social destes últimos e as suas mudanças de comportamento conduzam a um separar do casal de amigos. Cliff continua com o seu plano para o desfalque, procurando ainda desenvolver uma maquinaria que torna os trabalhadores obsoletos, com o filme a explorar, ainda que levemente, esta questão da forma como a tecnologia pode ou não afectar os postos de trabalho. Tudo piora quando o desfalque na firma é descoberto, os trabalhadores são despedidos, Fred é considerado culpado visto ter assinado todos os documentos e Vilma chateia-se com o esposo. É então que Fred tem de provar a sua inocência, reconquistar Vilma e voltar a ganhar a confiança dos Rubble, ao mesmo tempo que tem de evitar que Cliff destrua a pedreira com a sua ideia. A história é bastante simples e explorada sem grande complexidade, com The Flintstones a parecer procurar chegar a um público infantil, embora conte com elementos que digam mais aos adultos. Veja-se o caso da corrupção no interior da empresa, a situação dos contratos, mas também a própria personagem de Halle Berry, com a actriz a surgir praticamente apenas para espalhar a sua beleza e sensualidade. Nada contra, mas esta é apenas um objecto sexual, embora em pouco tempo consiga fazer mais do que elementos 14


como Rosie O'Donnell. É raro o momento em que não parece que Rosie O'Donnell está a representar, mas mesmo assim não supera o caricatural Kyle MacLachlan que interpreta um vilão completamente unidimensional, com um plano que só parece poder resultar no filme. Por sua vez, John Goodman sobressai e consegue mostrar que mesmo com um argumento pouco polido consegue criar um personagem capaz de despertar o nosso interesse, expressando com engenho a capacidade de Fred Flinstone em ser um bom amigo e marido, embora algo abrutalhado, nem sempre muito inteligente e ingénuo. É um ás no bowling, com o filme a repetir os seus passinhos milagrosos que causam o efeito devastador quando a bola se abate nos pinos, mantendo uma relação de enorme animosidade com Pearl Slaghoople (Elizabeth Taylor), a sua sogra, uma mulher espampanante, arrogante e com alguns ares de diva que permitem a Taylor e Goodman protagonizarem alguns momentos de humor. Rick Moranis faz o que pode como Barney, evidenciando a faceta mais ponderada do seu personagem em relação a Fred e a grande amizade que os une, embora o filme falhe em explorar devidamente a sua relação com Betty.

a empurrarem os carros com os pés, Dino a ficar eufórico com a chegada do dono, Fred a gritar yabba-dabba-doo, entre outros), mas seria necessário uma história minimamente interessante para que este bom trabalho fosse recompensado. A própria realização de Brian Levant está longe de ser das mais inspiradas, embora tenhamos de ter em atenção que estamos perante um filme para toda a família, algo que pode explicar algumas questões mais infantis. No entanto, é impossível não esquecer que a série passou originalmente em horário nobre, sendo capaz de lidar com questões do quotidiano dos adultos com mais engenho e assertividade do que o filme. Depois temos questões tão incoerentes como Bam-Bam ser capaz de levantar pesos elevadíssimos mas não conseguir soltar-se de umas meras cordas, ou a forma fácil como Fred facilmente deixa Barney de lado, com o filme a não ser um primor no estabelecimento dos relacionamentos. Nota-se que Brian Levant procura respeitar o visual da série de animação, com a cidade de Bedrock a ser construída de forma praticamente imaculada, a presença das criaturas e dinossauros como aparelhos a ser bem aproveitada, os objectos modernos adaptados à pré-história são relativamente convincentes, mas o enredo é demasiado pueril para que nos preocupemos com o mesmo. Para terminar vale a pena citar o grande mestre Roger Ebert: "If The Flintstones had been able to devise a story as interesting as its production values, it would have been some kind of wonderful". O filme até pode ter

Tudo é demasiado caricatural, embora seja particularmente de elogiar a procura de copiar os cenários, o guarda-roupa e os sons dos desenhos, mas também alguns dos seus momentos marcantes (os personagens 15


alcançado sucesso nas bilheteiras, mas os números não contam para a qualidade da obra cinematográfica, que o digam as sagas Transformers e Twilight nos dias de hoje (provavelmente recordados numa Take retro daqui a vinte e poucos anos). Se The Flintstones adaptava uma série de animação e Street Fighter um jogo, já Richie Rich contou inicialmente com uma série de comics e séries de animação. Diga-se que dos três exemplares, e se o virmos apenas como um filme para crianças, Richie Rich até não funciona totalmente mal para o público alvo. Já para os adultos, provavelmente o mais interessante será a mini-participação de Claudia Schiffer como uma professora privada de ginástica. Este foi o último filme em que Macaulay Culkin contou com o papel de uma criança e digamos que um dos poucos últimos destaques após ter entrado num ocaso onde os seus maiores feitos encontram-se numa relação com Mila Kunis e integrar a banda 'The Pizza Underground'. Richie Rich surge como um filme para toda a família que procura adaptar o célebre personagem criado por Alfred Harvey e Warren Kremer, embora o resultado final seja algo desastrado. Na época do seu lançamento, o filme foi trucidado pela maioria da crítica, embora Roger Ebert até tenha concedido três estrelas, tendo sido um dos poucos elementos a exibir simpatia para com esta obra cinematográfica.

RICHIE RICH Tal como em The Flintstones, a história é bastante simples e claramente destinada ao público infantil, embora lhe falte alguma fantasia e imprevisibilidade, com Macaulay Culkin a interpretar o personagem do título, um jovem que é filho de magnatas, vive numa mansão luxuosa onde conta com uma montanha russa, o seu próprio McDonalds, um cão com manchas em forma de cifrões e uns pais geralmente demasiado ocupados para estarem consigo embora procurem que este tenha a melhor educação. Este é enviado pelo pai para a reabertura da United Tool, uma fábrica adquirida por Richard Rich, Sr., tendo em vista a modernizar a mesma e evitar que os trabalhadores fossem despedidos, procurando que estes posteriormente fiquem com o controlo do estabelecimento. Lá fora, enquanto dá o seu discurso, Richie vê um conjunto de crianças a jogarem basebol na rua, num local onde se encontra Gloria, uma jovem que vai despertar o seu interesse. Richie ainda tenta ir ter com as crianças, mas Ferguson (Chelcie Ross), o segurança, logo trava o jovem, com o tédio deste por não ter amigos da sua idade a revelar-se. Mais tarde, o protagonista consegue contactar com estes jovens, contando com o apoio de Herbert Cadbury (Jonathan Hyde), o seu mordomo, um indivíduo britânico, de bom trato, que é um 16


em Casa o protagonista tinha de evitar o assalto da mesma, em Richie Rich o personagem interpretado por Macaulay Culkin tem de recuperar o controlo da sua habitação, contando para isso com alguns planos mirabolantes. É algo injusto estar a avaliar o filme como se este fosse virado para o público adulto, mas isso não justifica a falta de imaginação do argumento na construção dos personagens, que raramente evoluem ao longo da narrativa.

dos poucos amigos de Richie. As crianças que se encontram na rua não querem aceitar a presença de Richie, mas este logo os convence com uma aposta financeira, exibindo os seus dotes para o basebol. Por sua vez, Richard Rich, Sr. (Edward Herrmann) e Regina Rich (Christine Ebersole), os pais de Richie, procuram manter a integridade e filantropia, parecendo muitas das vezes pouco claro como conseguem ter a sua fortuna, lidando com a oposição de Laurence Van Dough (John Larroquette), o director financeiro, que procura gerir os negócios da empresa do casal. Van Dough procura ainda arquitectar um plano contra o casal e o filho, provocando um acidente aéreo que, supostamente poderia causar a morte dos vários elementos. No entanto, Richie fica na sua mansão e não parte com os pais para Inglaterra, efectuando uma festa com os seus novos amigos, incluindo a jovem Gloria (Stephi Lineburg). Perante o desaparecimento dos pais, que se encontram perdidos no meio do Oceano Atlântico, Richie fica temporariamente à guarda de Cadbury e gere as empresas da família, mas um ardil de Van Dough e os seus homens conduzem a que o mordomo seja considerado suspeito do possível assassinato do casal. Van Dough assume a guarda de Richie, tornando o mesmo cativo em sua casa, enquanto este procura fugir, encontrar o paradeiro dos pais, salvar o seu mordomo e enfrentar o antagonista, ou seja, passa a ter de cumprir objectivos distintos do seu personagem em Sozinho em Casa. Se em Sozinho

Richie Rich é o jovem rico e aborrecido por não ter amigos verdadeiros, um personagem com quem geralmente conseguimos gerar afinidade. É simpático, mas muitas das vezes não percebemos o seu aborrecimento e porque demorou tanto tempo a querer conhecer outras crianças da sua idade de diferentes estatutos sociais. É certo que viu o grupo de jovens quando se encontrava a apresentar a fábrica reaberta pelo pai, mas será que nunca tinha visto ninguém da sua idade a brincar pelas ruas? Macaulay Culkin tem uma interpretação relativamente sóbria como este personagem que surge praticamente como o canto do cisne da carreira do actor. Por sua vez, John Larroquette interpreta um antagonista megalómano, com um plano pueril para conseguir ficar com a fortuna dos elementos da família Rich, embora por vezes até seja ultrapassado por um grupo de crianças. Não é um dos melhores momentos da carreira do actor, sobretudo se tivermos em conta que 17


anteriormente tinha trabalhado em JFK de Oliver Stone. A interpretação está longe de convencer, sendo um dos vários personagens cliché do filme. Veja-se o caso do Professor Keenbean, um cientista muito ao estilo de Q que inventa as engenhocas mais mirabolantes, tais como um detector de produtos a partir do cheiro, para além de Chelcie Ross como um segurança que já sabemos que mais tarde ou mais cedo vai trair o protagonista e a sua família. O próprio último terço surge desprovido da tensão que o realizador Donald Petrie certamente pretenderia incutir, embora seja de elogiar quem esteve responsável pelos cenários do filme. Veja-se o interior da mansão, luxuosamente decorada, bem como o "Monte Richmont" onde o casal guarda os seus bens mais valiosos. Edward Herrmann e Christine Ebersole raramente conseguem destacarse como os pais de Richie, interpretando dois elementos algo naïves que nunca nos acreditamos serem capazes de ter reunido todo um monopólio de negócios, sempre sem despedir funcionários ou a agir como se o mundo do mercado financeiro fosse um conto de fadas, fugindo ao estereótipo dos "pais ricos e frios que não querem saber do filho". Temos ainda Jonathan Hyde, um dos poucos elementos de destaque, como um mordomo disposto a tudo para defender Richie, acabando pelo caminho por se apaixonar pela mãe de Gloria. O filme conta ainda com a participação especial de Claudia Schiffer como uma instrutora de ginástica que apenas surge para exibir algumas das suas esbeltas curvas,

algo que pode ter muito mais piada para o espectador passado vinte anos do que quando tinha nove anos. Existe muito pouco para realçar ao longo desta adaptação bastante desinspirada. O argumento é preguiçoso, os personagens estão longe de serem cativantes, o enredo que envolve o desaparecimento dos pais de Richie não tem um mínimo de tensão, numa adaptação deslavada que peca pela falta de imaginação e magia. A história está longe de aborrecer, mas também está longe de deixar marca, ficando naquele limbo dos filmes que facilmente serão esquecidos. Esta conclusão a Richie Rich é uma valente mentira. Sobretudo se pensarmos que estas obras cinematográficas ainda hoje são recordados numa edição como esta Take "Retro", onde vários colaboradores procuram exibir o bom cinema que se fez neste ano ou os respectivos guilty pleasures, com o Carlos Reis a contar com um texto onde não falta The Specialist, uma preciosidade, que conta com Sylvester Stallone e Sharon Stone no elenco principal, mas também uma história que não nos engana nos seus intentos. Nesse sentido até vou entrar em contradição. Sejam bons ou maus filmes, o cinema conta com uma diversidade imensa de obras cinematográficas que permitem chegar a públicos com gostos tão diversificados que certamente até estas obras em análise terão os seus fãs. Por vezes também é necessário desanuviar do stress diário e diga-se que Street Fighter permite umas 18


quantas gargalhadas involuntárias, Richie Rich pode servir o público infantil e The Flintstones serve para exibir que nem sempre tudo pode correr bem. Os três filmes são belos exemplos de como não efectuar uma adaptação cinematográfica. Não existe a fórmula perfeita para elaborar estas adaptações, algo notório por quase todos os anos contarmos com casos tão desastrosos como estes. Alguns filmes são reavaliados passado alguns anos e revistos pela positiva, mas no caso deste trio parece improvável que consigam estatuto de culto, a não ser quem não se consiga livrar totalmente das boas memórias da infância. No entanto, apesar de todos os seus defeitos e as suas poucas virtudes, o trio merece ser recordado numa edição dedicada aos filmes de 1994, tendo para o bem e para o mal reservado o seu pedacinho na História do Cinema, por muito pequeno que este seja.

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1994 . TOP 50 Este será provavelmente o top mais polémico e controverso que a Take já fez na sua história. Dificilmente encontraremos um leitor que concorde com o facto de o melhor filme de sempre para um site como o IMDb esteja na oitava posição de uma lista anual. Ou que o décimo quarto desse ranking seja também o décimo quarto de 1994 para os colaboradores da nossa equipa. Verdade seja dita para nossa defesa, 1994 foi um ano tremendo para o cinema e o simples facto de ter que escolher "apenas" cinquenta filmes para este artigo já nos obrigou a deixar de fora uma mão cheia de saudosas produções de realizadores como Spike Lee, Phillip Noyce, Joel Shumacher, Nanni Moretti, Robert Altman e Ivan Reitman, entre tantos outros. Na lista final, resistiram dois filmes portugueses, dois documentários norte-americanos que nem sequer foram nomeados aos Óscares e várias películas que apenas obteriam algum estatuto e reconhecimento anos após a sua estreia. Seja qual for a ordem do seu top 50, descubra o nosso, um a um, e relembre um ano como poucos a nível cinematográfico.


01 22


Título nacional: Pulp Fiction Realização: Quentin Tarantino

PULP FICTION

Elenco: John Travolta, Uma Thurman, Samuel L. Jackson, Bruce Willis

1994 PEDRO SOARES

Esqueçam a imparcialidade, neste caso não o consigo ser. Pulp Fiction é o meu filme favorito, com todos os superlativos anexados. Por isso, tenho tanto para dizer sobre ele que tenho quase a certeza que me vou esquecer de metade. Mas vamos lá a isso.

Por fim, Pulp Fiction é ainda um filme de actores. Apesar da multiplicidade de histórias - é um filme-mosaico à Robert Altman, mas com as várias histórias desarrumadas temporalmente (a influência de Godard outra vez) - , todas as personagens são tridimensionais e tornam-se pessoas reais, que parecemos conhecer há vários anos e com quem nos apetece ir tomar café depois do fim do filme. Para isto ajuda o argumento bem escrito, mas o rol de estrelas do elenco também contribui, obviamente: os intocáveis Bruce Willis, Harvey Keitel e Cristopher Walken; a nossa Maria de Medeiros a fazer aquilo que sabe fazer melhor - de parvinha; os fetiches Uma Thurman e Tim Roth; e, claro, o então desaparecido John Travolta, que Tarantino reabilitou para o cinema e até teve o descaramento de o pôr a dançar. Contudo, é Samuel L. Jackson o principal destaque, encarnando pela primeira vez o seu badass muthafucka reminiscente dos blaxploitation movies, a citar passagens bíblicas enquanto dispara sobre adolescentes traficantes. Fá-lo tão bem que ficamos sempre com a impressão que aquele é que é o seu verdadeiro eu e que Samuel L. Jackson é apenas uma personagem para as revistas cor-de-rosa.

Pulp Fiction marcou a consagração de Quentin Tarantino como realizador maior, depois da promissora estreia com Reservoir Dogs. E tal como esse, Pulp Fiction prolonga e aperfeiçoa vários pormenores, muitos deles que iriam, inclusive, tornarem-se imagem de marca de Tarantino. Pulp Fiction é, portanto, uma revisitação aos filmes de gangsters dos anos 50 e 60, um neo-noir estilizado e cool, com violência gráfica tornada em coisa porreira. O filme é como um filtro da visão do próprio realizador, que absorve os símbolos de uma geração que tudo consome a velocidade supersónica, regurgitando-os num exercício de bricolage que os tornam novos e originais. No entanto, é curioso ver como, no meio de tantos piscares de olho à série-b e outros subgéneros de gosto duvidoso, a maior referência de todas é a Jean-Luc Godard, nomedamente a Bande À Parte. A famosa cena de dança entre John Travolta e Uma Thurman, ao som de Chuck Berry no Jack Rabbit Slim Contest, é o exemplo mais flagrante; mas há mais, desde a forma de filmar e de colocar a câmara, aos truques meramente artísticos (como o quadrado que Thurman desenha com as mãos, don't be a square, e que voltaria a aparecer mais tarde, em Kill Bill). E depois há toda uma escola de cinema independente, daquele que filma o que mais ninguém filma. É isso que faz Tarantino ser tão cool: o tornar corriqueiro e quase vulgar um filme de gangsters, com assassinos a soldo e capangas executados a sangue frio. Os irmãos Coen ficaram aqui com o caminho desbravado para o seu sucesso.

Tudo isto é embrulhado por Tarantino numa embalagem que ainda contém a melhor banda-sonora não-original de sempre, à base de surf e sixties-beat, eternizando o Misirlou do Dick *vénia* Dale, e alguns dos melhores diálogos que a sétima arte já pariu: Vincent - And you know what they call a Quarter Pounder with Cheese in Paris? Jules - They don't call it a Quarter Pounder with Cheese? Vincent - No, they got the metric system there, they wouldn't know what the fuck a Quarter Pounder is. Jules - What'd they call it? Vincent - They call it Royale with Cheese.

“(...)uma revisitação aos filmes de gangsters dos anos 50 e 60, um neo-noir estilizado e cool, com violência gráfica tornada em coisa porreira.” 23



PULP FICTION

TEORIAS E SIMBOLOGIAS PEDRO SOARES

O cinema (e a televisão) sempre se alimentaram de truques, teorias e mitos urbanos. O fantasma que se assoma à janela, em Three Men and a Baby; a história de um estupefacto Lawrence Olivier, em Marathon Man, que perante um Dustin Hoffman mal encarado a explicar que tinha feito directa para parecer que estava cansado, lhe perguntou "e porque não representas apenas que estás cansado?"; ou as referências secretas ao Super-Homem em todos os episódios do Seinfeld, confesso admirador do Homem de Aço. Algumas destas histórias são falsas, outras verdadeiras. E outras são falsidades que, de terem sido ditas tantas vezes, se tornaram verdade. É deste fascínio que a sétima arte se alimenta, o que lhe dá um brilho especial e uma certa magia.


Pulp Fiction, o filme que consagrou Quentin Tarantino, é um filme de culto que, ao longo dos anos, tem crescido em teorias, simbologias e outras histórias paralelas. Na internet propagam-se histórias e ideias, umas mais absurdas que outras, que já não se sabe se são reais ou não. E, como se deve optar pela lenda quando esta é mais interessante que a realidade (John Ford dixit), muitas vezes pode vir o próprio Quantin Tarantino desmentir ou desmontar qualquer história que já ninguém acredita nele. Obviamente que é preciso filtrar as inúmeras ideias. As teorias da conspiração amontoam-se pela internet, identificando gestos satânicos nas fotografias promocionais de Tarantino ou símbolos maçónicos no logo do Jack Rabbit's Slim. Demasiado forçado, mas nada que espante perante um filme acusado vezes sem conta de ser uma apologia à violência e às drogas e de fomentar o niilismo. Bem mais interessantes são as teorias criadas à volta daqueles momenos inexplicáveis do filme. Por exemplo: afinal o que está dentro da mala que John Travolta e Samuel L. Jackson recuperam para Marcellus Wallace? Tarantino já disse mais do que uma vez que não há nenhum segredo à volta do conteúdo brilhante da mala. Era só uma lâmpada ligada a uma bateria que pode significar o que qualquer pessoa quiser. Demasiado vago para alguém acreditar. É muito mais interessante - e faz muito mais sentido - que lá dentro estejam os diamantes de... Reservoir Dogs. Afinal, os filmes de Tarantino muitas vezes se remetem uns aos outros, num lúdico jogo meta-referencial: os cigarros Red Apple são uma constante nos seus trabalhos, os hambúgueres Big Kahuna também e até o Jack Rabbit's Slim é anunciado em From Dusk Till Dawn. E há até quem acredite que Kill Bill não é mais do que o episódio-piloto que Mia Wallace (ou seja, Uma Thurman, actriz de ambos os filmes) conta a Travolta durante o encontro de ambos, em Pulp Fiction. Outra das teorias em redor do conteúdo secreto da mala de Pulp Fiction


defende que se trata... da alma do próprio Marcellus Wallace. Tudo porque num determinado plano, vemos que personagem de Ving Rhames tem um suspeito penso na nuca. Na secção da trivia do imdb há uma entrada dedicada ao assunto e tudo, que explica que o penso serviu para tapar uma cicatriz do actor, que Tarantino não gostava e que a maquilhagem não conseguia disfarçar. Demasiado simples para se acreditar. É muito mais estimulante ir buscar uma teoria oriental que diz que se pode roubar a alma pela nuca de um homem e assim explicar, simultaneamente, esse plano e o misterioso conteúdo brilhante da mala que o próprio tenta recuperar com tanto ânimo durante o filme. Mais fácil de contestar é a teoria que diz que, em Pulp Fiction, todos os relógios estão parados nas 4h20. O 420 é um número que se convencionou associar aos consumidores de erva, desde os anos 70, e nada melhor do que associa-lo também a um filme tão conectado ao consumo de estupefacientes, onde Uma Thurman quase morre de overdose. Infelizmente, esta ideia desmonta-se mais depressa do que se apanha um coxo. Se na loja de penhores onde Bruce Willis vai resgatar Ving Rhames das mãos de sodomizadores ainda vemos uma série de relógios a marcarem 4h20, no divertido flashback em que Cristopher Walken entrega a um jovem Willis o relógio que tinha sido do seu pai durante a guerra, este não está nada a marcar a hora da erva. Mas já dizia o outro: quando é mais interessante, imprima-se a lenda. Não faltam teorias, paralelismos e simbologias a Pulp Fiction. É normal que os filmes mais estimulantes levem a que sejam escrutinados ao pormenor, encontrando depois outros níveis de galvanização. E, num trabalho como este, cheio de referências a outros filmes (só na cena em que Travolta e Thurman dançam ao som de Chuck Berry encontramos ecos de Godard, o Batman de Adam West e dos Aristogatos, da Disney), ainda mais fácil se torna fazer estas rimas. Depende agora de cada um fazer a sua interpretação.


02 28


Título nacional: Léon, o Profissional Realização:Luc Besson

LÉON

Elenco: Jean Reno, Gary Oldman, Natalie Portman

1994 SARA GALVÃO

Há muito a dizer de filmes que, após 100 anos e tal de uma variedade incrível de histórias e personagens, nos conseguem surpreender ao nível de Léon, o Profissional. Depois de Nikita e O Grande Azul, filmes que o trouxeram até uma certa ribalta, Luc Besson iria marcar para sempre as nossas vidas cinéfilas com a mais estranha e doce parceria/relação amorosa de todos os tempos: entre o assassino a soldo Léon (Jean Reno), que não sabe ler, cuida religiosamente da sua planta todos os dias e bebe copos de leite (a bebida de escolha de muitos psicopatas), e Mathilda (Natalie Portman), uma miúda de 12 anos que fuma cigarros e busca vingança pelo irmão assassinado. Este seria o primeiro filme americano de Besson e também o primeiro papel de Portman numa longa metragem e, bem, o resto da carreira dela é História.

mais sensata. Jean Reno, que interpreta Léon com alguém com graves problemas emocionais e alguma lentidão intelectual, mostra o paradoxo de um assassino que jamais moveria um dedo para magoar ou abusar uma pequena rapariga. E Portman, neste seu primeiro papel, mostra já o carisma que a tornará uma das melhores actrizes da sua geração. Mathilda é hipnotizante, e a verdadeira força matriz do filme - não conseguimos desviar os olhos dela, a pequena mulher que consegue ter dentro dela tanto ódio e tanto amor ao mesmo tempo, e que não hesita em levar ambos às últimas consequências. Das outras personagens, impossível não mencionar Gary Oldman num dos seus papéis mais exagerados e excêntricos de sempre, como polícia/vilão Stansfield. Muita da sua performance foi fruto de improviso (incluindo a sua paixão por Beethoven, qual Laranja Mecânica dos anos 90), e se bem que está ligeiramente acima, em termos de ritmo e energia, do resto do filme, não é por isso que destoa.

Como descrever Léon, contudo? Um thriller? Um romance entre dois “bandidos”, a la Bonnie & Clyde? É um objecto tão singular que torna-se difícil de acreditar que para o seu criador, foi criado apenas como um “passatempo” enquanto a produção de O Quinto Elemento não arrancava. O guião (supostamente com elementos autobriográficos) foi escrito em 30 dias e as filmagens duraram três meses.

Spoiler: no guião original, é Mathilda que faz o “truque do anel” que mata a personagem de Oldman, após ele ter morto o amado Léon. Talvez fosse um final forte demais para as sensibilidades da altura (esta é uma era pré-Hit Girl, e quando pensamos na personagem de Moretz é difícil não encontrar semelhanças com a heroína de Besson), mas o certo é que o final, quando Mathilda volta à escola, conta a surreal verdade à directora, e planta o vaso de Léon no grande jardim exterior, é demasiado simples para uma história cheia de complicações, não ajudado por uma banda sonora que não envelheceu tão bem como o filme. Mas tudo é perdoável, quando as lágrimas que temos nos olhos pelo verdadeiro final 10 minutos antes nos tornam cegos a quaisquer outras falhas.

Com um estilo exagerado de filmagens (se bem que, comparado com filmes posteriores de Besson, é bastante contido), e diálogos que, pelo menos no caso de Oldman, foram bastante improvisados - “Eu gosto desta calma antes da tempestade, faz-me lembrar Beethoven” - poderia ser apenas mais um filme de acção, mas o que o torna verdadeiramente diferente - e o merecedor número 2 da nossa lista de melhores de 1994 - é fazer de uma relação que tudo tem de errado uma das mais belas e puras histórias de amor. Há rumores de que, no guião original, Mathilda e Léon tornam-se efectivamente amantes, mas a escolha de Besson de tornar a relação estritamente platónica pode efectivamente ter sido a escolha

“(...)Luc Besson iria marcar para sempre as nossas vidas cinéfilas com a mais estranha e doce parceria/relação amorosa de todos os tempos(...)” 29


03 30


Título nacional: Ed Wood Realização: Tim Burton

ED WOOD

Elenco: Johnny Depp, Martin Landau, Sarah Jessica Parker

1994 SARA GALVÃO

Quem conhece a obra de Tim Burton sabe que é impossível negar a influência dos B-movies na carreira do realizador americano. O próprio confessa ter passado grande parte da infância e adolescência em frente ao televisor a ver filmes de terror de baixo orçamento e clássicos do expressionismo alemão. Ed Wood é a sentida homenagem a todo esse mundo, na forma de um biopic sobre o pior realizador que alguma vez existiu. O filme segue as atribulações de Edward Wood Junior (Johnny Depp) desde os seus falhanços no teatro e desentendimentos com a namorada Dolores (Sarah Jessica Parker - “Tenho mesmo a cara de um cavalo?”), passando pela sua amizade com o legendário Bela Lugosi (Martin Landau), o seu fascínio com camisolas de angorá, os seus primeiros passos no mundo do cinema e, claro, a realização e execução da sua “obra prima” - Plan 9 from Outer Space. Tudo em Ed Wood é filmado numa mistura de filme dos anos 40 com expressionismo alemão, desde o preto e branco até aos planos escolhidos e transições usadas na edição - pontos bónus a quem conseguir descobrir o plano retirado directamente de Citizen Kane. E não é por acaso que começa com o apresentador Criswell dentro de um caixão e termina com um enorme The End no ecrã. Ver este filme é como entrar numa máquina do tempo para uma altura onde existia paixão e reverência pela sétima arte, e onde os realizadores tinham de lutar contra os estúdios para fazer ver a sua própria visão. É interessante lembrar que Burton realizou este filme mal tinha acabado Batman Returns, e é fácil ver, depois de três anos dentro do studio system que tanto lhe cortara as pernas no início da carreira (se bem que fez as pazes com esse mesmo sistema nos últimos anos), o gozo que lhe dera colocar o pior realizador do mundo e o considerado melhor - Orson Wells, (interpretado por um assustadoramente parecido Vincent D’Onofrio) - a discutir os problemas que os afectam a ambos, e que passam pela luta constante entre as

verdadeiras forças criativas (eles) e a estupidez e mundanidade das pessoas com dinheiro (os produtores). No fundo, se Ed Wood tem um tema, é o facto de celebrar a verdadeira paixão pela arte do cinema, e mostrar um homem a quem nada, nem mesmo a falta de talento, o fará parar de lutar pelos seus próprios sonhos. E nas sombras das luzes da ribalta que Ed Wood persegue tão furiosamente, eis que surge Bela Lugosi, o produto gasto e mastigado do sistema, que foi prontamente abandonado por tudo e todos. O filme é também um retrato amargurado dos últimos dias da lenda do terror, e Martin Landau consegue convencer tudo e todos da presença do verdadeiro Lugosi, retratando fielmente o carisma, o sotaque a até a “marca” do actor, o estranho gesto de mão - o que lhe iria ganhar um Óscar para Melhor Actor Secundário (a primeira vez na história dos Óscares que um actor ganharia a estatueta por interpretar outro actor). E mais uma vez é simples ver paralelos entre a relação de Wood com Lugosi e a de Burton com o seu ídolo Vincent Price, que vez a voice over para a curta Vincent e iria participar, mais tarde, em Eduardo Mãos de Tesoura. Um filme que custou mais do que todos os filmes de Edward D. Wood Jr juntos, Ed Wood - e só a sequência inicial daria para financiar um filme e meio - sobre um anti-herói do sonho americano, e há quem diga um dos melhores filmes de Tim Burton. É certamente um “ovni” das histórias sobre Hollywood, que costumam apenas girar em volta de finais felizes. Não sendo um sucesso de bilheteira, foi adquirindo ao longo do tempo, tal como os filmes do retratado, um certo estatuto de culto. A glorificação do “tão mau que é bom”, que (re)começou nos anos 80, elevou Ed Wood ao ponto de merecer toda uma nova legião de fãs. A ambição valeu a pena. Sobre todos os que pereceram pelo caminho, sobre esses não há guiões. Mas um dia haverá posters... “(...)a verdadeira paixão pela arte do cinema(...)” 31


04 32


Título nacional: Assassinos Natos Realização: Oliver Stone

NATURAL BORN KILLERS

Elenco: Woddy Harrelson, Juliette Lewis, Robert Downey Jr.

1994 PEDRO SOARES

Assistir a Natural Born Killers pela primeira vez é uma experiência irrepetível. É como assitir pela primeira vez a uma filme do Godard, onde, de repente, novos caminhos são abertos e todas as convensões cinematográficas tomadas até então como certas são estilhaçadas e caem por terra. A partir daí o filme até pode não ser grande coisa e as restantes visualizações ser sempre a descer, mas pelo menos o primeiro impacto é ímpar.

Tudo isto, dito assim, até parece ser um filme normal. O pior é depois, quando Natural Born Killers é verdadeiramente retalhado. Começa logo por ser filmado com planos que nunca estão quietos e com enquadramentos igualmente esgrouviados. Depois, Stone edita a mesma cena duas vezes e cola-as uma por cima da outra, muda as cores, mete a preto e branco, satura os verdes ou usa filtros manhosos. Além disso, usa constantemente projecções nas fachadas dos prédios, nas janelas e nas paredes, que surgem como um símbolo poderosíssimo à omnipresença da televisão, objecto comum em qualquer distopia que se preze. Tudo isto misturado com imagens de filmes antigos, frames de sonhos surreais à la Jodorowsky, cenas de sexo animal da BBC ou anúncios à Coca-Cola. Evidentemente, isto produz o tal efeito de Disneylândia nos ácidos. Por um lado faz lembrar um pouco a demência das drogas de Fear And Loathing in Las Vegas - é sempre curioso ver Robert Downey Jr. em filmes que fazem apologia às drogas -, mas com uma história coerente, uma vez que é orquestrada por trás a tal farsa ao poder dos media. Claro que a parte mais interessante é o descontrolo homicida do casal Mickey e Mallory, potenciado pelos truques de Oliver Stone (que podem levar ao enjoo se não se habituar a eles), numa espécie de Bonnie e Clyde da geração fast food, com Woody Harrelson a descolar-se automaticamente do seu papel em Cheers, e com Juliette Lewis a fazer o que sabe fazer melhor: gaja-trash, qual Iggy Pop de saias.

Para começar, um pouco de história: depois de True Romance, Quentin Tarantino escreveu o argumento deste Natural Born Killers. Contudo, depois de ver o que Oliver Stone lhe fez, Tarantino renegou completamente a criação. Aliás, a melhor descrição do filme continua a ser a sua: é como a Disneylândia nos ácidos! Quanto a Stone, começou por tentar fazer um filme de acção daqueles de que Arnold Schwarzenegger se orgulhasse de ter feito, mas não resistiu à tentação de se imiscuir na identidade norte-americana mais uma vez. A base de Natural Born Killers é uma fábula romântica sobre a mais pura história amorosa de um casal de psicopatas homicidas, Mickey (Woody Harrelson) e Mallory (Juliette Lewis), de regresso à forma mais primitiva de ser e sentir do ser humano, em completa errância pela route 66(6). Com contornos surreais e devidamente malignos (olá David Lynch perturbador, de Blue Velvet), Natural Born Killers é um banho de sangue em modo road movie que emula, primeiro Badlands (aliás, em ambos as personagens são baseadas nos serial killers Charles Starkweather e Caril Fugate), e depois Wild At Heart (olá novamente David Lynch). No entanto, aquilo que pode ser facilmente confundido com uma apologia à violência, é muito mais um Dr. Strangelove do que um A Clockwork Orange. Ou seja, uma farsa subversiva, neste caso ao poder dos media, à massificação da informação e ao estrelato fugaz da televisão.

Concluindo: o primeiro impacto de Natural Born Killers é avassalador e vale qualquer filme. Depois, das duas uma: ou aquela espécie de cinema em movimento o seduz e o transforma em filme de culto ou habitua-se e começa a ficar cansado de tanto artifício desnecessário, perdendo a cada visualização o interesse pelo filme. Depois, há uma última opção: analisar Natural Born Killers sem o fogo-de-artífico. E aí, sejamos sinceros, não é nada de especial.

“(...)é uma fábula romântica sobre a mais pura história amorosa de um casal de psicopatas homicidas(...)” 33


05 34


Título nacional: O Rei Leão Realização: Roger Allers e Rob Minkoff

THE LION KING

Elenco: Matthew Broderick, Jeremy Irons, James Earl Jones

1994 PEDRO MIGUEL FERNANDES

Em 1994 o mundo da animação estava prestes a sofrer uma revolução enorme: no ano seguinte chegava às salas Toy Story: Os Rivais, a primeira longa-metragem da Pixar, o estúdio que seria responsável não só pela introdução em massa do cinema de animação digital (curiosamente através da Disney, que distribuiu o filme), mas também por levar a animação a um novo patamar. Enquanto não chegava a revolução digital, a Disney continuou a apostar na animação em 2D e o seu grande sucesso do Verão de 1994 foi mais um típico filme animado dos estúdios criados por Walt Disney. Possivelmente o último grande filme de animação tradicional saído da Disney ou pelo menos o mais memorável e que ficará para a história da empresa como um dos seus emblemáticos títulos dos anos 1990. Passado nas planícies africanas, O Rei Leão conta-nos a história de Simba, o jovem leão, sucessor do Rei Mufasa, que é afastado pelo seu tio Scar, sequioso de ficar com um título que lhes escapou das mãos após o nascimento de Simba. Indo buscar as mais variadas referências, desde a inspiração em Hamlet, de William Shakespeare, à própria Bíblia, O Rei Leão é uma daquelas histórias intemporais a que nos habituou a Disney e continua a encantar as novas gerações. Basta reparar na presença de personagens como a dupla Timon e Pumbaa, que mais tarde tiveram direito a uma série de animação para TV. Mas além das referências literárias (o próprio universo das tragédias gregas está de certa forma presente ao longo do filme, quando inúmeras vezes ouvimos em fundo um coro que acompanha as desventuras de Simba e companhia), há muito mais para lá de uma simples história de aventura e crescimento. Aqui a Disney volta a recorrer a belíssimos momentos musicais, já comuns noutros filmes do estúdio e que tanta fama deram aos seus filmes de animação, e acaba por prestar uma certa homenagem aos clássicos, nomeadamente aos icónicos musicais criados por Busby Berkeley, um dos grandes coreógrafos do cinema

norte-americano da década de 1930. Ao ver a sequência da primeira fuga de Simba e Nala é difícil não recordar as coreografias de Berkeley. E ainda no campo musical, não estranhou que os dois Óscares conquistados por O Rei Leão em 1994 tenham vindo deste campo: a estatueta de Melhor Banda Sonora Original foi para a excelente partitura de Hans Zimmer, que mistura na perfeição sons mais clássicos com alguns toques de música africana, e a Melhor Música para a Academia nesse ano foi Circle of Life, de Elton John e Tim Rice, que ouvimos numa das cenas mais belas do filme, logo no início, quando Simba é apresentado ao seu reino pela primeira vez. Outro dos grandes trunfos de O Rei Leão é em simultâneo uma imagem de marca dos filmes de animação da Disney: a escolha das vozes das personagens. Uma vez mais o estúdio acerta em cheio no casting vocal, ao pedir a três grandes nomes para dar voz aos principais protagonistas desta aventura. Curiosamente o grande destaque não vai para a voz da personagem principal, o jovem Simba, mas para os dois secundários mais velhos, Mufasa e Scar, cujas vozes pertencem a James Earl Jones e Jeremy Irons, respectivamente. A voz deste último encarna na perfeição o vilão Scar, cuja presença ganha outra força quando se houve a voz gutural de Irons. No ano seguinte, já O Rei Leão tinha entrado no panteão de obras-primas da Disney, começava a entrar em cena um novo reinado no universo do Cinema de animação, protagonizado por personagens digitais e encabeçada pela Pixar. A Disney deixou-se ultrapassar pela animação digital e a animação tradicional começa a perder força. Mas isso são contas de outro rosário. Em 1994 poucos adivinhariam que um período de sombras se aproximava do universo Disney.

“Possivelmente o último grande filme de animação tradicional saído da Disney ou pelo menos o mais memorável (...)” 35


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Título nacional: Balas Sobre a Broadway Realização: Woody Allen

BULLETS OVER BROADWAY

Elenco: John Cusack, Dianne Wiest, Jennifer Tilly

1994 CARLOS REIS

Regresso de Woody Allen à comédia pura depois de vários dramas e romances com o requinto humorístico único do realizador e guionista nova-iorquino, Balas Sobre a Broadway narra a história de David Shayne (John Cusack), um dramaturgo inexperiente da Broadway que procura maneira de arranjar financiamento para transformar o seu último guião numa peça de teatro. Quando um produtor amigo (o saudoso Jack Warden) avisa-lhe que a sua única esperança está em dar um dos papéis principais à namoradinha (Jennifer Tilly) histérica, inculta e arrogante de um dos mais temidos chefes da máfia da cidade (Joe Viterelli), David começa por se opôr mas, à falta de alternativa, aceita o negócio. E a sua vida pessoal e profissional nunca mais será a mesma.

gangues adversários, como para garantir a relevância da pseudo-actriz na peça, a única condição do financiamento interesseiro do chefe. Sentado no fundo do teatro, a ler o seu jornal, Cheech começa a mandar aos poucos algumas dicas em voz alta para alterações no guião que, surpreendentemente, todo o elenco concorda, para desespero de David, que se sente artisticamente desautorizado por um "gorila". Mas a verdade é que não vai demorar muito para o dramaturgo perceber que é Cheech o verdadeiro génio teatral na sala e que, para alcançar a ribalta, terá que vender a alma ao diabo, pedindo ao brutamontes por conselhos que levem o seu trabalho a outro patamar. E será Cheech, enervado pelo facto da namorada do patrão estragar por completo as suas ideias, que terá que resolver o assunto pelas próprias mãos, dando razão a uma famosa frase Woody Allen numa entrevista: um artista, seja qual for a sua arte, cria o seu próprio universo moral. E é ai que percebes que Cheech, o mais improvável de todos, o único em Bullets over Broadway que leva a arte a sério.

Tudo o que se segue, dos diálogos deliciosos às reviravoltas tão simples quanto inesperadas da narrativa, é Woody Allen no seu melhor. Da outrora célebre e respeitada senhora do teatro que não passa agora de uma alcoólica com sede de fama, capaz de seduzir o homem/artista só para garantir o regresso às luzes dos holofotes, ao actor em dieta que começa os ensaios a beber água com limão e acaba a comer tudo e mais alguma coisa, de pernas de frango a biscoitos de cão, sem esquecer o encenador amigo (Rob Reiner) que, por não conseguir passar nada do papel para o palco, considera-se um autor de arte e não de hits, um verdadeiro filósofo que desafia o espectador com uma questão provocadora: se de um prédio em chamas apenas fosse possível salvar a última e única cópia conhecida de uma peça de Shakespeare ou a vida de um qualquer anónimo, o que faria o verdadeiro dramaturgo?

Comédia negra de bastidores, Woody Allen reúne de forma primorosa em Balas sobre a Broadway os principais elementos da sua filmografia: a meditação conturbada sobre o amor, a arte e o sexo. A estes temas junta um elenco de estrelas que funciona em conjunto - três nomeações (Tilly, Wiest e Palminteri) e uma vitória (Wiest) nos Óscares - e uma narrativa tão complexa e divertida quanto acessível a todos os públicos. Considerada por alguns críticos como a última grande comédia de Allen, Bullets over Broadway revela-se uma sátira corrosiva ao mundo hipócrita e pretensioso do teatro - e do cinema, por arrasto óbvio -, numa reconstrução maravilhosa de uma cidade mágica nos anos vinte do século passado.

Mas o grande trunfo do filme de Allen, a carta que sai da manga do realizador e muda por completo o destino do jogo, é o guarda-costas grosseiro e implacável que acompanha a namorada do chefe mafioso nos ensaios, não só para assegurar a sua segurança das ameaças dos

“(...)dos diálogos deliciosos às reviravoltas tão simples quanto inesperadas da narrativa, é Woody Allen no seu melhor.” 37


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Título nacional: Clerks. Realização: Kevin Smith

CLERKS.

Elenco: Brian O’Halloran, Jeff Anderson, Marilyn Ghigliotti

1994 JOÃO PAULO COSTA

Será exagerado dizer que a influência de Clerks. pouco se fez sentir para além da que exerceu na carreira do seu autor? Talvez seja essa a primeira impressão, mas numa época em que praticamente toda a gente tem acesso a câmaras de alta definição e equipamento relativamente barato, convém recordar que há 20 anos atrás as dificuldades em adquirir os mínimos em termos de material técnico eram bastante mais elevadas, daí que não seja de todo descabido falar numa referência para a actual geração de aspirantes a cineastas sobre como dar uso à imaginação para contornar as restrições de produção. No fundo, aquilo que Smith faz é reduzir ao mínimo o seu processo criativo: cada cena de Clerks. é uma tela que serve para enquadrar os actores em conversa, com os cortes e movimentos de câmara reduzidos ao mínimo indispensável.

Produzido em menos de um mês com um orçamento composto do dinheiro resultante da venda da sua colecção pessoal de banda desenhada, de um par de cartões de crédito no limite e outros tantos biscates, rodado a preto e branco com os amigos durante a noite na loja de conveniência onde trabalhava durante o dia. Eis a lenda de uma das mais célebres comédias do cinema independente americano da primeira metade dos anos 90, e do seu persistente realizador/actor/argumentista/ produtor/editor: falamos, claro, de Kevin Smith e do seu Clerks. Fazendo das suas limitações as suas grandes forças, Clerks. é pouco mais do que uma sucessão de cenas divertidas em que Dante (Brian O'Halloran) e Randall (Jeff Anderson) vão interagindo entre si e com os clientes da loja de conveniência/videoclube onde trabalham, tendo como fio condutor esse eterno tema da passagem à idade adulta e o aceitar das responsabilidades que isso acarreta (tema aprofundado na sequela que Smith realizou em 2006 e, acreditamos, na que aparentemente se prepara para lançar num futuro próximo). As relações amorosas, os planos para o futuro e, obviamente, sexo, muito sexo, onde até temos direito a uma passagem sobre necrofilia involuntária. Ou, se quisermos ser justos, muita conversa sexual. E é de conversa que se faz praticamente todo o filme, uma vez que as restrições orçamentais (e, porque não dizê-lo, do próprio realizador que nunca se revelou um esteta particularmente empolgante) não permitiam grande arrojo visual, daí que Smith tenha apostado todas as fichas na escrita de um guião onde viria a revelar uma voz muito particular que, goste-se ou não, se tornou numa imagem de marca. A verdade é que são as suas palavras que mais se destacam e, mesmo quando debitadas por alguns elementos de um elenco não-profissional pouco interessante, conseguem soar sempre certeiras e divertidas desde o início.

Indispensável é também ver Clerks. para compreender na totalidade o universo de Kevin Smith, sendo que nos seus títulos posteriores muitas destas personagens reaparecem em papéis de maior ou menor dimensão, em contínuas piscadelas de olho de filme para filme – com especial destaque para as recorrentes aparições de Jay (Jason Mewes) e Silent Bob (o próprio Smith), as mais famosas figuras desta galeria que tiveram direito a filme próprio com Jay & Silent Bob Contra-Atacam. Não que seja grave ver Perseguindo Amy ou Dogma sem ter visto a obra de estreia do realizador, mas dessa forma o espectador perderá uma série de referências que pulam de filme para filme ao longo da sua carreira. O humor de Smith não será certamente para todos os gostos, não faltando quem o considere imaturo ou de mau-gosto, mas foi precisamente à volta dessas “crianças grandes” que a sua carreira foi sendo paulatinamente construída e, para os fãs, há sempre um gostinho especial em assistir à evolução destas personagens rumo a algo parecido com a maturidade.

“(...)omo fio condutor esse eterno tema da passagem à idade adulta e o aceitar das responsabilidades que isso acarreta(...)” 39


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Título nacional: Os Condenados de Shawshank Realização: Frank Darabont

THE SHAWSHANK REDEMPTION

Elenco: Tim Robbins, Morgan Freeman, Bob Gunton

1994 PEDRO SOARES

Porque ao contrário do que pode parecer, The Shawshank Redemption não é um filme sobre prisioneiros e guardas, sobre a corrupção insitucional, sobre inocência ou culpa. Tem mais de desumanização do ser humano (como os soldados de Full Metal Jacket de Kubrick), do que de corrupção (como em A Few Good Men, de Rob Reiner). É um filme acerca da condição humana enquanto ser humano livre, da sua confinação a quatro paredes e ao que isso pode fazer; é um grito de liberdade, que tem o seu expoente máximo na cena clássica de Tim Robbins, na sua redenção à chuva. Lembramo-nos, por exemplo, dos dramas morais da Warner Brothers, da década de 20 (olá I Am A Fugitive From a Chain Gang).

Quando se fala de Stephen King e das adaptações das suas obras ao cinema, normalmente conseguem-se referir inúmeros nomes. Afinal, o norte-americano é o autor vivo com mais obras adaptadas ao grande ecrã. No entanto, The Shawshank Redemption até costuma passar despercebido. Talvez por King ser o mestre do terror ou talvez por ter sido um filme que não passou pelo carrossel de promoção de Hollywood, o que é certo é que The Shawshank Redemption é, quiçá, a melhor adaptação cinematográfica de uma obra do autor norte-americano. E, curiosamente, (juntamente com The Green Mile, também realizado por Frank Darabont), é uma história que nada deve ao horror ou ao suspense. Tim Robbins é Andy Dufresne, um banqueiro que é condenado a dupla prisão perpétua pelo assassinato da sua esposa e do seu amante, crimes dos quais se encontra inocente. Fechado na prisão de Shawshank, Dufresne vai tardar a adaptar-se aquela nova realidade, mas quando consegue perceber o que quatro paredes conseguem fazer a um homem, vai começar a subir na escala hierárquica prisional, graças à sua perspicácia, inteligência e à amizade com Red Redding (Morgan Freeman).

E depois, tudo isto vem numa agradável caixinha muito bem embrulhada, com uma história engenhosa e perspicaz, com um twist final divertido e muita comoção e sentimentalismo. Talvez por isso, apesar de ser um filme carregado de clichés e personagens-tipo, é ao mesmo tempo uma obra especial. Podemos estar a ser confrontados com lugares-comuns atrás de lugares-comus e, no entanto, tudo aquilo nos vai parecer novo, como que feito pela primeira vez. E foi em The Shawshank Redemption que Morgan Freeman passou a ser o narrador-mor de todos os filmes, tornando-se quase na voz oficial da nossa consciência. Quanto a vocês não sei, mas eu, pelo menos, quando penso, oiço-me com a voz do Morgan Freeman.

Um dos segredos do sucesso de Stephen King são as suas personagens; apesar de serem, normalmente, histórias de terror, King constrói os seus protagonistas com uma espessura tridimensional, capazes de crescerem de forma credível, o que se adapta na perfeição ao cinema. Daí o sucesso das suas obras na sétima arte. Em The Shawshank Redemption esse é um dos grandes trunfos. Os outros são a cumplicidade entre Andy e Red num bromance antes de haverem bromances, a vida destes num microcosmo complexo e desumano e a "instintucionalização" dos prisioneiros enquanto homens.

Não venceu nenhum Óscar, apesar das sete nomeações, mas The Shawshank Redemption é um dos filmes mais acarinhados da sétima arte. E justamente, digo eu.

“É um filme acerca da condição humana enquanto ser humano livre, da sua confinação a quatro paredes e ao que isso pode fazer (...)” 41


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Título nacional: Chungking Express Realização: Wong Kar-Wai

CHUNGKING EXPRESS

Elenco: Brigitte Lin, Takeshi Kaneshiro, Tony Chiu Wai Leung

1994 JOÃO PAILO COSTA

Se Wong Kar-wai é hoje um dos mais reconhecidos realizadores orientais do planeta, muito o deve à popularidade granjeada por Chungking Express. Não muito longe em estilo dos seus primeiros trabalhos, este foi rodado num intervalo da produção de As Cinzas do Tempo, o seu épico de artes marciais cuja complexidade e orçamento desmedido o deixaram num pequeno impasse criativo. Escrito à medida que ia sendo filmado, partindo apenas de um par de ideias de base e rodado nas ruas de Hong Kong, Chungking Express deixa transparecer na tela a mesma liberdade que sugere a sua saga de produção.

amorosas. Como sempre, apesar dos vistosos elementos visuais, são os pequenos detalhes que realmente contam e tornam o seu trabalho em algo único: os pequenos hábitos por vezes imperceptíveis das personagens, a importância de certos gestos e, acima de tudo, aquilo que se diz inúmeras vezes através do olhar. Kar-wai é, entre outras coisas, um mestre a filmar corpos e a enquadrá-los em espaços ou acções solitárias, porque muitas das suas personagens vivem em rotinas silenciosas, extremamente pessoais, como os polícias de Chungking Express que ora comprando comida com prazos de validade específicos, ora visitando o mesmo restaurante diariamente, parecem procurar manter-se dentro de um círculo fechado onde ainda sobram alguns resquícios dos amores perdidos.

No fundo, trata-se de um filme composto composto por duas histórias independentes, ligadas apenas por pequenos elementos temáticos, sendo o principal aquele que já se encontra presente em toda a obra do autor: o amor ou, mais ainda, o sofrimento causado pela perda do mesmo. Na primeira delas temos um polícia que, depois de abandonado pela namorada, se perde de amores por uma estranha mulher cuja figura escondida atrás de uns óculos de sol e uma peruca loira só aumentam a sua curiosidade. Na segunda história temos outro polícia não só com dificuldade em lidar com o abandono da sua namorada, uma hospedeira de bordo, mas também em perceber quem lhe anda a remexer no apartamento, pouco desconfiado que se trata da jovem empregada do snack bar onde costuma almoçar.

Mas se os polícias interpretados por Takeshi Kaneshiro e o sempre presente Tony Leung são os incorrigíveis sofredores amorosos, são as belas mulheres que deixam uma impressão mais forte. Escreveu-se atrás sobre a figura misteriosa de uma mulher escondida atrás de uma peruca loira e óculos escuros, e que esse papel tenha ficado a cargo de Brigitte Lin torna tudo ainda mais curioso para essa popular actriz que decidiu colocar um ponto final na sua carreira em 1994, e ir desaparecendo aos poucos dos holofotes da vida pública. Pelo contrário, Faye Wong surge como a jovem tímida que se dedica a arranjar secretamente a casa do polícia por quem se apaixonou. Wong é uma muito popular estrela musical chinesa e apaixona o espectador com a sua personagem homónima, cuja energia se torna contagiante. É impossível assistir a Chungking Express sem nos apaixonarmos também pelas suas danças ao som de California Dreamin', a canção dos Mamas & the Papas que tem aqui um papel bastante proeminente. Mas mais do que isso, é impossível terminar o visionamento deste filme sem um enorme sorriso no rosto, e uma crença enorme no Cinema.

Aparentemente criado em homenagem ao Cinema da nouvelle vague francesa, nomeadamente às narrativas soltas de Godard, Chungking Express carrega consigo a aura trágico-romântica habitual dos trabalhos de Wong Kar-wai, e embora muitos dos elementos presentes sejam tão enigmáticos como sempre, este permanece ainda como o seu título mais acessível, aquele em que melhor se consegue vislumbrar uma luz ao fundo do túnel dessa eterna descrença no sucesso das relações

“Kar-wai é, entre outras coisas, um mestre a filmar corpos e a enquadrá-los em espaços ou acções solitárias (...) 43


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INTERVIEW WITH THE VAMPIRE: THE VAMPIRE CHRONICLES

Título nacional: Entrevista Com o Vampiro Realização: Neil Jordan Elenco: Brad Pitt, Tom Cruise, Antonio Banderas

1994 CARLOS REIS

literários de Rice, Neil Jordan, para o bem e para o mal, levou Entrevista com o Vampiro para um caminho cinematográfico muito personalizado, dentro do estilo autoral em que se sentia confortável e que tão bem lhe tinha servido no passado, conseguindo não ser pressionado pelo estúdio a aligeirar o conteúdo erótico perverso da escrita de Rice, nem o constante sentimento melancólico que a eternidade e a impossibilidade de uma morte tranquila provocava em personagens cujos vestígios humanos estavam em guerra aberta com a natureza vampiresca do seu sangue. E, no meio de tudo isto, conseguiu ainda dar algumas pinceladas de humor negro, quase sempre evidenciadas em cenas cuja família disfuncional - Cruise, Pitt e Dunst - entrava em conflito: "Never kill in the house!", gritou por mais de uma vez Cruise para Dunst. Sim, Kirsten Dunst, aqui apenas com onze anos, uma vampira adulta eternamente prisioneira num corpo de criança. Uma performance portentosa que a lançou em Hollywood e que lhe valeu, inclusive, uma nomeação para Melhor Actriz Secundária nos Globos de Ouro desse ano. Já Brad Pitt, com muito tempo em cena mas poucas oportunidades para brilhar, Christian Slater, Antonio Banderas e a presença habitual na filmografia de Jordan, Stephen Rea, cumprem sem percalços nem grandes rasgos o que lhe é pedido. Lançado em Novembro de 1994 e com um orçamento de sessenta milhões de dólares, Interview with the Vampire arrecadou duas nomeações técnicas aos Óscares e mais de duzentos milhões de dólares em todo o mundo, tendo-se perdido a saga inicialmente planeada nas supostas recusas de Cruise e Pitt em reencarnar as suas personagens. Para a história ficou um filme visualmente intenso, elegantemente pervertido, em que nos é pedido que nos identifiquemos com os vilões e não com as vítimas - e, por isso, nunca é verdadeiramente um filme de terror. Amor, arrependimento e culpa ao som de uma Sympathy for the Devil tocada pelos Guns N' Roses.

Baseado numa obra de tremendo sucesso nos Estados Unidos da América nos anos setenta do século passado, Interview with the Vampire: The Vampire Chronicles foi planeado como o primeiro filme de uma série de capítulos cinematográficos dedicados à saga literária de Anne Rice, uma que, em grosso modo, pode ser comparada a nível de fanatismo e sucesso comercial à recente onda Twilight que assolou as livrarias, os cinemas e, porque não, assombrou os cinéfilos nos últimos anos, também com vampiros à mistura. A comparação é ingénua, já que num género dominado pela futilidade juvenil, Entrevista com o Vampiro é uma pedra rara e preciosa. A sua sequela, Queen of the Damned oito anos depois, baseada no terceiro livro da saga (ninguém percebeu onde foi parar o segundo), já é outra conversa. Uma que não merece espaço nesta análise. Mas comecemos pela polémica que se instalou entres fãs, fanáticos e a própria escritora quando Tom Cruise foi escolhido para o papel de Lestat na adaptação cinematográfica de Neil Jordan. Demasiado baixo, afirmaram alguns; muito comercial, criticaram outros; e, preparem-se, expoente máximo de heterossexualidade e do machismo em Hollywood, numa personagem que se queria incerta sobre a sua sexualidade. Ora bem, o que acabou por acontecer foi que Cruise convenceu gregos e troianos com a sua interpretação cativante de uma criatura diabólica e emocionalmente conturbada, entregando-se de corpo e alma à inquietação carnal da sua personagem, fazendo inclusivamente com que o conceituado crítico de cinema da revista Time, Richard Corliss, fosse violentamente atacado pela opinião pública quando, de forma algo homofóbica, considerou o filme uma "fábula para gays". O desempenho de Cruise foi tão unânime, que a própria Anne Rice publicou um texto de duas páginas em vários jornais de referência, pedindo desculpas ao actor pelas duras palavras que lhe destinou em várias entrevistas, aquando da escolha do Top Gun para o papel principal. Adaptação sombria, luxuosa, gótica e aparentemente fiel aos princípios

“Adaptação sombria, luxuosa, gótica e aparentemente fiel aos princípios literários de Rice (...) 45


necessidade de tantas horas diárias numa cadeira de maquilhagem -, John Malkovich, Peter Weller, Alexander Godunov e Johnny Depp, na altura o preferido de Rice devido ao seu desempenho em Edward Scissorhands. Mas não foi o único: River Phoenix, contratado com o aval de Rice para o papel do jornalista Daniel Molloy, acabou por falecer quatro semanas antes do início das filmagens e teve que ser substituído por Christian Slater, que rezam as crónicas doou todo o seu salário de duzentos e cinquenta mil dólares para instituições de caridade relacionadas com Phoenix. Já para o lugar da jovem Kirsten Dunst concorreram nomes hoje consagrados como Christina Ricci, Julia Stiles ou Evan Rachel Wood. Mas foi Dunst, na altura com doze anos e nojo de beijar o dezoito anos mais velho Brad Pitt na boca, que conquistou a personagem... e a crítica.

CRÓNICAS DE UMA ENTREVISTA CONTURBADA CARLOS REIS

Anne Rice, autora da saga literária, confessou numa entrevista que criou a personagem de Lestat e pensar no actor Rutger Hauer. Quando os direitos de adaptação cinematográfica foram adquiridos pela Paramount por cento e cinquenta mil dólares ainda antes da publicação do primeiro livro em 1976, John Travolta era a primeira opção dos produtores para o papel principal, escolha que não agradava a Rice mas contra a qual nada podia fazer. Felizmente, o excesso de projectos vampirescos da altura Dracula, Nosferatu e Love at First Bite - acabaram por adiar a decisão da Paramount para outra altura. E quando já ninguém se lembrava dele, eis que no início dos anos noventa volta tudo para cima da mesa e Tom Cruise é anunciado para o papel de Lestat. E Rice, em várias entrevistas, dava conta da sua insatisfação pela aposta no Top Gun da altura.

As filmagens não foram fáceis para ninguém. Brad Pitt confessou em 2011 que participar em Entrevista com o Vampiro foi a experiência cinematográfica mais miserável da sua carreira. Constantemente desconfortável com a maquilhagem, roupas e lentes de contacto, Pitt não gostava ainda de ser considerado o secundário de Cruise, tanto em cena como nos bastidores. Diz inclusive ter ligado ao seu amigo e produtor David Geffen para arranjar maneira de sair do filme, algo que se revelou impossível devido à especificidade do seu contrato. Como se não

Pelo caminho ficaram Jeremy Irons - não queria um papel com a 46


bastasse, todos os actores "vampiros" eram obrigados a passar largos minutos ao longo do processo de maquilhagem com a cabeça para baixo e os pés para cima, de forma a que o sangue se acumulasse nas suas cabeças e as veias nas suas caras ficassem salientes. Processo que era repetido várias vezes ao longo do dia. Ninguém gostava. Primeira produção de Hollywood a ter autorização para encerrar ao tráfego duas faixas da famosa Golden Gate Bridge, várias foram as cenas em que Tom Cruise foi colocado em cima de uma plataforma de modo a reduzir a diferença de alturas entre Lestat e os restantes vampiros. Lestat que, no livro de Rice, era homossexual e queria dormir com Louis. No filme, são apenas uma família disfuncional. Também Louis chegou a ser uma mulher numa versão inicial do guião de Jordan, que considerou mesmo Cher e Anjelica Huston para o papel. Talvez por pressão do estúdio, Jordan acabou por voltar atrás nessa decisão. Já Claudia no livro tem apenas cinco anos, no filme doze. Alterações profundas várias no argumento cinematográfico por parte de Neil Jordan que, no entanto, não foram reconhecidas pelos Writers Guild, que obrigou a Paramount a dar os créditos de guionista do filme à autora. Mas desengane-se quem julga que Rice não ficou satisfeita com o resultado final: uma "obra-prima", classificou a escritora norte-americana em entrevista ao New York Times. E Cruise, um portento no ecrã. As voltas que a vida dá.


Título nacional: A Verdade da Mentira Realização:James Cameron

TRUE LIES

Elenco: Arnold Schwarzenegger, Jamie Lee Curtis, Tom Arnold

1994 CARLOS REIS

Harry Tasker (Arnold Schwarzenegger) leva uma vida dupla: agente super secreto do governo norte-americano com licença para fazer tudo o que seja necessário para prevenir ataques terroristas, para a sua mulher e amigos não passa de um vendedor de computadores sem qualquer interesse. E eis que, quando está na pista de um conjunto de armas nucleares que estão nas mãos de um grupo de criminosos fanáticos, descobre que a sua mais que tudo (Jamie Lee Curtis) está a ter um caso com outro homem porque precisa de alguma excitação e aventura na sua vida. Conseguirá Harry parar os terroristas e salvar o seu casamento ao mesmo tempo?

de narrativa em perfeita harmonia com o estilo dos seus principais intérpretes. Se à partida muitos julgavam impossível qualquer espécie de química entre duas estrelas de campos tão opostos - a bela e o monstro -, rapidamente percebemos que acaba por ser essa mesma índole que conquista o espectador. Como que um James Bond casado e com filhos que salta constantemente entre cenas de humor e cenas de acção, coadjuvado na perfeição por uma dupla hilariante (Bill Paxton e Tom Arnold), Schwarzenegger voltava a mostrar - porque já não havia nada a provar - o seu talento para a comédia de acção. Para a história, uma sombra no fundo do quarto e um striptease tão sensual quanto irónico.

Cocktail personalizado de acção, pirotecnia e boa disposição do sempre megalómano James Cameron, A Verdade da Mentira é entretenimento de primeira categoria, filmado de forma exímia e estruturado a nível “(...)é entretenimento de primeira categoria, filmado de forma exímia(...)”

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Título nacional: Quiz Show Realização: Robert Redford

QUIZ SHOW

Elenco: Ralph Fiennes, John Turturro, Rob Morrow

1994 SAMUEL ANDRADE

A 2 de Novembro de 1959, Charles Van Doren, intelectual norte-americano pertencente à “fina flor” da sociedade nova-iorquina e figura televisiva de sucesso pela sua participação no concurso televisivo Twenty One (um equivalente do contemporâneo Quem Quer Ser Milionário?), confessou perante o Congresso dos Estados Unidos da América que a sua longa e fausta senda vitoriosa deveu-se ao prévio conhecimento das perguntas para as quais respondia acertadamente, sob a aparência de ser uma das mentes mais iluminadas a pulular na “caixa que mudou o mundo”. Em 1994, a inspiração de Robert Redford no escândalo que abalou a televisão norte-americana dos anos 50 e 60, saldou-se em algo mais do que a recriação histórica de uma era onde a ingenuidade e o optimismo cego – sobretudo, numa América embalada pela imparável dinâmica do crescimento económico – possibilitaram a concretização de uma das maiores fraudes televisivas de todos os tempos. Quiz Show, para além de todo o esplendor da sua pormenorizada direcção artística e banda sonora

de época, permite uma interpretação moderna sobre o estranho fascínio popular em relação às “personagens” que a televisão, de modo incólume, tão depressa promove como a seguir descarta. E depois há a ganância, a crua e intemporal ganância. Quando Charles Van Doren (um lacónico Ralph Fiennes) é confrontado com a forma como roubou a popularidade ao seu predecessor, Herb Stempel (John Turturro, histriónico e portador de impressionante semelhança física com a personalidade que encarna), o único argumento que lhe ocorre para justificar a fraude é a interrogação – quase directa – à consciência do espectador: “if someone offered you all this money to be on some rigged quiz show, instant fame, the works, would you do it?” Vinte anos após a sua estreia, convém revisitar os valores invocados por Quiz Show no que diz respeito à nossa convivência com a televisão. Onde tudo (fama, fortuna, desgraça e omissão) parece ser possível, em prol do entretenimento. “E depois há a ganância, a crua e intemporal ganância.”

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Título nacional: Três Cores: Vermelho Realização: Krzysztof Kieslowski

THREE COLORS: RED

Elenco: Irène Jacob, Jean-Louis Trintignant, Frédérique Feder

1994 SARA GALVÃO

Valentine (Jacob) é uma modelo fotográfica que atropela um cão por acidente. Quando descobre o dono, um velho e cínico juiz (Jean-Louis Trintignant) que gosta de espiar nos vizinhos, forma-se uma estranha amizade. Entretanto, Auguste (Jean-Pierre Lorit), um jovem juiz, vive perto de Valentine, e os dois têm mais em comum do que imaginam, mas parece que o destino está a evitar a todo o custo que eles se cruzem...

mordente, cheio de desconfiança nas relações interpressoais. Mas como título final de uma trilogia, Três Cores: Vermelho está também cheio de esperança, concretizada na última cena, um pouco provável deus ex machina que resolve as três histórias, observada na televisão pelo juiz, qual puppetmaster (e muitos nele vêem uma personificação do realizador). Um jogo de duplos e duplicidades que apenas é visível aos olhos do espectador (e que exasperante pode ser não ter controlo sobre a narrativa!), Três Cores: Vermelho seria o último filme realizado por Kieslowski, e o final agridoce mas mesmo assim optimista fecharia a obra de um realizador conhecido pelo seu pessimismo crónico. Kieslowski, tal como o juiz, fizera finalmente as pazes com o mundo.

O tema do último filme da trilogia das cores é Fraternidade - fraternidade entre o Juiz e Valentine, claro, mas também a escondida fraternidade entre esta e Auguste, e entre este e o Juiz. Filmado na Suíça, o país neutro por excelência, Três Cores: Vermelho é muitas vezes visto como um anti-romance - Valentine e Auguste, o par “perfeito” por excelência, nunca se cruzam, e o juiz, que nem sequer tem nome durante o filme, funciona como o doppelganger do futuro de Auguste, um futuro solitário e

“(...)Três Cores: Vermelho é muitas vezes visto como um anti-romance (...)”

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Título nacional: Forrest Gump Realização: Robert Zemeckis

FORREST GUMP

Elenco: Tom Hanks, Robin Wright, Gary Sinise

1994 PEDRO SOARES

Normalmente, Forrest Gump é considerado como um dos mais injustos vencedores do Oscar para melhor. Não é que o filme de Robert Zemeckis seja um mau filme, antes pelo contrário; o problema é que, em 1994, havia um outro filme chamado... Pulp Fiction. Mas apesar de ser um aficcionado do filme de Quentin Tarantino, a vitória de Forrest Gump não me indigna tanto como a de... Chicago, por exemplo. Forrest Gump é a história de Tom Hanks, um saloio sulista com um ligeiro atraso, desde a sua infância até aos dias de hoje. Aparentemente, a vida de Gump, que nascera com a espinha torta e um QI abaixo do normal, parecia condenada ao anonimato, mas contra todas as previsões acabou por se tornar num agente determinante em três décadas de história norteamericana. Ou seja, Forrest Gump é a habitual fábula do underdog que os americanos tanto gostam. Forrest Gump é ainda uma aula de História dos EU em forma

compactada. Um resumo que começa na segregação racial dos anos 50 e termina com o final da Guerra Fria. American history for dummies. E a própria personagem, Forrest Gump, é mesmo determinante em muitos episódios históricos, através da manipulação digital, que o metem a interagir em found footage real com os presidentes, a ensinar o Elvis a dançar ou a ser o garganta funda do caso Watergate. Forrest Gump tem um sentido de humor inteligente e uma aura feelgood com que Zemeckis nos habituou. E trespassando o filme de uma ponta à outra está um optimismo latente, daqueles que nos deixa o coração aquecido, mesmo quando nos faz chorar: é o espírito Frank Capra, que Zemeckis pediu emprestado a Spielberg. Pulp Fiction é melhor e merecia ganhar o Oscar? Sim, mas a culpa não foi de Forrest Gump. A culpa foi da casualidade de 1994 ter sido um ano com filmes tão bons. “American history for dummies.”

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Título nacional: O Carteiro de Pablo Neruda Realização: Michael Radford

IL POSTINO: THE POSTMAN

Elenco: Massimo Troisi, Philippe Noiret, Maria Grazia Cucinotta

1994 FILIPE LOPES

Adaptado do romance com o mesmo nome escrito por Antonio Skármeta, O Carteiro de Pablo Neruda é um filme raro. Não apenas pela longevidade de exibição no cinema em Portugal (esteve no Cinema Mundial com sessões diárias durante mais de dois anos), mas por ser tremendamente bonito e simples, por mostrar que a condição humana tem esperança de redenção, ou por nos encher a alma de início ao fim com a pureza de Mario Ruoppolo, o verdadeiro protagonista da história.

que se apaixonara perdidamente pela mais bonita mulher da ilha, Beatrice (Maria Grazia Cucinotta), pede a Neruda conselhos sobre como escrever poesia para a sua amada. Daqui nascem algumas das mais bonitas sequências de diálogo do cinema italiano contemporâneo. Imbuído de uma leveza ímpar, o filme como que flutua pela ilha, pela história e pelas personagens, bem como pela paisagem quase sépia de Franco Di Giacomo e a incrível música de Luis Bacalov. A interpretação de Noiret e Troisi são assombrosas, sobretudo a deste último, fragilizado já pela doença à qual haveria de sucumbir antes da estreia do filme, mas cujo estado se adequava na perfeição à fragilidade da sua personagem. Acabando como comecei, em suma, este é um filme raro. Daqueles que apetece ver vezes sem fim.

Mario (Massimo Troisi) é um homem desempregado e quase analfabeto numa pequena ilha italiana sem grandes oportunidades de emprego. Um dia surge a oportunidade de trabalhar como carteiro para o poeta chileno Pablo Neruda (Phillipe Noiret), recentemente exilado naquela ilha por problemas com a ditadura do seu país. A aproximação entre carteiro e poeta vai-se transformando numa amizade cada vez mais forte e Mario,

“(...) tremendamente bonito e simples (...)”

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Título nacional: Branco Realização: Krzysztof Kieslowski

THREE COLORS: WHITE

Elenco: Zbigniew Zamachowski, Julie Delpy, Janusz Gajos

1994 SARA GALVÃO

O segundo filme da Trilogia das Cores é sobre Igualdade; e pode parecer estranho que a história escolhida para ilustrar o tema seja uma de vingança; mas isso é para quem não conhece a subtileza sardónica do mestre polaco Kieslowski. Quando o polaco Karol Karol (Zamachowski) casa com Dominique (Delpy), ele está longe de imaginar que as coisas iriam correr tão mal para o lado dele. Incapaz de cumprir as suas obrigações matrimonias, o que provoca o divórcio, Karol é obrigado a viver nas ruas de Paris até voltar para a pátria Polónia dentro de uma mala de bagagem. Confrontado com uma Polónia pós-comunista onde dinheiro voa por todos os lados, Karol prospera e começa a preparar a vingança que o irá elevar ao mesmo nível da ex-mulher... Ironicamente uma comédia negra (e há quem lhe chame mesmo anticomédia), Três Cores: Branco é talvez o filme mais “fraco” da trilogia,

mas não deixa por isso de ser uma obra prima. Mais uma vez Kieslowski retrata uma história de amor muito pouco usual, e com contornos negros assustadoramente realistas. Por baixo da superfície, há a metáfora da França “impotente” e da Polónia “mafiosa”, tudo filmado em tons de branco, com vários pontos de contacto com os outros dois filmes da trilogia. O sarcasmo de Kieslowski em relação à Polónia “europeia” pós queda do muro de Berlim é também um dos pontos fortes do filme “pode-se comprar tudo na Polónia hoje em dia” - incluindo, como nos mostra o filme, um revólver e um cadáver.

“(...)é talvez o filme mais “fraco” da trilogia, mas não deixa por isso de ser uma obra prima.”

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Título nacional: Através das Oliveiras Realização: Abbas Kiarostami

THROUGH THE OLIVE TREES

Elenco: Mohamad Ali Keshavarz, Farhad Kheradmand, Zarifeh Shiva

1994 FILIPE LOPES

Abbas Kiarostami e a sua forma algo singular de fazer cinema, por vezes situada algures entre a ficção e o documentário, traz-nos um retrato belíssimo do Irão profundo, naquela que é a última parte da “trilogia de Koker”, que fecha o ciclo começado por Onde Fica a Casa do Meu Amigo? (1987), seguido por E a Vida Continua (1992) e este Através das Oliveiras. O realizador iraniano apresenta-nos um filme dentro do filme, com o qual ilustra a dificuldade de filmar da forma que ele próprio o costuma fazer, em situações por vezes extremamente difíceis e com actores amadores.

Tahereh (Tahereh Ladanian). Se no filme desempenham o papel de recémcasados, fora das filmagens ele está apaixonado por ela, mas ela não lhe fala e ignora-o completamente nos seus avanços. Como em praticamente todos os seus filmes, Kiarostami estabelece com o espectador uma espécie de puzzle, para o qual é importante aquilo que é mostrado no ecrã, mas também aquilo que fica de fora e apenas surge em forma de sons ou de situações que se adivinham pela reacção das personagens. Tudo isto deve ser complementado com o próprio juízo e pensamento do espectador, para que cada um complete o seu próprio filme, necessariamente diferente de pessoa para pessoa. Um filme obrigatório!

A história remete-nos para Koker, uma terra localizada cerca de 350km a norte de Teerão, onde no ano anterior um sismo destruiu quase tudo. É aqui que um realizador (Mohamad Ali Keshavarz), resolve fazer um filme, escolhendo pessoas da região para trabalharem como actores às suas ordens. Entre eles estão o jovem Hossein (Hossein Rezai) e a jovem

“(...)um retrato belíssimo do Irão profundo(...)”

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Título nacional: Satantango Realização: Béla Tarr

SÁTÁNTANGÓ

Elenco: Mihály Vig, Putyi Horváth, László feLugossy

1994 SAMUEL ANDRADE

Comédia negra hipnótica e fascinante, filmada em doze capítulos que se estendem por mais de sete horas, Béla Tarr concebeu, com o singular Sátántangó, uma das obras indispensáveis da última década do Século XX e, simultaneamente, mais exigentes em toda a História do Cinema. O ritmo vagaroso do filme – iluminado por um preto e branco fantasmagórico e repressivo – emula a inércia apresentada pelos protagonistas no início de Sátántangó: um grupo de agricultores numa região remota da Hungria, sem noção nem esperança de contornar o recente colapso do Comunismo. É então que surge Irimiás, um idealista há muito desaparecido e que convence aquela cooperativa a adoptar uma prática agrícola seguindo os princípios básicos do capitalismo. Mas mais do que a alegoria política invocada, o que interessa a Béla Tarr é a profunda observação, potenciada pelo aguerrido estilo contemplativo de Sátántangó, de um microcosmos humano, permanentemente desolado

pela lama e por nevoeiro, como símbolo da Humanidade em geral. Inteiramente composto por planos-sequência meticulosamente ensaiados (de acordo com o próprio cineasta, contam-se apenas 150 planos num filme – recorde-se – com sete horas de metragem), o observador quedase perante a constante metaforização inerente às imagens, extraindo daí os principais temas do filme: a complacência, o tédio, a traição e a cobiça no seio de uma ruralidade de almas presas num limbo existencial privado. E nem as noções económicas de Irimiás sobre iniciativa privada poderão resgatar as personagens de Sátántangó. Puro cinema existencialista, e desafio por excelência à resistência física e mental do espectador – Tarr sempre afirmou que o filme deve ser visionado de uma só assentada e sem qualquer intervalo –, trata-se de um daqueles objectos fílmicos (e cinéfilos) que não encontra óbvio semelhante. A única questão que sobra é: têm sete horas da vossa vida para dedicar a algo especial?

“(...)microcosmos humano, permanentemente desolado pela lama e por nevoeiro(...)”

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Título nacional: O Corvo Realização: Alex Proyas

THE CROW

Elenco: Brandon Lee, Michael Wincott, Rochelle Davis

1994 TIAGO SILVA

The Crow tem vindo a ocupar, ao longo dos anos, um estatuto de filme de culto que se explica não só pela trágica e lamentável história associada à sua produção (Brandon Lee faleceu durante as rodagens na sequência de um acidente com uma arma no set) como pelo ambiente admiravelmente plástico que cria, colocando-o, em termos estéticos, ao lado de obras como os dois filmes de Batman realizados por Tim Burton.

consciência disso, é possível apresentar ao espectador um mundo em que os The Cure dialogam com Edgar Allan Poe sem que a inverosimilhança de tudo isso nos afaste da obra — algo que nos filmes seguintes parece ser apenas excesso sem sentido e exploração gratuita e artificial de um conceito tão próprio. Importa também dizer que as figuras anti-heróicas do filme, cujo carisma justifica grande parte do enorme sucesso que obteve e da atenção de que ainda é alvo, parecem dever muito a The Lost Boys e a Blade Runner, ambos da década anterior, no sentido em que a moralidade das personagens invariavelmente dá origem a um confronto que só pode ser entendido além da noção típica e limitadora de bem e mal. Pela aura de mistério e melancolia que o envolve, voltar a The Crow é sempre uma experiência singular.

É escusado dizer que as suas sequelas, como geralmente acontece, não se conseguem aproximar da atmosfera da película original, nem sequer provocar verdadeiro interesse enquanto meras companion pieces. Isto porque o universo sombrio de The Crow, adaptado directamente de uma banda desenhada de James O’Barr, é trabalhado por Proyas (com um orçamento bastante reduzido, aliás) de forma frenética e assumidamente campy. Amplificando os elementos góticos e tenebrosos mas sempre com

“(...)ambiente admiravelmente plástico que cria(...)”

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Título nacional: Quatro Casamentos E Um Funeral Realização: Mike Newell

FOUR WEDDINGS AND A FUNERAL

Elenco: Hugh Grant, Andie MacDowell, James Fleet

1994 ANÍBAL SANTIAGO

Em Four Weddings and a Funeral somos apresentados a uma miríade de relações sentimentais. Umas deram certo, outras falharam, outras terminaram de forma trágica, outras mantiveram-se para toda a vida. A vida pode ter umas reviravoltas estranhas e o destino pode ser o maior cómico, embora em Four Weddings and a Funeral seja o argumento de Richard Curtis e a realização de Mike Newell que arquitectam um romance capaz de nos deixar perante um conjunto de situações marcadas por romantismo, algum humor britânico e uma capacidade enorme de criar um conjunto de personagens que se tornam bem reais. A história acaba por se centrar maioritariamente em Charles (Grant), um solteirão com um conjunto elevado de ex-namoradas e um grande grupo de amigos, pouco propenso a casar-se, embora seja presença regular em casamentos. É num desses casamentos que conhece Carrie (MacDowell), uma americana que se encontra em Inglaterra. Os dois acabam por

meter conversa e partilhar uma noite de sexo, embora Carrie acabe por partir, parecendo certo que a relação entre ambos vai ser marcada por várias contrariedades, ao longo de uma obra onde o título facilmente nos indica a sua estrutura. A dinâmica entre Carrie e Charles é fundamental para o filme funcionar, mas também a capacidade de Newell e Curtis em incutirem um conjunto de personagens secundários de algum interesse, expondo o grupo coeso que envolve o protagonista. Filme marcado por doses certeiras de humor, romance e até algum drama, bastante previsível mas com muito charme, Four Weddings and a Funeral conta com uma dupla de protagonistas que apresenta uma grande química, conseguindo facilmente conquistar-nos para o interior da sua narrativa.

“(...)um conjunto de situações marcadas por romantismo(...)”

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Título nacional: O Grande Salto Realização: Joel Coen, Ethan Coen

THE HUDSUCKER PROXY

Elenco: Tim Robbins, Paul Newman, Jennifer Jason Leigh

1994 SAMUEL ANDRADE

The Hudsucker Proxy nunca figura nas listas dos títulos mais consensuais dos irmãos Joel e Ethan Coen. Contudo, e paradoxalmente, é difícil encontrar na sua filmografia outro título com um trabalho estético tão apurado como este: uma farsa humanista, cuja direcção artística parece querer engolir o primeiro “pacóvio” (leia-se Norville Barnes, o idealista protagonista do filme, promovido a gerente de uma empresa apenas com o intuito de a levar à falência e permitir o lucro dos seus accionistas) que se atrever a intrometer-se nos desígnios deste mundo de intriga corporativista. Um dos principais atractivos do filme é, indiscutivelmente, a sua construção visual. Como se Terry Gilliam tivesse realizado Brasil: O Outro Lado do Sonho durante os anos 50, The Hudsucker Proxy transporta para 1958 a representação estilizada dos pecados do capitalismo dos anos 90. E a simbólica arquitectura do edifício da Hudsucker Industries (onde grande parte do argumento se desenrola), cavernosa na sua base e sumptuosa nos escritórios da administração,

demonstra que os Coen, aqui, não se dedicaram apenas ao mero exercício de style over substance. Por fim, temos o irresistível trio de protagonistas: Tim Robbins, um semi-imbecil cuja ingenuidade face às manigâncias do capitalismo torna-o alvo fácil para a golpada perfeita; Jennifer Jason Leigh, soberana e frenética numa composição que mescla a determinação de Katharine Hepburn com o allure de Greer Garson; e o veterano Paul Newman, a unir as auras de Charles Foster Kane com Mr. Burns (a certa altura, até é possível observá-lo numa postura de triunfo semelhante à do patrão de Homer Simpson, dedos das mãos apertados uns contra os outros e tudo) para uma composição repleta de esgares maquiavélicos e inesperadas duplas intenções. The Hudsucker Proxy não foi, na sua época de estreia, um sucesso comercial ou crítico. Todavia, vinte anos depois e sobre a capa de filme visualmente fulgurante, a mensagem anti-capitalista dos irmãos Coen nunca pareceu tão actual. “(...)a representação estilizada dos pecados do capitalismo dos anos 90.”

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Título nacional: A Máscara Realização: Chuck Russell

THE MASK

Elenco: Jim Carrey, Cameron Diaz, Peter Riegert

1994 CARLOS REIS

Filme que catapultou Jim Carrey para o estrelato e lançou a desconhecida Cameron Diaz para as bocas do mundo, A Máscara conta-nos a história de Stanley Ipkiss, um banqueiro tímido e azarento que é constantemente gozado pelos seus colegas e nunca tem sorte com nenhuma das raparigas pelas quais se apaixona. Mas tudo vai mudar quando, após ser barrado na discoteca local, a famosa Coco Bongo onde a sua mais recente paixoneta trabalha como dançarina, descobre uma máscara de madeira que, quando colocada, transforma-o numa espécie de super anti-herói, de corpo elástico e língua afiada. Um dos três filmes lançados em 1994 - os outros foram Ace Ventura: Pet Detective e Dumb & Dumber - que elevaram o actor canadiano para um patamar de super estrela da comédia em Hollywood, no qual se aguentou durante largos anos, The Mask tornou-se um clássico de culto irreverente que influenciou a indústria pelo seu sucesso inesperado: de repente, um super

anti-herói com queda para a ironia era algo cool. Visualmente dinâmico, visceralmente divertido e verdadeiro showcase de talentos para Jim Carrey (quando a sua cara se tornava verde, Carrey ficava imparável), A Máscara é um dos melhores exemplos da história recente do cinema de perfeita união entre o humor físico e a mordacidade narrativa. Como se acabaria por comprovar em 2005 (Son of the Mask, com Jamie Kennedy no papel principal e quatro Razzies no bolso), Carrey fez muito bem em recusar propostas milionárias (dez milhões de dólares ao invés dos 450 mil que recebera pelo primeiro) por uma sequela nos anos que se seguiram. Porque também é essa inteligência - e coragem - que marca a diferença na reputação de um actor. Sssmokin!

“(...)The Mask tornou-se um clássico de culto irreverente que influenciou a indústria pelo seu sucesso inesperado(...)”

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Título nacional: Viver e Morrer em Little Odessa Realização: James Gray

LITTLE ODESSA

Elenco: Tim Roth, Vanessa Redgrave, Edward Furlong

1994 SARA GALVÃO

Nuremberga), na forma de um ódio profundo que nunca é completamente explicado, tal como não nos é dada explicitamente a razão do exílio de Joshua. No fim, Joshua, ironicamente, logo após ter tido o seu primeiro gesto de compaixão com o progenitor, perde a batalha contra as forças que o envolvem ao ser arrancado da companhia das pessoas que lhe são mais queridas.

Quando os filmes de mafiosos dos anos 90 estavam ocupados a imitar Tarantino, o filme de estreia de James Gray aposta numa abordagem bastante diferente - um ritmo lento, que nos lembra Coppola, e o foco de interesse no estudo psicológico de uma família manchada pelos crimes do filho mais velho, que volta a Little Odessa para um último assassinato a soldo, fazem de Viver e Morrer em Little Odessa um filme fora do seu tempo. Gray, que mais recentemente nos deu We Own the Night, reinventa a parábola do filho pródigo nesta pequena pérola sobre uma tragédia familiar. Não há perseguições. Não há plot twists. Tim Roth, no papel do frio russo-judeu de segunda geração Joshua Shapira, é um espelho de contenção e mistério. A pouca emoção que mostra dirige-a ao irmão mais novo, Reuben (Edward Furlong, O Exterminador Implacável 2), na forma de afeição, e ao pai, Arkady (Maximilian Schell, Julgamento em

A lentidão do filme pode ser excessiva por vezes - ainda mais porque, ao contrário de O Padrinho, esta não é uma história complexa - e apesar de alguns laivos que deixam adivinham a promessa de Gray, este filme está longe de ser uma obra prima. Salvam-no as performances excelentes de Schell, Roth e Vanessa Redgrave como mãe às portas da morte, e o carisma de Furlong enquanto benjamin de uma família disfuncional. “Não há perseguições. Não há plot twists.”

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Título nacional: Amizade Sem Limites Realização: Peter Jackson

HEAVENLY CREATURES

Elenco: Melanie Lynskey, Kate Winslet, Sarah Peirse

1994 FILIPE LOPES

O início da carreira de Peter Jackson é marcado pelo delírio das temáticas que aborda e pela extravagância na forma como faz essa abordagem. No entanto, se Jackson aspirava a outros voos que não apenas o da estrela de culto por detrás de trash movies a espirrar hemoglobina, necessitava de demonstrar que já tinha atingido a maturidade a filmar e que conseguia fazê-lo, também, de um modo bem mais clean.

entre as duas jovens começa a ser considerado, pelo pai de Juliet e pela mãe de Pauline, como “menos próprio”, suspeitando que entre ambas se tenha desenvolvido uma relação amorosa, a todos os títulos impura e inaceitável, facto que se tornará como que o rastilho para o homicídio que ambas planearão cometer. Amizade Sem Limites é um belíssimo filme, bem construído, no qual funciona perfeitamente a dicotomia fantasia– realidade e com as duas jovens actrizes a viverem de corpo e alma as suas personagens. A neo-zelandesa Melanie Lynskey e a britânica Kate Winslett têm aqui a sua estreia absoluta no Cinema e em ambos os casos, embora mais no segundo, o início de uma trajectória de sucesso. Tal como a de Peter Jackson, aliás, que rumou logo a seguir aos E.U.A. para continuar a carreira com o êxito que se lhe reconhece.

Essa oportunidade surgiu com Amizade Sem Limites, o filme que teve como base o real e brutal homicídio, cometido por duas jovens adolescentes e que chocou a Nova Zelândia em meados dos Anos 1950. A história gira em torno de uma profunda e obsessiva amizade entre Pauline e Juliet, amantes de artes como a literatura e o cinema e que constroem um mundo de fantasia onde personagens de barro modeladas por elas próprias, ganham vida. Mas o relacionamento quase doentio

“A história gira em torno de uma profunda e obsessiva amizade (...)”

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Título nacional: A Bíblia de Satanás Realização: John Carpenter

IN THE MOUTH OF MADNESS

Elenco: Sam Neill, Jürgen Prochnow, Julie Carmen

1994 SAMUEL ANDRADE

Sátira desregrada sobre os “demónios” que determinam a celebridade ou pura e simples obra de horror para deliciar a busca por emoções fortes dos fãs mais aguerridos de gore e monstros rastejantes? Seja qual for a perspectiva, In the Mouth of Madness é objecto Carpenteriano em toda a sua extensão: aparentemente vácuo à superfície mas com inúmeras referências culturais que permitem, ao observador mais empenhado, uma leitura simbólica das suas imagens de sangue e caos. O misterioso desaparecimento de Sutter Cane, popular escritor de ficção de horror (e obviamente decalcado de figuras como Stephen King e H. P. Lovecraft) que fomenta em seu redor um êxito de contornos quase doentios, motiva a sua editora a contratar John Trent (Sam Neill, polivalente como nunca o vimos antes nem depois) um perito de seguros, para descobrir o seu paradeiro. Mas este contexto demonstra-se, desde o início, inquietante pelo facto de todo o filme ser o relato da própria experiência de Trent – sabemos logo que é “inquilino” de um hospital psiquiátrico –, em encontrar

Cane. Este longo flashback proporciona tudo menos “segurança narrativa” no espectador, cujas expectativas são constantemente defraudadas num exercício de terror que se atreve a lançar interrogações sobre o que é real ou ficção nas sociedades modernas, tão permeáveis a fenómenos de popularidade derivadas das origens mais insondáveis – e Sutter Cane provém de algo seguramente pouco mundano. Aliás, as últimas imagens do filme potenciam, no seio do cinema norteamericano dos anos 90, uma das maiores reflexões sobre a relação entre consumo e celebridade. O quão passivos são os espectadores da nossa cultura popular – espectadores de um filme dentro de um filme, tal como John Trent chega a cogitar? –, cujos protagonistas exercem a ilusão do seu domínio de natureza quase sobrenatural, é, aqui, a principal questão levantada por John Carpenter. No entanto, não custa afirmar a grande obra-prima de terror que é In the Mouth of Madness. “(...)nterrogações sobre o que é real ou ficção(...)”

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CARPENTER E A TRILOGIA DO APOCALIPSE

drástico e irreversível como o fim de tudo o que nos é conhecido aumenta exponencialmente de filme para filme e nos conduz a uma concepção em que só existe lugar para o fatalismo da nossa existência, segundo o qual não faz sentido contrariar o curso natural dos acontecimentos pois o nosso controlo sobre os mesmos é meramente ilusório e, logo à partida, condenado. Em The Thing, primeira instalação da trilogia, o mal já aparece como uma força desconhecida capaz de confundir e manipular as personagens, mas ainda se apresenta como entidade proveniente de «um outro mundo» desconhecido do ser humano. Apesar de ser um filme absolutamente brutal nas suas implicações e sem qualquer tipo de esperança na possibilidade de alterar a situação, o que mais nos assombra é o carácter biológico e corpóreo desta ameaça (o body horror de The Thing é bem mais violento do que aquele que os filmes de Cronenberg oferecem) e não tanto a catástrofe global que poderá resultar dela. Isto acontece pelo ambiente isolado e quase deserto em que o filme se desenrola, sendo o apocalipse somente uma sombra e não uma presença concreta. No filme seguinte, realizado ainda nos anos 80, Carpenter radicaliza ainda mais a sua teoria e tem a ousadia de a apresentar como científica. Prince of Darkness, que não conseguiu alcançar o mesmo estatuto com que The Thing é hoje recebido junto dos seus admiradores, expõe este ser destruidor como algo superior à maldade; mais antigo que a própria existência humana e pertencente ao

TIAGO SILVA

A devoção e enorme respeito que John Carpenter nutre pela obra literária de H.P. Lovecraft é de uma notoriedade manifestamente explícita em toda a sua filmografia e assume particular evidência naquela que é conhecida como sendo a sua «trilogia do apocalipse». Carpenter, não raras vezes apontado como sendo apenas o responsável pela explosão sem precedentes do slasher film após Halloween e portanto remetido para uma dimensão underground do cinema ao mesmo tempo que é injusto motivo de troça, tem nestes três filmes (dos quais incluimos, nesta edição da Take, In the Mouth of Madness) o expoente da sua obra pela reflexão extraordinariamente densa (sem por isso deixar de recorrer ao camp imensamente satisfatório) sobre as demonstrações mais extremas da relação simbiótica entre o horror e a Humanidade. É curioso notar como o pessimismo de Carpenter em relação a algo tão 64


domínio da antimatéria. Tudo no filme é aflitivo e angustiante, elevado a níveis inacreditáveis e ensurdecedores pelo uso esmagador da bandasom (que por si só mereceria um artigo). No entanto, vê-se novamente a pouco credível e enganadora hipótese de controlar a expansão aniquiladora da calamidade sobrenatural e fica o aviso de que esta, embora eminente, aguardará por um momento específico para cumprir os seus propósitos, sendo até lá evitável. Entre as várias afinidades que The Thing e Prince of Darkness partilham entre si, é sobretudo relevante a noção de que o mal precisa necessariamente do humano para sobreviver, independentemente do facto de ser algo que lhe é inerente. Em In the Mouth of Madness, finalmente, esta ideia, que não sendo propriamente confortável dá pelo menos às personagens a ilusão de serem úteis e de poderem orientar minimamente a sua vida, desaparece por completo ao sugerir-se que somos criações vãs com um destino já traçado (literalmente, considerando que no filme é um escritor o responsável pela morte e nascimento de tudo o que constitui o universo em seu redor). Faz-se portanto referência ao papel da própria arte, habitualmente considerada um meio de atenuar os sofrimentos da existência, como também sendo contaminada pelo horror e temos enfim um cenário mundial onde a loucura já devorou tudo. É o fim do mundo, já não há salvação para nenhuma das personagens. E Carpenter termina tudo com um riff épico de guitarra.


Título nacional: Doidos à Solta Realização: Peter Farrelly, Bobby Farrelly

DUMB AND DUMBER

Elenco: Jim Carrey, Jeff Daniels, Lauren Holly

1994 JOÃO PAULO COSTA

Para além de ajudar à confirmação definitiva de Jim Carrey como um dos monstros maiores da comédia americana do seu tempo, Doidos à Solta terá ajudado também a recuperar a comédia imbecil para o grande ecrã. Note-se que não utilizamos o adjectivo “imbecil” de forma pejorativa mas apenas para descrever, neste caso, a parelha de protagonistas do filme, dois melhores amigos de infância que não devem nada à inteligência. Mérito para os irmãos Farrelly que, após alguns trabalhos para televisão (de onde se destaca a colaboração no guião de um dos melhores episódios de Seinfeld) se estrearam no cinema com retumbante sucesso.

país, para devolver a mala à mulher dos seus sonhos. O que nenhum deles sabe, porém, é que a mala não fora deixada no local por esquecimento, mas sim para pagar um resgate milionário na qual os raptores quererão igualmente de volta. Divertidíssimo, com um ritmo delirante de piadas inspiradas, e tirando todo o proveito dos seus protagonistas (os timings de comédia e a maleabilidade física de Jim Carrey raramente foram tão bem aproveitados, mas Daniels não fica atrás na exploração das limitações cognitivas de Harry, conseguindo mesmo sair vencedor numa das cenas mais escatológicas e hilariantes do filme), Doidos à Solta é diversão mainstream à séria, conseguindo adicionar à mistura algumas doses de subtileza no seu humor que o tornam simplesmente irresistível.

Resumindo de forma simples, Lloyd (Carrey) apaixona-se à primeira vista pela mulher (Lauren Holly) que conduziu de limusina até ao aeroporto. Apercebendo-se que esta deixou esquecida uma mala no local de embarque, Lloyd convence Harry (Jeff Daniels) a viajarem de carrinha pelo

“(...)Doidos à Solta terá ajudado também a recuperar a comédia imbecil para o grande ecrã.”

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Título nacional: Comer Beber Homem Mulher Realização: Ang Lee

EAT DRINK MAN WOMAN

Elenco: Sihung Lung, Yu-Wen Wang, Chien-Lien Wu

1994 SAMUEL ANDRADE

Quando umas barbatanas de tubarão, compradas para um banquete em honra do governador, ficam impróprias para consumo, o alarme toca na casa do chef Chu, que apressa-se a resolver a crise como um Super-Homem culinário. Pois em Taipé, o cenário geográfico e cultural de Eat Drink Man Woman, Chu é uma espécie de super-herói: na sua cozinha, confecciona refeições secretas, executadas inteiramente a partir da sua memória com a eficácia e rapidez de um mestre, misturando ingredientes que resultam em criações gastronómicas passíveis de serem consideradas genuínas obras de arte. Sob a realização de Ang Lee, Eat Drink Man Woman denota o mesmo equilíbrio gracioso de elementos. Através de um humor harmonioso, pungente e jovial, o filme recorre à perspectiva da destreza de um homem maduro para examinar a sua vida e a relação que nutre com as suas três obstinadas filhas, numa altura em que – e apesar de estar no auge das suas capacidades enquanto chef –

parece tirar cada vez menos prazer do seu trabalho. Seja pelo contributo da influência ocidental no declínio da cultura tradicional chinesa, ou no facto de Chu começar a sentir alguma perda no seu gosto pessoal, o idoso gastronómico acaba por sumarizar as suas frustrações com uma frase marcante: “Comer e beber, mulheres e sexo. Não haverá mais na vida do que isto?” Apesar da complexidade do argumento, Ang Lee é capaz de afirmar a sua verve artística: à medida que as relações entre os protagonistas se desenvolvem e aprofundam, os sobressaltos – tanto para as personagens como para o espectador – ocorrem amiúde. Mas o mais surpreendente, talvez, é o modo como nos sentimos emocionalmente envolvidos por aquelas pessoas. Tão satisfatória como um prato bem confeccionado, a plenitude que sentimos no final é muito superior à oferecida pela refeição mais extravagante. E Eat Drink Man Woman é uma verdadeira iguaria – ou, por que não?, autêntica “comida para o coração”. “Tão satisfatória como um prato bem confeccionado(...)”

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Título nacional: Pequenos Crimes Entre Amigos Realização: Danny Boyle

SHALLOW GRAVE

Elenco: Kerry Fox, Christopher Eccleston, Ewan McGregor

1994 SARA GALVÃO

Quando os colegas de casa David (Eccleston), Juliet (Fox) e Alex (McGregor no seu primeiro papel enquanto protagonista) aceitam um novo elemento na casa, estão longe de imaginar que nas próximas 24 horas estariam na posse de um cadáver e de uma mala cheia de dinheiro, investigados pela polícia, perseguidos por gangsters e, claro está, traídos pelos amigos mais próximos... O primeiro filme para o cinema realizado por Danny Boyle tem, à primeira vista, mais em comum com um filme dos irmãos Coen do que com o trabalho posterior do realizador. Mas só da mente do criador de 28 Dias Depois poderia vir esta mistura de comédia, slasher e pseudo-heist. Conseguindo ficar longe de clichés de género, Boyle dá-nos o retrato de uma amizade a três em que cada um dos elementos é um psicopata à sua maneira própria. O cuidado com a paleta de cores e composição que serão marcas dos filmes mais tardios do realizador estão aqui

presentes, assim como diálogos memoráveis e um óptimo ritmo - apesar de ser um filme “lento” para thriller, o tempo voa enquanto observamos e tentamos descortinar quem é que vai conseguir enganar os outros dois e ir-se embora com o dinheiro todo. McGregor mostra do que é feito, numa interpretação que faz lembrar uma versão ligeiramente aguada do protagonista homónimo de Laranja Mecânica, e Eccleston, como psicopata principal de serviço, não desilude. Como cartão de visita, o primeiro filme de Boyle foi bastante bem recebido - se houve aqueles que não gostaram da falta de dimensão das personagens, outros conseguiram descortinar um sentido de humor e história únicos que seriam confirmados dois anos mais tarde com Trainspotting. E o resto é história - Boyle viria para ficar, e trouxe McGregor com ele... “(...)mistura de comédia, slasher e pseudo-heist. ”

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Título nacional: Casa de Lava Realização: Pedro Costa

CASA DE LAVA

Elenco: Inês de Medeiros, Isaach De Bankolé, Edith Scob

1994 SAMUEL ANDRADE

Originalmente pensado como um “circunspecto remake” do fulgurante I Walked With a Zombie, de Jacques Tourneur, Casa de Lava ficou para a História como o primeiro filme de Pedro Costa a abordar as temáticas de emigração no mundo lusófono: de Juventude Inquieta até ao recente Cavalo Dinheiro, a reflexão sobre a amargura, dívida e feridas não saradas da herança colonialista portuguesa, que ainda hoje provoca tensões capazes de eclodir a qualquer momento, domina a obra do realizador. Precisamente sob a ameaça da erupção do vulcão Pico, na ilha do Fogo, no arquipélago de Cabo Verde, Mariana, uma jovem enfermeira lisboeta, acompanha Leão, operário de construção civil, na viagem de regresso à sua terra natal após um acidente de trabalho que o deixou em coma. Na ilha, Mariana ocupa o seu tempo entre a ala hospitalar onde Leão se encontra internado, a busca por familiares que possam acolher o enfermo e a sua familiarização com as gentes (sobretudo, através de uma fugaz relação amorosa com o filho de uma emigrante francesa) e os

costumes daquele território vulcânico. No seio de um panorama humano de indiferença e isolamento perpétuos, os sentimentos das personagens de Casa de Lava são exacerbados pela natureza agressiva e quase metafísica que os rodeia. A visão crepuscular e aterradora de actividade vulcânica, o choque violento das marés contra a costa rochosa da ilha do Fogo e o negrume do solo indiciam que a esperança, aqui, não encontra refúgio nem consolo. O mesmo se pode aplicar aos existenciais estados de espírito dos protagonistas de Pedro Costa, talvez “contaminados” pela depressiva realidade geopolítica de países como Cabo Verde, em permanente dependência económica dos seus ex-colonos e para quem o êxodo raramente se afigura como solução. Prova disso é a dúvida – que se manterá durante todo o filme – em torno do acidente (?) de trabalho de Leão, cujo acordar do coma fica marcado por uma misteriosa relutância. Pois recorde-se: em Casa de Lava, a esperança não encontra refúgio nem consolo. “(...)panorama humano de indiferença e isolamento perpétuos(...)

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O CINEMA EUROPEU DE 1994

MESTRES INCONTORNÁVEIS, NOVOS VALORES E SURPREENDENTES ÊXITOS DE BILHETEIRA SAMUEL ANDRADE

Duas décadas depois, a análise do ano cinematográfico europeu de 1994 poderá resultar em conclusões menos abonatórias para a produção do Velho Continente. Bastará observar os vencedores dos principais Festivais de Cinema daquele ano para se começar a formular uma opinião mais pessimista: Cannes rendeu-se a Quentin Tarantino e ao seu Pulp Fiction; Berlim aclamou In the Name of the Father, de Jim Sheridan (embora irlandês, foi oficialmente produzido em 1993); Veneza distribuiu uma série de prémios extra-europeus, tais como Vive L’Amour (Tsai Mingliang), Heavenly Creatures (Peter Jackson), Little Odessa (James Gray) e Natural Born Killers (Oliver Stone), apenas conferindo a Before the Rain, do macedónio Milčo Mančevski, um Leão de Ouro ex-aequo; e até as preferências de Locarno, um dos principais arautos do cinema europeu, foram para o iraniano The Jar (Ebrahim Forouzesh). Será que 1994 foi marcado pela subjugação dos gostos e tendências a filmografias distantes da Europa? Sem receios, há que negar tal suposição, sobretudo pela aclamação crítica e pública a uma série de títulos, assinados por cineastas de referência e novos valores da cinematografia europeia.


A EUROPA COMO CENTRO DE SUCESSO COMERCIAL Há vinte anos, o mundo assistiu à viabilidade de a França se afirmar como potência cinematográfica (algo que Le Fabuleux Destin d'Amélie Poulain, em 2001, iria provar para além de qualquer contestação), nomeadamente com dois títulos: o épico histórico La Reine Margot (Patrice Chéreau) e a acção frenética de Luc Besson em Léon: The Professional, que extravasou idiomas, diversificou fontes de financiamento e trouxe ao imaginário cinéfilo uma actriz chamada Natalie Portman. No mesmo sentido económico, o Reino Unido conheceu, em 1994, um dos seus melhores anos, numa demonstração de habilidade criativa capaz de embaraçar a célebre máxima de François Truffaut: “os ingleses não nasceram para o Cinema”. Desde o quase oscarizável Four Weddings and a Funeral (Mike Newell) até ao impressionante The Madness of King George (Nicholas Hytner), 1994 recordou a formação dos Beatles em Backbeat (Iain Softley) e revelou Danny Boyle, então um inconformado realizador com peculiar significação visual, com Shallow Grave. MESTRES DO CINEMA EUROPEU Entre as estreias de 1994, abunda a presença de nomes firmados da Sétima Arte europeia. Em França, Claude Chabrol inspirou-se num argumento que HenriGeorges Clouzot nunca almejou completar para filmar L’Enfer, e Krzysztof Kieślowski encerrou a sua trilogia Trois couleurs (Trois couleurs: Blanc e Trois couleurs: Rouge, naqueles que seriam os últimos filmes do influente cineasta polaco) com financiamento gaulês. De Itália, e com


revelações artísticas: Il Mostro, de Roberto Benigni; Caro Diario, de Nanni Moretti; Les Roseaux Sauvages, de André Techiné; e Nattevagten, do dinamarquês Ole Bornedal, cujo êxito popular originaria um remake americano com argumento de Steven Soderbergh e protagonizado por Ewan McGregor, Patricia Arquette e Josh Brolin.

surpreendente duo internacional de protagonistas (Gérard Depardieu e Roman Polanski), Giuseppe Tornatore revelou uma das suas primeiras incursões pelo thriller com Una Pura Formalità. Na já denominada República Checa, Jan Švankmajer esboçou a sua versão da lenda do Fausto, mesclando imagem real e stop-motion em Faust. Ainda a Leste, Michael Haneke lançou-se no experimentalismo de 71 Fragments of a Chronology of Chance, Wim Wenders apresentou o resultado do seu “passeio” pela nossa capital com Lisbon Story e o húngaro Béla Tarr mostrou ao mundo Sátántangó, o definitivo filme de culto obrigatório. Por fim, o actor e realizador russo Nikita Mikhalkov viria a conquistar o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro com o drama de guerra Burnt by the Sun.

O CASO PORTUGUÊS No que se refere a produções nacionais, 1994 fica assinalado por uma curta mas interessante lista de filmes que contribuíram para a afirmação de alguns dos principais nomes da cinematografia portuguesa. Os principais destaques vão para Manoel de Oliveira, já na sua fase de aclamação internacional, com o seu A Caixa, tragicomédia no coração de Alfama, e a cimentação do talento de Pedro Costa com a torrente emocional de Casa de Lava. Ainda nesse ano, são de referência incontornável o drama romântico de época Passagem por Lisboa, de Eduardo Geada; o prémio de Melhor Actriz para Maria de Medeiros, em Veneza, por Três Irmãos de Teresa Villaverde; o cinema experimental de Edgar Pêra em Manual de Evasão – Lx 94; e a reflexão sobre a emigração portuguesa com Ao Sul, de Fernando Matos Silva.

TÍTULOS SINGULARES E NOVOS TALENTOS PARA UM TRIUNFO VINDOURO Ainda entre os nomeados dos Óscars, dois títulos continuam a ser, vinte anos depois, de visualização obrigatória: Farinelli, Il Castrato, do belga Gérard Corbiau, que recria a vida e obra de um dos castratos mais famosos de todos os tempos, e Before the Rain, de Milčo Mančevski, um pungente drama romântico. 1994 foi, também, ano de inesperados sucessos comerciais e salutares 73


Título nacional: Crumb Realização: Terry Zwigoff

CRUMB

Elenco: Robert Crumb, Aline Kominsky, Charles Crumb

1994 CARLOS REIS

Robert Crumb é, provavelmente, o mais polémico e controverso cartoonista do século XX. A sua tendência de satirizar a sociedade norteamericana contemporânea através da depreciação do sexo feminino tornou-o num herói anónimo do underground popular, o primeiro a tornar-se mainstream devido ao sucesso de algumas das suas criações como Fitz, o Gato, Snoid, Mr. Natural ou muitas outras personagens que popularizou nas famosas edições da Zap Comix. Génio de culto para uns, tarado sexual de gostos estranhos para outros, Crumb revela-se um dos documentários mais corajosos e honestos que há memória. Acompanhado por Terry Zwigoff naquela que foi a sua estreia em Hollywood - seguiram-se os êxitos Ghost World e Bad Santa -, Robert mostra ao mundo a sua família disfuncional e traumatizada, onde um irmão, Charles, com tendências homicidas e suicidas - acabaria por se suicidar após a estreia do filme - que toma banho de seis em

seis semanas e, outro, Maxon, internado num hospício por molestar sexualmente desconhecidas na rua devido a graves problemas psiquiátricos, fazem dele o menos anormal de todos os seus familiares. Sim, porque até a mãe vê pessoas imaginárias pela casa. E quando podemos dizer isto de alguém que se masturbava nos próprios desenhos e cuja inspiração surrealista e psicadélica das suas mais brilhantes criações ocorreu durante longas viagens no LSD, torna-se óbvio que esta é uma história de vida que merece ser descoberta. Considerado o melhor documentário da história pelo conceituado crítico do San Francisco Examiner Jeffery Anderson e vencedor indiscutível em Sundance, Crumb é um retrato intimista de um artista que se criou a si próprio, um que tanto influenciou lendas como Matt Groening ou Harvey Pekar como repudiou mulheres e activistas dos direitos humanos um pouco por todo o globo. “(...)um dos documentários mais corajosos e honestos que há memória.”

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TO LIVE

MAVERICK

PEDRO MIGUEL FERNANDES

PEDRO SOARES

A história da China durante o século XX, sobretudo a partir da chegada ao poder do Partido Comunista de Mao Tse Tsung, continua a ser um período pouco conhecido. Viver, realizado por Zhang Yimou, um dos nomes sonantes da chamada Quinta Geração do Cinema Chinês, é um fresco histórico que atravessa três décadas do século passado (dos anos 1940 aos anos 1960) através do percurso de uma família de classe alta que perde os seus privilégios no início do filme e vai sobrevivendo às mudanças da sociedade chinesa durante o resto da trama. Utilizando grandes meios ao seu dispor, como é apanágio do seu cinema, Zhang Yimou faz uma fabulosa reconstituição histórica, onde o regime comunista sai bastante mal visto, o que levou as autoridades de Pequim a proibirem Viver na altura da sua estreia.

Maverick é a adaptação ao grande ecrã do jogador de póquer que estrelava na série homónima dos anos 50. O próprio James Garner, que vestia o chapéu de cáuboi na televisão, entra no filme, mas dá o protagonismo a Mel Gibson, que compila vários episódios num só filme. É uma espécie de aventura concentrada, em que Maverick – insolente, espirituoso e ás nas cartas e na pistola - vai participar no maior torneio de póquer do Oeste. Maverick não é um western convencional, mas antes uma comédia de acção divertida, em que Donner molda os códigos da comédia screwball com o buddy movie. Depois, Maverick é pontuado por pequenos pormenores como os cameos de cantores country e um impagável easter egg de Danny Glover, a emular Lethal Weapon. Com truques como este, Maverick é um dos outsiders da filmografia de Mel Gibson que mais gosto dá rever.

Título nacional: Viver

Título nacional: Maverick

Realização: Zhang Yimou

Realização: Richard Donner

\Elenco: You Ge, Li Gong, Ben Niu

Elenco: Mel Gibson, Jodie Foster, James Garner

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STARGATE

SPEED

PEDRO MIGUEL FERNANDES

CARLOS REIS

Antes de se tornar especialista em destruir a Terra, Roland Emmerich entrou em Hollywood com o pé direito, assinando um dos melhores filmes de ficção científica dos anos 1990. Realizado após dirigir dois monstros do cinema de acção (Jean-Claude Van Damme e Dolph Lundgreen em Máquinas de Guerra), Stargate é a primeira das grandes produções do cineasta germânico nos EUA. Ainda longe da sua imagem de marca nos filmes seguintes, apesar de o planeta Terra estar sob uma ameaça de destruição iminente, Stargate atravessa diversos períodos para contar uma história sobre portais que ligam o Antigo Egipto a uma civilização extra-terrestre avançada. Mesmo não contando com os efeitos especiais espampanantes de títulos como Dia da Independência, continua a ser uma das melhores obras de Emmerich.

Clássico de acção que marcou a estreia do cinematógrafo holandês Jan de Bont na realização, o maior elogio que pode ser feito a Speed é que é, ainda hoje passados vinte anos, o melhor exemplo de como um blockbuster de acção pode ser equilibrado nas suas demais variantes, misturando de forma perfeita a química do seu duo protagonista com uma narrativa competente e multifacetada, um ritmo alucinante constante e um vilão tão enigmático e calculista que consegue aterrorizar mesmo na sua presença passiva no ecrã. Enérgico, romântico, divertido e tenso, o filme de Jan de Bont entrou nas graças da crítica - Ebert deu-lhe nota máxima - e do público - Tarantino considera-o um dos seus favoritos - e mereceu, sem dúvida alguma, as duas estatuetas douradas em categorias técnicas que levou para casa. Juntem a tudo isto diálogos vibrantes escritos por Joss Whedon e... pop quiz, hotshot!

Título nacional: Stargate

Título nacional: Speed - Perigo a Alta Velocidade

Realização: Roland Emmerich

Realização: Jan de Bont

Elenco: Kurt Russell, James Spader, Jaye Davidson

Elenco: Keanu Reeves, Dennis Hopper, Sandra Bullock

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VIVE L’AMOUR

LA REINE MARGOT

ANÍBAL SANTIAGO

SAMUEL ANDRADE

A falta de diálogos em Vive l'amour apenas adensa o óbvio: a solidão a que estamos muitas das vezes sujeitos nos espaços urbanos contemporâneos, com Tsai Ming-liang a deixar-nos perante um trio de personagens solitários marcados por alguma estranheza. Ming-liang atribui uma enorme atenção aos gestos dos seus personagens, à forma como os seus actores expressam os sentimentos dos mesmos, mas também aos sons que envolvem a narrativa, enquanto os protagonistas deambulam como figuras quase fantasmagóricas, prontas a sentir e a ter desejos sexuais, embora raramente pareçam pertencer a uma sociedade que não os integra. No final, um choro convulsivo, doloroso, pronto a deixar bem presente a incapacidade de escondermos aquilo que nos vai na alma, numa obra marcada por algum realismo e poesia.

A escala épica com que Patrice Chéreau, em La Reine Margot, dramatiza a tragédia e carnificina que marcaram o domínio da família Medici, durante o Século XVI, em França, é um sintomático apontamento da pujança revelada, em meados dos anos 80, pela indústria cinematográfica francesa – e é a dimensão aquilo que realmente importa, pois os nomes e factos mencionados durante o filme não dispensarão a breve consulta dos livros de História (e falo com pleno conhecimento de causa). Tal não é impedimento para que Patrice Chéreau tenha esboçado um sedutor mosaico renascentista de intriga palaciana, onde interesses políticos, pactos de sangue e alianças frágeis caminham lado a lado com regicídio, traição, incesto e paixão. Desta mistura, sobressai, acima de tudo, o sofrimento desmedido e amoroso patente no rosto alvo, inquieto e de irresistível contemplação de Isabelle Adjani no papel que intitula o filme.

Título nacional: Vive L’Amour

Título nacional: A Rainha Margot

Realização: Tsai Ming-liang

Realização: Patrice Chéreau

Elenco: Chao-jung Chen, Kang-sheng Lee, Kuei-Mei Yang

Elenco: Isabelle Adjani, Daniel Auteuil, Jean-Hugues Anglade

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BURNT BY THE SUN

ACE VENTURA: PET DETECTIVE

PEDRO MIGUEL FERNANDES

ANÍBAL SANTIAGO

Vencedor do Óscar para Melhor Filme Estrangeiro em 1994, Sol Enganador é um dos mais populares filmes realizados por Nikita Mikhalkov na última década do século XX. Passado nos anos 1930, o filme recupera o terror das purgas lideradas pelo então líder da União Soviética, Josef Staline (cuja efigie assombra o final do filme, subindo ironicamente num balão para nos lembrar da sua omnipresença), a partir da história de um coronel acusado de traição e prestes a enfrentar a condenação à morte. Com este título o cineasta russo pretende recuperar e denunciar um período negro da História da ex-URSS, quando milhares foram mortos por questões políticas. Como é habitual no cinema de Nikita Mikhalkov, os cenários e elencos megalómanos são marca presente neste drama histórico passado num só dia.

Ace Ventura: Pet Detective exibe paradigmaticamente os momentos em que Jim Carrey surge fora de controlo, tanto sendo capaz de elaborar um gag hilariante como arrasar por completo os momentos em que se pedia um pouco mais de contenção. Este interpreta o detective animal Ace Ventura, um indivíduo bastante peculiar que é contratado para investigar o desaparecimento de um golfinho que é exibido como mascote dos Miami Dolphins. Embora o argumento esteja longe de satisfazer, a investigação perca algum fulgor com o avançar da narrativa, exista humor de gosto duvidoso e Jim Carrey por vezes tenha dificuldades em controlar os seus exageros, Ace Ventura: Pet Detective deixa-nos perante um comediante capaz de despertar alguns risos, embora tudo funcione muito melhor quando temos dez anos de idade.

Título nacional: Sol Enganador

Título nacional: Ace Ventura - Detective Animal

Realização: Nikita Mikhalkov

Realização: Tom Shadyac

Elenco: Nikita Mikhalkov, Ingeborga Dapkunaite, Oleg Menshikov

Elenco: Jim Carrey, Courteney Cox, Sean Young

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O ANO EM QUE JIM CARREY ATINGIU O SUCESSO

o filme a conseguir gerar cerca de 107 milhões de dólares em receitas globais ao redor do Mundo. Apesar das críticas negativas, o nome de Jim Carrey ganhou destaque, algo realçado por Emanuel Levy no seu site: "Ace Ventura: Pet Detective, directed by Tom Shadyac, is overall a rather silly comedy with some very funny moments, putting on the map a new comedian, Jim Carrey, who in the same year also made The Mask. Both movies were popular at the box-office, largely due to the overly energetic and even manic performance of Carrey, who proved he could contort his elastic face and body in unparalleled amazing manner". O actor destacou-se pela capacidade de utilizar o seu corpo ao serviço do humor, bem como pelo seu timing geralmente certeiro para os momentos de comédia, apesar de por vezes perder por completo o controlo e exagerar com os improvisos (sem um realizador competente a controlá-lo Carrey pode ser "um perigo"). Ace Ventura: Pet Detective estreara a 4 de Fevereiro de 1994, permitindo a Carrey destacar-se como o personagem do título, um detective "especialista" na arte de descobrir animais desaparecidos e protector das espécies indefesas, cuja personalidade é deveras peculiar.

ANÍBAL SANTIAGO

A estreia de Dumber and Dumber To está para breve. O filme marca o regresso de Jim Carrey ao papel de Lloyd Christmas, um dos personagens mais populares da carreira do actor, tendo interpretado o mesmo em Dumb and Dumber. Realizado pela dupla formada por Peter e Bobby Farrelly, Dumb and Dumber foi lançado originalmente a 16 de Dezembro de 1994, tendo conquistado o público e até alguns sectores da crítica, conseguindo criar uma larga base de fãs. Diga-se que 1994 foi um bom ano para ser Jim Carrey. Apesar de ter participado em obras cinematográficas como Once Bitten, Earth Girls Are Easy, Pink Cadillac, entre outras, para além de ter conhecido algum sucesso na série In Living Color, o actor apenas viria a ser reconhecido globalmente a partir de Ace Ventura: Pet Detective, uma comédia realizada por Tom Shadyac, que permitiu ao actor finalmente ganhar o reconhecimento do público, com

A 29 de Julho de 1994 Jim Carrey viria a conhecer aquele que seria o seu maior êxito até então: The Mask. Baseado na série de comics homónima, The Mask catapultou definitivamente Jim Carrey para o estrelato. Não falta humor slapstick, irreverência, alguma acção, uma sensual Cameron 80


Diaz e um simpático personagem canino em The Mask mas o maior destaque é a interpretação de Jim Carrey como Stanley Ipkiss. Este é um indivíduo introvertido cuja vida muda quando encontra uma misteriosa máscara que o coloca com um rosto verde, corpo flexível, força acima da média e a extravasar as suas emoções. A realização de Chuck Russell está longe de ser inovadora ou surpreendente mas The Mask funcionou como um filme de entretenimento, tendo surpreendido os analistas com os seus resultados de bilheteira: mais de 351 milhões de dólares ao redor do Mundo, valores muito superiores aos 23 milhões de dólares do seu orçamento. Com dois sucessos de bilheteira praticamente de seguida, Jim Carrey passou a ser um nome a ter ainda mais em atenção. No final do ano, Dumb and Dumber viria a comprovar o grande ano de Jim Carrey, naquele que foi mais um sucesso de bilheteira do actor. No ano seguinte, Jim Carrey voltaria a dar vida a Ace Ventura em Ace Ventura: When Nature Calls e interpretaria o vilão The Riddler em Batman Forever. Sucesso junto do público, embora sem convencer por completo a crítica, Jim Carrey teria em The Truman Show uma das suas obras com críticas mais positivas.

devido à violência presente na obra, quase que comprovando a teoria do protagonista de Nayak de que três fracassos podem conduzir à queda em desgraça de um actor. Dumb and Dumber To pode permitir a Jim Carrey regressar aos seus melhores momentos, pelo menos junto do público, após ter conseguido conquistar o mesmo em 1994. A sua carreira posterior a 1994 nem sempre foi marcada pelo sucesso, contando com "flops" de bilheteira como Man on the Moon (1999), The Majestic (2001), The Incredible Burt Wonderstone (2013), embora nem por isso possamos falar de uma carreira de mau nível. Se é certo que Jim Carrey nem sempre tem convencido a crítica, já o mesmo não se pode dizer do sucesso que alcançou junto do público, tendo conseguido granjear um número considerável de fãs. Algo parece relativamente certo: o ano de 1994 ficará para sempre marcado na carreira do actor.

Nos dias de hoje, Jim Carrey encontra-se numa fase menos positiva da carreira, com The Incredible Burt Wonderstone a falhar nas bilheteiras, para além das polémicas geradas por se recusar a promover Kick-Ass 2 81


LITTLE WOMEN

HOOP DREAMS

JOÃO PAULO COSTA

CARLOS REIS

Seguindo as linhas gerais do popular romance homónimo de Louisa May Alcott em que se baseia, esta versão cinematográfica de Little Women assinada pela australiana Gillian Armstrong centra-se em quatro irmãs, seguindo de perto a sua relação desde a infância durante a Guerra Civil onde o seu pai se encontra em combate, até ao início da idade adulta. Sem se destacar propriamente pela excelência, este filme tem ainda assim inúmeros pontos fortes, nomeadamente a riqueza do material original ao olhar com atenção a posição da Mulher na sua época, e também o muito interessante elenco, com Winona Ryder na altura a confirmar em definitivo o seu talento, e onde as muito jovens Kirsten Dunst (que no mesmo ano se destacou também em Interview with the Vampire) e Claire Danes começavam a chamar a atenção.

Documentário que segue a vida de dois estudantes afro-americanos em Chicago que sonham em se tornar basquetebolistas profissionais na NBA e, com isso, tirar as respectivas famílias da miséria, Hoop Dreams começou por ser um projecto para uma curta-metragem que acabou em cinco anos de filmagens, três horas de fita e um verdadeiro hit entre a crítica e o público. Estudo profundo sobre temas socialmente relevantes como a segregação racial, o choque entre classes, a educação (em casa e na escola) e a difícil gestão entre o sonho e a realidade de milhares de adolescentes que desperdiçam um futuro seguro em busca da utopia de serem o próximo Michael Jordan, Hoop Dreams é muito mais do que um documentário desportivo, como muitos que nunca o viram - não está disponível no mercado nacional - o apelidam à partida.

Título nacional: As Mulherzinhas

Título nacional: Hoop Dreams

Realização: Gillian Armstrong

Realização: Steve James

Elenco: Susan Sarandon, Winona Ryder, Kirsten Dunst

Elenco: William Gates, Arthur Agee, Emma Gates

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40 82


A CAIXA

ASHES OF TIME

TIAGO SILVA

ANÍBAL SANTIAGO

Habitualmente considerado um filme menor de Oliveira e ignorado na maior parte das retrospectivas dedicadas ao mais antigo dos cineastas portugueses, há uma série de aspectos em A Caixa que tornam importante não permitir que caia no esquecimento — a começar, precisamente, por esse «obscuro objecto do desejo» que dá título à película e que tanto contribui para o agravamento do drama na vida das personagens. Quem já viu o filme, certamente lembrar-se-á do modo como um elemento tão simples tem a capacidade de representar o poder destrutivo do dinheiro a nível cinematográfico. O humor desempenha também um papel crucial e contraria vários dos preconceitos que os detractores de Oliveira cultivaram sem fundamento em relação ao realizador: A Caixa é, acima de tudo, uma comédia negra sem igual.

Marcado por ritmos narrativos muito próprios, onde a procura por despertar sensações e emoções supera sempre a linearidade narrativa, Wong Kar-wai compensa o espectador por possíveis dificuldades iniciais em acompanhar o enredo de Ashes of Time ao elaborar uma obra visualmente arrebatadora, onde a cinematografia de Christopher Doyle sobressai pela positiva e o cineasta explora temáticas e elementos transversais a outros filmes que realizou. Não falta a recordação de um amor que não perdurou, a solidão, as conversas à chuva, a utilização assertiva da paleta cromática (aproveitando o facto do filme se desenrolar ao longo de cinco estações do almanaque chinês), mas também uma banda sonora sublime a incrementar os momentos da narrativa.

Título nacional: A Caixa

Título nacional: Wong Kar-wai

Realização: Manoel de Oliveira

Realização: Terry George

Elenco: Luís Miguel Cintra, Glicínia Quartin, Ruy de Carvalho

Elenco: Brigitte Lin, Maggie Cheung, Leslie Cheung

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42 83


BEFORE THE RAIN

DEATH AND THE MAIDEN

PEDRO MIGUEL FERNANDES

SAMUEL ANDRADE

Before The Rain foi um dos primeiros filmes a abordar uma das chagas da década de 1990 que manchou a Europa de sangue: a guerra dos Balcãs. Longe das sátiras e do universo mirabolante de Emir Kusturica, o filme de Milcho Manchevski apresenta uma imagem mais crua do que se passou naquela região do Velho Continente, feita a partir da Macedónia, um país que não foi dos mais afetados, mas nem por isso escapou ileso ao conflito graças às tensões entre diferentes grupos. Centrado em três histórias diferentes Before The Rain assenta numa interessante estrutura narrativa que culmina numa perfeita ligação circular entre os três diferentes capítulos. Notável o trabalho de som, onde a metáfora da chuva que está a chegar ganha força quando os trovões são por vezes confundidos com os sons de tiros.

As adaptações de peças de teatro são uma parte essencial da actividade criativa de Roman Polanski, com resultados que variam do modesto (Carnage) até ao imensamente envolvente (La Vénus à la fourrure). Neste âmbito, Death and the Maiden salda-se como o título que melhor reúne a obsessão do cineasta polaco por visões de paranóia, intriga e claustrofobia, arrancando ainda três poderosas interpretações do trio de protagonistas: Sigourney Weaver, Stuart Wilson e Ben Kingsley. Death and the Maiden explana as consequências da acusação aparentemente infundada, não obstante os argumentos e a resiliência de Weaver – uma vítima de tortura que intenta revelar, como o seu principal agressor, o homem que entra em sua casa para se abrigar de uma tempestade – que colocam as certezas do argumento em constante oscilação. Naquele espaço encolhido, a vingança dos oprimidos será sempre perturbadora.

Título nacional: Before The Rain

Título nacional: A Noite da Vingança

Realização: Milcho Manchevski

Realização: Roman Polanski

Elenco: Katrin Cartlidge, Rade Serbedzija, Grégoire Colin

Elenco: Sigourney Weaver, Ben Kingsley, Stuart Wilson

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THE LEGEND OF DRUNKEN MASTER

UNA PURA FORMALITÀ

CARLOS REIS

TIAGO SILVA

Considerado um dos cem melhores filmes da história pela revista Time, o charme da obra realizada por Chia-Liang Liu está longe de estar na sua narrativa pateta ou nos seus personagens estereotipados; tudo o que fica na memória são as magníficas sequências de acção, onde uma coordenação física soberba e uma meticulosa coreografia conseguem entreter e deliciar até aqueles que defendem que a violência no cinema é um crime. Porque aqui, ao contrário de Hollywood, a violência é inocente e o seu clímax ocorre exactamente nos bloopers que acompanham os créditos finais, onde vemos Jackie Chan a sangrar vezes sem conta e literalmente em chamas numa cena que acabou por lhe deixar queimaduras para a vida. Porque, com Jackie Chan, os efeitos especiais ficam à porta.

Sejamos francos: Una pura formalità não é o título que nos surge em mente quando pensamos em Tornatore (Cinema Paradiso é o filme que ocupa esse lugar) e corre até o risco de passar despercebido a quem não conhecer mais profundamente a sua obra. No entanto, não é difícil perceber que teve considerável influência em alguns trabalhos subsequentes e bem mais conhecidos do grande público que lidam com os mesmos temas: o esquecimento enquanto motivador do mistério e a dificuldade em compreender como a vida depois da morte ainda se pode inscrever no real (como no caso de The Sixth Sense, um dos seus óbvios filmes-herdeiros). Assim, a sua importância relaciona-se não tanto com as qualidades específicas do filme mas principalmente com as repercussões que teve. E vale a pena descobri-lo por isso.

Título nacional: The Legend of Drunken Master

Título nacional: Uma Simples Formalidade

Realização: Chia-Liang Liu

Realização: Giuseppe Tornatore

Elenco: Jackie Chan, Ho-Sung Pak, Lung Ti

Elenco: Gérard Depardieu, Roman Polanski, Sergio Rubini

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46 85


ONCE WERE WARRIORS

EXOTICA

JOÃO PAULO COSTA

SAMUEL ANDRADE

Tido como um dos mais emblemáticos filmes neozelandeses de sempre, Once Were Warriors causou sensação aquando da sua estreia em 1994, atingindo depressa o estatuto de culto entre cinéfilos de todo o Mundo.

Explicar em poucas palavras o leque emocional proporcionado por Exotica salda-se numa experiência incapaz de fazer justiça à sua primazia visual. Atom Egoyan cria uma obra cativante e desorientadora, que extravaza uma aparente história apenas sobre sexo e luxúria, e explora as mais profundas emoções humanas, onde cada indivíduo lida com a perda de alguém sob o propósito da relutância em enfrentar a tragédia que define o “presente” dos personagens. Palavra de destaque para o irrepreensível elenco de Exotica. A calma intensidade de Bruce Greenwood, o sadismo latente de Elias Koteas e a nervosa timidez de Don McKellar imprimem uma fenomenal vitalidade às personagens criadas por Egoyan. Contudo, é Mia Kirshner, com a sua arrebatadora composição (e ao som de 'Everybody Knows' por Leonard Cohen) descritível como puro “Viagra cinematográfico” e encarnação de dor reprimida, quem capta, irremediavelmente, a atenção do espectador. Título nacional: Exótica

Antes de ser acolhido por Hollywood e assinar produtos anónimos como 007 – Morre Noutro Dia, ou XXX2, Lee Tamahori estreou-se nas longas-metragens com esta poderosa adaptação do romance Alan Duff sobre uma família Maori residente nos subúrbios degradados de Auckland, onde os jovens filhos procuram o conforto familiar que os pais não lhes conseguem oferecer, perdidos que estão constantemente entre bebedeiras e rasgos de violência. Com excelentes interpretações e um realismo por vezes perturbador, é um filme difícil mas recompensador. Título nacional: A Alma dos Guerreiros Realização: Lee Tamahori

Realização: Atom Egoyan

Elenco: Rena Owen, Temuera Morrison, Mamaengaroa Kerr-Bell

Elenco: Bruce Greenwood, Elias Koteas, Don McKellar

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48 86


WOLF

LADYBIRD LADYBIRD

FILIPE LOPES

PEDRO MIGUEL FERNANDES

A lenda do homem que se transforma em lobo nas noites de lua cheia é quase tão antiga como a própria Civilização. Sobre ela se escreveram milhares de páginas e relataram-se ainda mais histórias, durante séculos, que contribuíram para tornar o lobisomem numa das mais populares figuras mitológicas do mundo inteiro. Lobo é a abordagem cinematográfica feita por Mike Nichols ao fenómeno da licantropia, cuja acção decorre nos “tempos actuais”, com toda uma roupagem de modernidade, mas que pisca o olho aos clássicos de horror da Universal. O luxuoso lote de actores, no qual despontam Jack Nicholson e Michelle Pfeiffer, ajuda a garantir personagens com espessura dramática, associado a uma forma de filmar que se diria “clássica”, fazem, deste, um filme ao qual vale a pena dar uma espreitadela.

Baseado numa história verídica, Ladybird Ladybird é um dos exemplos típicos do cinema de Ken Loach, fortemente ancorado em questões sociais e políticas. No centro deste drama familiar está a história de uma mulher que luta contra os serviços sociais britânicos para ficar com a custódia dos seus inúmeros filhos: quatro nascidos de quatro diferentes relações tumultuosas e violentas e dois filhos fruto de uma relação mais estável mantida com um imigrante ilegal, originário do Paraguai. Um retrato bastante duro desta realidade, que apenas ganha alguma luz nas sequências em que o casal sonha com um futuro livre de preocupações. A interpretação de Crissy Rock, actriz que fez carreira na televisão e se estreou neste filme, é absolutamente magnifica.

Título nacional: Lobo

Título nacional: Ladybird Ladybird

Realização: Mike Nichols

Realização: Ken Loach

Elenco: Jack Nicholson, Michelle Pfeiffer, James Spader

Elenco: Crissy Rock, Vladimir Vega, Sandie Lavelle

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50 87



Tendo conseguido permissão para filmar no verdadeiro e homónimo hospital de Copenhaga, Trier enche duas séries, de quatro episódios cada, com o estranho dia a dia de um aparentemente calmo hospital que lida com ambulâncias fantasmas, vozes nos poços de elevador, cerimónias maçónicas, filhos de demónios, estudos de cancro pouco convencionais e, claro, cabeças de cadáver que desaparecem misteriosamente. Com realização do próprio Trier e de Morten Arnfred, O Reino é uma estranha mistura de telenovela, filme de terror e art house.

O REINO SARA GALVÃO

Antes de The Killing e The Bridge, e antes do florescer da indústria cinematográfica dinamarquesa e escandinava em geral, Lars (Von) Trier, um auteur que tinha conquistado corações e críticos nos festivais com a trilogia Europa, resolveu virar as atenções para o pequeno monstro da sala de estar.

Mas quem começa a ver O Reino à espera de algo nas linhas fantasmagóricas de American Horror Story ou Penny Dreadful’s, será rapidamente desiludido. Depois da estranha introdução que explica as origens do Reino (hospital construído sobre pântanos - a água será um tema recorrente na série), entramos com uma rápida montagem a la anos 90 de típica série televisiva, com os nomes dos actores a aparecerem ao lado das personagens. E depois... nada de especial. A história começa como uma típica série sobre a burocracia hospitalar, onde talvez haja uma certa tensão entre a racionalidade da ciência médica e o espiritismo/ velhos métodos, mas tirando um estranho leitmotif musical e estranhas imagens das câmaras de segurança, nada há que garanta uma presença sobrenatural. No final, a cortina fecha e o próprio Lars von Trier, qual anfitrião de cabaret, entra no ecrã , de fato completo e sorriso matreiro,

É tido como certo que a revolução televisiva começou com Os Sopranos e Sete Palmos de Terra, que elevaram as típicas histórias televisivas, tidas como mundanas, a um estatuto de arte semelhante, senão superior, ao do cinema. Mas as águas tinham começado a ser agitadas muito antes da HBO entrar na corrida, com duas séries que iriam atingir estatuto de culto e, curiosamente, com dois realizadores que posteriormente se dedicariam ao grande ecrã. O primeiro, em 1990, seria David Lynch com a série que mudaria os murder mysteries para sempre, Twin Peaks. Quatro anos depois, será a vez de Von Trier reinventar o drama hospitalar com O Reino. 89


e pede desculpa por qualquer coisinha, prometendo uma melhoria na semana que vem, desde que a audiência esteja disposta a aceitar o bem (sinal da cruz) com o mal (cornos). E a audiência volta na semana seguinte. E na a seguir. E depois. No fim dos oito episódios, Von Trier já gozou o suficiente com a nossa cara - isto não é uma história sobre sobrenatural, se bem que o sobrenatural de vez em quando aparece para fazer uma rápida visita (com efeitos especiais manhosos); pura e simplesmente, O Reino é um drama hospitalar satírico com a ocasional reflexão sobre a ideia de nacionalidade dinamarquesa, realizado por alguém com uma mente perversa e um sentido de humor pouco habitual. Sim, há fantasmas, e gore próprio de uma sala de operações, e pequenas tramas e mistérios para nos manter colados ao ecrã, mas o que torna a série tão especial, e merecedora do estatuto de culto, são três coisas: o sentido de humor de Trier, o mostrar-se como verdadeiro precursor do movimento Dogma 95, e, claro está, a mestria da multi-história junta com diálogos que, tirados de contexto, bem poderiam passar por filmes de série Z.

desdenha de toda e qualquer homeopatia mas que não hesita em viajar para conseguir um veneno tribal para se livrar do seu maior inimigo, o médico Hook. Hook (Søren Pilmark) tem toda uma rede de pequenas chantagens no hospital que lhe facilitam a vida em geral, mas nada o pode ajudar quando ele se apaixona por Judith (Birgitte Raaberg), que tem dentro dela um estranho bebé (Udo Kier) que cresce a um ritmo alucinante. Do lado dos pacientes, a médium Sigrid Drusse (Kirsten Rolffes) tenta comunicar com o espírito da criança que encontra no elevador, ajudada pelo filho Bulder (Jens Okking); o médico Bondo (Baard Owe) decide tomar um passo pouco habitual para adiantar o seu estudo de tumores do fígado; e a Operação Manhã Radiante, a organização maçónica que se encontra nas “catacumbas” do hospital, sempre dispostos a recrutar novos “patinhos” para a causa. E nas cozinhas, a fazer de coro, um rapaz e uma rapariga lavam pratos e comentam, quais deuses gregos, as confusões e destinos das personagens que se movimentam nos andares superiores. Claro que uma das coisas que mais salta à vista, quando vemos a série, é o peculiar estilo visual. A série começou, convém lembrar, exactamente antes do Dogma 95 ser assinado por um grupo de realizadores dinamarqueses. O Voto de Pureza que exigia não usar tripé, filmar em vídeo e fora de estúdios parece já adivinhar-se, contudo. O aspecto

Os actores são todos conhecidos da sala de estar dinamarquesa, mas as personagens que interpretam estão longe de ser convencionais. Há Stig (Ernst-Hugo Järegård), o médico sueco rabujento que brada aos céus (ou à retrete) sobre o “lixo dinamarquês” em todos os episódios, que 90


cheio de grão, em fortes tons sépia que aumentam a sensação de produção de baixo custo, dão uma forte impressão de documentário, aliado à filmagem livre e à edição que segue a história emocional e não as regras tradicionais de linguagem cinematográfica. Reza a história que Trier, depois de ter passado vários anos a aperfeiçoar a sua técnica cinematográfica (ao ponto de confessar que para ele a tecnologia era mesmo um fetiche), sentia-se menos confortável a lidar com personagens e emoções. Daí se ter auto-imposto um quase total desprezo da primeira em favor das segundas. E os resultados - e implicações para o futuro da sua carreira como realizador - estão à vista. A estética pouco habitual associada à junção de dois géneros distintos (o horror e o drama hospitalar) resulta num curioso objecto televisivo, que muito ganha através do humor de Trier - “Eu amo-te, mas receio que sejas um fantasma”. Há mesmo quem afirme que O Reino é, de longe, a criação mais divertida do realizador dinamarquês.

como impostos ou morte” adaptação americana viria a público em 2004, chamada Kingdom Hospital e com Stephen King por detrás da adaptação. Outra série, mais livremente inspirada, de terras de Sua Majestade, também do mesmo ano, é Garth Marenghi’s Darkplace, que goza abertamente com os valores de produção, diálogos e violência do original dinamarquês. Enquanto a série americana parece sofrer de um excesso de explicação, chamemos-lhe assim, a britânica consegue capturar muito do espírito do original, incluindo os efeitos especiais de cinco tostões e os erros de continuidade com níveis de cafés em copos. E boas notícias para fãs de Trier que sentem saudades de o ver dedicarse a algo com vários episódios - agora que a Trilogia da Depressão acabou, Zentropa anunciou o regresso do enfant terrible ao pequeno ecrã, com The House That Jack Built, que começará a ser filmado em 2016. Detalhes? Nenhuns...

Apesar dos planos para uma terceira série terem sido cancelados devido à morte de algumas das personagens (deixando algumas questões no eterno ar), O Reino conseguiu reconhecimento além fronteiras ao ser “compilado” em duas longas metragens, incluindo o prémio para melhor realizador e guião de filme fantástico internacional no Fantasporto de 1999, e nomeação para melhor filme. Mais recentemente, a “tão certa 91


LONGA VIDA À SÉRIE! MIGUEL FERREIRA

Unidade, tamanho pesadelo de qualquer história. Nenhuma série, no seu perfeito juízo, pretende durar apenas um. Um episódio, uma temporada, um sopro. A continuidade, por mais ilógica que seja é sempre um caminho apetitoso. Temos mais ideias, ideais, interesses, para contar a outrem. Criança nossa, com a vida toda lá à frente. E com os crescentes aumento e acesso à ficção televisiva, a crueldade do machado parecenos descomunal. Não é, trata-se somente do ecossistema a responder a um fluxo diferente de informação e entretenimento, criando de novo um equilíbrio. Voltando à estabilidade. Mas o que faz uma série prevalecer em detrimento de outra? Darwin és tu? Ou apenas um conjunto diverso e único de factores que determinam os anos, naqueles anos? Difícil a resposta, cheia de complexas teias e argumentos, fórmulas e feitiços. No meio de tanta, ou tão pouca, vida, recuámos até 1994 e a algumas séries emblemáticas que aí nasceram, esticando a régua do tempo e contando até onde foram. No final voltamos às questões.

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recordes, como aquela que teve a primeira campanha online de salvação por parte dos fãs. Em 1999 foi lançado um livro, intitulado My So-Called Life Goes On, que dava seguimento à vida, deixada em aberto. Porém é certo, que o futuro será sempre aquele presente na mente e nos fóruns dos que não esquecem.

MY SO-CALLED LIFE (1 TEMPORADA) É contraditório, mas também é um facto, que baixa longevidade contribui para o aumento do culto. Quanto mais pequenas e injustiçadas, mais amadas ad aeternum. Produtos muito especiais, dentro mas fora da caixa, têm sempre corridas e tarefas complicadas, podendo, muitas vezes, serem interrompidos ao fim da primeira volta. Também há os detestáveis e o amável favor que nos fazem. Mas nestes casos não, não houve o tempo nem para melhorar nem para piorar. Ficou aquele bloco, para ser viso e revisto, ouvido e debatido, quem nem pequena arca do tesouro. Assim My So-Called Life, drama adolescente que fugia ao estereótipo da idade e que se apresentava adulto e cru. Para a adolescência. Como o título original tão bem exemplificava (cá em Portugal era o pacóvio Que Vida Esta!) contava-se a história daquelas idades, de uma coisa a que os adolescentes chamam de vida, perante as indecisões, confusões, a violência de mutar. Claire Danes, antes das carantonhas de Homeland, antes de ser estrela ou Julieta, era Angela Chase, uma adolescente numa série de círculos, à procura da identidade. Valeu-lhe, com 15 anos, o Globo de Ouro para Melhor Actriz. Apesar de amplamente elogiada pela crítica, a série da ABC teve vida e concorrência difícil, sobrevivendo apenas 19 episódios. Para a posterioridade fica gravada em dezenas de textos, imagens, tops, desde a melhor de sempre até à cancelada cedo de mais, e 93


versão cinematográfica. J. Michael Straczynski anunciou recentemente que não desistiu, e que os fracassos passados resultaram em conquista: o guião estará pronto para um lançamento do filme em 2016, reboot da série original.

BABYLON 5 (4 TEMPORADAS) Estrelas, tão quietas no nosso céu, tão fugazes no televisor. Qualquer noite estrelada nos sossega a pressa, refastelados em longas cadeiras, Verão talvez. Mas quando voltamos para dentro e volvemos ao repouso, a corda sobe ao pescoço. O aperto começa e se queremos viajar para longe, Grupo Local ou ainda mais para lá, onde de nada sabemos e a imaginação é razão, então temos de estar preparados para a dor. Sufoco. Amar uma série de ficção científica pura e dura é puro e duro. Objectos não muito comuns, caros e carregados de mitologia, de novos apontamentos que tentam desesperadamente um dia ser livro. E nós leitores assíduos. Hoje séries como Defiance mantêm a (pequena) chama acesa, e outras como Extant e The 100 mostram-se como sobreviventes variações do género. Pouco mais resiste aos vampiros, zombies e apocalipses. Vida curta ao espaço. Porém há excepções, sagas que vivem exactamente o que devem viver e, para além de Battlestar Galactica (de 2004) e Star Trek, Babylon 5 foi a única série de ficção científica americana a conseguir cumprir o seu calendário sem ser cancelada. Teve as previstas 5 temporadas que correram durante 4 anos, mas a estação espacial, que dava nome à série e tentava assegurar a paz e diplomacia, estendeu-se para o spin-off (Crusade), para os telefilmes, para o culto, para o infinito. E agora, como as outras duas comparsas de género, vai ter 94


spin-off intitulado Time of Your Life, onde a personagem que interpretava, Sarah, ia para Nova Iorque à procura do seu pai biológico. Foi cancelada a meio da sua primeira temporada. Quanto a Party of Five, ainda hoje é lembrado como o “grande drama esquecido dos anos 90” e um modo de interpretar o género que morreu ali.

PARTY OF FIVE (6 TEMPORADAS) Entre nós e o instantâneo, existia normalmente, um intervalo. Uma série nova e fresquinha na TVI, era uma série que já lutava por alguma coisa no seu país de origem. Longamente indeferido mas também amplamente na ignorância. Não existia outra forma, de tal modo que uma novidade era em mim um bicho novo, ponto. Uma televisão independente e jovem, dona dos também jovens X-Files (estrearam em 1993 e por cá no ano seguinte), apostava então (1996) em Party of Five. Era um mundo diferente e eu de mochila, VHS e horas marcadas. Sofá e Suchard Express. O drama pretendia ir do adolescente ao adulto, enquanto nos era contada a história de cinco irmãos, os Salinger, que de um momento para o outro perdem os pais num acidente automóvel. Têm a partir desse momento de enfrentar o lá fora, completamente sozinhos, daí a tal festa dos cinco, cá entre nós eram Adultos à Força. Com o arranque difícil, a série da FOX andou com os nervos em franja, a audiência baixa assustava e ditava um possível cancelamento. Porém, em 1996, durante a sua segunda temporada, ganha o improvável Globo de Ouro para Melhor Série Dramática. Aguentou-se durante 142 episódios, 6 temporadas, 6 anos, cancelada em 2000. Foi porta de lançamento para um conjunto de jovens atores, como Neve Campbell (Scream), Mathew Fox (Lost), Scott Wolf (V) e Jennifer Love Hewitt (Ghost Whisperer) que chegou mesmo a ter um 95


aqui estamos, com as caixas na prateleira e com constantes reposições televisivas. Até tivemos direito à versão dobrada em português, ainda nos anos 90, que era tão boa ou melhor que a versão original. Obviamente, que analisar 10 anos de vida - muita moda correu - não é traçar uma curva exponencial ou outra recta, anos de muita saúde e depois a idade, inevitável perda de fulgor. Mas o conjunto é algo que neste caso sempre falará mais alto, muito devido, em parte a esse sentido colectivo de união, sempre cultivado quer pela ficção quer pelos actores, mas também pelo modo como acertaram nos 6 protagonistas. Uniformidade colectiva presente numa individualidade que se espelhava nesta ou noutra forma em cada espectador. Memorável.

FRIENDS (10 TEMPORADAS) Enquanto uns são esquecidos, outros são constantemente recordados. Nunca saem realmente de moda, quer nas reposições, referências ou visibilidade dos protagonistas. Terminaram há 20 anos, mas todos os anos lá temos novas listas, novos momentos, novos rumores de reunião e, claro, nova maratona dos episódios todos de seguida, que usualmente termina em desidratação e urgências. Mas não deixa de ser muito engraçado. Não é, mas prosseguindo, de todas as celebrações dos 20 anos esta é capaz de ter sido a mais notada, falada e comentada. Para onde quer que se olhasse lá estavam eles, citações, abraços, choradinhos e aquele fado de que nunca mais uma comédia voltará a ter aquele impacto. Até abriram um Central Perk de verdade, onde uma horda de saudosistas se podem sentar no sofá laranja, tirar fotografias e beber café, como os verdadeiros fictícios faziam. Loucura. As filas são de facto extensas para se poder compreender tamanho impacto. “So no one told you life was gonna be this way” alertavam logo os Rembrandts, no seu I´ll Be There For You, como antevendo a surpresa do seu gigantismo. Quando se começa a escrever, nos inícios da grafite, quando a série ainda se chamava Insomnia Cafe – sim tinha esse nome – David Crane e Marta Kauffman não deviam sonhar ou projectar dez temporadas, dez anos, 236 episódios e mais de 60 nomeações aos Emmys. Certo é que 96


(George Clooney, Juliana Marguiles, Anthony Edwards, Noah Wyle, etc) e os recordes alcançados (drama médico mais tempo no ar, entre outros) ficar a ideia de uma era, de uma marca. Pensar nos anos 90 do pequeno écran é, inevitavelmente, pensar em E.R..

E.R. (15 TEMPORADAS) Ai os dramas médicos. Eternos corrupios de doenças, de portas que abrem e fecham, apressadas no bip bip dos ritmos cardíacos, do sangue e da entrega. Máscaras e toucas que escondem bonitões solteiros, com problemas emocionais e um problema maior: deixar de ser solteiro. Orgânica que tem sempre grandes hipóteses de aguentar a maratona. Diferenciar dentro de um ambiente comum, pouco conhecido mas familiar a todos. É o passar a linha e espreitar, não só as vidas mas os casos, fonte inesgotável de inspiração. Não há fim à vista quando falamos de doença, o House que o diga. Mas voltemos a 1994 e à estreia de E.R., série da NBC criada por Michael Crichton e pensada inicialmente, por este e Steven Spielberg, para o formato cinema. Desse conceito saltaram para um piloto televisivo, inicialmente condenado por muitos velhos: não resulta, demasiado filme, demasiado movimento, demasiado tenso. O resultado foi o oposto e as longas sequências por diversas salas, personagens e acontecimentos marcaram o universo televisivo dos anos 90 e prenderam ao sofá um número incontável e interminável de fãs. Escrever história é isso: depois de retirar os prémios (mais de 100), os episódios (mais de 300), as temporadas (15), as estrelas formadas 97


KOMMISSAR REX (20 TEMPORADAS) Parece-me importante referir neste começo que existe uma border collie que consegue identificar cerca de 1000 palavras. É só uma dica, para quem quiser fazer nova aventura canina não tão quadrada, com os pastores alemães. Depois tenho de escrever algumas linhas que no seu conjunto poderão ser tidas como “enorme aborrecimento” mas que servem para contextualizar e justificar o porquê do glorioso número 20. Desde lá até cá, sem parar. Vinte anos? Não pode ser! Pois lá está, o que aconteceu foi o seguinte: originalmente a série era feita na Áustria e tal aconteceu desde 1994 até 2004. Depois, em 2008, a série regressou mas agora com roupagem italiana e existe até aos dias de hoje. Isso não vale, pensam. Então não vale, se os Trovante podem comemorar 35 anos de carreira já não existindo, também o Rex pode saltar este hiato e assumirse na vintena. Número bonito e impressionante para este melhor amigo do homem, que ladrou na SIC alcançando um enorme (e inesperado) sucesso. De tal forma que, como regressou lá, também regressou cá e em 2013 à estação de Carnaxide, com as suas novas temporadas e agora com a apetecível dobragem. Dava de manhã, para a pequenada. Até hoje, Rex teve 6 parceiros, 1 spin-off (Stockinger), uma versão polaca (Komisarz Alex) e uma versão portuguesa que se chamava Inspector Max, da TVI. Também esta com 20 temporadas. Brincadeirinha, foram só 2. 98


Não deixa de ser interessante, com todas as suas limitações, estabelecer um padrão de tempo de vida com base nos géneros e espécies. O íntimo, pessoal e polémico acaba por ser o primeiro condenado, seguindo-se o género mal-amado, depois o drama familiar, que acaba por se consumir nele próprio passados 5 ou 6 anos. A comédia elástica, estica, estica, estica, e por fim os casos da semana, médicos e policiais, eterno duelo que ainda hoje está para as curvas. Com a rapaziada dos crachás a levar alguma vantagem. Será assim para sempre? Será a maioria voraz por muitas e não grandes histórias? Será um episódio sozinho, repetidas vezes, o santo graal da televisão? Eu penso que sim, mas começaram este ano tantas outras ficções, vamos ver onde elas chegam e daqui a 20 anos confirmamos.

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