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MGM . 90 ANOS

TAKE.COM.PT | ANO 7 | NÚMERO 36


ARTE PELA ARTE CARLOS REIS

"Ars Gratia Artis" é o slogan oficial dos estúdios Metro-Goldwyn-Mayer, uma frase que acompanha desde sempre os rugidos do famoso logo que dá início ao espectáculo cinematográfico - ou televisivo, como é o caso de Tom & Jerry e tantos outros - de cada uma das produções do estúdio. Longe da sua época dourada - os anos vinte, trinta e quarenta do século passado -, a MGM conta ainda assim no seu portefólio com mais de cento e setenta e cinco filmes premiados pela Academia norte-americana nas mais variadas categorias, catorze deles com o galardão de Melhor Filme. É por isso normal que, no ano em que o lendário estúdio comemora o seu nonagésimo aniversário, a Take associe-se à festa e, entre lançamentos exclusivos no mercado de vídeo, edições de coleccionador e uma mão-cheia de actividades que estão a ser preparadas pela MGM para relembrar alguns dos maiores clássicos do cinema em todo o mundo, também nós façamos a nossa parte e homenageemos uma instituição que tanto contribuiu para a arte que nós mais amamos: a sétima. A MGM olha para o futuro mas não esquece o seu passado: da glória à falência, do renascimento corporativo às diversas restruturações financeiras e parcerias estratégicas, o estúdio fundando em 1924 já passou por quase tudo. A verdade não muda: todos nós associamos aquele rugido a um ou outro filme que nunca esqueceremos. E porque os noventa são certos mas para os cem tanto nós como a MGM pode já cá não estar, importa não deixar esta oportunidade passar. Obrigado MGM, as páginas que se seguem são a nossa dádiva de agradecimento.



MGM - 90 ANOS . 90 FILMES 44 Apocalypse Now 46 2001: A Space Odyssey 48 Raging Bull 50 Manhattan 52 Il Buono, Il Brutto, Il Cattivo 54 North by Northwest 56 Annie Hall 58 Carrie 60 Gone With the Wind 62 Poltergeist 64 A Fish Called Wanda 66 One Flew Over the Cuckoo's Nest 68 Singin' in the Rain 70 The Philadelphia Story 72 Rocky 74 The Wizard of Oz 76 Per Qualche Dollaro in Piú 78 Per un Pugno Di Dollari 80 Ninotchka 82 To Live and Die in L.A. 84 Ghost World 85 Rain Man 86 Doctor Zhivago 87 West Side Story 88 Ben-Hur 89 Heaven's Gate 90 Greed 91 The Producers 92 An American in Paris 93 Forbidden Planet 94 New York, New York 95 The Asphalt Jungle 96 Stardust Memories 97 Thelma and Louise 98 Goldfinger 99 Last Tango in Paris 100 Invasion of the Body Snatchers 101 Leaving Las Vegas 102 Ronin

103 Cat on a Hot Tin Roof 104 A Night at the Opera 105 Network 106 Bowling for Columbine 107 The Night of the Iguana 108 Thief 109 Julius Caesar 110 The Pink Panther 111 Casino Royale 112 Dr. No 113 Interiors 114 The Band Wagon 114 Spaceballs 115 24 Hour Party People 115 Coffee and Cigarettes 116 It's a Mad, Mad, Mad, Mad World 116 Get Shorty 117 Midnight Cowboy 117 Freaks 118 Being There 118 The Dirty Dozen 119 Meet Me in St.Louis 119 The Big Parade 120 Sleeper 120 Year of the Dragon 121 Love and Death 121 Everything You Always Wanted to Know About Sex, But Were Afraid to Ask 122 Pink Floyd: The Wall 122 GoldenEye 123 Shaft 123 Child's Play 124 WarGames 124 Coming Home 125 Jeepers Creepers 125 Gigi 126 Rocky II 126 Hannibal 127 Vicky Cristina Barcelona

127 Hotel Rwanda 128 The Bad and the Beautiful 128 Le Dernier Métro 129 Point Blank 129 The Shop Around the Corner 130 Village of the Damned 130 The Thin Man 131 Soylent Green 131 Rocky Balboa 132 The Big Red One 132 Cruising 133 The Hunger 133 Grand Prix

ARTIGOS 02 Arte Pela Arte . editorial 06 Leo, o Leão 08 MGM - O passado, o presente e o futuro 134 Greta Garbo & MGM

Director José Soares. josesoares@take.com.pt Editor Carlos Reis. editor@take.com.pt Editor adjunto João Paulo Costa. editor.adj@take.com.pt Colaboraram nesta edição Aníbal Santiago. Carlos Reis. João Paulo Costa. Miguel Domingues. Pedro Miguel Fernandes. Pedro Soares. Samuel Andrade. Sandra Gaspar. Sara Galvão. Tiago Silva. Xico Santos. Design José Soares. Imagens Arquivo Take. Alambique. Big Picture Films. Cinemateca Portuguesa - Museu do Cinema. Columbia TriStar Warner Portugal. Costa do Castelo Filmes. Fox Portugal. Films 4 You. iStock. LNK Audiovisuais. Lanterna de Pedra Filmes. Leopardo Filmes. ZON Lusomundo Audiovisuais. Midas Filmes. Nitrato Filmes. Pris Audiovisuais. Sony Pictures Portugal. Universal Pictures Portugal. Valentim de Carvalho Multimédia. Vendetta Filmes.

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Š Xico Santos



LEO

A MASCOTE CARLOS REIS

Leo é, muito provavelmente, o Leão mais popular de sempre. Bem, verdade seja dita, Leo era muito mais do que um Leão. Leo era uma estrela de cinema, um relações-públicas sem igual, o mestrede-cerimónias mais famoso da década de vinte e trinta do século passado. Nessa altura, Leo era presença garantida nas antestreias mais conceituadas da MGM, andou de avião, barco e comboio um pouco por todos os Estados Unidos e foi visto, em algumas ocasiões, qual Deus omnipresente, em mais do que um sítio ao mesmo tempo. Como é que tal foi possível? Leo não era um leão, mas vários. Ainda hoje, noventa anos depois, o leão que dá face à MGM e serve-lhe de mascote chama-se Leo. Foi ele, este mesmo chamado Leo no seu passaporte animal, o último felino filmado para a famosa apresentação cinematográfica que abre as produções da MGM, no longínquo ano de 1957. Os outros chamavam-se Slats, Jackie, Tanner e George, mas, para a história, ficaram todos como Leo. Hoje, todos estão mortos e enterrados. Menos um, não se sabe bem qual, que está apenas morto, já que a sua pele serve de tapete ao terceiro piso do Museu McPherson, no Estado do Kansas. Foi-se o pêlo, ficou o rugido, outra imagem de marca da MGM. Presente em todos os filmes produzidos pelo estúdio Metro Goldwyn Meyer desde 1927, também eles variaram de leão para leão ao longo dos tempos. O que se ouve ainda hoje é o de Leo, o felino de nove vidas chamado mesmo Leo de nascimento e não apenas no palco, o último, que viveu durante vinte e três anos e morreu de velhice após ter sobrevivido a dois descarrilamentos de comboio, umas cheias no Mississippi, um tremor de terra na Califórnia, um incêndio nos estúdios e, admirem-se, um acidente de avião. Foi esta sua vida memorável e estóica que fez com que Samuel Goldwyn tenha dado, em forma de homenagem, o nome definitivo de Leo à mascote da companhia, atirando para o mesmo saco todos os outros que o antecederam, hoje Leos à força no historial da MGM.



METRO-GOLDWYN-MAYER PASSADO, PRESENTE E FUTURO ANÍBAL SANTIAGO

"Ars gratia artis" - "Arte pela Arte". Este é o lema da Metro-Goldwyn-Mayer, um dos históricos estúdios de Hollywood. Em 2014, o estúdio comemora noventa anos de vida. Noventa anos de História e de histórias, de grandes momentos e alguns fracassos, contribuindo de forma inolvidável para a sétima arte e proporcionando alguns grandes momentos a quem gosta de cinema. Neste artigo, procuramos efectuar uma breve exposição sobre o passado, presente e futuro da MGM, um estúdio que um dia primou por ter "mais estrelas do que aquelas que estão no céu". E não estava longe de ser uma expressão exagerada: Greta Garbo, John Gilbert, Joan Crawford, Fred Astaire, Grace Kelly, James Stewart, Katharine Hepburn, Clark Gable, Ava Gardner, Lillian Gish, entre muitas outras estrelas de cinema estiveram sob contrato da MGM, encantando espectadores, deliciando os executivos do estúdio, quais Deuses do Monte Olimpo prontos a cumprir grandes proezas. Mas como foram criadas as condições para ter uma constelação de estrelas desta envergadura?


Em Janeiro de 1920, Marcus Loew, um magnata conhecido por ter investido numa cadeia de cinemas, a Loew's Theatres, adquiriu todo o stock da Metro Pictures Corporation, uma empresa de produção e distribuição que tinha sido fundada em 1916. Esta aquisição permitiu um êxito de bilheteira com números bem sonoros, a adaptação cinematográfica de The Four Horseman of the Apocalypse. Realizado por Rex Ingram, calcula-se que o filme tenha ultrapassado os quatro milhões de dólares em receitas de bilheteira. A 16 de Maio de 1924, Loew reúne sob a sua alçada a Goldwyn Pictures, que tinha sido criada em 1917 e conhecia um período de menor fulgor, após Samuel Goldwyn ter saído da direcção. Esta compra conduziu a mais um conjunto de filmes a passarem para a alçada da empresa de Loew, mas também instalações, realizadores e actores sob contrato. Marcus Loew adquiriu ainda a Louis B. Mayer Productions a 17 de Abril de 1924, tendo em vista a integrar Louis B. Mayer na sua empresa e oferecer-lhe um cargo de enorme relevância. Com o génio de Louis B. Mayer, alçado a vice-presidente e chefe de operações do estúdio na Califórnia por Marcus Loew, e a contratação do produtor Irvin Thalberg, oriundo da Universal Pictures como chefe de produção, o estúdio, agora com o nome Metro-Goldwyn-Mayer, preparava-se para conhecer um dos seus períodos dourados, daqueles que certamente não serão esquecidos por quem gosta de cinema. Mayer

tinha de reportar a Nicholas Schenck, o homem de confiança de Marcus Loew e futuro presidente da Loew's, após a morte do líder. Schenck e Mayer tinham uma relação algo problemática, adensada pelo facto do primeiro ter procurado vender a Loew's e a MGM a William Fox, algo que o segundo conseguiu adiar devido às suas ligações em posições influentes, uma situação que a juntar ao chamado "Crash da Bolsa de 1929" e à "Grande Depressão" conduziu a um travar do negócio. Mas deixemos as negociatas da MGM e avancemos para as produções do estúdio que conta com o leão Leo como símbolo (que pertencia à Goldwyn Pictures Corporation), enquanto este ruge antes do iniciar dos filmes. Um dos projectos em desenvolvimento pela Metro que foi aproveitado pela MGM foi Ben-Hur, um filme que se encontrava a ser realizado por Charles Brabin. O cineasta foi subsistido por Fred Niblo após várias filmagens estarem efectuadas, algo que conduziu a uma derrapagem enorme no orçamento, com Ben-Hur a ser o filme mudo mais caro de sempre (sem contarmos com obras recentes como The Artist), tendo atingido valores quase a chegarem aos 4 milhões de dólares e sido o paradigma para Thalberg não pretender produções no estrangeiro, onde podem facilmente descontrolar-se. Ben-Hur foi protagonizado por Ramón Novarro, tendo alcançado uma receita superior a 10 milhões de dólares e contribuído para a imagem de prestígio da MGM, associando ainda a mesma à produção de épicos. No entanto, o primeiro filme a ser desenvolvido pela 10


MGM foi He Who Gets Slapped, uma obra realizada por Victor Sjöström, que contava no elenco principal com Lon Chaney, John Gilbert (uma das grandes vedetas da MGM durante os anos 20) e Norma Shearer. O filme teve como base a peça escrita por Leonid Andreyev, tendo alcançado um sucesso considerável junto do público (orçamento a rondar os 170 mil dólares e uma receita avaliada em 881 mil dólares), embora não tenha sido a primeira obra cinematográfica da MGM a estrear nas salas de cinema, devido a ter sido adiada para uma data mais próxima do Natal, de forma a alcançar um maior número de espectadores. O primeiro filme da MGM (produzido pelo estúdio) a estrear nas salas de cinema foi Mademoiselle Midnight, uma obra realizada por Robert Z. Leonard e protagonizada por Mae Murray. O filme foi lançado a 14 de Abril de 1924, um ano onde o estúdio lançou cerca de trinta filmes, entre os quais Sherlock, Jr., uma obra protagonizada pelo inimitável Buster Keaton (produzido ainda pela Metro Pictures Corporation). O ano de 1925 traz a estreia de Ben-Hur, mas também The Big Parade, uma das obras marcantes do estúdio, tendo sido realizada por King Vidor e protagonizada por John Gilbert, Renée Adorée, entre outros. The Big Parade acompanhava John Gilbert como James "Jim" Apperson, um indivíduo dos EUA, oriundo de famílias com posses financeiras, que se decide alistar no exército, na Rainbow Division, tendo em vista a participar na I Guerra Mundial. Em 1926 temos não só a estreia de Greta Garbo

na MGM com Torrent, realizado por Monta Bell, mas também mais dois filmes protagonizados pela lendária "esfinge sueca", The Temptress (de Fred Niblo) e The Flesh and the Devil (de Clarence Brown), com estes dois últimos a vincarem a fama de tentadora de Garbo. The Flesh and the Devil marca ainda a primeira colaboração entre Garbo e John Gilbert, um casal que "incendiou" o grande ecrã com as suas tórridas cenas de amor (para a época), mas também pelo caso que tiveram fora do grande ecrã. Nesse mesmo ano estreava também The Scarlett Letter, realizado por Victor Sjöström e protagonizado por Lillian Gish e Lars Hanson, bem como La Bohème, que contava com o par formado por John Gilbert e Gish, nomes de peso da Metro-Goldwyn-Mayer. Diga-se que impressiona verificar a quantidade de estrelas que a MGM conseguiu reunir e criar num curto espaço de tempo, com John Gilbert, Lillian Gish, Greta Garbo, Lionel Barrymore, Joan Crawford, Lon Chaney, Renée Adorée, entre outros, um luxo de que poucos se podiam gabar. A completar este ano muito positivo, a MGM contaria ainda com a distribuição de Faust, de F.W. Murnau, uma das obras-primas deste cineasta. A 6 de Outubro de 1927 estreia um filme que viria a marcar a história do cinema: The Jazz Singer. Realizado por Alan Crosland, The Jazz Singer é considerado como a primeira longa-metragem a contar com falas e canto sincronizado com um disco de acetato. O filme foi produzido e distribuído pela Warner Bros., marcando um ponto de viragem em Hollywood e no 11


cinema mundial, tendo sido um sucesso a nível de público. Vários actores até então bem sucedidos viriam a ter uma dura transição para os talkies, veja-se o caso de John Gilbert (que juntava ainda os problemas com Louis B. Mayer), bem como de Douglas Fairbanks, Mary Pickford, Lillian Gish, entre outros exemplos. No entanto, a MGM ainda estrearia várias obras mudas, tais como Love (1927) uma adaptação de Anna Karenina realizada por Edmund Goulding e protagonizado pelo casal maravilha formado por Greta Garbo e John Gilbert, London After Midnight (1927) de Tod Browning, entre outros. A 16 de Novembro de 1929 estreava The Kiss, o último filme mudo da MGM, bem como o último filme mudo protagonizado por um dos símbolos do estúdio do leão, Greta Garbo. Dava início a uma nova era da MGM, com White Shadows in the South Sea (estreado a 10 de Novembro de 1928) a surgir como o primeiro filme do estúdio com uma banda sonora e efeitos sonoros pré-gravados, não sendo um talkie per se, tendo até começado a ser desenvolvido como um filme mudo. A 15 de Novembro de 1928 estreava a nova versão de Alias Jimmy Valentine, um filme protagonizado por Lionel Barrymore e William Haines, que era parcialmente falado, revelando-se mais um marco do estúdio. A chegada dos talkies permitiu ainda a popularização de um género que viria a ser bastante "querido" pela MGM, os musicais, com The Broadway Melody (1929) a ser considerado o primeiro musical (talkie) do estúdio. 12


Este também foi um dos primeiros musicais a contar com uma sequência em technicolor e o primeiro filme do género a vencer um Oscar, tendo recebido o galardão de Melhor Filme na segunda edição da cerimónia. O filme rendeu cerca de 1,6 milhões de dólares à Metro-Goldwyn-Mayer, tendo sido o filme que mais receitas alcançou em 1929 (calcula-se que cerca de 3 milhões de dólares), contando no seu elenco com Anita Page, uma das estrelas de sucesso do estúdio, embora tenha acabado praticamente a carreira em 1933 (protagonizaria um filme em 1936). Consta que apenas Greta Garbo recebia mais correio dos fãs do que Page, comprovando o apelo que as estrelas da MGM tinham junto do grande público. O contexto do Crash da Bolsa de 1929 e a Grande Depressão favoreciam estes filmes dedicados ao escapismo, algo visível pelo sucesso do segundo musical da MGM, The Hollywood Revue of 1929, um precursor daquilo que o estúdio faria com Grand Hotel, ou seja, reunir as estrelas da casa. O filme produzido por Irving Thalberg e Harry Rapf foi promovido como All-Star Musical Extravaganza, contando nos seus segmentos com Joan Crawford (na época uma estrela em ascensão), John Gilbert, Buster Keaton, Conrad Nagel, Anita Page, Lionel Barrymore, entre muitos outros, embora a sua coerência narrativa e argumento sejam claramente descurados, algo que conduz a obra a destacar-se mais pelo seu valor histórico do que propriamente pelo seu enredo. Apesar de todas as suas limitações, The Hollywood Revue of 1929 foi nomeado para

a categoria de Melhor Filme na segunda edição dos Oscars, perdendo, como já foi sugerido, para The Broadway Melody. A MGM vivia um período de grande fulgor. Veja-se que, logo na edição seguinte dos prémios da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas, The Big House (um dos primeiros dramas prisionais de sucesso) e The Divorcee, ambos lançados em 1930, também estariam nomeados para a categoria de Melhor Filme, comprovando a força da MGM. 1930 também foi o ano de Anna Christie, o primeiro talkie protagonizado por Greta Garbo, cuja carreira de sucesso na MGM foi marcada por obras como Susan Lenox (1931), Mata Hari (1931), Grand Hotel (1932), Queen Christina (1933), Anna Karenina (1935), Camille (1936), Ninotchka (1939), entre outros, tendo terminado em 1941 com Two-Faced Woman, um dos poucos fracassos da sua carreira. Garbo não foi a única estrela a brilhar ao longo dos anos 30 e 40 na MGM. Veja-se o caso das curtas e das longas-metragens protagonizadas por Laurel e Hardy (os célebres Bucha e Estica), a estreia de Johnny Weissmuller como Tarzan em Tarzan the Ape Man (1932), mas também o aparecimento de astros como Clark Gable, que teve em The Painted Desert (1931) a sua estreia num talkie, começando desde logo a gerar uma base de fãs considerável. Este viria a trabalhar com estrelas como Greta Garbo (Susan Lenox, naquele que foi o primeiro e último filme em que os dois estiveram juntos), Joan Crawford (trabalhou com esta em oito filmes, entre os quais, Dance, Fools, Dance, 13


1931; Possessed, 1932), Norma Shearer e Leslie Howard (A Free Soul, 1931), Myrna Loy (sete filmes), tendo sido nomeado por três vezes para o Oscar de Melhor Actor, nomeadamente em It Happened One Night (1934), Mutiny on the Bounty (1935) e aquele que seria um dos maiores sucessos da sua carreira e da MGM, Gone With the Wind (1939), tendo vencido o galardão pelo primeiro. Diga-se que Gable não foi o único nome a vencer o Oscar de Melhor Actor em filmes da MGM na década de 30, também Lionel Barrymore o conseguira por A Free Soul (1931), mas também Wallace Beery por The Champ (1932, ex-aequo com Fredric March por Dr.Jekyll and Mr.Hyde). Não nos podemos esquecer ainda da "dobradinha" de Spencer Tracy por Captain Courageous (1937) e no ano seguinte por Boys Town (1938) e da vitória de Robert Donat por Goodbye Mr. Chips. Esta tendência dos actores da MGM vencerem o Oscar de Melhor Actor não teve grande repercussão na década de 40, visível na vitória de James Stewart por The Philadelphia Story (1940), a única do estúdio nesta categoria. As vitórias não sorriam apenas aos actores. Veja-se a vitória de Norma Shearer por The Divorcee (1930, 3ª edição), Marie Dressler por Min & Bill (1930, 4ª edição), Helen Hays por The Sin of Madelon Claudet (1931), Luise Raner por The Great Ziegfield (1936) e no ano seguinte por The Good Earth, Viven Leigh por Gone With the Wind (1939). A tendência seria esbatida na década de 40, com Greer Garson a vencer por Mrs.

Miniver (1942) e Ingrid Bergman por Gaslight (1944). Poderíamos ainda falar dos restantes nomeados por filmes da MGM que não venceram (veja-se Greta Garbo que apenas recebeu um Oscar de carreira), exibindo bem o poder do estúdio neste período. Falar de MGM entre os anos 20 a 50 é falar de um estúdio onde as estrelas brilharam bem alto, nesse sentido, torna-se impossível não abordar Grand Hotel, um ambicioso projecto produzido por Irving Thalberg (quem mais poderia ser), que juntava no elenco Greta Garbo, Joan Crawford, Wallace Beery, os irmãos Lionel e John Barrymore, Lewis Stone, contando na realização com o sólido Edmund Goulding. O filme viria a conhecer um lucro bastante elevado para o estúdio (custou 750 mil dólares e rendeu 2,25 milhões de dólares só em receitas internas), venceu o Oscar de Melhor Filme (o único vencedor a só ser nomeado para uma única categoria) e continua a ser um exemplo paradigmático da política de estrelas da MGM, mas também do génio de Irving Thalberg. Este assumira a produção de um conjunto elevado de obras entre 1924 e 1936, falecendo neste último ano aos 37 anos de idade, deixando um vazio que nunca mais seria devidamente ocupado. Thalberg teve um papel importante, mas também Mayer com a sua política de ter várias das estrelas de cinema no estúdio, embora ambos chocassem um pouco em relação às visões que tinham para as produções. Louis B. Mayer pretendia investir em obras que agradassem 14


entre os quais os da famosa saga The Thin Man, iniciada em 1934, com o filme homónimo. Tendo como base o livro com o mesmo título de Dashiell Hammett, um autor conhecido pelas suas obras noir, The Thin Man centrava-se em Nick Charles (William Powell), um detective privado retirado do seu ofício, que passa parte dos seus dias a festejar com caras bebidas alcoólicas o estatuto que granjeou e o facto de viver ao lado de Nora Charles (Myrna Loy), uma mulher abastada devido às posses da sua família. Este é forçado a regressar ao activo para uma investigação complexa, enquanto a dupla de actores revela uma enorme química. O filme foi nomeado para quatro Oscars (Melhor Filme, Melhor Realizador, Melhor Argumento, Melhor Actor), tendo contado ainda com cinco sequelas. A produção estava a cargo de Hunt Stromberg, o mesmo de The Great Ziegfeld (1936), também protagonizado por Loy e Poweel, tendo sido na época o talkie com maior duração (a rondar as três horas). A MGM inovava, colhia os lucros e ganhava prémios, bem como os seus actores, algo visível com Spencer Tracy, que em 1935 juntou-se ao estúdio, onde conheceria alguns grandes êxitos da sua carreira, entre os quais a vitória em duas cerimónias consecutivas na categoria de Melhor Actor nos Oscars, nomeadamente Captain Courageous (1937) e Boys Town (1938). Quem também assinou em 1935 pela MGM foi Judy Garland, eternamente conhecida pelo seu papel em The Wizard of Oz (1939), que revelou outra nova tendência dos estúdios que passava

ao público e gerassem lucros proveitosos, enquanto que Thalberg pretendia alguns investimentos de prestigio, incluindo o investimento em adaptações de obras literárias e peças de teatro. Este teve também um papel importante no lançamento de várias estrelas do estúdio (Garbo, Crawford, Ramon Novarro, entre outros), no desenvolvimento do Código de Produção (mais conhecido como "Código Hays") para além de ser conhecido pelas suas ideias inovadoras, procurando evitar que as produções fossem rodadas no estrangeiro e ficassem fora do controlo do estúdio como Ben-Hur de Fred Niblo. O produtor supervisionou cerca de 400 obras cinematográficas na MGM, com o estúdio a ser um dos poucos a ter resultados positivos em plena Grande Depressão e mostrando um vigor produtivo invulgar, enquanto este procurava inovar até a nível do tratamento dado à imprensa e ao público, ao mesmo tempo que não se importava de correr alguns riscos. Veja-se o caso de Hallelujah! de King Vidor, um dos primeiros filmes a ser protagonizado por afro-americanos, para além de ser o primeiro filme sonoro realizado pelo cineasta, que até investiu o seu próprio salário para o filme sair do papel. A junção das estrelas de cinema, como já foi salientado na referência a Gable, surgiu também como uma procura de Thalberg em enfrentar alguns filmes menos bem sucedidos das suas estrelas. É nestas junções que encontramos também a dupla formada por Myrna Loy e William Powell, que protagonizariam catorze filmes juntos, 15


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pelo desenvolvimento de filmes a cores. Em 1939 estreava também Ninotchka, uma obra nomeada para o Oscar de Melhor Filme, naquele que foi um dos anos mais fortes da categoria. Ninotchka foi realizado por Ernst Lubitsch, um cineasta do origem alemã, que foi trabalhar para Hollywood em 1922, sendo um exemplo paradigmático da relevância de alguns dos realizadores estrangeiros que foram trabalhar para Hollywood. Diga-se que nesta fase a MGM já não contava com Tahlberg, entretanto falecido, mas sim com Louis B. Mayer a acumular as funções de director de produção e chefe dos estúdio, recebendo um vencimento chorudo para a época. A entrada em cena de Mayer, após ter procurado que nomes como David O. Selznick tentassem substituir Irving Thalberg, algo que não aconteceu, com o possível substituto a aventurar-se por conta própria, não se revelou tão brilhante como este certamente esperava. No entanto, ainda vamos assistir a vários êxitos do estúdio após a sua morte, mantendo-se também as adaptações de livros e peças de teatro. Veja-se The Citadel (1938), adaptado da obra literária homónima de A. J. Cronin (realizado por King Vidor e produzido por Victor Saville); The Wizard of Oz que adaptava o livro de L. Frank Baum; Pride and Prejudice (1940) de Robert Z. Leonard foi baseado na obra homónima de Jane Austen; The Philadelphia Story foi baseado numa peça de teatro; The Three Musketeers (1948) de George Sidney (baseado na obra de Alexandre Dumas); Little Women

(1949) de Mervyn LeRoy (baseado no livro de Louisa May Alcott); Madame Bovary (1949) de Vincente Minnelli (baseado no livro de Gustave Flaubert), ou seja, existiu uma procura em continuar o trabalho de Thalberg, embora nem sempre com o mesmo sucesso. A perda de Thalberg foi enorme para o estúdio, tanto que, em 1948, Dore Schary foi contratado para director de produção, cargo que ocupou até 1953, data em que substituiria Louis B. Mayer, após o estúdio ter demitido o último do cargo devido a um declínio dos lucros. Mayer viria a falecer em 1957 de leucemia, curiosamente, no primeiro ano em que o estúdio daria prejuízo. Até lá teríamos vários musicais, a entrada em cena de nomes como Frank Sinatra no estúdio, com o cantor a integrar o elenco principal de It Happened in Brooklyn (1947), The Kissing Bandit (1948), Take Me Out to the Ball Game (1949), On the Town (1949), Guys and Dolls (1955), entre outros. Os anos 40 foram também marcados pela II Guerra Mundial e pelos filmes com temáticas relacionadas com o conflito, sendo que o próprio Governo dos EUA fomentava as obras favoráveis à política vigente, a ponto de ter sido criado o United States Office of War Information (OWI) em 1942, um organismo que iria perdurar até 1945 (sendo que durante a Guerra Fria assistiu-se também a uma influência promiscua entre a cultura e política). Um dos poucos exemplos dos filmes de pendor antiNazi antes dos EUA entrarem no conflito é The Mortal Storm (1940) de 17


Frank Borzage, protagonizado por James Stewart e Margaret Sullavan, com o protagonista a interpretar um indivíduo que se recusa a juntar aos nazis, apaixonando-se por uma não ariana. Outro desses exemplos no interior da MGM é Song of Russia, um filme realizado por Gregory Rattoff e lançado originalmente a 10 de Fevereiro de 1944, que representava a Rússia como um local associado à liberdade, tendo como protagonista um maestro dos EUA (Robert Taylor) que vai à Rússia em trabalho e acaba por se apaixonar por Nadya Stepanova (Susan Peters), uma bailarina soviética. Esta obra foi mais tarde utilizada como um exemplo da influência comunista em Hollywood, embora também espelhe uma procura em mostrar uma rivalidade distinta de um aliado no conflito. Neste contexto encontramos também Nazi Agent (1942), realizado por Jules Dassin e protagonizado por Conrad Veidt, que interpretava gémeos, um leal aos EUA, outro leal à Alemanha Nazi. Outro dos filmes reveladores desse esforço de Guerra foi Mrs. Miniver, realizado por William Wyller que procurava apresentar uma versão menos luxuosa do quotidiano dos britânicos, procurando sensibilizar o público para os sacrifícios efectuados durante a II Guerra Mundial. Temos ainda casos como o de Above Suspicion (1943) de Richard Thorpe, protagonizado por Joan Crawford e Fred MacMurray, com estes a interpretarem um casal que espia para os Serviços Secretos Britânicos quando viaja em Lua de Mel para a Europa, procurando descobrir informações sobre os nazis.

Nos anos 40 (na MGM), temos ainda outras obras que lidam com temáticas relacionadas com a Guerra, tais como The Bugle Sounds (1942) de S. Sylvan Simon (sobre um sargento que se recusava a trocar os cavalos pelos tanques), The Man From Down Under (1943) de Robert Z. Leonard (no caso, os órfãos de Guerra), Salute to the Marines (1943) de S. Sylvan Simon, See Here, Private Hargrove (1944) de Wesley Ruggles e Tay Garnett, What Next, Corporal Hargrove? (1945) de Richard Thorpe, Cry "Havoc" (1943) de Richard Thorpe (sobre as enfermeiras de Guerra), The Cross of Lorraine (1943) de Tay Garnett, Thirty Seconds Over Tokyo (1944) de Melvyn LeRoy, entre outros. Vale ainda a pena realçar They Were Expendable, um filme realizado por John Ford para a MGM, tendo como protagonistas os actores John Wayne e Robert Montgomery. O enredo desenrola-se em 1941 e acompanha os tenentes John Brickley e Rusty Ryan, dois indivíduos que dão instrução às equipas dos novos torpedeiros da Marinha dos Estados Unidos da América estacionados no Pacífico. Quando chega a notícia do ataque japonês a Pearl Harbour, John e Rusty recebem ordens para rumar às Filipinas. O filme é visto como um tributo à Marinha, sendo bastante fruto do seu tempo, ou não tivesse sido lançado a 19 de Dezembro de 1945. Os anos 40 foram também pródigos nos filmes de comédia, tais como Woman of the Year (1942), realizado por George Stevens, sendo o primeiro filme (em nove colaborações) protagonizado pelo casal Katharine Hepburn e Spencer 18


Harem (1944), Abott and Costello in Hollywood (1945). Temos ainda os westerns, tais como Wyoming (1940) de Richard Thorpe, Billy the Kid (1941) de David Miller, entre outros. Nesta década assistimos também a outras estrelas a sobressaírem na MGM, tais como Walter Pidgeon, Van Johnson, Hedy Lamarr, Mickey Rooney, Van Heflin, embora no pós-Guerra o estúdio vá perdendo algum destaque. Vários factores contribuíram para este decréscimo do estúdio, tais como alguma falta de criatividade e a libertação de algumas estrelas, a difusão e popularidade da televisão e até o caso United States vs. Paramount Pictures, Inc. (1948), com este último a resultar numa das maiores pancadas no studio system. Este terminava com o facto dos estúdios possuírem cadeias de cinema, algo que limitava as obras exibidas e provocava concorrência desleal, visto que não permitia a ascensão de pequenos estúdios. Ao mesmo tempo, esta medida transformava cada filme num investimento de risco, quer para o estúdio, quer para o exibidor, não existindo uma solidariedade e procura de apostar na exibição de projectos quando estes prometiam ser mal sucedidos. Nos anos 30 e 40, assistíamos a este domínio do studio system, em particular, dos Big Five (20th Century Fox, MGM, Paramount, Warner Bros, RKO Radio), sendo seguidos de (na época) três estúdios mais pequenos, a Columbia, Universal e United Artists, um panorama que mudou com esta decisão do tribunal, mas também com o contexto do final da II

Tracy, uma comédia de sucesso, tal como seria o sexto filme estrelado por ambos, Adam's Rib, realizado por George Cukor e lançado em 1949. Tracy protagonizaria ainda obras como Dr. Jekyll & Mr. Hyde (1941), ao lado de Ingrid Bergman (que protagonizaria ainda nestes anos, na MGM, obras como Gaslight, ao lado de Charles Boyer). A década de 40 foi ainda marcada pelo continuar da saga dos filmes de "Andy Hardy", protagonizada por Mickey Rooney, um dos actores em destaque neste período. A história acompanhava a família Hardy, que vivia na cidade ficcional de Carvel, em Idaho, representando um conjunto de ideais de tolerância e fraternidade que representavam a visão idealizada que Louis B. Mayer tinha dos EUA. De salientar que Judy Garland entrou em três filmes da série, nomeadamente Love Finds Andy Hardy (1938), Andy Hardy Meets Debutante (1940) e Life Begins for Andy Hardy (1941). Outra das comédias de sucesso do estúdio foi The Philadelphia Story, estreada em 1940, o mesmo ano de The Shop Around the Corner de Ernst Lubitsch, que contava com James Stewart e Margaret Sullivan como protagonistas. Nesta mesma década, o estúdio lançou também Go West (1940) e The Big Store (1941), ambos protagonizados pelos lendários irmãos Marx (que já tinham contado na MGM com A Night at the Opera em 1935, A Day at the Races em 1937, e At the Circus em 1939). Os anos 40 trazem também os únicos três filmes dos comediantes Abbot e Costello na MGM, nomeadamente Rio Rita (1942), Lost in a 19


Guerra Mundial. Se o início do conflito trouxe aos estúdios o problema de vários mercados internacionais se fecharem, o seu final trouxe uma mudança de mentalidades e até de criatividade na MGM, um estúdio que até então tinha conseguido dominar o mercado norte-americano, quer pelas suas estrelas, quer pelas suas obras com notórios valores de produção. Hoje em dia é algo raro um actor ligar-se contratualmente a um estúdio, com rara excepção de franquias como os filmes de super-heróis, onde os actores assinam muitas das vezes contratos para mais do que uma obra, embora não exista um vínculo para apenas trabalharem num estúdio. Nos anos 20, 30 e 40 era bastante comum associarmos actores a estúdios. Veja-se por exemplo James Cagney, George Raft, Bette Davis e Humphrey Bogart na Warner Bros. No caso da MGM o número de actores, actrizes e realizadores talentosos que tiveram contrato com o estúdio foi verdadeiramente impressionante, encontrando-se nesta lista nomes como Greta Garbo (toda a sua carreira nos EUA foi na MGM), Katharine Hepburn, James Stewart, Clark Gable, Joan Crawford, Myrna Loy, John Barrymore, Lionel Barrymore, os Irmãos Marx, entre muitos outros. Vários factores contribuiriam para o declínio que a MGM conheceria nos anos 50, o seu canto do cisne. Não é que o estúdio tenha deixado de procurar inovar. Foi durante a presidência e a produção de Schary que estreou nas salas de cinema Arena (1953), o primeiro filme em 3D da MGM, um western realizado por

Richard Fleischer e protagonizado por Gig Young. O estúdio continuaria ainda com as adaptações das obras literárias, tais como King Solomon's Mines (1950) de Compton Bennett e Andrew Morton, Quo Vadis (1951) um épico realizado por Melvyn LeRoy, Ivanhoe (1952) de Richard Thorpe, Julius Caesar (1953) que adapta a peça de William Shakespeare, Cat on a Hot Tin Roof (1958), entre outros. Temos ainda nos anos 50 o grande êxito dos musicais, tais como An American in Paris (1951) de Vincente Minnelli, Royal Wedding (1951) de Stanley Donen, Seven Brides for Seven Brothers (1954) de Stanley Donen, Singin' in the Rain (1952) de Gene Kelly e Stanley Donen, The Band Wagon (1953) de Vincente Minnelli, entre outros. Diga-se que não podemos descurar nestes musicais o papel de Arthur Freed, um produtor que liderou uma das unidades de produção MGM, tendo um papel fundamental em alguns dos musicais de sucesso do estúdio, entre os quais as obras já citadas na década de 50, mas também For Me and My Gal (1942) de Busby Berkeley, Best Foot Forward (1943) de Edward Buzzell, Meet Me in St. Louis (1944) de Vincente Minnelli, Easter Parade (1948) de Charles Walters (com a presença do mítico Fred Astaire), On the Town (1949) de Gene Kelly e Stanley Donen. No entanto, nem todos foram bem sucedidos nas bilheteiras, entre os quais, The Band Wagon (1953) de Vincente Minnelli, que custou $2,873,000 dólares e resultou num prejuízo de $1,147,000 dólares. Musicais como Brigadoon (1954), It's Always Fair Weather (1955), Silk 20


Stocking (1957) deram todos prejuízo superior a 1,3 milhões de dólares, sendo que Invitation to the Dance (1957) teve um prejuízo a rondar os 2,5 milhões de dólares, algo que explica o declínio deste género no final dos anos 50 no estúdio. A 15 de Maio de 1958, estreava Gigi, realizado por Vincente Minnelli e produzido por Arthur Freed (quem mais poderia ser?), que se revelou um dos últimos grandes êxitos do género a nível de crítica e público na MGM. Em 1953 temos a estreia de Battle Circus, o único filme protagonizado por Humphrey Bogart na MGM, uma obra de menor impacto da carreira do actor, embora não deixe de ser mais uma estrela que passou pelo menos por um filme do estúdio. Desde gangsters a detectives dos filmes noir, a carreira de Bogart foi marcada por vários sucessos, sendo que a própria MGM também não ficou imune aos noir. A 23 de Maio de 1950 estreava The Asphalt Jungle, um dos filmes mais marcantes deste subgénero. Este conta com a realização John Huston, cineasta que não era estreante no subgénero, tendo realizado o magnífico The Maltese Falcon, um marcante noir protagonizado por Humphrey Bogart. Entre os filmes noir lançados pelo estúdio encontram-se obras como Force of Evil (1948), realizado por Abraham Polonsky e protagonizado por John Garfield, Bewitched (1945) de Arch Oboler, o marcante The Postman Always Ring Twice (1946) de Tay Garnett, Lady in the Lake (1947) de Robert Montgomery, High Wall (1947) de Curtis Bernhardt,

Act of Violence (1948) de Fred Zinnemann, The Bribe (1949) de Robert Z. Leonard, entre outros que foram lançados ao longo da década de 50. Temos ainda os grandes épicos, espectáculos cinematográficos grandiosos prontos a combater a concorrência que a televisão estava (e continua) a efectuar ao grande ecrã. É nesse sentido que vemos estrearem filmes como Quo Vadis (1951), Ben-Hur (1959), King of Kings (1961), Doctor Zhivago (1965), entre outros, que acompanharam já uma fase algo descendente da MGM, que perdeu o fulgor da "era Tahlberg" e de Louis B. Mayer. Neste anos 60, a MGM contou com alguns sucessos para além dos filmes citados, tais como The Dirty Dozen (1967) de Robert Aldrich, Point Blank (1967) de John Boorman, 2001: A Space Odyssey (1968) de Stanley Kubrick. Temos ainda alguns filmes que merecem ser realçados, tais como Cimarron (1960) um western realizado por Anthony Mann; Viva Las Vegas (1964) protagonizado por Elis Presley; The Rounders (1965), uma comédia protagonizada por Henry Fonda e Glenn Ford; um dos clássicos sobre Fórmula 1, Grand Prix (1966) de John Frankenheimer; The Comedians que conta com um elenco de luxo onde não faltam Elizabeth Taylor, Richard Burton, Alec Guiness e Peter Ustinov; Where Eagles Dare de Brian G. Hutton (1969), um filme de guerra que contava no elenco com Richard Burton e Clint Eastwood, entre outros, embora o prestígio do estúdio e os seus sucessos marcantes não surgissem com a mesma intensidade de outrora. 21


Não podemos ainda ficar alheios ao papel da televisão, algo notório pelo aumento brutal de canais televisivos na década de 50, mas também de televisores vendidos, calculando-se que entre 1950 e 1959 não houve um único ano no qual se vendesse menos de 5 milhões de televisores (7,3 milhões em 1950), uma situação reveladora dessa situação, conduzindo a que os estúdios procurassem também incrementar as suas receitas nas bilheteiras externas. Diga-se que a convulsão da MGM não nasceu nos anos 60/70, remetendo desde logo para os anos 50. Em 1954, em virtude da decisão do caso United States v. Paramount Pictures, Inc., a Loews, Inc. desistiu do controlo da MGM. Em 1956 Benny Thau substitui Dore Schary, tendo herdado uma situação algo caótica. Veja-se que, dos 20 filmes produzidos pela MGM em 1956-57, 19 perderam dinheiro, uma situação que foi alterada em 1957, com o estúdio a voltar a dar lucro. Em 1956, Joseph Vogel substituiu Arthur Loew na presidência da Loew's. Entre 1958 e 1962, Sol C. Siegel assumiu o cargo de vice-presidente e de responsável pela produção da MGM, tendo em 1962 abandonado os mesmos. Ou seja, nota-se neste dançar de cadeiras alguma instabilidade, juntando-se ainda a entrada em cena de Kirk Kerkorian, um empresário ligado ao ramo da hotelaria e companhias aéreas, que adquiriu 40% das acções da MGM em 1969, procurando associar o prestígio do nome da Metro-Goldwyn-Mayer aos investimentos que pretendia efectuar. Nesse sentido, assistimos à chegada de James T. Aubrey Jr. para chefe

de produção, algo que culmina numa redução a nível de produção cinematográfica e aumento da distribuição de filmes independentes. Aubrey Jr. cancelaria 15 projectos que se encontravam em andamento, tendo a alcunha pouco simpática de "the smiling Cobra", enquanto Kerkorian vendia bens associados ao estúdio e investia no MGM Grand Hotel e num Casino em Las Vegas, associando a marca a outros ramos que não o cinema e a televisão. Esta situação é paradigmaticamente visível quando em 1979 o estúdio atinge 193 milhões de dólares em receitas de obras cinematográficas e 298 milhões de dólares oriundos dos negócios de hotelaria e jogo, algo revelador de onde estava o investimento e interesse de Kerkorian e companhia. Assistimos ainda a um reduzir da produção cinematográfica, deixando de lado a distribuição de filmes ao redor do Mundo, tendo na United Artists uma parceria estratégica. A 30 de Maio de 1980, a MGM é dividida: a parte cinematográfica é incorporada na Metro-Goldwyn-Mayer Co., enquanto a Metro-Goldwyn-Mayer Inc. é renomeada MGM Grand Hotels, Inc. Esta medida visava também uma nova aposta na produção cinematográfica, embora o estúdio contasse com problemas como a inflação, mas também uma certa desorganização na distribuição, algo que conduziu a um aumentar dos empréstimos para fazer frente aos problemas. Perante a falência da United Artists, após o desastre de Heaven's Gate, a MGM decidiu adquirir o estúdio, pedindo um empréstimo de 250 milhões de 22


dólares. Esta situação permitiu à MGM ficar com uma empresa capaz de cuidar da distribuição, mas também um aumentar das dívidas e um incrementar do catálogo dos filmes. A United Artists é uma empresa conhecida como a "companhia criada pelas estrelas", tendo sido criada por Charlie Chaplin, Mary Pickford, Douglas Fairbanks e D.W. Griffith, tendo proporcionado à MGM os filmes da saga The Pink Panther, Rocky, James Bond, para além de obras como Annie Hall, The Apartment, The West Side Story, entre outras. Para termos bem uma noção de como foi este negócio para as finanças da MGM, vale a pena salientar que o estúdio em 1980 tinha uma dívida a longo termo de 60 milhões de dólares, sendo que em 1981 esta ascendia à módica quantia de 685 milhões de dólares. O investimento era de risco e fazia prever que o estúdio conseguiria lucrar com o investimento nessas produções e a longo prazo enfrentar a dívida, algo que não se iria verificar. Veja-se obras como Pennies from Heaven (1981), Whose Life Is It Anyway? (1981), Yes, Giorgio (1982), Brainstorm (1982), entre outras, que não tiveram os resultados esperados. Essa situação fica evidente em números como os apresentados entre Dezembro de 1980 e Setembro de 1981, onde a MGM lançaria 18 filmes que custariam 210 milhões de dólares e traria de receitas de bilheteira 115 milhões de dólares (números apresentados no livro History of the American Cinema Vol.10 - A New Pot of Gold; Hollywood Under

the Electronic Rainbow, 1980-1989). Entre 1981 e 1986 as empresas passaram a utilizar a nomenclatura MGM/UA Entertainment Co., com obras como Rocky III (1982), WarGames (1983), Red Dawn (1984), Rain Man (1988), a serem desenvolvidas pela United Artists, mas a constarem no catálogo da MGM. Diga-se que a United Artists não foi caso único de produtoras adquiridas pela MGM. A 11 de Abril de 1997, a MGM adquiriu as subsidiárias da Metromedia, tais como a Orion Pictures, The Samuel Goldwyn Company e Motion Picture Corporation of America, por valores superiores a 570 milhões de dólares, aumentando ainda mais o seu pecúlio de filmes. Entre os filmes que passaram a constar no catálogo da MGM devido a estas aquisições encontram-se os filmes da saga James Bond, a saga The Pink Panther, a "Trilogia dos Dólares" de Sergio Leone, composta por A Fistful of Dollars (1964), For a Few Dollars More (1965) e The Good, the Bad and the Ugly (1966), The Magnificent Seven (1960), Dressed to Kill (1980), Valmont (1981), Runaway Train (1985), Platoon (1986), Dance With Wolves (1990), The Silence of the Lambs (1991), entre outros. Estas obras visavam aumentar o catálogo da MGM, embora o estúdio viesse posteriormente a conhecer tempos bem complicados, lutando nos dias de hoje para se reerguer. A United Artists ainda viria a conhecer alguns sucessos ao longo da década de 80, entre os quais Clash of the Titans (1981) de Desmond Davis, Tarzan, the Ape Man (1981) de John Derek, Poltergeist (1982) de 23


Tobe Hooper, embora nenhum ocupasse o primeiro lugar de arrecadação, com a MGM a ser o único estúdio a não conseguir ter um blockbuster de sucesso nos anos 80. Isso não implica que não tivessem existido alguns lançamentos dignos de nota, tais como Fame (1980) de Alan Parker, The Hunger (1983) de Tony Scott, Moonstruck (1987) de Norman Jewison, Spaceballs (1987) de Mel Brooks, entre outros. Os problemas internos do estúdio conduziram a que a MGM/UA não se conseguisse impor como o gigante que fora outrora, tendo muitas vezes as suas obras distribuídas em circuitos mais limitados, para além de ter perdido algum terreno no investimento nos canais por cabo. A 7 de Agosto de 1985, Ted Turner efectuou uma proposta de compra da MGM na ordem dos 1,5 mil milhões de dólares, um negócio que ficou concluído no ano seguinte, tendo sido mais uma "estaca" na MGM. Turner vendeu pouco depois a United Artists a Kerkorian, sendo que as dívidas das suas empresas conduziram a que este vendesse os activos de produção e distribuição da MGM para a United Artists, tendo vendido o terreno da MGM para LorimarTelepictures. No entanto, Turner manteve o arquivo da MGM pré-1986, um negócio lucrativo para as suas estações televisivas. Em 1990, Giancarlo Parretti, da Pathé Communications Corp., adquiriu a MGM, tendo o estúdio voltado às mãos de Kerkorian em 1996, sendo que este viria a vender as suas acções a um consórcio liderado pela Sony em 2006. É neste contexto que encontramos o estúdio a coleccionar

fracassos de bilheteira nos anos 90 e 2000 (a ajudar ao aumentar da dívida) e êxitos a surgirem de forma moderada. Entre os sucessos encontramos Species (1995), The Thomas Crown Affair (1999), Stigmata (1999), Legally Blonde (2001), Red Dragon (2002), Rocky Balboa (2006, em co-produção com a Columbia Pictures, Revolution Studios e Chartoff/ Winkler Productions), GoldenEye (1995), Tomorrow Never Dies (1997), The World is Not Enough (1999), Die Another Day (2002), Casino Royale (2006), Quantum of Solace (2008), sendo que os seis últimos casos foram produzidos pela Danjac, Inc., Eon Productions e United Artists. No meio de tanta atribulação, a MGM continuava a produzir filmes, mas se Louis B. Mayer fosse vivo provavelmente ficaria desolado pelo estado em que se transformou a empresa que serviu. As mudanças afectaram também outros estúdios, que atraíram investimentos estrangeiros e ligaram-se a outras empresas, mas o gigante não se conseguiu aguentar com tanto rombo. Com mais de quatro mil títulos no seu catálogo, a MGM é um dos grandes estúdios de Hollywood. No entanto, a sua história dourada de outrora nem sempre tem encontrado correspondência no Século XXI, algo visível quando a 3 de Novembro de 2010 a MGM declarou falência, com o tribunal a aprovar o pedido de concordata e plano de reorganização financeiro do estúdio, tendo em vista efectuar uma reestruturação da sua dívida, avaliada em valores superiores a 4 milhares de milhões de dólares. 24


A 20 de Dezembro, Gary Barber e Roger Birnbaum da Spyglass assumiram as funções de co-directores e co-CEO's, terminando com uma indefinição que chegou a colocar em perigo o desenvolvimento de vários filmes, embora a estabilidade não seja propriamente a melhor expressão para caracterizar o estado em que o estúdio se encontra nos dias de hoje. Este período atribulado justifica um ano de 2009 com apenas três obras em co-produção, The Pink Panther 2, The Taking of Pelham 123 e Fame, uma em 2010, nomeadamente Hot Tub Time Machine, duas em 2011, como foram os casos de Zookeeper e The Girl With the Dragon Tattoo. Entre 2012 e 2013 estrearam mais oito filmes, todos em co-produção como tem sido a nova tendência do estúdio, destacando-se Skyfall e os dois mais recentes filmes da trilogia de The Hobbit. Curiosamente, ou talvez não, ambos os filmes fazem parte de sagas, sendo que a de Skyfall se insira numa franquia com grande tradição no estúdio, a de James Bond. É exactamente sobre as sagas populares da MGM que se vai centrar o próximo subcapítulo.

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AGENTES SECRETOS, POUCO SECRETOS, DETECTIVES, PUGILISTAS E CANÍDEOS - AS SAGAS POPULARES DA MGM: Ao longo da sua história a MGM conseguiu criar um conjunto de sagas de sucesso. Algumas foram aproveitadas até ficarem desgastadas, outras continuam a mostrar uma enorme vitalidade como a saga de James Bond. Inspirado no clássico personagem criado por Ian Fleming, a saga de James Bond já conta com vinte e três filmes oficiais e mais um a caminho, com o herói a já ter sido interpretado ao longo da sua história por nomes como Sean Connery, Roger Moore, George Lazenby, Thimoty Dalton, Pierce Brosnan e Daniel Craig. Entre estes elementos, Connery protagonizou seis filmes da saga oficial, Roger Moore protagonizou sete, Pierce Brosnan protagonizou quatro, Daniel Craig também vai a caminho do quarto, Thimolty Dalton protagonizou dois, enquanto George Lazenby ficou como "patinho feio" da saga, tendo protagonizado apenas um filme. A saga cinematográfica começou em 1962 com Dr. No, tendo sido realizado por Terence Young e protagonizado por Sean Connery, tendo granjeado um enorme sucesso. Para além de Young, passaram pela franquia realizadores como Guy Hamilton, Lewis Gilbert, Martin Campbell, Sam Mendes, entre outros. O mais recente filme da saga a estrear nas salas de cinema foi Skyfall, exactamente realizado por Mendes, que contou com um orçamento estrondoso (200 milhões de

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intitulado The Battle of Five Armies, promete dar bastante lucro à produtora. As sagas de sucesso da MGM não se ficam por James Bond e The Thin Man. Outra das sagas de sucesso foi a conhecida mundialmente Lassie, a famosa Rough Collie criada por Eric Knight, que contou com vários filmes, séries, programas de rádio, entre outros materiais. No caso da MGM, a cadela Lassie protagonizou sete longas-metragens entre as décadas de 40 e 50: falamos de Lassie Come Home (1943), Son of Lassie (1945), Courage of Lassie (1946), Hills of Home (1948), The Sun Comes Up (1949), Challenge to Lassie (1950), The Painted Hills (1951). Lassie fez sucesso, tal como a saga de Andy Hardy, um personagem interpretado por Mickey Rooney ao longo de 16 longas-metragens e uma curta-metragem, entre 1937 (A Family Affair) e 1958 (Andy Hardy Comes Home). Temos ainda a saga de Maisie Ravier, uma personagem interpretada por Ann Sothern ao longo de dez filmes lançados entre 1939 e 1947, contando ainda com um programa de rádio durante vários anos. As obras em questão são Maisie (1939), Congo Maisie (1940), Gold Rush Maisie (1940), Maisie Was a Lady (1941), Ringside Maisie (1941), Maisie Gets Her Man (1942), Swing Shift Maisie (1943), Maisie Goes to Reno (1944), Up Goes Maisie (1946) e Undercover Maisie (1947). As sagas de sucesso não se ficam por aqui, algo paradigmaticamente demonstrado por Rocky, que passou a pertencer ao catálogo da MGM após ter adquirido a United Artists (algo que aconteceu também com

dólares) e lucros ainda mais elevados: cerca de 304,2 milhões de dólares nos EUA e c. 804,2 milhões de dólares no resto do Mundo, sendo um dos filmes mais lucrativos da saga (encontra-se em primeiro nos EUA na lista do Box Office Mojo, mas os valores são enganadores, pois filmes como Goldfinger conseguiram números superiores se ajustarmos os valores à realidade de hoje). Outra saga de sucesso da MGM foi The Thin Man. Tal como James Bond, também a saga The Thin Man foi inicialmente baseada numa série literária, no caso, escrita por Dashiell Hammett, tendo em William Powell e Myrna Loy uma dupla de protagonistas carismática e no cão Astra uma mascote de sucesso. Estes interpretam um casal meio boémio, com Powell a interpretar Nick Charles, um detective beberrão com enorme habilidade para a investigação, e Loy a dar vida à sua esposa Nora, que se envolve regularmente nos casos do marido. A saga contou com seis filmes, quatro deles realizados por W.S. Van Dyke, sendo que a primeira obra recebeu uma aceitação generalizada da crítica e do público, tendo sido nomeada para o Oscar de Melhor Filme em 1934, para além de constar na respeitável lista de Grandes Filmes do não menos respeitável Roger Ebert. Quem também promete transformar-se numa das sagas mais bem sucedidas do estúdio é The Hobbit, cujo primeiro e segundo volume da trilogia realizada por Peter Jackson alcançaram números bastante generosos nas bilheteiras, sendo que o terceiro volume, 27


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James Bond e The Pink Panther). Personagem marcante da carreira de Sylvester Stallone, Rocky contou com seis obras cinematográficas, o Oscar de Melhor Filme para a primeira obra da saga e uma legião de fãs. Quanto a The Pink Panther, outra das sagas da United Artists que passou para a alçada da MGM, conta com onze filmes, dos quais os mais bem sucedidos foram protagonizados pelo inimitável Peter Sellers e realizados por Blake Edwards. Vale ainda a pena realçar que os dois últimos filmes da saga The Pink Panther (2006) e The Pink Panther 2 (2009) foram protagonizados por Steve Martin, resultando numa procura de fazer renascer a franquia, embora não tenha sido lá muito bem sucedida neste quesito. Esta franquia contou ainda com a primeira aparição da famosa Pantera Cor de Rosa, uma personagem de animação criada pela DePatie-Freleng Enterprises, que surgiu na sequência dos créditos iniciais de The Pink Panther. Esta viria ter várias curtas-metragens produzidas pela United Artists e reunidas no The Pink Panther Show, para além de Pink Panther and Pals, uma série de animação de 2010 que não atingiu o sucesso das curtas. Vale a pena realçar que esta foi uma co-produção da MGM que conta com uma longa tradição no cinema de animação, tendo na criação de Tom & Jerry e Droopy alguns dos seus pontos altos, para além de nos finais dos anos 80 ter ficado com os direitos de All Dogs Go to the Heaven, tendo desenvolvido duas sequelas (uma para home video) e uma série de animação desta agradável franquia. 29


ainda com uma série de personagens populares, tais como o cão Spike e o seu filho Tyke; Nibbles, um pequeno rato cinzento que por vezes surge como sobrinho de Jerry; Muscles, o primo musculado de Jerry, entre outros. Entre 1940 e 1958, Tom & Jerry estiveram a cargo de William Hanna e Joseph Barbera, que faziam parte da unidade de Rudolf Ising da MGM Cartoon Studio, uma divisão fundada pelo lendário Fred Quinby e encerrada em 1957. William Hanna e Joseph Barbera seguiram caminhos separados, enquanto os personagens ganharam nova vida na Era Gene Deitch, um cineasta que realizou trinta curtas de Tom & Jerry que a MGM encomendou à Rembrandt Films. Outro dos períodos mais profícuos dos personagens ocorreu entre 1963 a 1967, a era de Chuck Jones. Este tinha sido despedido da Warner Bros. após vários anos no estúdio, tendo decidido fundar a sua própria companhia ao lado de Les Goldman, a Sib Tower 12 Productions, integrada posteriormente pela MGM e renomeada MGM Animation/Visual Arts, uma divisão que funcionaria como substituta da Metro-GoldwynMayer Cartoon Studio até 1970, data do seu encerramento. Ao todo Jones produziu mais trinta e quatro curtas de Tom & Jerry, imbuindo as mesmas de um estilo próprio. Em 1986, Tom e Jerry conheceram uma mudança relevante que dita muito da sua produção nos dias de hoje. Em 1986, a MGM foi adquirida por Ted Turner, que posteriormente venderia a empresa, mas manteria os direitos de Tom & Jerry, que passariam nas

ENTRE O GATO E O RATO, CÃES MOLENGAS E RAFEIROS QUE VÃO PARA O CÉU, MGM E O CINEMA DE ANIMAÇÃO: Diz o ditado popular que ser criança e nunca ter visto os desenhos de Tom & Jerry é como ir a Roma e não ver o Papa. Não é bem assim. Digase que este ditado nem existe, mas Tom & Jerry, os icónicos personagens criados por William Hanna e Joseph Barbera, maravilha(ra)m milhares de miúdos e graúdos desde a sua criação, com as constantes repetições nos canais televisivos por cabo e a presença dos DVDs a contribuírem para essa situação. Tom é um gato com tons meio azulados, que procura constantemente caçar Jerry, um rato espertalhão, com boa parte das curtas a envolver este jogo entre o gato e o rato, com o segundo a conseguir levar quase sempre a melhor. Criados por William Hanna e Joseph Barbera, estes personagens protagonizaram mais de cem curtas, com sete a vencerem o Oscar para Melhor Curta-Metragem de Animação, entre as quais The Yankee Doodle Mouse (1943), Mouse Trouble (1944), Quiet Please! (1945), The Cat Concerto (1946), The Little Orphan (1948), The Two Mouseketeers (1952), Johann Mouse (1953). Por sua vez, Puss Gets the Boot (1940), The Night Before Christmas (1941), Dr. Jekyll and Mr. Mouse (1947), Hatch Up Your Troubles (1949), Jerry's Cousin (1950), Touché, Pussy Cat! (1954) foram nomeados para os Oscars na mesma categoria, mas não levaram para casa a famoso prémio. A série contava

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estações de Turner, tais como TBS, TNT, Cartoon Network, Boomerang, entre outros. Esta nova fase, já fora da MGM, conduziria a um filme de animação e a várias obras directas para o mercado de home video, a última das quais Tom and Jerry's Giant Adventure (2013), para além de Tom and Jerry Tales, uma série de animação exibida originalmente na Warner Bros Animation, que contou com duas temporadas e 26 episódios (com 78 segmentos). Embora menos popular, mas nem por isso menos memorável, Droopy foi outro dos personagens animados que deixou marca na MGM. Criado pelo genial Tex Avery, um dos nomes distintos que trabalhou na MGM Cartoon Studio, Droopy surgiu pela primeira vez na curta-metragem Dumb-Hounded a 20 de Março de 1943. Este é um basset hound com forma algo antropomórfica, largas bochechas e aparentemente algo molengão, cujas primeiras falas junto dos espectadores foram "Hello all you happy people ... you know what? I'm the hero", num tom algo deprimido e longe de grande entusiasmo, enquanto procura capturar o seu antagonista, um evadido da prisão. Apesar da sua aparência algo frágil, Droopy tem uma enorme perspicácia e até força, quer seja como um cavaleiro, quer como agente da autoridade, este consegue desembaraçar-se das mais variadas situações. Este apareceu posteriormente numa série de curtas da Filmation, como parte do novo programa de Tom & Jerry, sendo que em 1993 contou com uma série a solo Droopy, Master Detective, já sob a alçada da Turner Entertainment e

da Hanna-Barbera. Estes foram dois dos exemplos mais bem sucedidos da animação da MGM, que iniciou a sua incursão no género, ainda que inicialmente na distribuição com Flip the Frog, um sapo verde criado por Ub Iwerks, que teve a sua estreia a 16 de Agosto de 1930, com Fiddesticks, a primeira curta-metragem de animação sonora e desenvolvida no processo de technicolor de duas cores. Flip protagonizaria um conjunto avultado de curtas entre 1930 e 1933, tendo a produção das mesmas sido cancelada neste último ano devido ao seu fracasso junto do público. O próximo projecto de animação de Ub Iwerks foi Willie Whopper, um personagem que protagonizou uma série de curtas entre 1933 e 1934. Com o final do contrato de distribuição dos projectos de Ub Iwerks, a Metro-Goldwyn-Mayer contratou a dupla Hugh Harman e Rudolf Ising, que tinha recentemente saído da Warner Bros. e trazia consigo Bosko, um personagem cujos direitos pertenciam à dupla, embora já tivesse aparecido em algumas curtas de ambos na Warner. A Harman-Ising Productions desenvolveu entre 1934 e 1937 (Little Ol' Bosko In Bagdad, a última das curtas, foi lançada em 1938) as Happy Melodies, para a MGM, uma espécie de concorrência para as Merrie Melodies da Warner Bros. Perante as constantes derrapagens no orçamento, a MGM decidiu prescindir dos serviços da Harman-Ising Productions, tendo fundado a Metro-Goldwyn-Mayer Cartoon Studio, colocando Fred Quimby, 31


um indivíduo sem experiência em obras do género, como produtor e responsável pela criação do departamento de animação. Nomes como William Hanna e Bob Allen foram apontados como directores, sendo que Carmen Maxwell foi contratado como manager de produção. Sem matéria-prima nas suas fileiras, a MGM foi garimpar a outros lados e contratou Friz Freleng à Leon Schlesinger Productions, Joseph Barbera à Terrytoons, entre outros. Apesar do talento e da ambição, as primeiras curtas de animação desenvolvidas a solo pela MGM foram um fracasso, nomeadamente Captain and the Kids, inspirado nos personagens de Katzenjammer Kids, um conjunto de tiras de animação da autoria de Rudolph Dirks. Foram produzidas quinze curtas de Captain and the Kids (duas em technicolor e treze a preto e branco), sendo que este arranque em falso conduziu a que a MGM recontratasse os serviços de Hugh Harman e Rudolf Ising, que criaram um dos primeiros sucessos a nível de animação do estúdio, o personagem Barney Bear. Este urso estreou-se com The Bear That Couldn't Sleep, uma curta lançada a 10 de Junho de 1939, que colocava o protagonista como um urso com várias dificuldades para começar a hibernar devido ao barulho que o rodeava. Barney Bear contou com 26 curtas, exibidas entre 1939 e 1954, embora nunca tenha atingido o sucesso dos já citados Tom & Jerry, bem como Droopy. Em 1957, a MGM decidiu fechar o seu departamento de animação. Após a Metro-

Goldwyn-Mayer Cartoon Studio e a MGM Animation/Visual Arts, a MGM criou a secção MGM Animation, onde ainda produziu All Dogs Go to the Heaven 2, bem como o terceiro filme da saga, ainda que directamente para o mercado home video, para além de uma série de televisão baseada nos personagens do filme. Entre as séries de animação, vale a pena realçar The Pink Panther e Robocop: Alpha Comando. No entanto, esta divisão nunca conheceu o fulgor produtivo da Metro-GoldwynMayer Cartoon Studio, com o estúdio a não recuperar das constantes adversidades neste quesito. As adversidades não deixam de contar com alguns fracassos e é exactamente os revezes nas bilheteiras que vamos abordar no próximo capítulo.

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à frente do seu tempo. Outro dos fracassos da MGM foi Parnell (1937), um filme protagonizado por Clarke Gable e Myrna Loy, uma das duplas de peso do estúdio. O filme foi arrasado pela crítica, sendo considerado como o pior filme do duo, tendo resultado numa perda a rondar os 637 mil dólares para o estúdio. Se em Freaks, Gable e Loy são conhecidos por boa parte dos cinéfilos e conheceram novas leituras ao longo dos tempos, já Yes, Giorgio (1982) continua tão escondido como aquando da sua estreia. Protagonizado por Luciano Pavarotti, como um tenor que perde a sua voz enquanto se encontra nos EUA e é tratado por uma especialista interpretada por Kathryn Harrold, por quem o personagem se apaixona, Yes, Giorgio recebeu um rotundo não do público: 1 milhão de dólares em receitas nos EUA, 1,4 milhões de dólares no resto do Mundo e um prejuízo de 17,6 milhões de dólares. O orçamento era de 19 milhões e o filme teve o condão de terminar com a carreira de Pavarotti como actor de cinema na sua estreia no grande ecrã. Pavarotti não foi o único elemento ligado ao mundo da música a espatifar-se por completo nas bilheteiras e a conhecer a doce solidão de ver o seu filme ser exibido em salas de cinema vazias. Veja-se Madonna com o seu Shanghai Surprise (1986), cuja maior surpresa foi para o estúdio, enquanto o realizador Jim Goddard teve de se contentar com seis nomeações para os razzies. Produzido pela MGM e pela United Artists, o filme protagonizado por Madonna e Sean Penn obteve 4,6

FLOPS PARA QUE NÃO TE QUERO Hoje um filme admirado e até considerado como uma das obras maiores de Tod Browning, Freaks foi um fracasso aquando da sua estreia, tendo sido banido durante bastante tempo do Reino Unido (um mercado importante, tendo apenas sido exibido em 1963) e visto a sua duração cortada em cerca de trinta minutos. O filme foi ainda devastado pela crítica da época (é sempre interessante verificar estes fenómenos onde o tempo altera por completa a visão sobre os filmes), algo visível em textos de pendor crítico como o de Richard Watts Jr. do New York Herald, que considerou o filme como an unhelty and generally disagreeable work. No Harrison's Reports a opinião do crítico de serviço também não foi nada meiga: "Not even the most morbidly inclined could possibly find this picture to their liking. Saying that is horrible is putting it mildly: it is revolting to the extent of turning one's stomach, and only iron constitution could withstand its effects... Anyone who considers this entertainment should be placed in the pathological ward in some hospital". A nova leitura que o filme tem nos dias de hoje é bem visível quando encontramos as palavras de Geoff Andrew na Time Out "MGM never knew what hit them with this film; they virtually disowned it, and it remained unseen in Britain until the '60s. It has now achieved deserved recognition as a masterpiece". O filme mescla elementos de drama e terror, comprovando que Browning estava muito

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contrário de filmes como At First Sight (1999), The Mod Squad (1999) e Supernova (2000). Já em pleno ano 2000, a MGM conheceria outro fracasso estrondoso: Supernova. Realizado por Walter Hill e com um elenco onde constavam elementos como James Spader, Angela Bassett, Lou Diamond Phillips e Robert Forster, Supernova perdeu cerca de 75 milhões de dólares para o estúdio. Provavelmente se James Spader tivesse encarnado o seu papel de Alan Shore o resultado poderia ser diferente, ou talvez não. 2002 trouxe outro flop em termos de bilheteiras, quando o resultado esperado seria outro, falamos de Hart's War, um filme protagonizado por Bruce Willis e Colin Farrell, que contava com a realização de Gregory Hoblit. O prejuízo foi de 62,7 milhões de dólares. Os fracassos da MGM em 2002 não se ficam por Hart's War, também Rollerball de John McTiernen gerou um prejuízo avultado, cerca de 44 milhões de dólares. Ainda em 2002, tendo sido produzido pela Lion Rock Productions e a MGM, temos Windtalkers, um filme realizado por John Woo e protagonizado por Nicolas Cage, que perdeu uma verba a rondar os 67 milhões de dólares. Ficamos assim com alguns dos grandes fracassos da MGM, aqueles filmes que os estúdios procuram evitar, mas a imprevisibilidade do público e até da qualidade do resultado final assim o ditam. No entanto, a MGM é sobretudo conhecida por um passado de sucessos e de enorme glória, e como o melhor costuma muitas das vezes ficar para o fim...

milhões de dólares globalmente, valores muito distantes dos 17 milhões de dólares do seu orçamento. Madonna cantou Don't cry for me Argentina em Evita, mas quem ficou a chorar com Shanghai Surprise foi a MGM. Pontos em comum entre Yes, Giorgio e Shanghai Surprise? A crítica e o público não apreciaram. Uma lista de desastres de bilheteira e críticas negativas não poderia ficar completa sem a presença de um mestre na área: Renny Harlin. Falamos de Cutthroat Island (1995), em Portugal A Ilha das Cabeças Cortadas, embora conste que o filme surgiu cerceado de criatividade e talento, tendo recolhido críticas negativas e revelando-se desastroso a nível de bilheteiras (e não terá contribuído de forma lá muito positiva para as carreiras dos seus protagonistas, Geena Davis e Matthew Modine). Vamos a números: cerca de 96,5 milhões de dólares de prejuízo. Quem também não colheu grandes elogios da parte da crítica e do público foi Showgirls, um filme realizado por Paul Verhoeven. Conhecido por filmes como RoboCop e Basic Instinct, Veroheven teve em Showgirls um percalço na sua carreira, embora o filme esteja longe de ser medíocre, tal como o seu resultado não foi dos mais desastrosos, com as bilheteiras internacionais a compensarem o falhanço interno. Calcula-se que o filme tenha um orçamento a rondar os 45 milhões de dólares, tendo alcançado 20,3 milhões de dólares nos EUA e 37,8 milhões de dólares no resto do Mundo. Não chegou para dar lucro (nem todas as receitas das bilheteiras vão para os estúdios), mas esteve longe de ser uma hecatombe, ao 34


milhões de dólares. Outro dos casos que pode passar despercebido é West Side Story, com o filme estreado em 1961 a ter alcançado na época 43,6 milhões de dólares (tinha um orçamento de 6 milhões), valores que hoje rondariam os 467,3 milhões de dólares. Ainda na MGM, It's a Mad, Mad, Mad, Mad World (1963) de Stanley Kramer, com um orçamento de 9,4 milhões, alcançou mais de 46,3 milhões de dólares em receitas internas. Hoje, It's a Mad, Mad, Mad, Mad World teria alcançado algo como 449,8 milhões de dólares, ocupando a 82ª posição ao redor do Mundo (o último filme da MGM a integrar o top 100 com os valores ajustados). Se analisarmos apenas os resultados internos do estúdio, sem ajustes pela inflacção, Gone With the Wind mantém o primeiro lugar do top 10, sendo que encontramos de seguida Rain Man, um filme realizado por Barry Levinson e protagonizado pela dupla formada por Tom Cruise e Dustin Hoffman. Este efectuou cerca de 172,8 milhões de dólares nos EUA e $182.000.000 ao redor do Mundo, valores que superaram largamente o orçamento de 25 milhões de dólares. Se os valores das receitas internas fossem ajustados para os dias de hoje, Rain Man teria alcançado 361,4 milhões de dólares. O terceiro lugar das receitas de bilheteiras dos filmes da MGM no território yankee encontra-se com Hannibal, com o filme realizado por Ridley Scott a alcançar 165 milhões de dólares ($351.692.268 globalmente, algo de positivo se tivermos em

FAMA, FORTUNA E GLÓRIA - OS MAIORES ÊXITOS DA MGM: Falar de MGM ao longo da sua história é também falar de êxitos de bilheteira, muitos nomeados aos Oscars e a variados prémios. Nesse quesito a MGM sobressai desde logo com Gone With the Wind (1939), uma obra cujos valores, se forem ajustados à inflação dos dias de hoje, atinge o top de filmes com maior receita de bilheteira de sempre com os seus 1.687.072.600 dólares. Os valores obtidos pelo filme produzido por David O. Selznick foram inicialmente de 198,6 milhões de dólares. Tal como em relação a Gone with the Wind, todos os valores abordados ao longo deste subcapítulo contam com o dólar como moeda, pelo que nem sempre faremos referência ao mesmo. Se os valores forem ajustados pela inflação, a MGM tem ainda mais um elemento no top 10 de maiores receitas de sempre, o marcante Doctor Zhivago (1965). O filme realizado por David Lean, tendo como base o marcante livro de Boris Pasternak, alcançaria mais de um milhar de milhão nos dias de hoje (na época 111,7 milhões de dólares), valores estrondosos, com Doctor Zhivago a ter sido bem recebido por público e crítica. Outro filme que surpreende se tivermos em linha de conta os valores ajustados é Ben-Hur (1959) de William Wyler. Protagonizado por Charlton Heston, Ben-Hur alcançou 74 milhões de dólares nas receitas internas (superando largamente os 15 milhões do seu orçamento), valores que hoje seriam cerca de 818,3 35


conta os 87 milhões do seu orçamento). O top 5 fica completo com Die Another Day (160,9 milhões de dólares internos) e Rocky IV com 127,8 milhões. Temos ainda vários outros êxitos do estúdio, veja-se obras como Rocky III (1982), com 270 milhões de dólares em receitas ao redor do Mundo (orçamento de 17 milhões), Moonstruck que obteve 80,6 milhões de dólares globalmente (15 milhões de orçamento), A Fish Called Wanda (1988) que alcançou 62,4 milhões de dólares (globalmente), valores que superam e muito os 7,5 milhões do seu orçamento, Red Dragon (2002) que superou os 209 milhões em receitas (orçamento de 78 milhões), entre vários outros sucessos a nível de bilheteira. Estes foram alguns filmes da MGM que mais proveitos financeiros trouxeram para o estúdio e trouxeram uma grande fonte de receitas, mas em alguns dos casos, também trouxeram uma série de prémios. Ben-Hur é o filme do estúdio com mais vitórias nos Oscars, tendo sido nomeado para doze categorias e vencido onze galardões (apenas Titanic e The Lord of the Rings: Return of the King conquistaram tanta estatueta), entre os quais de Melhor Filme, Melhor Realizador, Melhor Actor, entre outros. Outro dos grandes vencedores da MGM foi Gone With the Wind, que na 12ª edição dos Oscars venceu a sua forte concorrência (incluindo Ninotchka, Goodbye, Mr. Chips e The Wizard of Oz, os três da MGM) e vencido em dez categorias (oito competitivas e duas honorárias), incluindo as de Melhor Filme e Melhor Realizador. Vale a pena recordar 36


para Melhor Filme em 1935 (vencedor por Mutiny on the Bounty), 1938 e 1939 (vencedor por Gone With the Wind). Na década de 40 do Século XX, os filmes da MGM também foram uma presença constante entre os nomeados para Melhor Filme, não contando com películas nesta categoria apenas em 1947 e 1948, tendo em Mrs. Miniver (1942) o único vencedor desta década. Chegamos então aos anos 50 e voltamos a ter mais nomeados e vencedores da MGM, com excepção dos anos entre 1955 a 1957, onde não constou um único filme da MGM na categoria. Ao todo foram três vencedores na década de 50, An American in Paris (1951), Gigi (1958) e Ben-Hur (1959). Este foi o canto do cisne da MGM, que a partir dos anos 60 viu a sua relevância definhar, no que diz respeito a nomeações para os Oscars. O último nomeado para melhor filme da MGM (filme exclusivamente do estúdio) foi Moonstruck, realizado por Norman Jewison. Partindo deste ponto da relevância ou de falta dela da MGM, vamos agora abordar o presente e um pouco do futuro da MGM, efectuando algumas das antevisões dos próximos projectos dos estúdios e até analisando algumas das obras mais recentes da empresa.

que até aos anos 50 a MGM apresentou uma quantidade impressionante de nomeados para os Oscars, algo que não se repercute a partir dos anos 90. Até Ben-Hur, o último filme produzido exclusivamente pela MGM a ganhar o Oscar de Melhor Filme, é impressionante verificar o número de nomeações aos Oscars dos filmes da MGM. Vejamos apenas na categoria de Melhor Filme, onde logo na segunda edição contou com dois nomeados, The Broadway Melody e Hollywood Revue, com o primeiro a vencer numa categoria que contava com cinco nomeados. Na terceira edição, The Big House e The Divorcee estiveram entre os nomeados, tal como na quarta edição estaria Trade Horn. Na quinta edição (1932), o Leão da MGM voltou a rugir mais alto do que a concorrência e trazer para casa a estatueta de Melhor Filme por Grand Hotel, o filme realizado por Edmund Goulding que contava no elenco com estrelas como Greta Garbo, Joan Crawford, Lionel Barrymore, sendo resultado da primeira experiência do estúdio em reunir todas estas vedetas. Para além de Grand Hotel, também The Champ esteve como representante da MGM (desta vez entre oito nomeados). A década de 30 foi particularmente proveitosa para o estúdio em termos de nomeações para os Oscars, visto que todos os anos contou com nomeados, sendo que em 1936 chegou a contar com 5 nomeados para Melhor Filme, entre os quais The Great Ziegfield, o vencedor (mais um êxito do estúdio também a nível de bilheteira). O estúdio contaria ainda com 4 nomeações 37


O QUE NOS TRAZ A MGM? Até aos anos 50 com um passado para recordar, a MGM procura nos dias de hoje, ainda que em co-produções, recuperar um pouco do estatuto que foi perdendo com o passar dos anos, e diga-se que se é verdade que podemos colocar em causa o valor cinematográfico de algumas dessas obras, estas por sua vez nem se saíram mal de todo nas bilheteiras. 21 Jump Street (co-produzido com a Columbia Pictures, Relativity Media, Original Film e Cannell Studios) obteve 201,5 milhões de dólares ao redor do Mundo (tinha um orçamento de 42 milhões), Skyfall (orçamento de 200 milhões de dólares) e The Hobbit: An Unexpected Journey (orçamento a rondar os 300 milhões de dólares) ultrapassaram a casa dos mil milhões de dólares. Por sua vez, filmes como Hope Springs (2012), Hansel & Gretel: Witch Hunters (2013), G. I. Joe: Retaliation (2013), o remake de Carrie e The Hobbit: The Desolation of Smaug apresentaram resultados globais bem superiores ao seu orçamento. Em 2014 a MGM estreia RoboCop, um filme co-produzido com a Columbia Pictures e Strike Entertainment, tendo a realização de José Padilha. Este vai ser provavelmente um dos grandes desafios do estúdio, efectuando um remake a uma obra com enorme culto, cujos fãs mais conservadores já julgaram o filme e criticaram o filme desde que foi anunciado, podendo juntar-se a Total Recall na lista de remakes de obras de Paul Verhoeven 38


que não foram bem sucedidos. A acção promete ser menos gráfica devido à sua classificação, enquanto o elenco nem por isso parece poder comprometer, contando com Joel Kinnaman (um actor que protagonizou a trilogia Easy Money e a versão yankee da série The Killing), Samuel L. Jackson, Gary Oldman, Michael Keaton, Jackie Earle Haley, Michael K. Williams, entre outros. RoboCop estreou a 12 de Fevereiro de 2014 nos EUA. As estreias de obras produzidas pela MGM e previstas para 2014 não se ficam por RoboCop, temos ainda 22 Jump Street (co-produzido com a Columbia Pictures, Relativity Media, Original Film and SJC Studios), Hercules (co-produzido com a Paramount Pictures), If I Stay (co-produzido com a Warner Bros.), The Hobbit: The Battle of the Five Armies (co-produção com Warner Bros., New Line Cinema e WingNut Films), Hot Tub Time Machine 2 (co-produzido com Paramount Pictures, United Artists e New Crime Productions). Comecemos por abordar 22 Jump Street, uma obra que volta a contar com a dupla de protagonistas do primeiro filme, Jenko (Tatum) e Schmidt (Hill), contando ainda com os realizadores de 21 Jump Street, Phil Lord e Chris Miller (que tiveram recentemente um êxito considerável com The Lego Movie). O enredo coloca Jenko e Schmidt a trabalharem infiltrados numa faculdade para resolverem um caso. Quando Jenko (Tatum) se mistura com a equipa de futebol americano e Schmidt (Hill) adere à cena artística-boémia local,

a dupla de protagonistas passa a questionar a sua parceria. O primeiro filme foi baseado na mini-série homónima que outrora contara com Johnny Depp como protagonista, esperando-se que 22 Jump Street consiga trazer de volta boa parte do público, até porque chega numa fase em que a carreira de Channing Tatum e Jonah Hill está num grande momento, bem como a dos seus realizadores. 22 Jump Street teve estreia a 13 de Junho de 2014 nos EUA. Já mais complicada parece a tarefa de Hercules, apesar do apelo de Dwayne Johnson junto do público. O filme é realizado por Brett Ratner, um nome algo irregular, que já nos trouxe obras como as da trilogia Rush Hour, mas também já "cometeu" X-Men: The Last Stand e Tower Heist. No entanto, o maior desafio do estúdio vai ser lidar com a publicidade negativa gerado por The Legend of Hercules, com Renny Harlin a revelarse um estripador de filmes. Dwayne Johnson tem muito mais apelo junto do público do que Kellan Lutz (um actor cujo carisma e expressividade aproximam-se dos de uma parede), a lenda de Hércules é relativamente popular, embora desde o filme de animação da Disney lançado em 1997 e da série protagonizada por Kevin Sorbo que não assistimos a uma adaptação que consiga cativar totalmente o público. Hercules é baseado na graphic novel Hercules: The Thracian Wars, esperando-se que não venha a ser tão devastado pela crítica e público do que o filme de Harlin, contando ainda com um elenco secundário onde constam Ian McShane, 39


John Hurt, Peter Mullan e até Irina Shayk, uma modelo russa bem conhecida dos portugueses por ser namorada de Cristiano Ronaldo e por alguns talentos que não envolvem a representação. Hercules estreou a 25 de Julho de 2014 nos EUA. O que também estreia em 2014 é If I Stay, um filme protagonizado por Chloe "Hit-Girl" Moretz, realizado por R.J. Cuttler. O filme está para sair do papel desde 2009. Catherine Hardwicke foi inicialmente ligada ao cargo de realizadora, tendo posteriormente abandonado o cargo e entrado em cena Heitor Dhalia. Dakota Fanning foi durante algum tempo associada ao cargo de protagonista, mas Chloe Moretz ficou com o mesmo. O enredo de If I Stay centra-se na obra literária homónima da autoria de Gayle Forman, tendo como pano de fundo a história de Mia, uma música que vai ter de enfrentar o maior desafio da sua vida quando tem de lutar contra a morte, após ter sofrido um grave acidente de viação. Em estado de coma, Mia depara-se com uma experiência fora do seu corpo, conseguindo observar a sua família e os seus amigos, ao mesmo tempo que vê as suas memórias passarem à frente dos seus olhos. Esta terá de decidir se deve acordar e viver uma vida com mais dificuldades do que antecipava ou morrer. Já sobre The Hobbit: The Battle of the Five Armies é possível prever um sucesso considerável, tal como aconteceu com os capítulos anteriores, com os fãs fiéis a certamente não desarmarem no último filme da saga. Nem sempre bem recebidos pela crítica, The 40


Hobbit: An Unexpected Journey e The Hobbit: The Desolation of Smaug conseguiram despertar a atenção do público, pese alguma incapacidade de Peter Jackson em atingir os consensos da trilogia de The Lord of the Rings. 2014 fica completo com Hot Tub Time Machine 2. Realizado por Steve Pink, o mesmo cineasta do filme original, Hot Tub Time Machine 2 conta com boa parte do elenco do primeiro filme, não faltando a presença de Craig Robinson, Rob Corddry, Chevy Chase, Gillian Jacobs e Clark Duke. Adam Scott é ausência, tendo entrado para o seu lugar John Cusack. Hot Tub Time Machine foi um sucesso moderado do estúdio, tendo alcançado cerca de 61 milhões de dólares em receitas de bilheteira, quase o dobro do seu orçamento. Em 2015 teremos também aquela que parece ser uma das imagens de marca do estúdio, a aposta em filmes de franquias estabelecidas e remakes. É nesse sentido que vamos ter o remake de Poltergeist (co-produzido com a 20th Century Fox, Fox 2000 Pictures, Ghost House Pictures e Vertigo Entertainment), realizado por Gil Kenan e produzido por Sam Raimi, tendo no elenco Sam Rockwell, Jared Harris, Rosemarie DeWitt, entre outros. O filme deve contar com um orçamento modesto e provavelmente vai conseguir captar a atenção dos amantes do género e, tal como em Carrie, chegar a um público pouco interessado nos filmes originais. Temos ainda em desenvolvimento o muito aguardado novo filme da saga James Bond, nomeadamente o vigésimo quarto (coprodução com Columbia Pictures, Danjaq LLC e Eon Productions). Ainda não sabemos o título, o tema musical, mas o regresso de Sam Mendes como realizador e de John Logan como argumentista trazem alguma segurança, esperando-se que o filme volte a tocar em vários elementos icónicos da saga, depois de Skyfall nos ter deixado com água na boca com os regressos de Moneypenny, Q e até a entrada em cena de Ralph Fiennes como M. Temos assim um estúdio a procurar reerguer-se, após não ter conseguido moldar-se às transformações que ocorreram no meio cinematográfico e no Mundo ao longo dos seus noventa anos de existência. Muitos dias passaram desde a sua criação, mas é inegável o papel de relevo da Metro-Goldwyn-Mayer tem para a história do cinema, mesclando entre os anos 20 e 50 um romantismo a uma atitude comercial, apaixonando-nos com nomes como Greta Garbo, John Gilbert, Clark Gable, Joan Crawford, Katharine Hepburn, Spencer Tracy, entre muitos outros nomes que encantaram em várias obras onde o leão rugia antes do início do filme. Em 2014, o Leão da MGM continua a rugir, não tão alto como outrora, mas pronto a marcar o seu território numa selva que já chegou a dominar. 41



MGM - TOP 90 CARLOS REIS

Foi uma loucura. Uma que nos deu tanto gozo quanto trabalho, uma que nos atirou para uma esfera tão subjectiva quanto apaixonante. Escolher os noventa mais importantes, marcantes e históricos filmes de um estúdio com milhares de produções no currículo, ao início, parecia missão impossível. Ordená-los do nonagésimo ao primeiro, ainda pior. Importava, então, definir algumas regras para não só facilitar, mas também credibilizar a definição de um top único: para o lote dos elegíveis, contariam apenas filmes originalmente produzidos ou co-produzidos pela MGM, aqueles em que o leão fez-se ouvir nos segundos iniciais de cada aventura cinematográfica. Ou seja, filmes cujo estúdio apenas contribuiu como distribuidor ou películas que entraram no portfólio da empresa após a compra da United Artists, ficariam de fora - salvo raras excepções em que a MGM, por sua conta e risco, relançou no mercado edições de filmes produzidos pela UA

com versões inéditas, material nunca antes visto, incontáveis minutos de fita que se imaginavam perdidos ou inexistentes. Não estranhem, por isso, a ausência de verdadeiros pesos pesados nas comemorações oficiais dos noventa anos do estúdio, clássicos como The Usual Suspects ou Fargo, entre tantos outros, publicitados agora como propriedade da MGM mas originalmente produzidos pela United Artists. Definido o lote dos elegíveis, seguiu-se a votação da redacção, um processo tripartido que demorou o seu tempo, ou não tivesse obrigado a muitos visionamentos e redescobertas de memórias cinéfilas enevoadas pelo passar dos anos. Algumas pestanas queimadas depois - e ainda hoje sem a certeza da justiça desta lista -, apresentamos ao mundo, no nonagésimo aniversário da MGM, os noventa filmes obrigatórios do estúdio.


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Título nacional: Apocalypse Now Realização: Francis Ford Coppola

APOCALYPSE NOW

Elenco: Martin Sheen, Marlon Brando, Robert Duvall

1979 SARA GALVÃO

O filme que quase levou Francis Ford Coppola à loucura e ao suicídio, inicialmente programado para ser filmado durante 6 semanas, mas que se estendeu durante 16 meses, com um Marlon Brando com excesso de peso e sem ler o script a aparecer no final, em suma, o Vietname pessoal do realizador - Apocalypse Now poderia ter sido um desastre do tamanho de Ishtar ou Heaven’s Gate, mas graças sobretudo ao editor Walter Murch, que conseguiu, com a ajuda de outros três editores, transformar 200 horas de imagens num filme compreensível ao fim de dois anos de pós-produção, o filme é hoje considerado um dos melhores de sempre. Uma adaptação moderna de O Coração das Trevas de Joseph Conrad, que coloca a busca de Williard (Martin Sheen) por Kurtz (Marlon Brando) em plena Guerra do Vietname, Apocalypse Now parece por vezes ser mais Beckettiano do que Hollywood, principalmente na versão Redux que adiciona cenas que, nada contribuindo para a história principal, como o encontro com a família francesa, acrescentam contudo algumas linhas de moralidade (a certo ponto durante o jantar é dito, Vocês Americanos estão a lutar pelo maior Nada de sempre na História.) a um filme que embeleza o conflito, elevando-o até ao patamar de Arte, e que poderia por isso quase ser considerado como pró-guerra. E talvez daí venha o fascínio com o filme, que permanece forte mesmo depois de várias décadas passadas. O Exército Americano ordena a eliminação de Kurtz (terminate... with extreme prejudice) porque ele não quer fazer parte do sistema, e foi de soldado extraordinário para Deus do inimigo; Williard, que não consegue conceber uma existência fora do campo de combate, lê o dossier sobre Kurtz enquanto se passeia pela guerra e suas incongruências, que incluem shows patrocinados pela Playboy e o ataque de uma pequena vila porque, bem, a praia tem as melhores ondas para uma sessão de surf. Talvez não seja por acaso que a música escolhida para tocar durante o ataque seja A Cavalgada das Valquírias de Wagner; o compositor é sem dúvida incontornável na cultura

ocidental, mas também não é possível ignorar as conotações políticas que adquiriu durante a Segunda Guerra Mundial. A guerra parece-se extremamente com uma festa de universitários, onde tudo é possível e o respeito pelos outros é desligado momentaneamente. O que é o Bem? O que é o Mal? E quem é que está de cada lado? Será que Kurtz, o homem que todos querem morto, está do lado da Razão? Será ele um louco ou um inspirado divino, que conseguiu ver para além das ordens das instâncias superiores? É ele o inocente sacrifício de uma guerra sem sentido, ao ser assassinado ao mesmo tempo que a vaca, ambas as mortes extremamente ritualizadas? No início de Hearts of Darkness, um excelente documentário sobre o making-off de Apocalypse Now, Coppola diz que, tal como os soldados americanos, eles eram demasiados, no meio da selva, com demasiado dinheiro e demasiado equipamento, e lentamente foram enlouquecendo. Talvez por isso o filme, se bem que não tem o realismo de O Resgate do Soldado Ryan, ou a crueza de Vem e Vê, ainda hoje mantém o toque de modernidade e merece ser tido como um pilar do seu género. Os fumos, a confusão, o humor inesperado, Robert Duvall no papel do Coronel Bill Kilgore, que adora o cheiro de napalm pela manhã e não hesita em mobilizar todo um exército para perseguir Lance e a sua prancha de surf roubada... e tudo isto retratado por cameramans, realizadores de documentário (num inesperado cameo de Coppola a gritar Não olhem para a câmara! Não olhem para a câmara!), e fotógrafos, num circo de morte em que nada interessa senão ficar bem nas fotografias e ter histórias para contar em casa. Num mundo onde as explosões laranja entram em belíssima colisão com o verde das florestas, e tudo tem os The Doors por pano de fundo. A atracção e o nojo. O horror. O horror.

“(...)Apocalypse Now parece por vezes ser mais Beckettiano do que Hollywood(...)” 45


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Título nacional: 2001: Odisseia no Espaço Realização: Stanley Kubrick

2001: A SPACE ODYSSEY

Elenco: Keir Dullea, Gary Lockwood, William Sylvester

1968 SAMUEL ANDRADE

Triunfo absoluto em expressar significados através das possibilidades sensoriais da Sétima Arte, 2001: Odisseia no Espaço encontra, no silencioso vácuo do espaço sideral, um adequado pretexto para o derradeiro discurso sobre a relação entre o Homem e a tecnologia que o rodeia. Desde o berço da Humanidade, onde uma ossada do cadáver de um animal se transforma em arma letal de conquista territorial, até ao apogeu do criativo humano representado pelas façanhas da exploração espacial, Stanley Kubrick disserta não só sobre a influência de disciplinas, como a informática ou a robótica, em prol da evolução e ascenção na “cadeia alimentar” da nossa espécie no mundo, como também – e sobretudo – realça os riscos de uma incondicional e crédula dependência naquilo que inventamos à nossa semelhança e para nosso comodismo. 2001: Odisseia no Espaço é, portanto, uma visão pessimista sobre a Humanidade, aqui reproduzida como um conjunto de indivíduos rendido, embevecido, inerte e quase estupidificado perante a sua obra. Tal constatação é sustentada não só pela frugal quantidade de diálogos durante todo o filme (a palavra apenas encontra lugar em 88 dos seus quase 160 minutos de duração), na nossa impossibilidade de saber se existe, em alguém do elenco, algum peculiar talento para a representação ou pelo modo como o virtuosismo da fotografia e montagem subjugam todas as personagens, relegando-as para um plano secundário que a imensidão do Sistema Solar, se encarrega de amplificar. No primeiro segmento do filme (intitulado “O Amanhecer do Homem”), o homem pré-histórico deixa-se maravilhar e influenciar pela súbita aparição, em frente à gruta onde se consumia pelas inexplicáveis manifestações da noite, de um monolito negro. O contacto com este objecto, motivado por uma ainda primitiva mas inata curiosidade humana, surte as suas óbvias consequências: de ente temeroso a criatura homicida foi um pequeno passo. É então que ocorre uma das cenas mais famosas do Cinema, a assombrosa assimilação de milhões de anos de

evolução humana numa fracção de segundo: o osso lançado ao ar por um vitorioso homem pré-histórico é substituído, através de um match cut, pelo vislumbre de um satélite artificial em órbita da Terra. Estamos em 2001, e a curiosidade humana é, uma vez mais, acintada pela descoberta de um monolito negro, deliberadamente enterrado na superfície lunar, e idêntico ao que surgira perante os primatas. Desta vez, o objecto manifesta-se através de um sinal acústico que despoletará a missão da Discovery One, com rumo destinado a Júpiter. A bordo, cinco tripulantes, três dos quais em hibernação criogénica, e a comandar os seus destinos está HAL (abreviatura para Heuristic Algorithmic Computer), o supercomputador que, na sua propalada infalível inteligência artificial, controla todos os parâmetros da missão. Será, porventura, por intermédio deste terceiro e último acto que 2001: Odisseia no Espaço alcançou maior notoriedade, tanto a nível de formalismo visual como no reflexo que obteve (e obtém) na cultura popular dos últimos cinquenta anos. Ao cenário de puro futurismo, impõe-se uma carga de genuína metafísica, consagradora de todas as metáforas encerradas no conceito do filme, que vai desde a figura, atitudes e palavras de HAL até à famosa e alucinogénica sequência, ilustrada pelos sombrios acordes das composições de György Ligeti, da viagem (pelo universo? por variadas dimensões da existência humana? pelo espaço que nos separa da vida ou da morte?) empreendida por Dave Bowman, o último sobrevivente da Discovery One. Envolto em todo o mistério que a imagética final de 2001: Odisseia no Espaço exibe, reside o único vestígio, delineado por Stanley Kubrick, de optimismo em relação à Humanidade. É através da perspicácia e técnica humanas que, nos confins do espaço, onde qualquer forma de vida encontra a totalitária incapacidade de se sustentar, Bowman garante a sua sobrevivência. 2001: Odisseia no Espaço é uma obra cinematográfica em que, a cada visualização, se descobrem novos e redobrados significados.

“2001: Odisseia no Espaço é, portanto, uma visão pessimista sobre a Humanidade(...)” 47


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Título nacional: O Touro Enraivecido Realização: Martin Scorsese

RAGING BULL

Elenco: Robert De Niro, Cathy Moriarty, Joe Pesci

1980 JOÃO PAULO COSTA

A câmara, fixa da parte de fora do ringue, capta em slow motion os movimentos de um pugilista em aquecimento. A fotografia a preto e branco e a música de Pietro Mascagni acompanham os créditos iniciais, ajudando a criar imediatamente um momento de poesia cinematográfica apaixonante, um momento quase onírico que poucos minutos depois iria contrastar de forma bem vincada com a violência dentro do ringue, que Martin Scorsese filmou com uma pujança e uma força poucas vezes vistas. Depois de se encontrar às portas da morte no final da década de 70, Scorsese cedeu à contínua insistência de Robert De Niro e aceitou realizar O Touro Enraivecido, convencido que estava que depois do fracasso de New York, New York e da sua saúde debilitada, este trabalho iria marcar o precoce ponto final na sua carreira. Assim, disse mais tarde, deixou no filme tudo o que sabia, como que as derradeiras notas de um testamento cinematográfico que, sabemos hoje, se veio a revelar altamente precipitado mas, sabemos também, foi esse estado de espírito que ajudou a criar uma das maiores obras-primas da carreira do realizador nova iorquino.

combate, onde a montagem, a luz e os movimentos de câmara assumem uma hiper-estilização quase surreal - uma das técnicas de Scorsese para filmar os combates foi mudar o tamanho dos ringues, dependendo do estado emocional do seu protagonista, ou utilizar máquinas de fumo para criar uma atmosfera hostil. No combate em que Jake finalmente se sagra campeão mundial, seguimo-lo dos balneários até ao ringue num movimento de câmara contínuo, belíssimo e glorioso, mas quando perde um grande combate, Scorsese não se inibe de filmar com enorme detalhe a brutalidade dos golpes e do sangue. Com a ajuda preciosa da editora Thelma Schoonmaker, que aqui trabalhou pela primeira vez para Scorsese desde a sua longa-metragem de estreia, Quem Bate à Minha Porta? (1967), e que com ele iria colaborar em todos os títulos desde então, O Touro Enraivecido tornou-se num clássico absoluto após uma recepção algo hostil aquando da sua estreia inicial. Mas é impossível falar deste filme sem dar o devido destaque à sua estrela, Robert De Niro, cuja paixão e dedicação ao projecto foram fundamentais para o seu sucesso. Com efeito, De Niro não só adquiriu pessoalmente os direitos da autobiografia de Jake La Motta como se dedicou por completo ao estudo da personagem. Desde conversas frequentes com o verdadeiro Jake, ao treino avançado de boxe (incluindo entrada em alguns combates profissionais), culminando com uma dieta especial para ganhar uma quantidade considerável de peso, mas acima de tudo com uma dedicação sem igual aos tumultos interiores da personagem. Jake La Motta foi uma pessoa difícil, que muitas vezes levou a violência dos ringues para a vida pessoal, e De Niro não se coíbe de mergulhar sem receios nesse lado negro. Mas é quando se encontra preso, sozinho numa cela escura, que Jake finalmente se confronta com o seu pior inimigo: ele próprio. E aí o actor faz dele uma personagem imortal.

O Touro Enraivecido baseia-se na biografia de Jake La Motta (Robert De Niro), um pugilista que entre o título de campeão mundial de pesosmédios viveu uma vida conturbada, descarregando no ringue os seus demónios pessoais - os ciúmes que sente pela segunda mulher, Vickie (Cathy Moriarty), e a difícil relação com o irmão Joey (Joe Pesci). E é desse ponto que parte Scorsese na abordagem visual ao filme: se por um lado as cenas quotidianas são filmadas num registo cru e quase documental, esse registo muda por completo assim que entra na mente do protagonista - seja um simples plano em slow motion quando a câmara assume o ponto de vista de Jake (a apreciar as curvas de Vickie enquanto se refresca na piscina ou a olhar, desconfiado, para as conversas do seu irmão com os rufias locais), seja quando entramos em

“(...)deixou no filme tudo o que sabia, como que as derradeiras notas de um testamento cinematográfico(...)” 49


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Título nacional: Manhattan Realização: Woody Allen

MANHATTAN

Elenco: Woody Allen, Diane Keaton, Meryl Streep

1979 SARA GALVÃO

1979. Woody Allen estreia Manhattan. O filme seria o seu poema de amor a Nova Iorque, e o estabelecimento oficial do cineasta como um ícone do cinema independente americano. (Não. Demasiado geral. Comecemos de novo.)

de 17 anos (Mariel Hemingway). Quando o seu amigo Yale (Michael Murphy) arranja uma amante, Mary, (Diane Keaton) Isaac fica primeiro chocado com o snoberismo cultural dela (que acha que Bergman é sobreestimado), mas depois não consegue deixar de se apaixonar... Uma comédia de amores desencontrados, inspirada pela música de George Gershwin (que serve de banda sonora para o filme, incluindo o famoso início com a Rapsody in Blue) onde Nova Iorque é uma personagem por si própria (os restaurantes, os museus, as pontes, os edifícios), coreografada num estilo que se tornaria numa marca de autor de Allen (com actores a sair e voltar a planos, e belíssimos wide shots cuidadosamente compostos). Não deixa de ser curioso que Allen ficou extremamente desapontado com o filme quando o completou e se ofereceu à United Artists para fazer um filme de graça se eles não lançassem Manhattan. Felizmente a produtora recusou e o filme foi lançado, sendo mesmo nomeado para o Óscar de Melhor Argumento Original e Melhor Actriz Secundária (Mariel Hemingway). Curiosamente, também é o único (?) filme de Allen que não tem créditos iniciais. Rever Manhattan nos dias de hoje continua a ser uma experiência positiva e confortável, como beber um bom chocolate quente num dia de Inverno. Claro que se torna um pouco estranho, à luz de acontecimentos recentes, ver Woody Allen envolvido com uma menor no grande ecrã (e supostamente fora dele, já que a actriz Stacey Nelkin afirma que Tracy é baseada nela e na relação que ela teve com o realizador quando tinha 17 anos) e com problemas com a ex-mulher que insiste em publicar detalhes da relação. Mas no final o filme acaba por responder com “rumores são a nova pornografia”. E não será por acaso que a última linha de diálogo é “tem um pouco de fé nas pessoas”. Se nós, como Isaac, tivessemos de fazer uma lista de coisas que fazem a vida valer a pena, Manhattan estaria certamente lá.

Se há dúvidas que Woody Allen é o mestre dos filmes nova iorquinos, temos apenas de olhar para o seu comentário cínico sobre a natureza do amor no espaço urbano para entendermos que não há ninguém que lhe chegue aos pés quando o assunto são relações amorosas entre intelectuais. (Hm, demasiado laudatório.) Outros haverá que conseguem fazer um bom filme sobre relações amorosas, ou um bom filme sobre Nova Iorque, mas Woody Allen junta as duas coisas para criar um hino de palavras e imagens à sua cidade imortal. Pena que a “sua” cidade seja apenas povoada pelo tipo de pessoas que frequentam museus de arte moderna, tenham dinheiro suficiente para não ter de partilhar alojamento com mais ninguém (mesmo que isso implique beber água castanha) e onde é socialmente aceite que um homem de quarenta anos namore com uma rapariga de dezassete, e a vá buscar à porta da escola... (É melhor não ir por aí...) Queira-se ou não, Manhattan de Woody Allen é um marco da História do Cinema. A fotografia de Gordon Willis, de alcunha o Príncipe das Trevas (e este é o filme-fetiche dos aficcionados do preto e branco), junto com um guião onde o cinismo e a citabilidade de Allen estão em ponto de rebuçado, e, claro está, Diane Keaton e Woody Allen como casal improvável (e no final impossível) fazem a mistura que torna este, na nossa opinião, num filme superior a Annie Hall. Isaac (Allen) é um escritor para televisão, recentemente divorciado de Jill (Meryl Streep), e romanticamente envolvido com uma estranhamente madura Tracy,

“(...)Nova Iorque é uma personagem por si própria (os restaurantes, os museus, as pontes, os edifícios)(...)” 51


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Título nacional: O Bom, o Mau e o Vilão Realização: Sergio Leone

IL BUONO, IL BRUTTO, IL CATTIVO

Elenco: Clint Eastwood, Eli Wallach, Lee Van Cleef

1966 ANÍBAL SANTIAGO

Maior na sua duração, na sua ambição e elaboração, Il buono, il brutto, il cattivo. fecha com chave de ouro a trilogia dos dólares de Sergio Leone.

A narrativa desenrola-se durante a Guerra Civil Americana, entre as zonas do Texas e do Novo México, cenários quentes, tais como as emoções que perpassam ao longo de The Good, the Bad and the Ugly, um western spaghetti épico e cheio de estilo, capaz de nos envolver na jornada dos seus personagens, mesmo que esta seja dominada por valores morais pouco ou nada elevados. Leone cria um conjunto de episódios que tornam as quase três horas de duração do filme como algo que passa num ápice, não tendo um argumento forte, mas conseguindo superar essa situação com a criação de um conjunto de episódios interessantíssimos de acompanhar. Veja-se desde logo os golpes de Tuco e Blondie, a cena do deserto protagonizada por estes, o massacre na Batalha de Branstone Bridge e até os momentos finais no cemitério, lugar recheado de corpos mortos, onde a magnífica banda sonora de Ennio Morriconne entra em cena, as imagens em movimento parecem ser demasiado pequenas para as emoções e o trio protagoniza momentos de grande tensão. Com um conjunto de elementos que fazem parte da sua imagem de marca, tais como os close-ups extremos exímios, antagonistas dispostos a matar, muitos disparos, violência, um conjunto de planos abertos e longos (prontos a explanar os espaços da narrativa transmitindo a imensidão dos mesmos) e um trabalho de fotografia sem mácula, Sergio Leone cria uma obra épica, onde os acontecimentos parecem ganhar uma grandiosidade ímpar, mesmo que para isso o cineasta tenha de demorar na sua exposição, conseguindo ainda explorar o muito de bom que o seu elenco tem para dar. Clint Eastwood, Eli Walach e Lee Van Cleef sobressaem pela positiva, conseguindo explorar as idiossincrasias dos seus personagens, beneficiando dos close-ups extremos para "falarem" através das expressões dos seus rostos. Intenso e violento, o último capítulo da trilogia dos dólares resulta numa das obras-primas de Sergio Leone e num dos grandes westerns da história do cinema.

Os diálogos são curtos e incisivos, as balas voam com enorme facilidade, o cuspo solta-se pronto a mostrar a indignação e o desprezo dos personagens, as mortes e os insultos surgem em catadupa, enquanto Sergio Leone realiza uma das suas obras-primas, onde as cidades quase desertas, marcadas por fracas leis, conflitos militares e um trio de oportunistas, preparam-se para conhecer um enorme número de emoções. Eastwood está de volta com o seu Pistoleiro Sem Nome que ganha uma alcunha diferente em cada filme, neste caso "Blondie", aparecendo com a mesma habilidade na arte do disparo (embora desta vez até falhe), barba por fazer, charuto, ganhando dinheiro a praticar pequenos golpes ao lado de Tuco Ramirez (Wallach), o "feio", fingindo que entrega este último às autoridades para depois salvá-lo dos enforcamentos, após receber as recompensas. "Blondie" acaba por trair Tuco, algo que conduz o antigo companheiro a persegui-lo, chegando a capturá-lo e obrigá-lo a andar pelo deserto sem poder beber água, até "Bill Carson", um militar à beira da morte, revelar ao "Feio" que escondeu duzentos mil dólares em ouro no cemitério de Sad Hill e ao "Bom" o número da campa, conduzindo a que este último não possa ser eliminado.Os momentos iniciais servem para apresentar estes personagens, mas também o Mau, nomeadamente "Angel Eyes" (Van Cleef), um militar de má índole que procura por "Bill Carson", algo que o vai colocar no caminho de "Blondie" e Tuco. Ficamos desde logo com a exposição da personalidade do trio de personagens, três indivíduos exímios na arte do disparo, com Tuco a surgir mais espalhafatoso, dado a seguir as emoções e por vezes até a despertar alguns risos, "Angel Eyes" a representar a frieza em pessoa e "Blondie" a surgir como um elemento pragmático.

“(...)uma obra épica, onde os acontecimentos parecem ganhar uma grandiosidade ímpar(...)” 53


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Título nacional: Intriga Internacional Realização: Alfred Hitchcock

NORTH BY NORTHWEST

Elenco: Cary Grant, Eva Marie Saint, James Mason

1959 JOÃO PAULO COSTA

Produzido naquela que é uma das melhores fases da carreira do mestre Alfred Hitchcock (para nos situarmos, surge um ano depois de Vertigo - A Mulher Que Viveu Duas Vezes e um ano antes de Psycho), North by Northwest é frequentemente considerado como o melhor exemplo do thriller tipicamente hitchcockiano, uma espécie de greatest hits da sua tremenda filmografia todos reunidos num só título, e Ernest Lehman, o argumentista, referiu mesmo que a sua intenção era “escrever o filme de Hitchcock que superasse todos os filmes de Hitchcock”. Assim, temos elementos tão familiares como trocas de identidades, onde um falso culpado em fuga tenta provar a sua inocência, uma loira misteriosa, vilões sinistros, um sentido de humor apurado e uma aventura que passa pelas localizações mais exóticas, tudo filmado com um domínio completo da linguagem cinematográfica que o britânico por esta altura domava como poucos, antes e depois dele.

suas comédias para outro grande mestre, Howard Hawks, nomeadamente O Grande Escândalo), o espectador coloca-se imediatamente do seu lado, sabendo que irá passar um bom bocado. Se lhe juntarmos um ar de confusão geral por nem o próprio entender muito bem a situação em que se encontra, ou todos os momentos em que tem de contracenar com Jessie Royce Landis que, no papel da sua mãe, não acredita por um minuto na história de conspiração rebuscada em que está metido o seu filho, e polvilharmos tudo isso com os diálogos recheados de pequenas e deliciosas insinuações sexuais entre Grant e Marie Saint, temos todos os ingredientes nas doses certas para criar inesquecíveis momentos de cinema. Ao carisma de Cary Grant, à sensualidade de Eva Marie Saint e às hilariantes tiradas de Landis, juntam-se ainda os míticos James Mason e Martin Landau como os principais vilões, formando um elenco irrepreensível, absolutamente perfeito em todas as notas.

George Thornhill (Cary Grant) é um publicitário de sucesso que, sem saber bem como, é confundido com um evasivo agente secreto de nome George Kaplan e perseguido por um grupo inimigo. Conseguindo escapar a uma tentativa de assassínio, Thornhill acaba ele próprio erradamente acusado do homicídio de um elemento das Nações Unidas, não lhe restando nada mais do que fugir e provar a sua inocência. Pelo caminho, encontra a belíssima Eve Kendall (Eva Marie Saint), uma loira irresistível e aparentemente disposta a ajudá-lo.

Mas como quase sempre acontece, a grande estrela de um filme de Alfred Hitchcock é o próprio Alfred Hitchcock que, após uma breve aparição no final dos créditos iniciais a deixar fugir um autocarro, se encosta na cadeira de realizador e nos oferece algumas das mais célebres cenas da história do Cinema. Mesmo o cinéfilo de circunstância estará certamente familiarizado com a sequência em que Grant foge de um avião que o persegue numa plantação de milho, ou o clímax passado em pleno Mount Rushmore onde a vida e a morte estão separadas, literalmente, por um nariz… Um domínio total da câmara e da montagem, ao qual se associam os talentos de Bernard Herrman em mais uma fabulosa banda sonora, ou de Robert Burks na deslumbrante fotografia em Technicolor, e o resultado só poderia mesmo ser um: obra-prima.

Clássico absoluto não apenas no contexto da obra de Hitchcock mas de todo o Cinema, Intriga Internacional é tão divertido hoje como o terá sido para o público que assistiu à sua primeira exibição em 1959. Cary Grant é perfeito como sempre foi no seu trabalho com Hitch, o derradeiro galã romântico com um timing cómico imparável. Logo nas primeiras cenas onde aparece em modo de debitação acelerada de diálogos (a lembrar as

“(...)é frequentemente considerado como o melhor exemplo do thriller tipicamente hitchcockiano(...)” 55


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Título nacional: Annie Hall Realização: Woody Allen

ANNIE HALL

Elenco: Woody Allen, Diane Keaton, Tony Roberts

1977 PEDRO SOARES

Mas Annie Hall não é só conversa. É também um conjunto de belos momentos de cinema, com uma fotografia exemplar de Nova Iorque (a outra personagem recorrente de todo o seu corpo de obra, que teria direito a um filme só para si, em Manhattan) e alguns truques superiores, seja quando Allen fala directamente com o espectador (a herança felliniana), seja quando os transeuntes participam nos seus monólogos retóricos, aproveitando uma série de cameos: Paul Simon, Cristopher Walken ou um muito novinho Jeff Goldblum. Nota-se o empenho pessoal de Allen num filme muito pessoal - aproveita ainda para demonstrar aqui a sua paixão por Fellini ou pelo jazz - e isso reflecte-se no final. Annie Hall é um dos melhores Woody Allens de sempre.

Quando um autor tem uma obra tão vasta quanto o palmarés do Benfica, normalmente estabelecem-se umas bóias de sinalização, mais ou menos aceites pela maioria, que servem para facilitar o reconhecimento de casos pontuais do seu trabalho. Woody Allen, que costuma fazer um filme por anos, é um desses casos e, portanto, tem alguns desses marcos sinalizadores na sua filmografia. E o maior será, quiçá, Annie Hall, convencionalmente considerado o seu melhor filme. Se é ou não o seu melhor trabalho não sei, até porque esta coisa de superlativar varia bastante consoante a disposição do dia. Além disso, escolher o melhor filme de Allen é como escolher entre a mãe e o pai. No entanto, Annie Hall é, inequivocamente, o seu mais importante filme, não por ser o mais premiado, mas por ter sido aquele em que deu o salto qualitativo decisivo e se estabeleceu como um dos mais importantes realizadores contemporâneos, funcionando como elemento charneira para uma espécie de cinema mais... sério, chamemos assim. Annie Hall é mais um dos seus filmes autobiográficos, que o próprio protagoniza, fazendo de si próprio. Aqui é Alvy Singer, um neurótico, inseguro e obsessivo humorista, que tem uma relação com a aventureira e algo despassarada Annie Hall (Diane Keaton). Annie Hall é o filme sobre essa relação, que se projecta tanto na tela como na vida real, já que Keaton era a musa de Allen nessa altura – com quem fez quatro filmes, tendo este valido o Oscar de melhor actriz nesse ano. Apesar de repetir características do seu trabalho anterior (e do posterior também, como é óbvio), Annie Hall é um filme mais maduro e inteligente. Woody Allen constroi-o a partir de diálogos escorreitos, divertidos e acerca de tudo (alguma das suas tiradas mais inspiradas estão aqui, exemplo: masturbação é fazer amor com quem mais gostamos), mas também reflexivos, terapêuticos e iluminados.

“(...)Annie Hall é um filme mais maduro e inteligente.” 57


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Título nacional: Carrie Realização: Brian De Palma

CARRIE

Elenco: Sissy Spacek, Piper Laurie, Amy Irving

1976 JOÃO PAULO COSTA

Depois de ter iniciado a sua carreira com uma série de comédias satíricas de baixíssimo orçamento, Brian De Palma começou a desenvolver em Irmãs (1973) o gosto pelo suspense hitchcockiano, criando uma linguagem cinematográfica que deve tanto ao mestre inglês como às suas obsessões pessoais, entre as quais uma atracção profunda pelos mais sombrios recantos de repressão sexual da mente humana. Daí que a decisão dos responsáveis da MGM de escolher o realizador de O Fantasma do Paraíso (1974) para adaptar Carrie ao grande ecrã, na altura um best seller que introduziu o seu autor, Stephen King, entre os mais conceituados nomes da literatura de horror contemporâneo, tenha feito todo o sentido. Porque mais do que um conto sinistro sobre uma jovem com poderes telecinéticos e a sua tresloucada mãe, é acima de tudo um olhar incisivo sobre a adolescência: a formação da personalidade, as relações interpessoais e, claro, o despertar sexual. Daí o seu sucesso literário e consequente êxito cinematográfico, que tirou De Palma do relativo anonimato e o catapultou para a primeira divisão. Com recurso a valores de produção aos quais pouco acesso tinha tido até então, o realizador ofereceu-nos um clássico instantâneo, polvilhado com muitas das suas técnicas favoritas e construindo momentos de suspense que futuramente lhe viríamos a reconhecer como imagens de marca - o climax final, onde a fantasia da protagonista é desfeita por um repugnante banho de sangue faz parte da história do cinema por direito próprio, no qual a câmara, a montagem precisa e a música fantástica de Pino Donaggio nos deixam completamente colados à cadeira.

em conta que a actriz já contava 26 anos quando deu corpo a esta personagem franzina dez anos mais jovem. Piper Laurie está também ela demoníaca como a mãe louca e imprevisível, uma fanática religiosa com tendência para a auto-mutilação. As cenas que ambas partilham conseguem ser tão desconfortáveis como tocantes, até ao seu trágico final. De resto, entre os jovens colegas de Carrie, encontramos gente como Nancy Allen, Amy Irving e John Travolta um ano antes de explodir com febre numa noite de sábado, cujas caracterizações são também particularmente felizes, resultado de um misto da escrita original de Stephen King, da adaptação de Lawrence Cohen e do olhar habitualmente perverso do realizador que não tem problemas em os representar como adolescentes reais: inseguros, invejosos, e sexualmente activos. Aliás, a sequência inicial na qual a câmara de De Palma capta em câmara lenta o grupo de raparigas no ginásio da escola, sugerindo um romantismo e sensualidade prontamente quebrados pela primeira menstruação de Carrie à qual as suas colegas reagem jocosa e violentamente, mostra-nos desde logo a grande preocupação do realizador em enraizar a sua história num universo perfeitamente realista, onde integra de forma perfeita os elementos fantásticos, tornando-os assim ainda mais perturbadores. Estreado no final de 1976 (ano em que De Palma assinou o também fantástico Obsession), Carrie foi um sucesso estrondoso entre público e crítica, estabelecendo-se imediatamente como uma marca do cinema de terror. E hoje, a única coisa datada que nele encontramos só mesmo a moda dos anos 70, porque em termos cinematográficos, continua tão eficaz como nunca. E mesmo com os seus méritos, o remake estreado em 2013 não consegue atingir a mesma dimensão apoteótica do original.

Para além do trabalho irrepreensível de Brian De Palma atrás das câmaras, Carrie faz do seu elenco outro ponto de grande força. Como Carrie, a jovem rejeitada pelos colegas na escola por ser diferente, e que desenvolve poderes especiais para mover objectos com o poder da mente, Sissy Spacek é absolutamente perfeita, mais ainda se tivermos

“(...)um olhar incisivo sobre a adolescência: a formação da personalidade, as relações interpessoais e, claro, o despertar sexual.” 59


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Título nacional: E Tudo o Vento Levou Realização: Victor Fleming

GONE WITH THE WIND

Elenco: Vivien Leigh, Clark Gable, Hattie McDaniel

1939 SARA GALVÃO

fabulosas cenas de acção. Mas se há uma coisa que E Tudo o Vento Levou prova, é que, por vezes, uma boa história, recheada de personagens fascinantes, está pura e simplesmente destinada a sobreviver ao teste do tempo. Este foi um filme que arrasou aquando da sua estreia, e não é para menos - se ainda hoje nos parece imponente e impressionante, que dizer de um tempo em que tanto o nascimento do cinema como a Guerra Civil estavam só do outro lado da esquina, e quando se tratava da adaptação de um bestseller recente ao grande ecrã, com grandes actores, em glorioso Technicolor? Um tempo em que não havia televisão, nem frigoríficos? Claro, a produção foi uma dor de cabeça para David O. Selznick, que atrasou as filmagens durante dois anos para ter Clark Gable no elenco, viu 1400 actrizes para o papel de Scarlett, e despediu o realizador George Cukor pouco depois das filmagens terem começado (rumores dizem que Gable o conhecia de andanças mais privadas e que usou a sua influência para o afastar do projecto). Mas valeu a pena. Com a inflação ajustada, E Tudo o Vento Levou continua hoje a ser o filme mais lucrativo de sempre. Sim, mais do que Star Wars. Talvez porque todos temos dentro de nós um pouco de Scarlett O’Hara, e nos conseguimos ver reflectidos nos seus defeitos e determinação, que seguimos tão a peito todos os contratempos que lhe surgem. Talvez todos tenhamos passado por um amor pela pessoa errada. Ou ignorar que estamos apaixonados pela pessoa na nossa frente. Talvez seja tudo uma questão do nosso apego à terra, como diz o pai de Scarlett no início do filme. Tara!, diz Scarlett quando Rhett a abandona, desta vez a sério. Como se a terra que a viu crescer tenha todas as energias e poderes para a fazer novamente levantar-se das cinzas. E nesse momento sabemos que Scarlett nunca passará fome outra vez, nem desistirá do amor da sua vida.

Ah, a parvinha da Scarlett O’Hara, a correr atrás do louro e espadaúdo Ashley, a casar a torto e a direito por todas as razões erradas, a desprezar Rhett Butler, o único homem que está sempre lá quando ela precisa... Um filme que foi feito nos inícios da cinematografia a cores (afinal, como filmar a cena do vestido verde a preto e branco?), de quase quatro horas de duração, e ainda hoje nos consegue emocionar e fazer simpatizar com uma das personagens femininas mais irritantes da história do cinema, desgraça atrás de desgraça. Seria este filme o mesmo se não contasse com o talento de Vivien Leigh e com o bigode malicioso do Clark Gable? Duvidamos. Gone With The Wind, baseado no calhamaço homónimo de Margaret Mitchell, conta as aventuras e (sobretudo) desventuras de uma rapariga mimada do Sul, Scarlett O’Hara, que vive de usar vestidos bonitos e ir a festas, flirtando com todos os jovens à sua volta. Mas, infelizmente para ela, duas coisas vão destruir o paraíso em que vive - primeiro, a Guerra Civil chega à Georgia; segundo, o dono do seu coração, Ashley Wilkes, resolveu casar com a prima sonsinha Melanie Hamilton (Olivia de Havilland). Ela rapidamente resolve casar com o irmão de Ashley para se vingar dele, mas não antes de atrair a atenção do playboy Rhett Butler, que não irá descansar enquanto não conseguir que Scarlett se apaixone por ele, o que irá demorar uns tempos (daí a longa duração do filme). É complicado falar de clássicos do cinema - que mais têm de provar filmes que conseguem ficar na memória colectiva durante mais de setenta anos? - e haverá sempre a desconfiança de que, por muito queridos que tenham sido nos seus tempos, e importantes para a História da sétima arte, certos clássicos deveriam ter ficado na prateleira empoeirada destinada aos filmes que já não conseguem atrair as audiências modernas, habituadas a efeitos especiais mais espectaculares, a narrativas mais complexas (obrigado HBO por nos habituares tão mal), e, claro está, a helicópteros que explodem em

“(...)uma boa história, recheada de personagens fascinantes, está pura e simplesmente destinada a sobreviver ao teste do tempo.” 61


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Título nacional: Poltergeist , o Fenómeno Realização: Tobe Hooper

POLTERGEIST

Elenco: JoBeth Williams, Heather O’Rourke, Craig T. Nelson

1982 PEDRO MIGUEL FERNANDES

Algo de estranho está a acontecer na residência da família Freeling. Pouco depois de começarem as obras na construção da piscina na sua casa situada no subúrbio de Cuesta Verde, estranhos fenómenos começam a ocorrer. Estes vão culminar no desaparecimento da filha mais nova, que é literalmente engolida pela casa, que se encontra possuída por seres misteriosos. Em traços gerais é esta a história de Poltergeist, um dos mais influentes filmes de terror do início da década de 1980 realizado por Tobe Hooper, cineasta que já tinha dado cartas dentro do género anteriormente com uma obra-prima do slasher, o não menos famoso Massacre no Texas. Mas se no caso de Massacre no Texas, apenas o segundo filme que Hooper realizou, o orçamento era bastante reduzido, neste primeiro episódio da série Poltergeist a produção contou com muito mais meios. A presença do nome de Steven Spielberg na equipa técnica, ocupando os cargos de produtor e co-argumentista (assinado em parceria com Michael Grais e Mark Victor a partir de uma história do próprio Spielberg), terá sido uma das razões principais que levou a MGM a investir bastante neste projecto. Inclusive há mesmo rumores que dizem que o autor de A Lista de Schindler terá sido o verdadeiro realizador do filme, mas o seu nome não aparece creditado como realizador porque uma cláusula no seu contrato com a Universal o impedia de trabalhar noutro filme além de E.T. - O Extra-Terrestre, filme que curiosamente estrearia uma semana depois de Poltergeist. As polémicas valem o que valem e mesmo que encontremos em Poltergeist algumas marcas do cinema de Steven Spielberg, a começar pela família que vive nos subúrbios, a versão oficial acabou por ser assinada por Tobe Hooper, que sempre garantiu ter sido ele o responsável pela realização do filme, apesar da presença constante do seu companheiro de profissão no set de rodagem. Para terminar com as histórias que circularam à época Spielberg chegou mesmo a publicar na Hollywood Reporter uma carta aberta dirigida a Hooper, onde acusou a

imprensa da altura de não ter compreendido aquilo que definiu como uma colaboração criativa única entre os dois durante a produção do filme. Mas muito para além da simples história de uma família afectada por estranhos fenómenos do paranormal, inexplicáveis mesmo para uma equipa de investigadores universitários que apesar da sua longa experiência nunca se tinham deparado com algo com uma dimensão tão forte, Poltergeist é um daqueles filme onde os efeitos especiais fazem toda a diferença e não surgem apenas como algo supérfluo. Todas as sequências onde a presença dos espíritos malignos se faz notar foram tão bem criadas que ainda hoje continuam a ser um marco para aquele período. Contudo não é só através destes efeitos visuais que Poltergeist deixou a sua marca. Não há como não recordar o efeito que o som tem ao longo de todo o filme, não apenas nas cenas em que ouvimos a voz de Carol Anne dentro do televisor, talvez as mais assustadoras, por não sabermos o que se está a passar, mas também nos rumores que as personagens vão ouvindo ao longo do filme. E sendo este um filme oriundo da geração dos movie brats, a geração de jovens realizadores que na década de 1970 veio trazer novo sangue a Hollywood, com tudo o que de bom e mau isso representou, é curioso ver como aqui e ali há piscares de olho às suas influências e homenagens mais ou menos perceptíveis. Começam com a decoração do quarto dos filhos mais novos de Freeling, totalmente inspirada na saga da Guerra das Estrelas, e acabam nos vários clássicos que surgem nos ecrãs de televisão da residência. E, claro, não ficou de fora uma homenagem discreta ao cinema de Alfred Hitchcock, com o recurso a um dolly zoom numa das sequências finais, que nos remete para uma das mais famosas cenas do clássico Vertigo – A Mulher Que Viveu Duas Vezes.

“(...)Poltergeist é um daqueles filme onde os efeitos especiais fazem toda a diferença e não surgem apenas como algo supérfluo.” 63


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Título nacional: Um Peixe Chamado Wanda Realização: Charles Crichton

A FISH CALLED WANDA

Elenco: John Cleese, Jamie Lee Curtis, Kevin Kline

1988 JOÃO PAULO COSTA

Um grupo de delinquentes junta-se para roubar de um banco londrino, levando consigo pequenos diamantes no valor de mais de 12 milhões de libras. Entre eles encontram-se os ingleses George (Tom Georgeson), o cabecilha, e Ken (Michael Palin), o seu homem de confiança, e também Wanda (Jamie Lee Curtis) e Otto (Kevin Kline), americanos apresentados como irmãos mas que na verdade mantêm uma relação sexual e pretendem ficar com o saque para eles. Após o assalto bem sucedido, Wanda e Otto denunciam George anonimamente, que é preso de imediato, mas não sem antes esconder os diamantes num local secreto. Cá fora, Ken terá de abater a única testemunha ocular do assalto antes desta depor em julgamento, enquanto Wanda fará tudo para descobrir o paradeiro das jóias, nem que para isso tenha de se envolver com Archie (John Cleese), responsável pela defesa judicial de George, o que faz aumentar exponencialmente os ciúmes de Otto, incapaz de aceitar a evidente atracção de Wanda por Archie.

moderno. Para além de todas as evidentes subtilezas da escrita, que se encontram nos diálogos muito bem trabalhados e na construção de situações tão insólitas quanto hilariantes, Um Peixe Chamado Wanda é também (e sobretudo?) um excelente filme de actores, todos eles capazes de fazer justiça ao divertido argumento, mas oferecendo às suas personagens uma série de peculiaridades que as tornam tão marcantes e inesquecíveis. Jamie Lee Curtis parece divertir-se bastante com a sensualidade de Wanda, especialmente na forma como se encontra constantemente à procura de chamar a atenção para o próprio corpo, que usa descaradamente como arma de conquista e que o espectador sabe, desde uma das primeiras cenas, não ser de confiança. E depois, claro, temos os homens que Wanda usa sem rodeios da forma que quer: Michael Palin na pele de Ken, o ingénuo gago amante de animais, é verdadeiramente hilariante, nomeadamente numa série de cenas em que tenta despachar uma velhinha prestes a depor contra o seu bando. Mas na realidade são os confrontos entre John Cleese e Kevin Kline que arrancam o maior número de gargalhadas ao espectador. O primeiro, Archie, é um conformado e aborrecido inglês, capaz de deixar o seu casamento rotineiro por uma desconhecida e sedutora Wanda. O segundo, Otto, é um explosivo psicopata americano com uma obsessão pouco saudável por Wanda e, mesmo quando tem de passar por seu irmão, não consegue deixar de ceder aos ciúmes. São deliciosas as cenas em que Otto espia secretamente os encontros entre Wanda e Archie, bem como os confrontos directos entre eles, nomeadamente porque trazem também ao de cima um irresistível confronto cultural, porque além de romântica esta é também uma comédia de costumes ao bom estilo inglês. A interpretação enérgica de Kline valeu-lhe mesmo o Oscar de Melhor Actor Secundário, uma das muitas provas de popularidade de um filme repleto de encantos que ainda hoje acerta em cheio em todas as notas.

À primeira vista, esta sinopse de A Fish Called Wanda parece reunir no sítio certo todos os elementos essenciais do cinema noir: um assalto recheado de traições e desconfiança, uma femme fatale que usa a sexualidade para conseguir o que quer, ciúme, homicídio, e por aí fora… E na realidade, não custa nada imaginar tal premissa a resultar num excelente filme de género, mas o que aqui nos é apresentado está muito longe disso. Na verdade, trata-se de uma das mais divertidas comédias mainstream da década de 80, assinada por John Cleese, antigo membro dos Monty Python que é aqui responsável pelo argumento, produtor executivo e um dos protagonistas. Afastando-se completamente da estrutura episódica que marcou as incursões cinematográficas dos Python e assumindo uma narrativa convencional que explora as maiores forças do cinema de crime mas embrulhando-a num tom de comédia romântica, Cleese e o realizador Charles Crichton criaram um clássico

“(...)trata-se de uma das mais divertidas comédias mainstream da década de 80(...)” 65


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ONE FLEW OVER THE CUCKOO’S NEST

Título nacional: Voando Sobre um Ninho de Cucos Realização: Milos Forman Elenco: Jack Nicholson, Louise Fletcher, Michael Berryman

1975 PEDRO MIGUEL FERNANDES

Considerado por muitos como um dos melhores realizadores oriundos da ex-Checoslováquia, Milos Forman foi um dos nomes mais sonantes que saiu do movimento da Nova Vaga checa. Contudo, dadas as características dos seus filmes iniciais, realizados durante a década de 1960 e que foram vistos como críticas ácidas aos regimes que singravam na Europa de Leste, cedo as suas obras começaram a ser proibidas pelas autoridades locais e Forman viu-se obrigado a abandonar o país. Foi nos EUA que encontrou um porto de abrigo e foi precisamente em território norte-americano que voltou a trabalhar e a partir daí o seu nome começou a ser mais conhecido, sobretudo por dois filmes que conquistaram o Óscar de Melhor Filme: One Flew Over the Cuckoo's Nest, em 1975, e Amadeus, em 1984. Adaptação do romance homónimo escrito por Ken Kesey, Voando Sobre um Ninho de Cucos é talvez o ponto alto da carreira de Milos Forman e um dos três filmes que ao longo da história das estatuetas douradas conseguiram vencer as cinco principais categorias na mesma edição: além de Melhor Filme, este clássico de Forman levou para casa o galardão de Melhor Realizador, Actor e Actriz Principal e Argumento, neste caso Adaptado. A par do filme de Forman, apenas conseguiram alcançar semelhante proeza Uma Noite Aconteceu, de Frank Capra, e O Silêncio dos Inocentes, de Jonathan Demme, em 1934 e 1991, respectivamente. Prémios e curiosidades à parte, a verdade é que Voando Sobre um Ninho de Cucos é um grande filme da década de 1970, apesar de ser um filme que vive muito à conta das excelentes interpretações de um elenco de luxo, o que nem sempre significa que dê bom resultado. Encabeçado por Jack Nicholson e Louise Fletcher, este elenco é o centro de todo o filme, que por vezes assume um tom próximo do documentário (o livro de origem foi considerado, aquando da sua publicação, um manifesto contra as práticas nas instituições para doentes mentais nos EUA), sem nunca sair da esfera da ficção pura. Mas acaba por ser a relação entre

McMurphy (Jack Nicholson), um criminoso que acredita que a sua ida para uma instituição para doentes mentais pode ser um atalho para o seu regresso à liberdade mais cedo do que o previsto, e a rígida enfermeira Ratched (Louise Fletcher), que está à frente da ala onde McMurphy é internado, que vai ser explorada por Forman no desenrolar da acção de Voando Sobre um Ninho de Cucos. Contudo, se é esta relação entre duas personagens que estão em permanente conflito que surge à superfície do filme como sendo o principal, aos poucos os elementos que se tornam mais evidentes acabam por ser as práticas na instituição e a forma como os pacientes são tratados, que terminam em tragédia em alguns casos e dão à obra de Milos Forman quase um tom de filme de denúncia, sem nunca o mostrar de forma demasiado óbvia ou directa, como geralmente acontece neste tipo de filmes. O cineasta escapa bem às armadilhas de um tipo de cinema engajado, graças a um equilíbrio bem conseguido entre as cenas passadas dentro dos corredores da instituição e as peripécias de McMurphy nas suas inúmeras tentativas para escapar a esta sua nova prisão, que cedo se apercebe não ser tão diferente como aquela de onde veio. É aqui que notamos mais as diferenças entre o tal piscar de olho ao documentário (são notáveis as cenas de terapia colectiva filmadas por Forman, que quase parecem feitas de improviso) e a ficção espelhada nos episódios das fugas de McMurphy, personagem que é uma das melhores interpretações da carreira de Jack Nicholson, que por esta altura atravessava um dos seus melhores períodos.

“(...)Voando Sobre um Ninho de Cucos é talvez o ponto alto da carreira de Milos Forman(...)” 67


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Título nacional: Serenata à Chuva Realização: Stanley Donen e Gene Kelly

SINGIN’ IN THE RAIN

Elenco: Gene Kelly, Donald O’Connor, Debbie Reynolds

1952 PEDRO MIGUEL FERNANDES

Mais do que um belo musical, provavelmente um dos melhores de sempre, Singin' in the Rain é uma grande homenagem ao Cinema e particularmente a uma época bastante importante na história da Sétima Arte. Passado em Hollywood durante o período de transição entre o Cinema mudo e a chegada do som ao grande ecrã, ou seja, quando o Cinema ainda passava por enormes dores de crescimento e tinha de se adaptar a esta nova tecnologia, o musical realizado a quatro mãos por Stanley Donen e Gene Kelly, que acumula este papel com o de protagonista do filme, consegue a proeza de ir muito para lá da simples história de amor que nasce quando um homem encontra uma mulher. Neste caso trata-se da história de Don Lockwood (Gene Kelly), um actor da década de 1920, que forma um par de sucesso com a não menos popular Lina Lamont (Jean Hagen). Numa época em que os actores eram explorados pelos estúdios até ao tutano, através do modelo do star system, Hollywood depara-se com uma nova ameaça: o som, que começa por ser visto pelos produtores como algo sem sentido e com grandes probabilidades de fracassar para mais tarde, quando a estreia do primeiro filme sonoro tem um enorme sucesso (o histórico O Cantor de Jazz, momento que é recuperado aqui), ser visto como o futuro da indústria. E é aqui que entra a outra grande protagonista de Serenata à Chuva, por quem Don Lockwood acaba por se apaixonar: Kathy Selden, interpretada por Debbie Reynolds, que em 1952 dava os primeiros passos no mundo do cinema. Aqui interpreta o papel da actriz que vem de fora e não só rouba o coração de Don, como acaba por ser a substituta de Lina Lamont, tanto ao lado do seu companheiro, como no próprio cinema, pois é ela que vai dobrar a voz estridente de Lina, pouco adequada ao som. E o filme de Donen e Kelly vai também muito além dos números que deram fama ao género, onde podemos encontrar a famosa dança à chuva protagonizada por Gene Kelly, um dos momentos mais icónicos da história de todo o musical e um dos mais reconhecíveis de sempre.

Pintado em tons de comédia e sem utilizar tanto as cores fortes que víamos noutros musicais da época, como acontecia, por exemplo, nos filmes de Vincente Minnelli (Um Americano em Paris, realizado apenas um anos antes e com o mesmo Gene Kelly no papel principal, é um bom termo de comparação), Serenata à Chuva é um dos retratos mais perfeitos de um período atribulado de Hollywood, bastante diferente de obras mais sombrias que abordam a mesma época. À memória vêm-nos fitas como O Crepúsculo dos Deuses, de Billy Wilder, ou o mais recente O Artista, de Michel Hazanavicius. Contudo aqui não há espaço para grandes dramas, apesar de sabermos que no final a carreira de Lina Lamont muito provavelmente terá o mesmo destino que teve Norma Desmond no filme de Wilder. Aqui os números musicais são reis e senhores: além da já referida e mais do que famosa cena da dança à chuva, destacamos a fantástica Make 'Em Laugh interpretada e dançada por Donald O'Connor num delirante passeio por um set, a sequência em que os três amigos, Kelly, O’Connor e Reynolds, interpretam Good Morning ou a lição de dicção de Don Lockwood que culmina no número Moses Supposes. A acrescentar a estes fabulosos momentos musicais, Serenata à Chuva consegue também recriar, sempre com um tom de comédia leve, o período que Hollywood viveu quando chegou o som. O exemplo máximo destas sequências dá-se na cena das filmagens do primeiro filme sonoro da dupla Lockwood-Lamont, que demonstra o desespero do realizador para conseguir fazer com que tudo se oiça através do microfone, esse inimigo mortal do cinema mudo. Em suma, mais do que uma fantástica comédia musical, Serenata à Chuva é uma viagem ao passado que vale a pena fazer para reviver um período-chave na história de Hollywood.

“(...)Singin' in the Rain é uma grande homenagem ao Cinema e particularmente a uma época bastante importante na história da Sétima Arte.” 69


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Título nacional: Casamento Escandaloso Realização: George Cukor

THE PHILADELPHIA STORY

Elenco: Cary Grant, Katharine Hepburn, James Stewart

1940 ANÍBAL SANTIAGO

Cukor tem em The Philadelphia Story uma das suas obras-primas, sendo capaz de aproveitar o elenco de luxo que tem à sua disposição e desenvolver uma comédia magnífica. As falas são trocadas muitas das vezes a uma velocidade estonteante, os acontecimentos sucedem-se a um ritmo fulgurante, enquanto a mansão de Tracy é palco dos episódios mais rocambolescos. Esta iria casar-se, mas Dexter, o seu ex-marido parece pronto a dificultar o evento, tendo no destino e numa dupla de jornalistas o veículo ideal para esse desiderato, enquanto Cukor gere com pinças os relacionamentos dos diversos elementos, respeitando em parte as origens teatrais da peça na qual o filme é inspirado, deixandonos perante um conjunto restrito de cenários onde os sentimentos voam a grande velocidade e os personagens procuram aproveitar os luxos que rodeiam o seu quotidiano. Os sentimentos voam, mas quem mais se destaca é o magnífico argumento, recheado de falas apuradas, muito humor, romance, alguma irreverência e um conjunto de actores capazes de darem outra dimensão a esta obra e protagonizarem alguns momentos memoráveis. Katharine Hepburn é uma actriz magnífica, que tem em Tracy uma personagem forte, pronta a expor a sua personalidade junto dos homens, embora não esconda algumas das suas dúvidas e fragilidades, sendo o paradigma das personagens femininas complexas criadas por George Cukor. James Stewart interpreta o peixe fora de água, um jornalista que não gosta de cobrir eventos sociais, que protagoniza alguns momentos divertidissimos com os personagens interpretados por Cary Grant e Hepburn, sobretudo quando bebe mais do que a conta. Já Grant é o carisma em pessoa ao longo desta comédia de costumes brilhante, onde um elenco maravilhoso mostra o seu talento, o argumento surge quase irretocável e George Cukor realiza uma obra marcante.

Existe algo de sublime e memorável ao vermos Cary Grant a expor as suas falas a uma velocidade estonteante com Katharine Hepburn e pelo caminho ainda termos um James Stewart cheio de carisma e a roubar muitas das vezes o destaque, ao longo de The Philadelphia Story, uma brilhante screwball comedy realizada por George Cukor, onde mais uma vez este se revela exímio no estabelecimento e desenvolvimento dos relacionamentos humanos. Cukor transporta-nos para o mundo dos ricos e favorecidos, em particular e maioritariamente para a casa da abastada Tracy (Hepburn), uma mulher algo mimada, com uma personalidade vincada, que a espaços até se revela uma pessoa frágil, que se prepara para casar com um novo rico. Tracy é divorciada de Dexter (Grant), um indivíduo falador, cheio de carisma, sarcástico, algo irresponsável e pronto a intrometer-se na vida da antiga esposa, sobretudo quando o editor da Spy Magazine, antigo chefe e amigo do personagem interpretado por Grant, decide cobrir a cerimónia. Dexter é chamado para convencer Tracy a aceitar a presença do jornalista "Mike" (Stewart), um escritor com pouco sucesso, e a fotógrafa Liz (Hussey), em sua casa durante a véspera e o dia do casamento, de maneira a estes cobrirem o evento. A presença dos jornalistas em casa de Tracy vem expor a confusão que por lá reina, onde não faltam pessoas excêntricas, a começar pela noiva, uma mulher que facilmente desperta a atenção dos homens e se prepara para viver uma véspera de casamento hilariante. Entre esses homens encontra-se Dexter, que ainda nutre sentimentos pela antiga esposa, tendo com esta uma enorme química, mesmo quando estão a embirrar um com o outro. Mike parece desprezar toda a alta sociedade, incluindo os comportamentos de Tracy, embora aos poucos se deixe conquistar por esta. No meio disto tudo temos ainda George, o apagado noivo de Tracy, e Liz, uma fotógrafa apaixonada por Mike, enquanto Cukor se diverte a elaborar uma comédia de costumes, onde elementos de diferentes grupos sociais se reúnem e logo prometem arranjar confusão.

“(...)quem mais se destaca é o magnífico argumento, recheado de falas apuradas, muito humor, romance, alguma irreverência(...)” 71


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Título nacional: Rocky Realização: John G. Avildsen

ROCKY

Elenco: Sylvester Stallone, Talia Shire, Burt Young

1976 ANÍBAL SANTIAGO

Perto do final de Rocky a campainha do ringue de boxe toca, o combate termina e Rocky tem algo que domina o seu pensamento. Saber se venceu? Não. Este apenas quer saber onde está a amada. Mais do que um filme sobre boxe e lutas emotivas, Rocky é um drama humano simples e tocante, sobre um conjunto de pessoas desajustadas de um bairro de Filadélfia, com particular enfoque num boxeur amador de raízes italianas que procura vencer o destino, Rocky Balboa. Protagonizado por um então desconhecido Sylvester Stallone, através do argumento do próprio, e realizado por John G. Avildsen, o filme surpreendeu tudo e todos ao apresentar um drama humano emocionalmente potente, simples no seu visual e enredo, que toca profundamente o espectador com a história de superação de Rocky. Este é um boxeador amador que ganha a vida como cobrador de um mafioso e em pequenos combates, sendo apaixonado pela tímida Adrian (Shire), a irmã do seu melhor amigo Paulie (Young). O romance entre Rocky e Adrian é tocante, carinhoso e repleto de pequenos pormenores que nos aquecem o coração, não pelo desejo sexual, implícito em qualquer relação amorosa, mas sim pela forma carinhosa como estas duas almas aparentemente perdidas, transformam a vida um do outro e formam uma dupla inseparável. Temos ainda Mickey (Meredith), o duro treinador de Rocky, com quem este mantém uma relação algo complicada. A vida destes personagens muda quando Rocky recebe um inesperado convite de um organizador de eventos, que o convida a participar num combate contra o campeão de Boxe, Apollo Creed (Weathers). Após uma vida de mágoa, solidão e fracassos, Rocky tem neste combate a primeira grande oportunidade de triunfar na vida. Diga-se que não é só Rocky que conta com uma oportunidade única, mas sim todos os que o rodeiam e os espectadores que torcem para ver o personagem alcançar o seu momento de catarse e agarrar com toda a sua alma aquela chance capaz de mudar uma vida que todos gostávamos de ter.

O combate entre Rocky e Apollo surge assim como o grande climax do filme. Esta é a grande oportunidade do protagonista exprimir a vontade inabalável que tem em mostrar que merece a chance de fintar o destino e ser alguém na vida, e sobretudo, mostrar à amada Adrian que é capaz de triunfar, ou seja, uma emocionante história de superação, em que a vontade e o querer parecem afastar a razão e a lógica. Para este momento do combate final surgir como o emocionante clímax do filme, muito contribuiu a forma graciosa como o argumento de Stallone e a realização de John G. Avildsen conseguiram criar um universo coeso em volta dos personagens que povoam o drama, a ponto do boxe aparecer quase sempre secundário. O cerne de Rocky não é o boxe, mas sim todo o drama humano que envolve os seus personagens e o desenvolvimento dos mesmos, embora também não possamos descurar as célebres sequências de treino do personagem, que envolvem este esmurrar a carne do talho, passando pelo treino em que o protagonista corre pela cidade de Filadélfia (e sobe as famosas escadas), transmitindo uma atmosfera de entusiasmo, de vontade e querer, com a magnífica banda sonora de Bill Conti a ilustrar estes não menos memoráveis momentos. A certa altura de Rocky podemos encontrar o protagonista a olhar para uma fotografia sua quando era mais jovem, provavelmente a pensar nos sonhos não cumpridos ao longo dos anos que se passaram. O combate com Creed surge como um momento único e aparentemente improvável de desafiar o destino e concretizar algo que sempre sonhou, enquanto Sylvester Stallone tem o papel da sua vida neste drama humano sublime e marcante. No final do filme, o resultado do combate pouco importa, mas sim sabermos se Rocky consegue ou não vencer o destino, ao longo desta apaixonante obra sobre a capacidade do ser humano em superarse, travar-se de razões com o destino e lutar pelos seus sonhos.

“(...) uma emocionante história de superação, em que a vontade e o querer parecem afastar a razão e a lógica.” 73


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Título nacional: O Feiticeiro de Oz Realização: Victor Fleming

THE WIZARD OF OZ

Elenco: Judy Garland, Ray Bolger, Jack Haley

1939 PEDRO SOARES

Uma mensagem escrita precede o início do filme, avisando-nos que esta é uma história com muitos anos de vida, que continua a fazer as delícias dos demais. Como se o aviso fosse necessário, tal é a reputação que The Wizard Of Oz detém em todo o mundo. Adaptação de um dos mais célebres contos infantis norte-americanos, The Wizard Of Oz é uma história de crianças para adultos, que está para o cinema assim como O Principezinho está para a literatura. Para entendermos a magia e a importância deste clássico intemporal, basta termos em conta o facto de ser um dos filmes com passagem televisiva obrigatória nos Estados Unidos todos os anos.

psicadelismo; para isso, atende-se às espantosas "coincidências" com a posterior obra-prima dos Pink Floyd, Dark Side Of The Moon. The Wizard Of Oz é ainda mais do que isso. É uma mensagem moral, recheada de simbolismos e crítica social. Se de um lado é a bonita história de quatro companheiros de viagem, que afinal são um só, e que tomam consciência dos importantes valores da vida, por outro lado é a crítica de uma jovem do povo, muito terra-a-terra (Dorothy), que trava contacto com a indústria (Homem-de-Lata), a política (Leão) e a actividade rural (Espantalho), e que para atingir os seus fins, terá que percorrer a Estradas Dos Tijolos Amarelos, ou seja, o ouro (leia-se o dinheiro) como caminho e motivo.

The Wizard Of Oz conta a história de Dorothy (uma replandescente Judy Garland) que, juntamente com o seu cão Toto, é transportada por um tornado para um mundo mágico e alternativo. Aí, a única forma de regressar a casa, no Kansas, é encontrar o poderoso Feiticeiro de Oz. Na sua jornada, vão-se-lhe juntar o Espantalho (Ray Bolger), que procurava por um cérebro; o Homem-de-Lata (Jack Haley), que anseava por um coração; e o Leão (Bert Lahr), que almejava por coragem.

Mas The Wizard Of Oz ainda não se fica por aqui. É uma belíssima jukebox de canções memoráveis, ou não fosse Somewhere Over The Rainbow a mais bela canção do cinema, até um gordo com um ukele a ter tornado insuportável com tamanha exposição. E é ainda um espectáculo visual cativante, de efeitos especiais arcaicos, mas eficazes. Uma última referência ainda ao elenco: Judy Garland deslumbra, apesar de muito jovem, à semelhança do que acontecera um ano antes, com Shirley Temple; os seus três companheiros de viagem são excelentes nos maneirismos e na caracterização dos bonecos que encarnam e extremamente convincentes na expressividade sentimental; e Margaret Hamilton será sempre a mais genial bruxa da sétima arte - estará para a figura de bruxa, assim como Bella Lugosi estará para a de Drácula e Boris Karloff para a de Frankenstein. Arrepiante, a maneira como ameaça I'm gonna get you my pretty and your little dog Toto, too, que ainda hoje me arrepia os pêlos na nuca sempre que a oiço.

Os estúdios da MGM apostaram tudo neste filme e, mesmo com a dança de realizadores, conseguiram alcançar uma saborosa vitória. Conseguindo igualar a magia ímpar da Disney, The Wizard Of Oz era uma bela conjugação do imaginário de Alice No País Das Maravilhas, com os contos da Branca De Neve e Os Sete Anões ou o Peter Pan. Para isso, recorreram-se de uma fábula fantástica, estreando a técnica technicolor para criar um universo colorido inesquecível, num belo contraste com o universo real em tons de sépia.

The Wizard Of Oz é um universo à parte, que utiliza o cinema enquanto máquina de sonhos, e que só os que não são jovens de coração poderão não compreender.

The Wizard Of Oz é magia, mas é ainda mais que isso. É magia no folclore abordado, fabuloso e apaixonante, e é magia no misticismo e

“(...)The Wizard Of Oz é uma história de crianças para adultos, que está para o cinema assim como O Principezinho está para a literatura.” 75


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Título nacional: Por Mais Alguns Dólares Realização: Sergio Leone

PER QUALCHE DOLLARO IN PIÙ

Elenco: Clint Eastwood, Lee Van Cleef, Gian Maria Volonté

1965 ANÍBAL SANTIAGO

de nos ter brindado com A Fistful of Dollars. Clint Eastwood enche o ecrã de carisma, com o seu olhar duro, acompanhado pelo poncho, barba por fazer, chapéu à cowboy, charuto na boca e enorme habilidade no disparo, tendo em Van Cleef um colega de elenco à altura. Muitas das vezes de cachimbo na boca, rosto marcado por feições rígidas, este é um pistoleiro implacável, que se junta ao protagonista para enfrentar o louco El Indio. Se os personagens interpretados por Van Cleef e Eastwood são pragmáticos, embora o primeiro até esconda uma vendetta pessoal, já o personagem de Volonté é fleumático, instável, sádico e implacável. Estes homens comunicam pelo cano das suas pistolas, seja a demonstrar a sua perícia no disparo, seja a meter respeito, seja a eliminar os adversários, enquanto avançam por cidades quase desertas e marcadas por enorme insegurança. Leone atribui um grande estilo aos acontecimentos (compensando a espaços a simplicidade do argumento), pontuando os mesmos de uma enorme inquietação, voltando a exacerbar os rostos que tanto falam nos momentos de silêncio, para expor cada um dos elementos, enquanto a banda sonora de Morricone incrementa cada momento, seja este de tensão, violência ou até alguma ironia. Os personagens por sua vez caminham aparentemente impassíveis pelos territórios marcados pela poeira levantada pelos cavalos que comandam, surgindo prontos a imporem a sua lei, ao longo de um conjunto de cenários típicos dos filmes do género, não faltando a taberna e as cidades quase desertas, sobressaindo "El Paso", criada especificamente para o filme no deserto de Almería. Spaguetti western pronto a não dar grandes lições de moralismo, marcado por alguma violência, um assassino psicopata e protagonistas exímios na arte do disparo, A Few Dollars More traz mais um punhado de dólares aos envolvidos e uma obra envolvente que demonstra a perícia de Leone para a realização de obras do género.

Com Clint Eastwood e Lee Van Cleef como dois caçadores de recompensas, Per qualche dollaro in più marca o segundo capítulo da trilogia dos dólares de Sergio Leone, após o bem sucedido A Fistful of Dollars. Leone dá um escopo de maior dimensão a For a Few Dollars More, quer na sua duração, quer nos seus cenários, em relação ao filme anterior, deixando-nos perante dois caçadores de recompensas parcos em palavras e prontos para a acção, com Eastwood interpretar novamente um “Pistoleiro Sem Nome” e Van Cleef a dar vida ao Coronel Douglas Mortimer, o "homem de negro". Os momentos iniciais da narrativa estabelecem desde logo as personalidades implacáveis destes dois elementos, com ambos a eliminarem os seus alvos. Mortimer elimina Calloway e recebe a notícia que "Manco" (é atribuído um nome distinto em cada filme da trilogia ao personagem interpretado por Eastwood) o pretende encontrar. O personagem interpretado por Lee Van Cleef pretende saber informações sobre Red Cavanagh, mas "Manco" logo elimina este elemento e os seus homens. Os dois são atraídos pelo anúncio que pede a captura (vivo ou morto) de El Indio, um assassino psicótico, sendo oferecidos 10 mil dólares pelo aprisionamento do mesmo. Sergio Leone revela-se mais uma vez exímio na utilização dos close-ups e close-ups extremos ao longo do filme, ficando particularmente na memória quando "Manco" e Mortimer vislumbram o cartaz a anunciar El Indio como procurado, existindo uma troca rápida entre o rosto de cada um dos personagens e o cartaz, ao som das balas, como que adivinhando o confronto que se aproxima. Mortimer e "Manco" dirigem-se a El Paso, onde El Indio e o seu gangue pretendem assaltar um banco conhecido pela sua elevada segurança, com a dupla de protagonistas a formar uma inesperada aliança e a procurar arrecadar a elevada recompensa. Sergio Leone volta a colocar-nos perante um universo narrativo marcado por foras da lei, anti-heróis pragmáticos, violência e muito estilo, depois

“(...)conquistou plateias com os seus excessos de libertinagem sexual(...)” 77


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Título nacional: Por Um Punhado de Dólares Realização: Sergio Leone

PER UN PUGNO DI DOLLARI

Elenco: Clint Eastwood, Gian Maria Volonté, Marianne Koch

1964 ANÍBAL SANTIAGO

Clint Eastwood tem no Pistoleiro sem Nome da “trilogia dos dólares” um dos personagens mais carismáticos e marcantes da sua carreira, incutindo no mesmo uma dureza visível no olhar e nos seus gestos, com o seu o rosto a conseguir muitas das vezes transmitir tanto ao mais do que as suas curtas palavras. Este Pistoleiro Sem Nome (que até é chamado de Joe, mas a equipa de marketing “vendeu” assim o personagem), parco em palavras, inteligente e audaz, chega a San Miguel, uma cidade de fronteira no México, oriundo dos EUA, pronto a lucrar com a rivalidade entre dois gangues rivais, os Rojo, que são conhecidos pelo contrabando de bebidas, e os Baxter, conhecidos pelo tráfico de armas. O protagonista logo procura intrometer-se nesta rivalidade, procurando colocar um grupo contra ao outro, enquanto pelo caminho ainda tenta lucrar alguns dólares, a moeda de pagamento destes criminosos imorais. Sergio Leone tem em Per un pugno di dollari uma obra que abre da melhor maneira a chamada "trilogia dos Dólares", ao desenvolver uma película violenta, cadenciada por uma banda-sonora magnífica que é capaz de adensar cada momento sem ser minimamente intrusiva, enquanto o cineasta dá espaço a Eastwood para sobressair como este personagem cínico e pragmático, que apenas quer lucrar e sair vivo dos confrontos, revelandose um mistério ao longo desta obra sem espaço para grandes subtramas e ainda menos dada a lições de moral. Este Pistoleiro Sem Nome é uma figura misteriosa, meio soturna, com a barba por fazer, acompanhado pelo seu charuto, chapéu "à cowboy", o seu poncho e uma enorme pontaria com o colt 45, protagonizando um emotivo duelo final (diga-se que o duelo final será uma das imagens de marca da trilogia dos dólares), para além de contar com uma estranha noção de justiça, algo que o conduz a ajudar uma família em apuros. Pelo caminho, o protagonista trai gangues, mata, é alvo de brutalidade por parte dos inimigos, mas raramente parece ser capaz de quebrar perante as adversidades.

Os olhos de Clint Eastwood persuadem-nos, fazem-nos acreditar no seu anti-herói, ao longo deste filme de baixo orçamento, marcado por uma enorme violência, personagens duros e aparentemente inflexíveis. Eastwood nem era a primeira opção de Leone, e diga-se que nem era a segunda, com nomes como Charles Bronson, Henry Fonda, Henry Silva, Richard Harrison a estarem entre as primeiras opções, sendo que este último recomendou Clint ao cineasta. A opção foi um sucesso, bem como esta tentativa de Sergio Leone em revitalizar os westerns, arquitectando uma obra que viria a servir como exemplo para vários spaghetti westerns (que já se encontravam a ser elaborados antes deste filme), muito marcada por elementos transversais a outros filmes do cineasta, tais como os close-ups extremos prontos a exacerbarem os rostos e sentimentos dos personagens, a banda sonora marcante de Ennio Morricone, planos magníficos, um bom aproveitamento dos cenários, uma capacidade notável de dar aos acontecimentos da narrativa uma grandiosidade maior do que a vida. Apesar do seu enorme valor, nem por isso A Fistful of Dollars deixou de estar envolto em polémica, nomeadamente com Akira Kurosawa, ou não fosse um remake de Yojimbo, embora não reconheça oficialmente essa situação. Os produtores de Kurosawa conseguiram obter uma compensação financeira de cem mil dólares, mais uma percentagem das receitas do filme na Ásia, algo que não belisca o trabalho de Sergio Leone, que tem aqui a sua primeira obra de destaque. Com um argumento eficaz, um Clint Eastwood carismático e um conjunto de cenários simples, A Fistful of Dollars tem como pano de fundo uma cidade fronteiriça marcada pelo incumprimento da lei, onde as balas voam facilmente e o enforcamento pode ser uma realidade, surgindo como uma obra violenta, cheia de sentimento e um anti-herói marcante, expondo o magnífico talento de Sergio Leone para a realização. “(...)uma película violenta, cadenciada por uma banda-sonora magnífica(...)” 79


19 80


Título nacional: Ninotchka Realização: Ernst Lubitsch

NINOTCHKA

Elenco: Greta Garbo, Melvyn Douglas, Ina Claire

1939 ANÍBAL SANTIAGO

Ninotchka coloca-nos perante um romance improvável entre uma fria enviada soviética e um Conde galanteador, expondo o contraste latente entre os valores que defendiam antes de se conhecerem, ao mesmo tempo que nos apresenta uma sátira algo contundente à União Soviética e aos seus ideais. Estas vão ser as duas unidades temáticas fundamentais (às quais podemos acrescentar a questão das jóias), com Lubitsch a utilizar um estilo muito próprio e discreto para abordar um tema tão problemático como a crítica ao comunismo. No entanto, o maior destaque vai para a relação entre Ninotchka e o Conde, com a química fantástica entre Douglas e Garbo a conceder uma dimensão de excelência a Ninotchka e a surgir como a alma do filme. O Conde encontra-se nas antípodas ideológicas da protagonista, embora esse choque de culturas não impeça o amor entre ambos, com os dois a protagonizarem momentos marcantes de cinema, onde o estilo descontraído de Douglas serve magnificamente o personagem que interpreta. Garbo tem um desempenho notável como Ninotchka, uma rígida enviada soviética, que é seduzida por Paris e pelo Conde. Esta surge no grande ecrã com um tom de voz quase mecânico e uma extrema rigidez física, contando com um visual quase masculino de forma a representar estereótipo da mulher soviética, um comportamento que aos poucos se vai diluindo, em grande parte graças ao Conde d'Algout, com as dicotomias entre os dois personagens a proporcionarem alguns momentos de enorme humor e até romantismo. Ninotchka poderia facilmente tornar-se numa sátira desprovida de interesse, mas Lubitsch consegue conciliar de forma sublime os elementos satíricos com um romance sincero e improvável entre dois personagens antagónicos, ao longo de uma obra maior da sua carreira, uma comédia leve, inteligente e agradável, que apresenta uma Greta Garbo magistral. Garbo ri e o espectador também ao longo desta deliciosa comédia realizada por Ernst Lubitsch.

“Garbo Laughs”. Foi com este slogan que a MGM decidiu promover Ninotchka. Lenda divina da história do cinema, Greta Garbo era sobretudo conhecida pelos papéis mais dramáticos, que tanto encantaram o público, pelo que Ninotchka resultou numa procura do estúdio em apresentar a actriz num registo distinto e superar o fracasso de Conquest. Para realizar esta comédia protagonizada por Garbo, o estúdio contratou Ernst Lubitsch, um cineasta cujo toque de Midas, ou se preferirem, "toque de Lubitsch" revelou-se aprimorado, com o realizador a explorar o talento da "esfinge sueca" e a desenvolver uma obra sublime, onde não falta bom humor, romance e uma sátira corrosiva à União Soviética. O enredo de Ninotchka desenrola-se em Paris, no período anterior à II Guerra Mundial e acompanha Nina Yakushova (Garbo), mais conhecida por Ninotchka, uma mulher que é enviada para colocar ordem na passividade dos três elementos, que se deslocaram a Paris tendo em vista a negociarem as jóias que outrora pertenceram à Duquesa Swana. O trio soviético cedo se deslumbrou pelos encantos do Capitalismo e acabou por descurar o trabalho, tendo uma adaptação bastante fácil ao território, ao contrário de Ninotchka. Os ideais desta diferem e muito em relação aos valores que encontra em Paris, apresentando um enorme choque cultural, pelo menos até travar conhecimento com o Conde d'Algout (Douglas), o representante da Duquesa Swana na disputa pelas jóias. Ninotchka ainda procura resistir, mas aos poucos começa a ceder aos encantos de Paris, do Ocidente, do Capitalismo, e sobretudo do Conde, algo paradigmaticamente representado quando este a faz rir. Esta felicidade não dura muito, com um forte revés a colocar em causa a felicidade do casal, ao longo desta brilhante comédia romântica, onde Greta Garbo surpreende pela positiva, Ernst Lubitsch apresenta o seu toque refinado na realização cinematográfica e o argumento revela as suas enormes qualidades.

“(...)uma obra sublime, onde não falta bom humor, romance e uma sátira corrosiva à União Soviética.” 81


20 82


Título nacional: Viver E Morrer em Los Angeles Realização: William Friedkin

TO LIVE AND DIE IN L.A.

Elenco: William Petersen, Willem Dafoe, John Pankow

1985 JOÃO PAULO COSTA

Morrer em Los Angeles parece-nos representar de forma tão autêntica as ruas da cidade dos sonhos como Os Incorruptíveis Contra a Droga o fazia com Nova Iorque, sendo que ambos os filmes partilham também grandes e elaboradas cenas de acção e perseguições automóveis pelas ruas da cidade, sem que estas alguma vez pareçam ostentivas mas sempre produtos naturais das circunstâncias narrativas. Estreado em 1985, numa altura em que o policial era particularmente popular - também pela mão de Michael Mann, que em 1981 havia estreado o excelente O Ladrão Profissional mas acima de tudo produzindo a série de grande êxito Miami Vice, Viver e Morrer em Los Angeles ajudou a cimentar o género entre o grande público, e não será mesmo exagerado dizer que a sua influência ainda hoje se faz sentir em muitos dramas televisivos que, infelizmente, tendem a confundir tremeliques de câmara ao ombro com autenticidade e verossimilhança. Não deixa de ser curioso, por isso, que Richard Chance seja interpretado por William Petersen, que anos mais tarde se viria a popularizar precisamente na série televisiva CSI (e que, já agora, o protagonista de Jade (1995) do mesmo Friedkin tenha sido David Caruso, hoje mundialmente conhecido como Horatio Caine de… CSI: Miami). Petersen empresta um limite bastante curioso ao seu personagem, agressivo e imprevisível, que funciona na perfeição quando combinado com a habitual intensidade de William Dafoe. Viver e Morrer em Los Angeles é um espécime perfeito do cinema do género nos anos 80, com um sentido de moda e uma banda sonora a condizer, mas é acima de tudo um filme empolgante, violento e implacável.

Eric Masters (Willem Dafoe) é um criminoso falsificador de notas que os detectives Richard Chance (William Petersen) e Jim Hart (Michael Greene) há muito têm debaixo de olho. Quando Jim, a poucos dias de atingir a reforma, é assassinado na caça a Eric, Richard não olha a meios para conseguir a vingança e, seja contando com a ajuda de uma informadora com quem anda a dormir, seja com uma vontade de pisar os limites da lei, irá fazer tudo para o apanhar. À primeira vista, To Live and Die in L.A. não aparenta quaisquer novidades em relação a tantos outros policiais que vieram antes ou depois dele: um vilão e um polícia com mais semelhanças do que diferenças, o agente assassinado a poucos dias da reforma, uma história de crime, vingança e violência. A verdade é que tudo isso pouco ou nada interessa enquanto assistimos a este clássico dos anos 80 com assinatura do ainda mais clássico William Friedkin capaz de, no seu melhor, conseguir arrancar doses industriais de tensão ao espectador desde os tempos de Os Incorruptíveis Contra a Droga (1971) ou O Exorcista (1973), que o tornaram nos final dos anos 70, a par de Francis Ford Coppola, o realizador mais poderoso da nova vaga de cineastas americanos da época. Viver e Morrer em Los Angeles marcou uma espécie de regresso à ribalta numa carreira que em termos comerciais (deixando de lado a real qualidade do seu trabalho, ao qual o tempo tem vindo a fazer justiça) havia conhecido um duro revés após fracassos como O Comboio do Medo (1977). Sem ter sido um êxito ao nível de anteriores títulos de Friedkin, o filme acabou por fazer uma carreira respeitável pelas bilheteiras de todo o mundo, tornando-se mais tarde, no auge do mercado do VHS, num fenómeno de culto. Tendo começado a sua carreira no cinema documental, Friedkin soube transportar como ninguém a autenticidade desses primeiros trabalhos na transição para a ficção, conseguindo recriar na perfeição os ambientes urbanos das suas narrativas no grande ecrã. Nesse aspecto, Viver e

“(...)um espécime perfeito do cinema do género nos anos 80, com um sentido de moda e uma banda sonora a condizer(...)” 83


Título nacional: Ghost World - Mundo Fantasma Realização: Terry Zwigoff

GHOST WORLD

Elenco: Steve Buscemi, Thora Birch, Scarlett Johansson

2001 SAMUEL ANDRADE

O “mundo fantasma” de Daniel Clowes (argumentista e autor da graphic novel em que o filme se baseia) é precisamente aquele que o travelling inicial deixa antever: uma visão de exagerada mas palpável e credível apatia social, intercruzada pela visão da protagonista, Enid, a dançar ao som do (numa improvável selecção musical...) rock indiano de Mohammed Rafi. Cedo nos apercebemos, portanto, que o desvio à norma, em todos os seus quadrantes (com a sociedade e a tradição norte-americanas em destaque) é o cerne de Ghost World - Mundo Fantasma, o qual, nesse âmbito, revela-se do melhor que os anos 2000 nos proporcionaram cinematograficamente.

atitudes não estão isentas de repreensão nem de condescendência. Mas em toda a sua ironia, Ghost World - Mundo Fantasma nunca impede a identificação do espectador com aquele constante descontentamento, que apenas encontra alívio no Blues dos anos 50 e 60 do século passado e a possibilidade de uma redenção através do amor, seja ele ditoso ou não. Puramente indie e repleto de humor inteligente (num sentido inteiramente distinto de “intelectual”, pois não será necessário saber quem foram Skip James ou Lionel Belasco para compreender o sarcasmo de algumas situações), Ghost World - Mundo Fantasma destaca-se pela capacidade de apreender o sentimento geral da sua era – isto é, o início de uma novo década, com redobradas frustrações e acalentadas esperanças –, colocando o estado de espírito de adultos e adolescentes num mesmo plano de incerteza perante o futuro e a vida.

Enid (Thora Birch no papel da sua vida para, logo a seguir, desaparecer das vistas do grande público) e Seymour são os dois protagonistas, "falhados da vida" e incapazes de se relacionarem com 99% da humanidade, cujas

“(...)o desvio à norma, em todos os seus quadrantes(...)”

21 84


Título nacional: Encontro de Irmãos Realização: Barry Levinson

RAIN MAN

Elenco: Dustin Hoffman, Tom Cruise, Valeria Golino

1988 ANÍBAL SANTIAGO

Rain Man pode não ser o filme que retrata com maior rigor a questão do autismo, pode não ser a obra mais aprumada esteticamente, mas sabe como poucos explorar uma relação de amizade improvável entre dois irmãos que desconheciam a existência um do outro. É filme que gosta de emocionar e tocar na alma do espectador, apelando ao seu sentimento, ainda que de forma não gratuita, enquanto dá a oportunidade para Tom Cruise e Dustin Hoffman terem interpretações memoráveis. Cruise interpreta Charlie Babbitt, um vendedor de carros, que se encontra a passar por uma fase algo complicada na sua vida. Este descobre que o pai, recentemente falecido, deixou três milhões de dólares para um elemento desconhecido. O elemento é Raymond, o irmão mais velho do protagonista. Raymond padece de autismo, tendo problemas em compreender, relacionar-se e estabelecer laços com outros seres humanos, sendo dado a hábitos estabelecidos. Charlie procura

iniciar uma batalha legal para ficar com metade da quantia monetária, mas gradualmente vai estabelecendo uma relação de amizade com esta figura com quem aparentemente praticamente não tem nada em comum. A certa altura de Rain Man podemos ver Raymond e Charlie a juntarem as suas testas, algo representativo do primeiro finalmente sentir-se à vontade com o irmão, após ter rejeitado o contacto inicial num abraço que o personagem interpretado por Tom Cruise pretendia dar. Rain Man é isto mesmo, um filme sobre gestos e sentimentos, gente humana que erra, muda, adapta-se, é capaz de formar laços duradoiros, tais como aqueles que estabelecemos com esta primorosa obra cinematográfica realizada por Barry Levinson.

“É filme que gosta de emocionar e tocar na alma do espectador(...)”

22 85


Título nacional: Doutor Jivago Realização: David Lean

DOCTOR ZHIVAGO

Elenco: Omar Sharif, Julie Christie, Geraldine Chaplin

1965 SARA GALVÃO

“Esta é uma altura horrível para se estar vivo”, diz Lara, a grande paixão de Yuri Jivago, a certo ponto. E a estranha e poderosa história de amor que ambos vivem, que poderia ter sido tão diferente se eles se tivesse conhecido antes da Revolução, parece contudo desmentir isso. Porque apenas devido às extraordinárias circunstâncias é que eles caíram nos braços um do outro. Doctor Zhivago é uma história sobre amor, honra e o que decidimos fazer da nossa vida, com um bigodado e idealista Omar Sharif (Jivago) a tentar decidir entre a esposa e a vida familiar e a atraente, mas “manchada”, Lara (Julie Christie). A História toma piedade da situação do bom doutor e deporta a família para fora do país, deixando-o a sós com Lara para sobreviver ao longo Inverno russo. Toda a história é contada pelo irmão Yevgraf (um bolshevique mais ou menos convicto que funciona como um anjo da guarda), a Tonya, o suposto fruto da relação entre Yuri e Lara.

No final, contudo, Jivago decide ser fiel e permanecer com o único amor que lhe interessa, a Rússia - e o reencontro com Lara após a revolução estabelecer o regime é-lhe negado por uma ironia do destino. Baseado no romance de Boris Pasternak, com uma cinematografia que fica na memória muito depois de termos visto o filme, e um tema musical difícil de ignorar, Doutor Jivago permanece por mérito um clássico dos filmes românticos, e apesar de ser difícil hoje em dia lidar com os sotaques tipicamente britânicos dos supostos eslavos, continua a ser o filme perfeito para ver numa longa tarde de Inverno, com uma bebida quente numa mão (de preferência chá com limão num copo transparente), e uma malga de borscht na outra.

“(...)uma cinematografia que fica na memória muito depois de termos visto o filme(...)”

23 86


Título nacional: Amor Sem Barreiras Realização: Jerome Robbins, Robert Wise

WEST SIDE STORY

Elenco: Natalie Wood, George Chakiris, Richard Beymer

1961 CARLOS REIS

Vencedor de dez estatuetas douradas da Academia - entre as quais a de Melhor Filme e Realizador -, West Side Story é ainda hoje relembrado como um dos musicais de Hollywood de maior sucesso em todo o mundo. Com uma banda sonora inolvidável, diversos temas a conquistarem um selo de intemporalidade e coreografias arrebatadoras, Amor Sem Barreiras transpôs de forma irrepreensível o hit teatral da Broadway para a grande tela. Ainda que, com um orçamento na altura escandaloso de seis milhões de dólares, convites recusados por estrelas como Elvis ou Hepburn para os papéis principais e ninguém do elenco original a dar um passito de dança na versão cinematográfica, não tenha faltado polémica suficiente para tornar a sua produção famosa e a sua estreia uma incógnita. Versão adaptada da tragédia amorosa shakesperiana de Romeu e Julieta, com bandos rivais nova-iorquinos à mistura (os norte-americanos Jets e

os porto-riquenhos Sharks), o filme co-realizado por Robert Wise e Jerome Robbins (este último, coreógrafo da peça teatral, foi despedido pelos produtores a meio das filmagens, devido à sua continua insatisfação com as cenas musicais e com as ideias de Wise, recebendo ainda assim o Óscar na altura devida) foi considerado o segundo melhor musical de sempre pela American Film Institute - apenas batido por Singin' in the Rain - e mantém-se hoje, nos seus dois actos, tão moderno e revigorante como no início da década de sessenta. Na altura, a sua mensagem contra a discriminação e contra a violência racial, dois anos antes do famoso 'I Have a Dream' de Martin Luther King, foi passaporte assegurado para o sucesso na crítica. O público, esse, não resistiu aos encantos de Wood, Moreno, Beymer e Chakiris.

“(...)um dos musicais de Hollywood de maior sucesso em todo o mundo.”

24 87


Título nacional: Ben-Hur Realização: William Wyler

BEN-HUR

Elenco: Charlton Heston, Jack Hawkins, Stephen Boyd

1959 SAMUEL ANDRADE

Falar sobre Ben-Hur é mencionar, inevitavelmente, a sequência da corrida de quadrigas que opõe o protagonista (Charlton Heston, no papel que definiu a sua carreira) ao seu ex-amigo de infância e militar em ascensão na máquina de guerra do império romano, Messala. A dimensão épica (o facto de ter sido rodada em película de 65mm “salta” imediatamente à vista), a profundidade técnica que rivaliza com o CGI da nossa época e o poder de emoção encerrados naqueles dez minutos atestam o grande espectáculo cinematográfico de um filme que não só é recordista em Oscars arrebatados (onze na cerimónia de 1960), como se constituiu numa escolha assídua de Cinema nas programações televisivas pascais de todo o mundo e foi um dos principais sucessos de bilheteira da História da MGM. O filme pode ser famoso pelo seu sentido de deslumbramento (além da mencionada corrida de quadrigas, as imagens do esforço sobre-humano

de dezenas de escravos a remar sob a cadência de um sádico tambor ou do reencontro de Ben-Hur com a sua família, votada ao esquecimento numa colónia de leprosos, tornaram-se memoráveis), mas revela-se igualmente inspirado nos seus momentos mais serenos. Paralelamente à história de Judah Ben-Hur, subjaz a presença de Jesus Cristo – do qual nunca lhe vislumbramos o rosto – e, na forma como os percursos de ambos se entrecruzam, a mensagem central do filme: a capacidade humana para a tolerância e o perdão. Inteligente, dramático, intemporal e entusiasmante, Ben-Hur é mais do que o produto de um período em que o épico bíblico – apesar das intenções de Darren Aronofsky o querer “ressuscitar” com o iminente Noah – era “moda” em Hollywood. Este é o género de obra fílmica que, por constrangimentos de inflação financeira ou pelas prioridades dos grandes estúdios norte-americanos, simplesmente já não se fabrica hoje em dia. “Inteligente, dramático, intemporal e entusiasmante(...)”

25 88


Título nacional: As Portas do Céu Realização: Michael Cimino

HEAVEN’S GATE

Elenco: Kris Kristofferson, Christopher Walken, Isabelle Huppert

1980 TIAGO SILVA

É um facto que Cimino é um dos realizadores mais injustiçados e desprezados do cinema americano. É também um facto que Heaven’s Gate é a sua obra-prima e um dos melhores filmes de que há memória. As histórias espalhafatosas sobre aquilo que se passou no set e as questões relacionadas com o orçamento são de ordem secundária e nada importam quando somos confrontados com a escala épica dos acontecimentos sobre os quais a obra discorre. Isto porque Heaven’s Gate não é só um filme fascinante mas também fascinado pelos temas e valores que resguarda com uma fé inabalável: as pessoas e os lugares, as batalhas contra a opressão a que os mais desprotegidos tentam resistir e aquilo que perdem cruelmente e de forma irreversível no meio das mesmas. As comparações com The Birth of a Nation de Griffith são frequentes e têm fundamento. Ambos os filmes têm uma ambição desmedida e quase furiosa, reclamando para si próprios a

tarefa de mostrar uma América que não se assume como a terra dos livres mas como um sonho condenado logo à partida para aqueles que não conseguem aceitar um domínio perverso e demolidor («It’s getting dangerous to be poor in this country», maravilhosa fala que liga o filme ao diálogo de The Searchers em que se afirma que talvez seja preciso morrer antes que cheguem os tempos de verdadeira justiça) e este foi o principal motivo pelo qual tantos se insurgiram tão veementemente contra o filme. Profundamente humanista e capaz de fazer convergir o íntimo e o grandioso nos mesmos enquadramentos, graças a uma noção de composição estética admirável, Heaven’s Gate é, pela sua beleza e sinceridade ofuscantes e tão poucas vezes alcançadas, um filme mais que obrigatório.

“(...)não é só um filme fascinante mas também fascinado pelos temas e valores(...)”

26 89


Título nacional: Aves de Rapina Realização: Erich Von Stroheim

GREED

Elenco: Gibson Gowland, Zasu Pitts, Jean Hersholt

1924 PEDRO MIGUEL FERNANDES

Considerado por muitos como a obra-prima de Erich Von Stroheim, Greed é em simultâneo um dos seus filmes mais mutilados e o princípio do fim da sua carreira em Hollywood enquanto realizador. Depois deste filme, Stroheim, um dos muitos cineastas europeus a procurar um porto de abrigo na Meca do Cinema, viu-se sempre em dificuldades para conseguir filmar. Um dos primeiros grandes filmes da MGM, foi também um dos projectos mais ambiciosos do cineasta de origem austro-hungara.

(diz-se que a versão original teria qualquer coisa como 45 bobines, o equivalente a 9 ou 10 horas de filme, algo impensável de ser apresentado ao público naquela época), Aves de Rapina é um dos grandes clássicos do período mudo do Cinema. Pontuado por alguns elementos de realismo, cujo expoente máximo encontramos na espantosa sequência final no deserto, quando os dois antigos amigos se reencontram, Aves de Rapina é ao mesmo tempo um filme bastante ancorado em símbolos, como o pássaro enjaulado que McTeague oferece à esposa, ou o funeral que surge em pano de fundo no dia do casamento. Já para não falar das constantes alusões ao vil metal, que fazem com que este filme continue a ter, ainda hoje, uma actualidade tremenda.

Baseado no livro McTeague, de Frank Norris, Aves de Rapina é uma história sobre o poder do dinheiro sobre a Humanidade a partir do ponto de vista de um homem que enriquece à custa do seu trabalho, mas cujo casamento com uma mulher bastante sovina acaba por destrui-lo por dentro e tudo o que o rodeia, como a amizade que tinha com um familiar da sua esposa. Mesmo tendo sido duramente mutilado pelos produtores

“(...)é uma história sobre o poder do dinheiro sobre a Humanidade(...)”

27 90


Título nacional: O Falhado Amoroso Realização: Mel Brooks

THE PRODUCERS

Elenco: Zero Mostel, Gene Wilder, Dick Shawn

1967 PEDRO MIGUEL FERNANDES

Amoroso quase que podia ser uma comédia dos irmãos Marx, tal é a velocidade das tiradas saídas da boca dos protagonistas Max Bialystock e Leo Bloom, interpretados por Zero Mostel e Gene Wilder, respectivamente. Mas se esta dupla é infalível no propósito de nos fazer rir às gargalhadas, outro grande achado desta deliciosa comédia é o elenco secundário, nomeadamente duas grandes personagens: o nazi Franz Liebkind, autor do musical falhado, interpretado por Kenneth Mars num dos seus primeiros papéis, e 'L.S.D.' - Lorenzo St. DuBois, o hippie contratado para o papel principal da peça e que acaba por ser o responsável pelo enorme sucesso do espectáculo. E, uma vez mais, a personagem de Dick Shaw, é uma das principais responsáveis pelas gargalhadas que soltamos ao longo de O Falhado Amoroso.

O que acontece quando o olhar louco de Mel Brooks se vira para o universo dos musicais? A resposta é O Falhado Amoroso (péssimo título nacional para o original e muito mais reconhecível The Producers), uma comédia desbragada sobre um empresário de teatro que segue os conselhos casuais de um jovem contabilista que descobre que o empresário podia lucrar mais com um flop do que com um sucesso de bilheteiras. Daí a montar aquele que ficará conhecido como o pior musical de sempre, com o sugestivo título de Primavera para Hitler, vai um pequeno passo. Eventualmente os planos acabam furados, mas não é isso que sucede com o filme de Mel Brooks, talvez uma das suas melhores obras enquanto realizador e aquela que lhe garantiu o único Óscar na sua carreira: Melhor Argumento Original. Muito ao estilo do cinema de Mel Brooks, O Falhado

“(...)talvez uma das suas melhores obras enquanto realizador(...)”

28 91


Título nacional: Um Americano em Paris Realização: Vincente Minnelli

AN AMERICAN IN PARIS

Elenco: Gene Kelly, Leslie Caron, Oscar Levant

1951 PEDRO MIGUEL FERNANDES

Vencedor de seis Óscares da Academia em 1952, entre os quais o de Melhor Filme, An American in Paris é um dos mais populares musicais de Vincente Minnelli. Protagonizado por Gene Kelly, que a par de Fred Astaire foi um dos grandes actores dentro do género, o filme conta a história de um ex-soldado norte-americano que no final da II Guerra Mundial opta por permanecer em Paris, onde pretende explorar os seus dotes de pintor. Atravessando um período complicado, pois não consegue vender as suas obras, Jerry Mulligan passa os dias na companhia de dois amigos, um pianista e um cantor, cada um com níveis de sucesso diferentes. A vida de Jerry acaba por sofrer uma reviravolta quando conhece e se apaixona por Lise, a paixão do seu amigo cantor.

do musical, onde todas as cores do Technicolor são aproveitadas ao máximo para formar um efeito que não só dá vida aos cenários, a lembrar a capital francesa e a própria História de Paris e França, mas também alguns quadros do movimento impressionista. De realçar que este aproveitamento das cores como elemento fulcral do filme já surge em destaque no início do filme, quando a personagem de Lise é apresentada. Aqui, cada cor corresponde a uma possível descrição da personagem, que por sua vez dança de acordo com a cor do cenário onde se encontra. Desta forma Um Americano em Paris é um daqueles exemplos perfeitos de como Hollywood soube aproveitar as cores do Technicolor, que nos dias de hoje podem parecer quase berrantes e datadas ao olhar do espectador, para transmitir sensações fortes no olhar dos espectadores.

Filmado em todo o esplendor do Technicolor, Um Americano em Paris tem na sequência final uma das mais magníficas cenas da História

“(...)tem na sequência final uma das mais magníficas cenas da História do musical(...)”

29 92


Título nacional: Planeta Proibido Realização: Fred M. Wilcox

FORBIDDEN PLANET

Elenco: Walter Pidgeon, Anne Francis, Leslie Nielsen

1956 SARA GALVÃO

A tripulação de uma nave espacial, comandada pelo capitão Adams (Leslie Nielsen) vai ao planeta de Altair em busca de sobreviventes de uma expedição perdida há 20 anos atrás, e encontra Dr. Morbius (Walter Pidgeon) e a sua filha Altaira (Anne Francis) a viver isolados do resto da galáxia. Mas rapidamente se releva que há uma estranha presença no planeta, decidida a matar quem ameace a paz daquele pedaço de universo longe de tudo...

incluem um monstro desenhado por um animador da Disney), o filme continua a prender a atenção até ao último momento (que, por razões óbvias a quem tenha visto o filme, parece inspirar Armageddon daí a uns bons anos). Walter Pidgeon transborda carisma como Dr. Morbius, e a inocência de Altaira em relação às questões práticas da biologia são como que uma pitada de sal para melhor usufruto da narrativa do filme em questão.

Um clássico da ficção científica, Forbidden Planet, baseado n’A Tempestade de William Shakespeare, continua tão sólido como no primeiro dia que entrou nas salas de cinema. Mesmo sendo estranho ver Leslie Nielsen como herói romântico que não diz uma única piada, e os efeitos especiais nada terem de sofisticados aos olhos de hoje (mas que não parecem tão datados como em ficção científica mais recente, e que

Bastante marcado pela sua época, com referências ao subconsciente humano e aos perigos do id, mas estranhamente isento de computadores ou tecnologia malévola - o robot Robin é incapaz de magoar organismos vivos - Planeta Proibido permanece como um marco dos filmes de ficção científica, e é uma justa inspiração para muitos filmes, livros e até cadeias de lojas posteriores. “(...)o filme continua a prender a atenção até ao último momento(...)”

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Título nacional: New York, New York Realização: Martin Scorsese

NEW YORK, NEW YORK

Elenco: Liza Minnelli, Robert De Niro, Lionel Stander

1977 JOÃO PAULO COSTA

Se a ideia de recuperar a tradição dos grandes musicais da MGM, conhecidos pela sua artificialidade e escapismo, e aliá-la à vaga do realismo cinematográfico americano da década de 1970 parecia à partida ambiciosa e altamente interessante, a dura realidade encarregou-se de transformar este projecto de sonho num autêntico desastre de bilheteiras que por pouco não destruiu a carreira (e a vida) do seu autor.

criativas acaba por fazer deste um romance condenado à partida. Na prática, o híbrido que Scorsese criou, pleno de excessos e artifícios (incluindo uma Nova Iorque reconstruida em estúdio), faz do filme algo de muito mais complexo e para o qual o tempo tem sido simpático. A duração pode parecer demasiada, mas a magia clássica dos números musicais que Scorsese, como grande estudioso da História do Cinema, recupera com todo o fulgor e virtuosismo que lhe são reconhecidos, tornam-no irresistível para os fãs do género. Sem esquecer, claro, que foi aqui que o grande tema musical que dá título ao filme, e que foi posteriormente popularizado por Frank Sinatra, teve a sua origem.

O filme: New York, New York. O autor: um tal de Martin Scorsese que, depois do sucesso de Taxi Driver, iniciou esta grande produção que o fez entrar numa profunda depressão alimentada com drogas, enquanto tinha para gerir o mais caro orçamento da sua carreira até então. No papel, New York, New York é bastante simples: um saxofonista (Robert De Niro) começa uma relação com uma cantora (Liza Minnelli) no dia da vitória sobre o Japão em 1945, mas o conflito destas duas personalidades

“(...)parecia à partida ambiciosa e altamente interessante(...)”

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Título nacional: Dias de Futebol Realização: John Huston

THE ASPHALT JUNGLE

Elenco: Sterling Hayden, Louis Calhern, Jean Hagen

1950 CARLOS REIS

The Asphalt Jungle narra a história de um assalto milionário a uma joalharia que corre para o torto devido à ganância de alguns dos seus intervenientes. O roubo em si, orquestrado pelo conceituado Dr. Erwin Riedenschneider (Sam Jaffe), recentemente libertado da prisão, até revelou-se um sucesso; o problema foi tudo o que se seguiu, entre esquemas, traições e armadilhas para ver quem ficava com a maior fatia do bolo.

diga-se a verdade -, naquela que foi uma lição de moral de Huston sobre os caminhos inusitados e viciosos do crime, com ladrões sem glamour nem grande profundidade identitária, onde a desgraça ou a morte são o único final possível para cada um dos imperfeitos infractores. Histórica e esteticamente importante na forma como influenciou o género, The Asphalt Jungle foi nomeado sem glória para quatro óscares e é ainda hoje relembrado como o filme que catapultou o gigante Sterling Hayden, então herói de guerra no alto dos seus quase dois metros de altura, para uma carreira memorável. O filme de Huston deu ainda origem a uma série televisiva na ABC em 1961, sem grande sucesso, tendo sido cancelada ao fim de treze episódios.

Clássico do cinema noir realizado pelo lendário John Huston (The Maltese Falcon ou The Treasure of the Sierra Madre, apenas para citar alguns), tantas vezes imitado (The Badlanders, Cairo e Cold Breeze são adaptações do mesmo livro) mas nunca igualado,The Asphalt Jungle marcou a primeira aparição de Marilyn Monroe numa grande produção de Hollywood - numa personagem sem grande interesse,

“(...)uma lição de moral de Huston sobre os caminhos inusitados e viciosos do crime(...)”

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Título nacional: Recordações Realização: Woody Allen

STARDUST MEMORIES

Elenco: Woody Allen, Charlotte Rampling, Jessica Harper

1980 PEDRO MIGUEL FERNANDES

Para quem está habituado às comédias quase non sense do início de carreira ou as comédias mais sérias de Woody Allen, Stardust Memories pode quase ser visto como um título atípico na sua obra. Quando entramos nesta pérola da cinematografia de Allen, na sequência do comboio, podemos pensar que estamos perante um filme de autor, com uma fotografia a preto e branco, praticamente sem som. Poucos minutos depois descobrimos que aquele é o mais recente filme de Sally Bates, um cineasta especializado em comédias que de repente se lembrou de fazer um filme sério. O que, obviamente, não é do agrado dos produtores que logo surgem a pedir uma nova montagem do mais recente trabalho de Bates. E é a propósito desta viragem na carreira de Sally que Allen nos propõe uma reflexão sobre o Cinema e um realizador perdido, em plena crise existencialista, que quer deixar de fazer o que sempre fez, agradando a um

público fiel, para fazer algo mais pessoal e que gosta de fazer. O mesmo se poderia dizer em relação a Allen, que nesta altura da sua carreira já deixara de fazer apenas comédias, mas passara a experimentar outros campos, um pouco mais sérios. Basta recordar que dois anos antes de Recordações o cineasta realizara o sombrio Intimidade, um filme de Bergman não realizado pelo mestre sueco. Em Recordações não há Bergman, mas nota-se a espaços a sombra de Fellini. O que não deixa de ser curioso é que neste caso Woody Allen consegue manter esse lado mais sério, mas em simultâneo a sua marca humorística, com um protagonista neurótico, continua bastante presente na figura de Sally Bates. Um filme obrigatório e a descobrir para quem quer ver ou conhecer um outro lado de Woody Allen. “(...)um título atípico na sua obra.”

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Título nacional: Thelma & Louise Realização: Ridley Scott

THELMA & LOUISE

Elenco: Susan Sarandon, Geena Davis, Harvey Keitel

1991 SARA GALVÃO

O Bonnie & Clyde dos anos 90, Thelma & Louise pega em conceitos americanos familiares - a road trip e o buddy movie - e junta-os a um conjunto de acontecimentos tipo bola de neve que levam a pacata e submissa esposa Thelma (Geena Davis) e a empregada de balcão Louise (Susan Sarandon) a matar um homem, assaltar uma loja e fugir da polícia numa corrida desenfreada para o México. Pelo caminho encontram um indecentemente jovem Brad Pitt, Michael Madsen com um anel de noivado bastante inoportuno e misoginia vária. Considerado um clássico feminista por muitos (se bem que temos certas reservas em chamar feminista a um filme que mostra a quantidade de desgraças que acontecem a duas mulheres que resolvem sair sozinhas), este é sobretudo um filme sobre o poder da amizade sobre todas as coisas. E se conseguirmos sobreviver à banda sonora (não à música original de Hans Zimmer, mas às canções dos anos 80 barradas

profusamente por todo o filme) temos o prazer de ver como o poder das personagens se altera durante a aventura - se no início é Louise que parece comandar a parelha, depois do assalto à loja vemos como Thelma (que parece nascida para a situação) começa a tomar as rédeas de si própria, finalmente livre do jugo do marido (interpretado por um furioso Harvel Keitel). Elas são duas mulheres contra um mundo povoado por homens, e preferem (spoiler alert!) lançar-se de um penhasco do que continuar a viver nesse mundo, que não lhes dá verdadeiras opções de liberdade ou justiça. Tudo com a magnificência do deserto americano como pano de fundo. PS. Para todos os defensores do carácter inofensivo do piropo, este é um filme a ver. Definitivamente. “(...)um filme sobre o poder da amizade sobre todas as coisas.”

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Título nacional: 007 - Contra Goldfinger Realização: Guy Hamilton

GOLDFINGER

Elenco: Sean Connery, Gert Fröbe, Honor Blackman

1964 ANÍBAL SANTIAGO

Baseado no livro homónimo de Ian Fleming, Goldfinger marca o terceiro filme da saga James Bond, naquela que é uma das obras mais populares da franquia, apresentando um antagonista que surge realmente à altura do protagonista e revela-se uma ameaça capaz de nos fazer crer que nem tudo pode correr pelo melhor ao agente secreto. O antagonista é Auric Goldfinger, um indivíduo ligado ao negócio de venda de ouro, que procura desenvolver a Operação Grand Slam, um plano megalómano que visa atacar o Fort Knox. Goldfinger contém várias das características que tornaram a saga marcante: uma missão de dificil execução, humor, acção, belas mulheres, carros vistosos (desta vez o Bentley é trocado pelo Aston Martin DB5), suspense, diferenciando-se de muitos filmes da saga por ter um antagonista bastante forte, sentindo-se pela primeira vez que a vida do herói está em perigo. No entanto, Goldfinger introduz algumas novidades, como a presença novos engenhos de Q, o tema musical que acompanha

os créditos passou a ser cantado por artistas conhecidos (no caso Shirley Bass), para além de contar com um orçamento bem mais inflacionado. Um filme de 007 não poderia ficar sem as Bond Girls e Goldfinger apresenta duas das mais carismáticas da franquia, Pussy Gallore (Blackman) e Jill Masterson (Heaton). Pelo seu nome, Pussy permite uma série de deliciosos trocadilhos de cariz sexual, enquanto Jill tem uma das mortes mais icónicas da saga. Com uma história simples e coesa, pretendendo apenas divertir os espectadores e proporcionar momentos de puro escapismo em relação à realidade quotidiana, Goldfinger desafia o avançar do tempo e mostra que continua a ser um dos filmes mais icónicos da saga.

“(...)um antagonista que surge realmente à altura do protagonista(...)”

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Título nacional: O Último Tango em Paris Realização: Bernardo Bertolucci

ULTIMO TANGO A PARIGI

Elenco: Marlon Brando, Maria Schneider, Jean-Pierre Léaud

1972 PEDRO SOARES

Em 1972, Ultimo tango a Parigi provocou verdadeiras romarias às salas de cinema por todo o Mundo (Portugal incluído), devido à sua faceta erótica (que lhe valeu o banimento em vários países, apesar de ser pouco ou nada explícito), o corpo desnudado da bela Maria Schneider (suspiros) e à nova definição que dava à manteiga(!). Apelidado por uns como mero eurotrash e aclamado por outros como uma obra-prima, a verdade é que Ultimo tango a Parigi é um poucochinho dos dois. Paul (um Marlon Brando na meia-idade, acabado de ser reabilitado com The Godfather) é um americano em Paris que conhece, fortuitamente, a jovem Jeanne (Maria Schneider). Ambos vão desenvolver uma relacionamento amoroso fogoso e sexualmente intenso - que inclui sodomia (daí a tal necessidade da manteiga), toques rectais e simples sexo selvagem, puro e duro -, que utilizam como escape às suas vidas. O primeiro enfrenta um luto complicado e a segunda uma relação amorosa

não muito fácil. Por isso, aquele apartamento onde se encontram é como que uma porta para outra dimensão, onde os nomes são deixados no tapete de entrada e tudo o que sobra são os simples impulsos animais. Ultimo tango a Parigi é um melodrama sexual com uma carga política implícita. No entanto, mais do que um exercício de indulgência do próprio Bertolucci, Ultimo tango a Parigi é um filme de autor experimental e é aí que as coisas não funcionam muito bem. É certo que sempre me disse menos do que devia, mas Ultimo tango a Parigi tem certas dificuldades técnicas difíceis de encaixar. E não falo do seu baixo orçamento. Falo da banda-sonora demasiado hostil do genial Gato Barbieri (mas que a de Astor Piazolla certamente teria sido mais acertada) e do duvidoso gosto artístico que o realizador italiano coloca nos planos e na montagem nervosa. Tem pinta de eurotrash, mas Ultimo tango a Parigi é um filmeredenção, consideravelmente intenso, que ganha a cada vistoria.

“Apelidado por uns como mero eurotrash e aclamado por outros como uma obra-prima(...)”

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INVASION OF THE BODY SNATCHERS

Título nacional: A Invasão dos Violadores Realização: Philip Kaufman Elenco: Donald Sutherland, Brooke Adams, Jeff Goldblum

1978 JOÃO PAULO COSTA

Depois de Don Siegel ter assinado uma primeira adaptação da obra de Jack Finney em 1956, Philip Kaufman recuperou Invasion of the Body Snatchers para o grande ecrã em 1978, com Donald Sutherland, Brooke Adams, Jeff Goldblum e Leonard Nimoy nos principais papeis. Intitulado em Portugal como A Invasão dos Violadores, o filme relata-nos uma invasão alienígena que começa por se propagar através de produtos químicos em plantas, passando posteriormente para seres humanos, degradando os seus corpos e substituindo-os por réplicas em tudo semelhantes excepto na sua total ausência de emoções.

construindo uma tensão gradual na revelação dos acontecimentos, e nos deixa contínuamente na dúvida sobre a real identidade das personagens em cada momento (será esta a pessoa verdadeira ou o seu duplo já replicado?) é irrepreensível, e quando finalmente nos apercebemos da dimensão do problema, Kaufman fá-lo de forma extremamente visual, mostrando o processo de degradação/duplicação de forma graficamente evidente - uma espécie de preparação dos espectadores para o que John Carpenter viria a fazer poucos anos depois com Veio do Outro Mundo, filme com algumas semelhanças a nível narrativo e na utilização de efeitos especiais. Desde então, esta história foi já refeita mais duas vezes, mas a versão de Philip Kaufman permanece ainda como a mais popular, culminando num plano final capaz de provocar arrepios na espinha.

Comentário sobre a robotização e alienação do ser humano no Mundo moderno e perfeito espécime da paranóia reinante durante o período da Guerra Fria, o filme de Kaufman é ainda hoje um aterrador e eficaz exemplo da produção de terror e ficção científica. A forma como vai

“(...)um aterrador e eficaz exemplo da produção de terror e ficção científica.”

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Título nacional: Morrer em Las Vegas Realização: Mike Figgis

LEAVING LAS VEGAS

Elenco: Nicolas Cage, Elisabeth Shue, Julian Sands

1995 SAMUEL ANDRADE

Leaving Las Vegas é, através da dolorosa ironia dos seus diálogos ou da melancólica saturação da sua fotografia, a encarnação da dor de viver de Ben Sanderson, um “farrapo humano” que almeja encontrar a redenção somente através de uma convicta auto-destruição alcoólica. O arrebatador retrato deste protagonista, um argumentista falhado cujo drama pessoal é-nos apresentado in media res – nunca testemunhamos as origens dos seus problemas e os mesmos permanecem apenas implícitos – até à sua ruína final, é assumido por Nicolas Cage (justo vencedor de um Oscar) com feroz determinação e violenta evasão humana. Embriagado durante cerca de 90% do filme, instável e belicoso mas de profunda carência emocional, a vertigem degradante do protagonista eleva Morrer em Las Vegas ao estatuto de um dos filmes mais psicologicamente violentos das últimas décadas – e quase sem necessitar de um único vislumbre de sangue. Essa agressividade está

plasmada não só no alcoól constante e respectivos efeitos no corpo e psique humanos, mas também através de Sera (Elisabeth Shue), uma prostituta de Las Vegas e o (possível?) anjo da guarda de Ben. Abusada por um chulo que não sobreviverá por muito tempo no seio deste “conto de demónios”, a afeição que ela sente pelo protagonista encontra poucas justificações mas, adequada e ironicamente, esse encontro assemelharse-à a um casamento feito no céu: Sera e Ben, distantes da rectidão moral, surgem-nos como as únicas almas que importa acompanhar e estimar no mundo pessimista – e com a “cidade do pecado” em pano de fundo… – captado pela câmara de Mike Figgis. Presença incontestável nas listas de filmes norte-americanos que melhor abordam o tema do alcoolismo (bem ao lado de Farrapo Humano ou Escravos do Vício), Morrer em Las Vegas não é de visualização agradável, mas o seu impacto emocional ressoará, longa e vorazmente, no âmago dos espectadores.

“I don’t know if my wife left me because of my drinking or I started drinking ‘cause my wife left me.”

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Título nacional: Ronin Realização: John Frankenheimer

RONIN

Elenco: Robert de Niro, Jean Reno, Stellan Skarsgård

1998 PEDRO SOARES

John Frankenheimer sempre foi um tipo elegante, que nunca gostou de um cinema com fogachos a mais. Felizmente fez carreira nos anos 60 e 70, evitando a geração MTV e todo aquele cinema trepidante e cheio de masturbação digital. Ronin é um filme de espiões assim, low-profile e muito cool. Enquanto James Bond mata os maus com o seu carisma, deixando um lastro de mulheres de corações destroçados, e enquanto outros espiões como Jason Bourne deixam atrás de si um rasto de destruição, os espiões de Ronin seguem antes a tradição dos (anti)heróis silenciosos e com cara de quem tem prisão de ventre. Ronin é um thriller de espionagem à antiga. Em Paris, uma irlandesa (Natascha McElhone) reúne uma equipa de profissionais da bandidagem, onde se destaca o ex-CIA Sam (Robert De Niro) e o francês Vincent (Jean Reno). O objectivo é claro e simples: recuperar uma mala que está na posse da máfia russa. E o que está dentro da mala? Nunca se vem a

saber, transformando-se assim num mcguffin ainda mais frustrante do que a mala do Pulp Fiction. Tudo isto é coroado com dois momentos memoráveis. O primeiro entra para a história do próprio cinema e não é por acaso que o vemos colocado unanimemente nas listas que se fazem em relação às melhores perseguições do cinema. Não uma, mas logo duas vezes, Frankenheimer ensaia duas perseguições automóveis no centro de Paris e Nice de forma seca, sem flashes e edição vertiginosa, que nos deixa o coração nas mãos ao relantim. É como se Sam Peckinpah filmasse uma perseguição de carros. E depois há uma cena em que Robert De Niro se opera a si próprio, com a ajuda de um espelho, retirando uma bala do seu torso, que faz o Rambo corar de inveja. John Frankenheimer andava a realizar lixo há já algum tempo, pouco condizente com a sua reputação. Felizmente, antes de nos deixar, despediu-se com este belo trabalho e um dos grandes filmes de espionagem de sempre. “Ronin é um thriller de espionagem à antiga.”

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Título nacional: Gata em Telhado de Zinco Quente Realização: Richard Brooks

CAT ON A HOT TIN ROOF

Elenco: Elizabeth Taylor, Paul Newman, Burl Ives

1958 SARA GALVÃO

Num fim de semana em família, Maggie a Gata (Elizabeth Taylor) tenta reconquistar Brick (Paul Newman), o marido alcóolico ex-futebolista que não consegue ultrapassar a morte do seu melhor amigo, Skipper. Enquanto isso, o patriarca Big Daddy tenta esconder da família que está a morrer de cancro....

A reconciliação entre Big Daddy e Brick foi também adicionada ao filme pelos guionistas, e muitas críticas à homofobia e sexismo foram também retiradas da peça original. Há filmes que envelhecem bem, mas Gata em Telhado de Zinco Quente não faz parte desse grupo. O estilo pomposo arrasta os 110 minutos de duração, as personagens parecem brinquedos saídos de uma caixa de cereais, tão estereotipadas são as representações, e mesmo Elizabeth Taylor não consegue encantar (possivelmente ainda em choque com a morte do marido na vida real, Mike Todd, num acidente de avião onde ela era suposto acompanhá-lo). A única coisa que nos “salva” é definitivamente Paul Newman no papel do angustiado e alcoolizado Brick, numa performance que fica na cabeça depois de tudo o resto a abandonar.

Em 1958, falar de um casamento sem sexo e alcoolismo era considerado escandaloso, provocante até, e Cat On a Hot Tin Roof foi um dos grandes êxitos de bilheteira do ano. Mas mesmo assim Tennessee Williams, o autor da peça original, vencedora de um Pullitzer, odiou o filme e George Cukor, que foi convidado para realizar, recusou porque as referências à homossexualidade de Brick tinham sido cortadas da peça original (se bem que para a audiência dos nossos dias continuam a ser bastante óbvias...)

“(...)as personagens parecem brinquedos saídos de uma caixa de cereais(...)”

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Título nacional: Uma Noite na Ópera Realização: Sam Wood

A NIGHT AT THE OPERA

Elenco: Groucho Marx, Chico Marx, Harpo Marx

1935 PEDRO MIGUEL FERNANDES

Se houve trupe que conseguiu aproveitar ao máximo a chegada do som ao Cinema, essa trupe foi a que era composta pelos famosos irmãos Marx, que nada tinham a ver com o filósofo alemão com o mesmo apelido (apesar de, num certo sentido, serem os responsáveis por uma grande corrente filosófico-cinéfila). Oriundos do circuito vaudeville, os irmãos Marx adaptaram-se a este novo meio, com uma pequena experiência ainda no cinema mudo, para trazerem o caos dos seus espectáculos ao grande ecrã. E para muitos dos seus fãs A Night at the Opera é o primeiro título que se lembram quando alguém lhes pergunta qual é o filme favorito dos Marx. Passado no universo das produções teatrais, Uma Noite na Ópera marcou a estreia dos Marx numa produção da MGM depois de estarem ligados à Paramount e o primeiro sem Zeppo, um dos irmãos. Neste caso as aventuras do grupo passam por ajudar um jovem casal de cantores de

ópera a conseguirem o lugar de destaque na temporada de ópera de Nova Iorque, prestes a começar. Mas claro, isso é apenas um pretexto para alguém abrir a caixa de Pandora dos irmãos, que cedo começam a engendrar as mais arriscadas, mas não menos delirantes mentiras, para enganar meio mundo. Filmado com alguns dos seus actores regulares, como é o caso de Margaret Dumont (uma das ‘vítimas’ favoritas de Groucho, entrou em sete filmes dos irmãos e não podia faltar à abertura da temporada de Ópera), Uma Noite na Ópera é um dos pontos altos dos filmes do grupo de cómicos, onde podemos encontrar todos os seus pontos fortes: dos gagues de Groucho às trapalhices de Chico, passando pelo silêncio pouco inocente, mas bastante eficaz de Harpo, não há nada em falta nesta genial comédia.

“(...)Uma Noite na Ópera é um dos pontos altos dos filmes do grupo de cómicos(...)”

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Título nacional: Escândalo na TV Realização: Sidney Lumet

NETWORK

Elenco: Faye Dunaway, William Holden, Peter Finch

1976 CARLOS REIS

Beatrice Straight), Network revela-se uma sátira em tom de aviso quase profético daquilo que viria a acontecer em massa com o mundo/negócio da televisão um pouco por todo o globo, com o aparecimento dos realityshows e dos formatos jornalísticos que privilegiam os dramas quotidianos de rápido consumo ao jornalismo de investigação. Cardiograma ao coração frágil da sociedade, é impressionante a forma detalhada e certeira como Paddy Chayefsky, o Aaron Sorkin dos anos sessenta e setenta em Hollywood, previu o que iria acontecer ao meio televisivo. Cínico, sombrio e provocador, nem os comunistas resistiram a tornar-se capitalistas. Último e merecido destaque para o papelão de William Holden, dissimulado entre as loucuras insensatas de Finch no ecrã.

Fábula sobre a banalização cínica e populista da televisão enquanto meio de aculturação de gerações, através da estupidificação de emissores e receptores, Network narra a história de como uma estação pública de televisão norte-americana trocou a ética e o jornalismo sério e de respeito pelas audiências de topo e, consequentemente, pelos milhões de dólares provenientes do mercado publicitário. Na UBS, com uma nova direcção, passa a valer tudo: de um pivot demente a astrólogas no lugar de meteorologistas, sem esquecer terroristas pagos clandestinamente para fornecerem imagens polémicas dos seus actos, tudo o que dê mais um ponto ou outro de share é aceitável. Realizado de forma excelsa e energética por Sidney Lumet e com uma mão-cheia de interpretações poderosíssimas que valeram, pela última vez, três dos quatro óscares de representação (Peter Finch, Faye Dunaway e

“(...)uma mão-cheia de interpretações poderosíssimas(...)”

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Título nacional: Bowling for Columbine Realização: Michael Moore

BOWLING FOR COLUMBINE

Elenco: Michael Moore, Charlton Heston, Marilyn Manson

2002 CARLOS REIS

Vivem-se tempos conturbados em todo o Mundo e as decisões tomadas nos EUA, enquanto maior potência militar e económica no nosso planeta, afectam não só a sua população mas também todas as outras à escala global. Galardoado com o Óscar na categoria de Melhor Documentário em 2002, Bowling for Columbine abordou e investigou o fascínio dos americanos pelas armas de fogo. Michael Moore questiona a origem dessa cultura bélica e busca respostas visitando pequenas cidades do interior americano onde a maior parte dos moradores guarda uma pistola em casa. Entre essas está Littleton, casa do colégio Columbine, local onde dois adolescentes mataram catorze estudantes e um professor. Moore faz ainda uma visita ao então presidente da National Rifle Association, o lendário actor Charlton Heston. Um dos temas centrais de Bowling for Columbine envolve esta mesma associação e a sua influência na legislação existente. Michale Moore é, por

assim dizer, um justiceiro que assalta os malfeitores com uma camera e os enfrenta destemidamente, num fascinante modo que quebra barreiras politicamente incorrectas, desbloqueando informações chocantes sobre o comércio de armas nos Estados Unidos. Estudo devastador e cáustico sobre a cultura do medo que aterroriza toda uma nação e que intencionalmente descrimina alguns, Bowling for Columbine toca em vários pontos fracos da sociedade e democracia norte-americana, num estilo populista e parcial. Mas a verdade é que não é necessário ter as convicções políticas do realizador, nem acreditar nas suas teorias, para apreciar Bowling for Columbine. Porque este nunca deixa de ser tão original quanto divertido na sua demanda sensacionalista.

“(...)Bowling for Columbine toca em vários pontos fracos da sociedade e democracia norte-americana(...)”

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Título nacional: A Noite de Iguana Realização: John Huston

THE NIGHT OF THE IGUANA

Elenco: Richard Burton, Ava Gardner, Deborah Kerr

1964 CARLOS REIS

Lawrence Shannon é um padre em desgraça: depois de um rumor sobre uma relação sexual proibida o ter afastado da igreja contra a sua vontade, Shannon é agora um guia turístico com problemas com o álcool na costa oeste mexicana. Naquela que poderia ser muito bem outra excursão sem história com um grupo de professoras reformadas norte-americanas, Shannon vai ser assediado por uma adolescente e, mesmo resistindo ao pecado, acabará envolvido numa espiral de ataques à sua credibilidade que podem muito bem colocar em risco o seu novo emprego.

num contexto tão freudiano quanto paradisíaco. Filme que pôs a vila mexicana de Puerto Vallarta no mapa turístico mundial, The Night of the Iguana é, enquanto produto cinematográfico, tão fascinante em alguns aspectos quanto monótono em certas partes da sua narrativa. Com um elenco de luxo - Burton, Gardner e Kerr eram algumas das mais bem pagas estrelas da época - e uma realização improvável - o grande John Huston estava acostumado a outras andanças mais mexidas -, a obra que reutiliza a Lolita Sue Lyon como mulher irresistível teve uma das mais badaladas produções de sempre, com ciúmes e armas à mistura, o que em parte também explica o porquê de Houston não ter conseguido uma transposição para a grande tela do carácter alegórico e intelectualmente subterrâneo do material teatral que tinha em mãos.

Adaptação da peça da Broadway de um dos mais premiados dramaturgos do século passado (Tennessee Williams), The Night of the Iguana é um ensaio filosoficamente poderoso sobre a tentação e o pecado, sobre a fragilidade do espírito humano em ambientes adversos, onde as fantasias proibidas de um homem sexualmente subjugado são colocadas à prova

“(...)tão fascinante em alguns aspectos quanto monótono em certas partes(...)”

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Título nacional: O Ladrão Profissional Realização: Michael Mann

THIEF

Elenco: James Caan, Tuesday Weld, Willie Nelson

1981 TIAGO SILVA

Se exceptuarmos o telefilme The Jericho Mile, então Thief marca a entrada definitiva de Michael Mann no cinema. Frequentemente discutido no meio cinéfilo entre os defensores do estatuto de autor que alguns lhe tentam negar, o realizador estreou-se com uma obra que estabelece desde logo elementos importantes para uma compreensão mais aprofundada desta questão. Isto porque Mann cria filmes que, embora situados dentro da típica produção comercial, arrombam os seus limites, revelando um importante controlo sobre o conteúdo que tenta introduzir no mesmos e impedindo-os assim de se tornarem gratuitos. Como o título deixa antever, em Thief a acção concentra-se sobretudo no assaltante e não no assalto, o que permite distinguir o filme das outras obras neo-noir que marcaram os anos 80 e afastá-lo ligeiramente do mero formalismo estilístico, já que este se torna também num estudo psicológico sobre as facetas da personagem de James Caan.

A aproximação feita ao mundo da máfia não é propriamente inovadora e é até possível assinalar algumas semelhanças com The Killing of a Chinese Bookie, filme que Cassavetes havia realizado na década anterior. Mas há pequenas variações no modo como os estereótipos são representados e apreendidos: aqui, as personagens já não fazem parte do universo sombrio que dilacerava os antigos filmes de gangsters, movimentam-se antes por um mundo notoriamente influenciado pela cultura pop, em que a profundidade de campo distorce ambientes e as sequências de maior fulgor dramático são altamente estilizadas em câmara lenta. No entanto, há momentos em que Thief parece querer ser algo mais e antecipa o ténue existencialismo explorado nos filmes seguintes.

“(...)em Thief a acção concentra-se sobretudo no assaltante e não no assalto(...)”

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Título nacional: Júlio César Realização: Joseph L. Mankiewicz

JULIUS CAESAR

Elenco: Louis Calhern, Marlon Brando, James Mason

1953 TIAGO SILVA

Adaptando directamente uma das maiores tragédias de Shakespeare (que estabelece uma ponte com o posterior Antony and Cleopatra), Mankiewicz soube manter o rigor quase despido dos versos e, ainda assim, projectar uma visão artística que se consegue coadunar com a fidelidade sóbria ao texto original. Sob o signo do assassinato do ditador romano e desagregando as aspirações patrióticas e imperialistas em tempos tumultuosos para uma instável civilização, Julius Caesar faz convergir a realidade histórica com os mitos originados pela literatura e daí resultam duas facetas que se interligam: o esplendor contido da teatralidade clássica e a magnificência aparatosa que as próprias características do décor descomedido vêm colocar em evidência, como nos momentos belíssimos em que a força do vento e da chuva fustiga impiedosamente as ruas da cidade e faz esvoaçar os mantos dos revoltosos, anunciando o desfecho violento da conspiração iminente.

Nesta representação dos fatídicos idos de Março (prenunciados pelo cego profeta que é desvalorizado de imediato por César), Roma sofre pelas sucessivas intrigas e revoltas políticas que invariavelmente visam cumprir meros interesses próprios e opressores ao invés de estabelecer um sistema que responda aos anseios do povo. Transmitindo com clareza a personalidade dos conspiradores romanos ao recorrer a um elenco de luxo (com destaque para Marlon Brando como Marco António e o inesquecível discurso com o ditador morto a seus pés), Julius Caesar demonstra uma visão da obra do escritor inglês que parece, em diversos aspectos, ir de encontro à de Welles em filmes como Othello e torna acessível ao grande público a complexidade da mesma.

“(...)Mankiewicz soube manter o rigor quase despido dos versos(...)”

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Título nacional: A Pantera Cor-de-Rosa Realização: Blake Edwards

THE PINK PANTHER

Elenco: David Niven, Peter Sellers, Robert Wagner

1963 ANÍBAL SANTIAGO

Realizado por Blake Edwards, The Pink Panther marca o inicio de uma saga que contou com uma série de obras cinematográficas, das quais o intérprete mais famoso do protagonista foi Peter Sellers. Aparentemente confiante nas suas acções, Jacques Closeau (Sellers) é um inspector algo incompetente e atrapalhado, que procura evitar que o "Fantasma" roube o diamante da Princesa Dala (Cardinale), uma pedra preciosa que conta com uma descoloração que parece ter o formato de uma pantera. Edwards tem em The Pink Panther uma comédia que consegue simultaneamente ser uma hábil paródia aos filmes de espionagem e ao mesmo tempo apresentar uma investigação digna de gerar interesse, permeada por vários episódios rocambolescos, onde Sellers dá o corpo ao manifesto e revela mais uma vez a sua enorme habilidade na representação. Seja a tocar desafinadamente violino, seja a revelar o comportamento atrapalhado do seu personagem, seja a expor a excessiva confiança de

Closeau, Sellers não só utiliza o argumento que tem à disposição, mas cria um personagem marcante, protagonizando alguns momentos memoráveis ao longo do filme. Edwards por vezes excede-se nos gags e nos momentos mais estapafúrdios em que coloca os seus personagens, embora em níveis bem mais comedidos do que em The Great Race, onde a corrida de carros passava muitas das vezes para segundo plano, tendo em The Pink Panther um dos bons exemplares da sua carreira. Entre investigações complicadas, mal-entendidos, jogos de sedução, mentiras, assaltos e um tema musical memorável de Henry Mancini, The Pink Panther rouba alguns risos, aproveita o elenco de luxo e demonstra mais uma vez o enorme talento de Peter Sellers para a representação.

“(...)uma hábil paródia aos filmes de espionagem(...)”

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Título nacional: 007: Casino Royale Realização: Martin Campbell

CASINO ROYALE

Elenco: Daniel Craig, Eva Green, Judi Dench

2006 CARLOS REIS

Aparentemente insensível, cínico, glacial mas expressivo, contido mas intenso, lacónico mas eloquente, irónico mas de sorriso difícil e de uma inteligência sem limites. Robusto, bastante robusto. Assim apareceu um novo James Bond, o louro Daniel Craig. Sim, a marca mais visível deste Casino Royale é mesmo a reinvenção de uma das personagens mais famosas do mundo cinematográfico. E Craig, tão criticado aquando da sua escolha, humaniza a personagem num estilo muito próprio, compensando em pragmatismo o que lhe falta em classe ou charme. Resumidamente, o mestre do cinema de espionagem foi reinventado em 2006.

indispensável a uma narrativa que quer ser tomada como séria. Acabaram-se os carros invisíveis, os vilões de banda-desenhada e as Bond girls apenas para encher a vista; Mads Mikkelsen revela-se um mauzão tão repudiante quanto credível e Eva Green uma femme fatale tão glamorosa quanto perigosa. Martin Campbell, realizador com uma carreira de altos e baixos, consegue alcançar em Casino Royale o mesmo feito que abraçou em GoldenEye: estrear um novo Bond e trabalhá-lo de forma a criar a sua própria identidade com a personagem. Este 007 sangra, é espancado e acaba o filme pior que um farrapo velho. Não há final feliz, numa cama de hotel. Não há amor sem dor. Não há cliché que tenha sobrevivido. Aposta ganha e que hoje parece não ter fim à vista.

Casino Royale é bom; uma lufada de ar fresco numa saga que precisava de uma reviravolta negra, sádica e eficaz. A culpa foi de Paul Haggis, argumentista premiado de Crash, que introduziu na obra o realismo

“(...)uma lufada de ar fresco numa saga que precisava de uma reviravolta negra, sádica e eficaz.”

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Título nacional: 007 - Agente Secreto Realização: Terence Young

DR. NO

Elenco: Sean Connery, Ursula Andress, Bernard Lee

1962 ANÍBAL SANTIAGO

Primeiro filme da franquia James Bond, tendo como base a não menos famosa saga literária criada por Ian Fleming, Dr. No marca um inicio em grande estilo para o famoso espião britânico no grande ecrã.

no território, bem como para identificar as ligações deste caso com as interferências ocorridas nos foguetões americanos no Cabo Canaveral. A investigação conduz Bond a Crab Key, tendo de lutar contra o tempo para travar os planos megalómanos de Dr. No, salvar a sua vida e de Honey Ryder (Andress). Com uma investigação intrincada marcada por algumas reviravoltas e muita acção, Dr. No abre com chave de ouro uma das sagas cinematográficas mais bem sucedidas da História do Cinema e da MGM, colocando o espião ao serviço de sua majestade numa missão num local exótico, onde Sean Connery expõe o porquê de continuar a ser um dos intérpretes mais populares do personagem.

Dr. No apresenta vários elementos que serão transversais aos filmes da saga. Não falta a célebre Bond Girl (Ursula Andress), o antagonista megalómano (Dr. No), o contexto político a rodear a narrativa (Guerra Fria), um prólogo a anteceder os créditos iniciais, a reunião com M para discutir a missão, o gosto de Bond pelo "martini batido mas não misturado", o humor negro do protagonista e a sua capacidade para seduzir as mais belas mulheres, entre outros elementos.

Inquietante, recheado de bom humor, acção, desafios intrincados, um Sean Connery cheio de carisma e uma Ursula Andress sensualissima, Dr. No abre em grande nível a saga cinematográfica oficial de James Bond.

Em Dr. No, 007 (Connery) é enviado por M à Jamaica para investigar a morte de Strangways, um agente do MI6 que se encontrava em serviço

“(...)abre com chave de ouro uma das sagas cinematográficas mais bem sucedidas da História do Cinema e da MGM(...)”

49 112


Título nacional: Intimidade Realização: Woody Allen

INTERIORS

Elenco: Diane Keaton, Geraldine Page, Kristin Griffith

1978 JOÃO PAULO COSTA

Depois do sucesso crítico e comercial de Annie Hall, Woody Allen decidiu virar as costas ao seu passado como comediante, assinando aquele que permanece até hoje como um dos mais pesados dramas da sua filmografia. Inspirado de forma evidente em Ingmar Bergman, que Allen sempre referiu abertamente como o seu grande ídolo cinematográfico, Interiors centra-se na relação de três irmãs com a mãe, disfuncional e suicida após o divórcio.

inexistentes. Diane Keaton, explosiva um ano antes como Annie Hall, surge aqui muito mais contida, como de resto todo o elenco, de onde se destaca naturalmente Geraldine Page no papel da matriarca da família, controladora, obsessiva e imprevisível. Este viria a ser o primeiro de muitos filmes de Woody Allen onde as tensões familiares, nomeadamente as relações entre irmãos, compõem o centro dramático da narrativa, mas raras vezes o tom foi tão hostil, desencantado e depressivo, reflectindo o estado mental do próprio autor nessa fase da sua vida.

A frieza da relação entre as personagens é reforçada não só pelos décors e guarda-roupa maioritariamente em tons pastel, mas também pelo cinzentismo das cenas em exterior, com Allen a conseguir reproduzir na perfeição os ambientes escandinavos de Bergman na sua Nova Iorque de sempre. Intimidade foi também a primeira realização de Allen em que este não surgiu como actor, e onde as notas de humor são praticamente

Recebido à época com o choque causado pelo grande desvio de Allen na direcção do drama profundo, é ainda hoje poucas vezes referenciado entre os seus melhores trabalhos, mas são inegáveis as qualidades desta experiência cinematográfica por temas mais sombrios e profundamente dilacerantes. “(...)um dos mais pesados dramas da sua filmografia.”

50 113


THE BAND WAGON

SPACEBALLS

PEDRO MIGUEL FERNANDES

SARA GALVÃO

Na década de 1950 Fred Astaire já não estava no seu expoente máximo, atingido principalmente nos anos 30, quando fez dupla com Ginger Rogers, a sua parceira nos sets em 10 filmes. O que não significa que não estivesse em forma, como prova The Band Wagon, musical de Vincente Minnelli, participa no papel de um actor de musicais caído em desgraça que é contratado para um regresso aos palcos na Broadway e terá de contracenar com uma estrela em ascensão, interpretada pela não menos magnifica Cyd Charisse. Ao melhor estilo dos musicais de Minnelli, onde a cor jorra a rodos por tudo quanto cena de dança, A Roda da Fortuna conta com um belo conjunto de coreografias que acaba de forma brilhante na sequência final, onde o palco se transforma num ambiente sombrio de um film noir.

Numa galáxia não muito distante, quando as paródias ainda eram inteligentes, Lone Star e Barf salvam a princesa Vespa das garras do terrível Dark Helmet... com piscadas de olho a Tubarão, Star Wars, Star Trek, Alien e mesmo Naked Space, Spaceballs é o Clássico dos Anos 80 com Maiúsculas. Seja a treinar a Swchartz com Yoghurt, a promover a merchandise do filme (que inclui a videocassete), ou a apresentar referências metatextuais, estamos perante uma daquelas comédias que nos massaja por dentro e nos faz sentir felizes por termos perdido todas aquelas horas da nossa vida a ver os grandes clássicos da ficção científica, só para podermos rir com outro gosto de todas as referências. Para quem a velocidade da luz não é rápida o suficiente, este é um filme a ver e rever.

Título nacional: A Roda da Fortuna

Título nacional: A Mais Louca Odisseia no Espaço

Realização: Vincente Minnelli

Realização: Mel Brooks

Elenco: Fred Astaire, Cyd Charisse, Oscar Levant

Elenco: Mel Brooks, John Candy, Rick Moranis

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52 114


24 HOUR PARTY PEOPLE

COFFEE AND CIGARRETTES

SARA GALVÃO

PEDRO MIGUEL FERNANDES

Um filme tão frenético que seria terrível ver sob o efeito de drogas, e onde a personagem principal, Tony Wilson (interpretado por Steve Coogan), empresário musical extraordinaire, nos guia directamente através da narrativa - que inclui uma visão de Deus, imagens de arquivo dos grandes da cena musical britânica e, claro, cameos de vários músicos representados na história. Numa espécie de documentário musical vs ficção (e estamos aqui, claramente, perante a Lenda mais do que o facto), tudo filmado num estilo a la Dogma que vai progredindo tecnicamente com a cronologia narrativa, não há tempo para um único momento de aborrecimento, e damos por nós a bater o pé com o ritmo. Uma óptima introdução à cena musical dos anos 70-80, ou uma óptima desculpa para tirar o pó aos cds dos New Order.

Realizado em 2003, Coffee and Cigarettes é uma espécie de versão revista e aumentada de três curtas realizadas por Jim Jarmusch durante as décadas de 1980 e 1990. Sempre filmadas a preto e branco em tom de comédia e em torno de uma mesa de cafetaria, onde todos falam de como um café acompanhado de um cigarro cai sempre bem (ou nem por isso, depende do ponto de vista), Café e Cigarros resulta num conjunto de curtas metragens do cineasta independente nova-iorquino que quase podemos ver como um compêndio do Cinema de Jarmusch, pois praticamente todos estes pequenos filmes, alguns melhores do que outros, como acontece quase sempre neste tipo de empreendimentos, rimam com a sua obra, com alusões frequentes a outros dos filmes do realizador. Um delicioso filme, tão delicioso como um café e um cigarro.

Título nacional: 24 Hour Party People

Título nacional: Café e Cigarros

Realização: Michael Winterbottom

Realização: Jim Jarmusch

Elenco: Steve Coogan, Lennie James, Andy Serkis

Elenco: Bill Murray, Tom Waits, Roberto Benigni

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54 115


IT’S A MAD, MAD, MAD, MAD WORLD

GET SHORTY

CARLOS REIS

ANÍBAL SANTIAGO

Primeira incursão na comédia de um realizador habituado a pesados dramas históricos e sociais como Judgement at Nuremberg ou Guess Who's Coming to Dinner, It's a Mad, Mad, Mad, Mad World tornou-se um sucesso entre a crítica e o público, criando o seu próprio sub-género (o das comédias pela estrada fora à busca de um tesouro) e merecendo, inclusive, várias nomeações aos Óscares, apesar da edição severa da United Artists ter sido alvo de críticas duras de Stanley Kramer, que queixou-se que quase uma hora de fita teria ficado fora da versão exibida no cinema. E é aqui que entra a MGM, que no início deste ano, em parceria com a 'The Criterion Collection', lançou uma versão restaurada de cinco discos com a visão original de 210 minutos de Kramer. Destaque final para a original abertura animada de créditos, obra do imortal Saul Bass.

Um dos elementos que mais sobressai ao longo de Get Shorty, para além da magnífica interpretação de John Travolta, é o argumento recheado de diálogos marcantes, prontos a explorarem a cinefilia do espectador e dos personagens, enquanto nos apresenta a um gangster cinéfilo e traça uma crítica à indústria de Hollywood. Marcado por alguma violência, humor negro, muitas referências cinéfilas e pitadas de enorme genialidade, Get Shorty coloca John Travolta a interpretar Chili Palmer, um agiota oriundo de Miami, cinéfilo por natureza, que decide participar no desenvolvimento de um filme. Pelo caminho tem de lidar com mafiosos, realizadores e actores, ao longo de uma obra que merece ser apreciada intensamente, capaz de dispor bem e deixar a agradável sensação de termos visionado um bom filme.

Título nacional: O Mundo Maluco

Título nacional: Jogos Quase Perigosos

Realização: Stanley Kramer

Realização: Barry Sonnenfeld

Elenco: Spencer Tracy, Milton Berle, Ethel Merman

Elenco: Gene Hackman, Rene Russo, Danny DeVito

55

56 116


MIDNIGHT COWBOY

FREAKS

CARLOS REIS

TIAGO SILVA

Primeira fita com classificação etária restrita a maiores de 18 anos a conquistar o Óscar de Melhor Filme, Midnight Cowboy chocou Hollywood no final dos anos 60 com a exploração mainstream de temas como a homossexualidade ou a prostituição. História de um jovem texano armado em playboy na urbana Nova Iorque e da sua amizade improvável com um sem-abrigo ítalo-americano, Midnight Cowboy foi o espelho de uma era radical nos EUA, onde uma geração hippie lutava nas ruas contra padrões moribundos de comportamento social. Construído em catarse, com recordações recalcadas a justificarem as acções de Joe Buck, a obra de culto de John Schlesinger tende a banalizar-se com o seu envelhecimento, mas será para sempre recordada como uma pedrada num charco, onde ser diferente era perigoso até no box-office.

Estamos perante a mais disfuncional das histórias de vingança e sabemo-lo desde que nos é apresentada a premissa inicial. Recebido com choque e confinado a projecções de meia-noite durante anos, Freaks é um dos mais ousados filmes produzidos pela MGM na era pre-code de Hollywood. De forma pioneira, coloca-nos perante o mesmo dilema moral que Lynch apresentaria décadas mais tarde em The Elephant Man através da criação de empatia («We accept you, one of us») com aqueles que observam os verdadeiros actos monstruosos. Filmado como um noir em que as personagens do circo se revelam por entre as sombras das caravanas, Freaks combina inventivamente elementos do terror clássico e momentos cómicos surreais com o thriller, sem nunca perder de vista o fundamento ético sobre o qual assenta.

Título nacional: O Cowboy da Meia-Noite

Título nacional: A Parada dos Monstros

Realização: John Schlesinger

Realização: Tod Browning

Elenco: Dustin Hoffman, Jon Voight, Sylvia Miles

Elenco: Wallace Ford, Leila Hyams, Olga Baclanova

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58 117


BEING THERE

THE DIRTY DOZEN

CARLOS REIS

CARLOS REIS

Chance é um humilde cinquentenário que toda a vida foi jardineiro de um homem abastado. Sem nunca ter saído da propriedade, sem documentos para comprovar a sua existência e sem saber ler nem escrever, tudo o que Chance sabe aprendeu a jardinar ou a ver televisão. Quando o patrão falece, Chance fica nas ruas da capital norte-americana à mercê do acaso. E será mesmo o mais puro acaso que o tornará num dos opinion makers mais respeitados do País. Sátira brilhante de uma subtileza rara, cativante no contínuo jogo intelectual que promove sem necessidade de gargalhadas fortuitas, Being There oferece ainda um dos finais mais enigmáticos de sempre, uma verdadeira pedrada no charco que mostra que, num filme sobre percepções, também as nossas estavam em jogo. Com uma forte (mas divertida) componente de crítica social, sobra a dúvida: será assim tão fácil distinguir um idiota de um sábio?

Dividido em três actos - o recrutamento, o treino e a grande missão -, The Dirty Dozen narra a história de um bando de condenados militares treinados por um implacável major do exército norte-americano (o intratável Lee Marvin) para, em vez de deixarem a vida no corredor da morte, a perderem numa missão suicida contra o império nazi. Realizado por Robert Aldrich, The Dirty Dozen tornou-se um clássico do cinema de guerra pela forma como enfrentou o mundo com cenas de uma violência sádica improvável, pela forma sarcástica como abordou o patriotismo e por oferecer ao espectador um saco cheio de personagens sem passado… nem futuro. Duas horas e meia onde divertimento e crueldade dão as mãos, numa fita tão enérgica quanto niilista, um espectáculo tão antitudo quanto sedento por uma audiência.

Título nacional: Bem-Vindo Mr. Chance

Título nacional: Doze Indomáveis Patifes

Realização: Hal Ashby

Realização: Robert Aldrich

Elenco: Peter Sellers, Shirley MacLaine, Melvyn Douglas

Elenco: Lee Marvin, Ernest Borgnine, Charles Bronson

59

60 118


MEET ME IN ST. LOUIS

THE BIG PARADE

PEDRO MIGUEL FERNANDES

TIAGO SILVA

Interpretado por Judy Garland, Meet Me in St. Louis foi o primeiro musical da carreira de Vincente Minnelli e à época em que estreou foi mesmo uma das produções mais caras da MGM, apenas ultrapassado por E Tudo o Vento Levou no campo do orçamento. Apesar de ainda não ter números tão elaborados como acontece noutros musicais posteriores do cineasta, esta história de uma família que prefere ficar em St. Louis em vez de ir para Nova Iorque, para onde o patriarca é chamado para um cargo de relevo, tem algumas sequências de antologia dentro do género. A famosa cena do eléctrico, em que personagem de Judy Garland percorre uma carruagem enquanto procura o vizinho, por quem está apaixonado, e ambos acabam por se encontrar no final, é um desses exemplos.

O que Vidor cria de maneira belíssima em The Big Parade é poesia contra a glorificação da guerra. Ao mostrar logo de início o mito criado em redor da participação da América no primeiro grande conflito mundial (através das demonstrações de patriotismo exacerbado nas ruas e dos repetitivos cânticos entoados pelo exército), aumenta substancialmente o impacto e crueldade das cenas no campo de batalha. Não assistimos a grandes demonstrações de heroísmo nem a nobres feitos mas sim a homens comuns que sofrem e se vêem afastados dos seus romances impossíveis, tentando sobreviver enquanto os seus companheiros vão sendo atingidos por supostos inimigos numa guerra que não é sua. Fazendo com que o cinema se aproprie de episódios da História de uma nação, The Big Parade é um manifesto incrível.

Título nacional: Não Há Como a Nossa Casa

Título nacional: A Grande Parada

Realização: Vincente Minnelli

Realização: King Vidor

Elenco: Judy Garland, Margaret O’Brien, Mary Astor

Elenco: John Gilbert, Renée Adorée, Hobart Bosworth

61

62 119


SLEEPER

YEAR OF THE DRAGON

JOÃO PAULO COSTA

JOÃO PAULO COSTA

Numa altura em que Woody Allen fazia ainda a transição de humorista de palco para autor de prestígio, Sleeper mantinha a estrutura episódica dos seus filmes anteriores como Bananas ou, de forma mais vincada, O ABC do Amor, colocando a persona de Allen (normalmente cobarde, desajeitado e sexualmente frustrado) nos cenários mais recambolescos imagináveis - neste caso dando corpo a um homem que depois de dar entrada no hospital para uma operação de rotina, acorda 200 anos no futuro… Conjugando na perfeição os diálogos sardónicos com momentos da mais pura comédia física chaplinesca, é um trabalho típico do início de carreira de Allen, acelerado e hilariante, repleto de referência cinéfilas e populares, e com uma alta percentagem de piadas por minuto.

À medida que aumenta a criminalidade entre os gangues de Chinatown durante uma mudança de liderança na máfia local, o agente Stanley White (Mickey Rourke) é destacado pela polícia de Nova Iorque para colocar um travão na onda de violência. Escrito a meias com Oliver Stone, Year of the Dragon marcou o regresso de Michael Cimino à realização, 5 anos após o fracasso comercial de As Portas do Céu, e o resultado foi um estilizado filme de gangsters que acabou por ser ofuscado por uma controvérsia vazia (pela representação da comunidade asiática nos EUA) e pelo preconceito que o filme anterior do realizador ainda carregava consigo. O argumento pode não ser perfeito, mas a pujança visual de Cimino e a interpretação intensa de Rourke conferem uma qualidade indiscutivel a este intenso thriller policial.

Título nacional: O Herói do Ano 2000

Título nacional: O Ano do Dragão

Realização: Woody Allen

Realização: Michael Cimino

Elenco: Woody Allen, Diane Keaton, John Beck

Elenco: Mickey Rourke, John Lone, Ariane

63

64 120


LOVE AND DEATH

EVERYTHING YOU ALWAYS WANTED TO KNOW ABOUT SEX...

SARA GALVÃO

CARLOS REIS

Se alguma vez tentaram ler o Anna Karerina à espera de uma história quente sobre um affair amoroso, e deram de caras com páginas e páginas sobre agricultura russa, este é o vosso filme. Uma paródia à grande literatura russa, com piscadelas de olho a Bergman, e com tantas citações possíveis que é aconselhável ver com um bloco de notas ao pé - “não pensem na morte como um fim. Pensem nela como uma maneira bastante efectiva de cortar nas despesas” - Love and Death, é um clássico Allen delicioso e injustamente pouco conhecido, onde as personagens filosofam sobre a objectividade da subjectividade, os momentos de paixão e amores desencontrados são tipicamente tolstoianos, e, claro está, a obsessão com a morte permuta tudo. O filme para todos os que adormeceram a tentar ler O Idiota.

Dividido em sete sketches que exploram de forma irónica alguns tabus associados à sexualidade, O ABC do Amor foi o quarto filme da carreira de Woody Allen, o primeiro a revelar-se um sucesso na bilheteira. Do verdadeiro efeito dos afrodisíacos à sodomia, dos tarados sexuais à ejaculação precoce, Allen e companhia - e que boa comp anhia, ou não estivessem lá nomes como Reynolds, Wilder ou Redgrave - constroem um filme desequilibrado que resulta melhor em teoria do que na tela mas que, ainda assim, oferece algumas gargalhadas e várias homenagens relevantes, com destaque para a que é feita a Antonioni, com o segmento da mulher que só consegue ter orgasmos em locais públicos. Clássico menor no riquíssimo currículo de Allen, mas obra fundamental para catapultar o multifacetado humorista em Hollywood.

Título nacional: Nem Guerra, Nem Paz

Título nacional: O ABC do Amor

Realização: Woody Allen

Realização: Woody Allen

Elenco: Woody Allen, Diana Keaton, James Tolkan

Elenco: Woody Allen, Gene Wilder, Louise Lasser

65

66 121


PINK FLOYD THE WALL

GOLDENEYE

PEDRO SOARES

ANÍBAL SANTIAGO

Com uma abordagem vaga e transversal a uma estrela rock afogada na sua própria fama, que se emancipa ao derrubar o muro (simbólico, claro) que o isola do mundo exterior, Pink Floyd The Wall é um misto de imagem real com as animações que já acompanhavam os concertos, de leitura simbólica e tradição psicadélica (não esquecer que os Pink Floyd e, sobretudo, Syd Barrett (antes de cair num caldeirão de LSD e enlouquecer) foram um dos grandes representantes do psych-rock nos anos 60). Muitas vezes, o significado do que estamos a ver não é propriamente claro, mas outras sequências têm tanta força - as crianças numa linha de montagem directas a um passevite ou as convenções fascistas cheias de neonazis eufóricos - que compensam algumas diarreias mentais. Pink Floyd The Wall permite ouvir mais uma vez um grande álbum, para qual já não temos paciência para o fazer em casa, nos nossos tempos livres.

GoldenEye marcou uma renovação na saga cinematográfica de James Bond, a começar pelo intérprete do protagonista, com Pierce Brosnan a assumir o papel de 007. Este tem ainda a particularidade de ser o primeiro filme da saga a ser desenvolvido após o final da Guerra Fria, embora a dissolução desta “paz armada” não impeça que o protagonista tenha de se deslocar à Rússia para travar os planos megalómanos do líder do grupo criminoso Janus, que prometem colocar a economia e sociedade britânica num alvoroço. Entre uma investigação intrincada, traições, paixões calorosas, cenas de acção cheias de estilo (a espaços a roçar o exagero), GoldenEye não poupa nos ingredientes que tornaram a saga de James Bond famosa, com Martin Campbell a realizar uma obra que não envergonha o legado da franquia.

Título nacional: Pink Floyd The Wall

Título nacional: 007 - GoldenEye

Realização: Alan Parker

Realização: Martin Campbell

Elenco: Bob Geldof, Christine Hargreaves, James Laurenson

Elenco: Pierce Brosnan, Sean Bean, Izabella Scorupco

67

68 122


SHAFT

CHILD’S PLAY

CARLOS REIS

JOÃO PAULO COSTA

Com uma banda sonora inesquecível da autoria de Isaac Hayes que se tornou no primeiro álbum de música Soul a liderar as tabelas das mais ouvidas nos EUA - e logo por umas incríveis sessenta semanas -, Shaft transformou-se num clássico instantâneo da Blaxploitation, uma lenda cinematográfica do combate ao crime entre o carisma funky da personagem de Richard Roundtree e a realização destemida do conceituado fotógrafo da revista Time, Gordon Parks. Como curiosidade, Shaft rendeu à MGM cerca de vinte e seis vezes o seu orçamento de produção, salvando o estúdio de uma bancarrota certa em 1971. Duas sequelas sem grande impacto, um remake com Samuel L. Jackson como herói e uma série de televisão depois, o Shaft original continua intacto.

Qualquer criança que tenha crescido no final dos anos 80 tinha certamente dois medos básicos: alguns penteados que os pais se lembravam de lhes fazer, e Chucky, o sinistro boneco impregnado pela alma de um assassino que protagonizou uma série de filmes onde o horror e a comédia macabra se juntavam de forma peculiar. O primeiro desses, produzido em 1988, foi um sucesso nas bilheteiras e tornou-se num fenómeno de culto que aterrorizou qualquer petiz que mais tarde tivesse o azar de se cruzar com ele numa desprevenida sessão televisiva. O trabalho vocal de Brad Dourif é ao mesmo tempo perturbador e hilariante, verbalizando alguns adjectivos inspirados, particularmente fortes quando saídos de um brinquedo infantil.

Título nacional: Shaft, Mafia em Nova Iorque

Título nacional: Chucky, o Boneco Diabólico

Realização: Gordon Parks

Realização: Woody Allen

Elenco: Richard Roundtree, Moses Gunn, Charles Cioffi

Elenco: Catherine Hicks, Chris Sarandon, Alex Vincent

69

70 123


WARGAMES

COMING HOME

SARA GALVÃO

MIGUEL DOMINGUES

E que tal um filme sobre hackers, Guerra Fria e o computador mais assustador desde HAL 9000? Injustamente caído no esquecimento, WarGames tem mais para oferecer que um estupidamente jovem Matthew Broderick - há toda uma reflexão sobre os perigos da informatização total dos sistemas militares (e isto anos antes do bug do milénio), há os primeiros hackers que mostram que pouco mudou desde então e, claro está, há a comparação da guerra nuclear ao jogo do galo onde, no final, ninguém pode vencer. O filme pode ter sido topicalmente relevante quando foi lançado - sendo apenas um numa longa lista de filmes da época sobre o tema -, mas numa era em que somos espiados enquanto jogamos nos nossos telemóveis, talvez seja uma boa altura para rever. Um ou dois jogadores?

Mal filmado e dogmático. Estes são os vitupérios sofridos por O Regresso dos Heróis (no original Coming Home) oscarizado filme de Hal Hashby de 1978. Discordamos. Nele nada vemos de mal amanhado e, não sendo estéticamente inovador, é um filme bem feito. Onde se torna um objecto ímpar é no seu carácter de filme de denúncia, pioneiro em mostrar os traumas da guerra do Vietname e o tratamento que era dado aos veteranos, que lutando pelo seu país eram depois menosprezados por ele. Utilizando o formato do triângulo amoroso entre uma mulher de um sargento, o próprio e um veterano paraplégico, representa também a redenção de Jane Fonda depois das embaraçosas fotos com os vietcong e o topo da carreira de Jon Voight, que aqui tem um desempenho inesquecível. No geral, um filme comovente, sem o qual obras posteriores não existiriam.

Título nacional: Jogos de Guerra

Título nacional: O Regresso dos Heróis

Realização: John Badham

Realização: Hal Ashby

Elenco: Matthew Broderick, John Wood, Ally Sheedy

Elenco: Jane Fonda, Jon Voight, Bruce Dern

71

72 124


JEEPERS CREEPERS

GIGI

SAMUEL ANDRADE

TIAGO SILVA

Do coração da América profunda, onde a superstição e o oculto parecem adquirir contornos especialmente sedutores – sem dúvida, uma percepção canalizada pela própria ficção literária e audiovisual –, o realizador Victor Salva criou, com Jeepers Creepers, um novo monstro, e de eficaz efeito, para o imaginário cinematográfico do século XXI. De origens sobrenaturais e inteiramente desconhecidas, Jeepers Creepers apresenta uma mão cheia de intensas sequências de terror gráfico que, oscilando entre o gore e o humor negro, nunca demarcam o filme de uma vincada estética indie e, no duo de protagonistas que parecem saídos de uma comédia juvenil, da ensaiada sátira ao lugarcomum do quotidiano norte-americano. O argumento até pode estar pejado de incoerentes e abreviadas resoluções, mas o espírito da ameaça súbita e inexplicável será sempre o grande atractivo de Jeepers Creepers.

Se há filme de Minnelli em que o realizador parece homenagear directamente as particularidades do cinema de Lubitsch ao mesmo tempo que mantém o seu estilo visual inconfundível, este é Gigi. Apesar de não poder ser situado na mesma linha de qualidade de obras maiores e incontornáveis como An American in Paris ou o grandioso Some Came Running, por lhe faltar alguma consistência que unifique os vários momentos musicais, o filme intromete-se nos costumes da aristocracia e no modo como estes são apreendidos pela protagonista que inicialmente resiste à educação que lhe tentam impor. A sumptuosidade dos cenários e o turbilhão de cor que tudo envolve alicerçam a atmosfera escapista e sonhadora que Gigi pretende alcançar, mas é com o final sóbrio e quase desiludido que Minnelli triunfa.

Título nacional: Jeepers Creepers

Título nacional: Gigi

Realização: Victor Salva

Realização: Vincente Minnelli

Elenco: Gina Philips, Justin Long, Jonathan Breck

Elenco: Leslie Caron, Maurice Chevalier, Louis Jordan

73

74 125


ROCKY II

HANNIBAL

ANÍBAL SANTIAGO

JOÃO PAILO COSTA

Já pensou no que faria quando tivesse a oportunidade da sua vida? E se essa oportunidade surgisse pela segunda vez? Rocky II parte desta premissa, ou se preferirem da resposta a esta duas questões, indo colocar frente a frente o pugilista Rocky Balboa ao campeão Apollo Creed, pela segunda vez, após o entusiasmante combate que cativou o público no primeiro filme da saga. O regresso de Rocky aos ringues e ao grande ecrã revela-se uma jornada apaixonante e de emoções fortes, com o famoso personagem interpretado por Sylvester Stallone a mostrar mais uma vez a sua enorme capacidade de desafiar o destino, ao mesmo tempo que a relação entre Rocky e Adrian surge mais sólida do que nunca, numa sequela pertinente que em nada fica a dever ao filme original.

Dez anos após o sucesso estrondoso de O Silêncio dos Inocentes, Anthony Hopkins regressou à pele de Hannibal “O Canibal” Lecter, para gáudio de inúmeros espectadores que tornaram o filme noutro considerável êxito comercial. Após a recusa de Jodie Foster em tornar a interpretar a agente do FBI Clarice Sterling, coube a Julianne Moore agarrar a personagem nesta estranha sequela que apesar de manter as suas bases no terreno do thriller, pretende também assumir-se como uma história de amor bizarro entre os dois protagonistas, onde Hannibal quase se apresenta como um Nosferatu. Ainda que se tornem inevitáveis as comparações com o (muito superior) filme anterior, Hannibal consegue ainda assim revelar-se uma competente e emocionante grande produção cinematográfica assinada por Ridley Scott.

Título nacional: Rocky II

Título nacional: Hannibal

Realização: Sylvester Stallone

Realização: Ridley Scott

Elenco: Sylvester Stallone, Talia Shire, Burt Young

Elenco: Anthony Hopkins, Julianne Moore, Gary Oldman

75

76 126


VICKY CRISTINA BARCELONA

HOTEL RWANDA

PEDRO SOARES

CARLOS REIS

Vicky Cristina Barcelona irá ficar para sempre conhecido como o filme em que Scarlett Johansson e Penélope Cruz se beijaram. Desde que abandonou Nova Iorque, o interesse em Woody Allen foi renovado. Depois de Londres, houve Barcelona, num roteiro que já incluiu também Roma e Paris. Mas Vicky Cristina Barcelona não é tão light quanto parece ao início, quando as duas amigas americanas, Vicky (Rebecca Hall) e Scarlett Johansson (Cristina), vão passar férias a Barcelona e conhecem o pintor Juan (Javier Bardem). Vicky é pragmática, enquanto que Cristina tem uma atracção pelo abismo. No entanto, o charme de Bardem é tanto que leva as duas para a cama. O equilíbrio deste triângulo é bambo e, por isso, Allen constrói um quadrado romântico, inserindo a ex-mulher, Penélope Cruz, e dando a consistência que faltava a um filme sobre as formas de amor. Tudo isto com Penélope e Scarlett a curtirem pelo meio!

Sociodrama cinematográfico de como um gerente de um hotel no Ruanda salvou cerca de mil e duzentos cidadãos de etnia Tutsi de um dos maiores genocídios da História humana - cerca de um milhão de pessoas foram assassinadas -, o grande trunfo de Hotel Rwanda é conseguir focar as atenções nos actos de um homem corajoso e não na violência aterradora que serve de pano de fundo à obra nomeada para três Óscares. O choque do espectador constrói-se ao longo das aventuras da personagem de Don Cheadle para apagar fogos em pleno inferno e não é conquistado através de imagens visualmente ofensivas. Esta compaixão pela humanidade permitiu ao filme chegar a uma audiência maior, mas não o tornou menos devastador; pelo contrário, a inacção e inércia do ocidente revelam-se as vilãs mais difíceis de suportar.

Título nacional: Vicky Cristina Barcelona

Título nacional: Hotel Ruanda

Realização: Woody Allen

Realização: Terry George

Elenco: Scarlett Johansson, Penélope Cruz, Javier Bardem

Elenco: Don Cheadle, Sophie Okonedo, Joaquin Phoenix

77

78 127


THE BAD AND THE BEAUTIFUL

LE DERNIER MÉTRO

SARA GALVÃO

JOÃO PAULO COSTA

Hollywood é um sítio de inferno, repleto de pessoas dispostas a tudo para triunfar. Mas é preciso alguém como Vincente Minnelli para nos dar uma visão mais íntima da indústria. Entra em cena Jonathan Shields (Kirk Douglas), um produtor vindo do nada que tenta fazer um nome para si próprio, enquanto no processo eleva três zé-ninguéns ao estatuto do estrelato - embora os atraiçoe aos três quando o filme termina. Shields, agora na miséria, precisa deles para o seu novo filme - mas nem sempre a paixão pelo cinema é suficiente para inspirar o perdão em quem viu o seu melhor e pior às mãos de um produtor ambicioso. Um estudo interessante do eterno combate entre a arte e a indústria, com um excelente elenco e “sexo” mencionado seis vezes - um recorde para um filme dos anos 50.

Quando assinou Le dernier métro em 1980, François Truffaut era já um cineasta de reputação firmada (e, infelizmente, na recta final de uma carreira que um tumor tornou tragicamente curta), embora algo distanciado das ideias cinematográficas que marcaram o início do seu percurso. Na verdade, esta história situada nos bastidores de uma companhia de teatro durante a ocupação nazi em França, quase que poderia ser vista como um “filme de prestígio” convencional, não fosse Truffaut um genial director de actores e um dos grandes autores do seu tempo. O elenco encabeçado por Catherine Deneuve e Gérard Depardieu é excelente nesta carta de amor aos actores e à representação tornando O Último Metro, senão num dos historicamente mais relevantes projectos de Truffaut, numa obra de qualidade indiscutível.

Título nacional: Cativos do Mal

Título nacional: O Último Metro

Realização: Vincente Minnelli

Realização: François Truffaut

Elenco: Kirk Douglas, Lara Turner, Dick Powell

Elenco: Catherine Deneuve, Gérard Depardieu, Jean Poiret

79

80 128


POINT BLANK

THE SHOP AROUND THE CORNER

CARLOS REIS

TIAGO SILVA

História de um assalto que acabou em traição e da respectiva vingança do homem que foi deixado ferido para morrer pela sua namorada e melhor amigo, Point Blank revolucionou o cinema norte-americano em 1967 e, hoje, quase cinquenta anos depois, continua a ser bastante radical a nível técnico e artístico. Primeiro filme americano do inglês John Boorman, Point Blank começa de forma atabalhoada, com flashbacks constantes entrelaçados com o presente a confundirem o espectador, mas desenvolve-se quase de maneira perfeita num thriller de acção tão linear e convencional quanto niilista e provocador a todas as noções estabelecidas do género e do típico herói de Hollywood. Um pós-noir, onde o isolamento de um homem num universo imoral é filmado com cores fortes e cenários visualmente ricos e espaçosos.

Comédia da incomunicabilidade e da incompreensão, The Shop Around the Corner surpreende sobretudo pela suavidade com que as falhas de cada personagem são abordadas. O facto de Lubitsch nortear o filme em volta desta questão é fundamental na sua construção de densidade, já que permite justificar as atitudes quotidianas de cada um dos trabalhadores na loja - Mr. Matuschek, por exemplo, deixa de ser visto pelo público como um chefe ditatorial para passar a ser apenas um pobre homem atormentado. Focando-se neste fosso entre aparência e essência, com os travellings que avançam lentamente a ilustrar isso mesmo, o filme atinge momentos de uma sinceridade incrível: só os olhares de silenciosa confusão de James Stewart são suficientes para elevar The Shop Around the Corner a um nível superior.

Título nacional: À Queima Roupa

Título nacional: A Loja da Esquina

Realização: John Boorman

Realização: Ernst Lubitsch

Elenco: Lee Marvin, Angie Dickinson, Keenan Wynn

Elenco: Margaret Sullavan, James Stewart, Frank Morgan

81

82 129


VILLAGE OF THE DAMNED

THE THIN MAN

TIAGO SILVA

ANÍBAL SANTIAGO

Village of the Damned não é apenas um pequeno filme de terror psicológico. Pelo seu estilo minimalista e económico, a tensão situa-se sempre no nível da subtilidade e resulta numa das mais interessantes e perturbadoras representações alegóricas dos regimes fascistas no Cinema — um grupo autómato de crianças de qualidades superiores que controla e aterroriza a população incapaz de combater os seus terríveis actos. O tom político é algo que certamente não passará despercebido nem é produto do acaso (até porque Rilla se viu obrigado a fugir da Alemanha anti-semita de Hitler) e dá um importante carácter político e auto-reflexivo ao filme, analisando assim as proporções do medo e natureza do mal que apresenta através dos enquadramentos soturnos das ruas desertas naquela aldeia amaldiçoada.

Com um William Powell impressionante como Nick, um detective que tem no álcool e nas festas o seu modo de vida, The Thin Man consegue mesclar de forma harmoniosa os elementos de mistério, suspense e humor, revelando-se um clássico intemporal que nos agarra do primeiro ao último minuto, enquanto somos apresentados ao peculiar modo de vida do seu protagonista. É difícil imaginar outro actor a interpretar Nick sem ser Powell, tal o carisma atribuído pelo actor ao personagem, capaz de lançar as suas falas com um estilo muito próprio, seja acompanhado pelo seu copo de champanhe, seja pelo seu fox terrier ou claro está pela sua Nora (a química entre Powell e Myrna Loy e o relacionamento do casal são fulcrais para o enredo), enquanto desvenda um caso recheado de elementos imprevisíveis.

Título nacional: A Aldeia dos Malditos

Título nacional: O Homem Sombra

Realização: Wolf Rilla

Realização: W.S. Van Dyke

Elenco: George Sanders, Barbara Shelley, Martin Stephens

Elenco: William Powell, Myrna Loy, Maureen O’Sullivan

83

84 130


SOYLENT GREEN

ROCKY BALBOA

SAMUEL ANDRADE

CARLOS REIS

Nesta influente visão de um futuro marcado pela alta densidade populacional, permanece o espectro da horrífica plausibilidade. Afinal de contas, não é a preservação dos recursos naturais do planeta face à sua exploração pela crescente Humanidade um dos nossos grandes desafios para os anos vindouros? Quando revisto nos dias de hoje, Soylent Green poderá assumir-se mais como uma curiosidade do que como clássico cinematográfico. Todavia, o filme comporta, de forma simples e quase melodramática, um potencial de singular ficção-científica – sobretudo na acção eficazmente composta por Richard Fleischer e pela seriedade involuntariamente espirituosa de Charlton Heston no papel de um polícia que descobre, no twist final e para mal dos seus pecados, o ingrediente secreto do plâncton verde que constitui a mais importante fonte de nutrientes para a Humanidade no ano de 2022.

Rocky Balboa não é um filme sobre boxe, é sim um impulso auto-retratista, de um repentismo entusiasmante, instigado pela solidão, e que vem, de certa forma, pedir desculpa por todas as sequelas que, apesar de cativantes, arruinaram por demasiadas vezes o próprio espírito e lema da sua personagem chave. Cinematograficamente, Rocky Balboa tende para a mediania, é verdade. Mas o que interessa isso quando estamos perante um filme tão humano sobre um animal preso em si mesmo? Porque Rocky Balboa, mais do que a história de Rocky Marciano, é a história de Sylvester Stallone. A despedida de um clássico que marcou gerações, uma história de coragem e esperança, um forte gancho de direita em todos aqueles que anteviram o pior. “Adrian... we did it!”.

Título nacional: À Beira do Fim

Título nacional: Rocky Balboa

Realização: Richard Fleischer

Realização: Sylvester Stallone

Elenco: Charlton Heston, Edward G. Robinson, Leigh Taylor-Young

Elenco: Sylvester Stallone, Antonio Tarver, Milo Ventimiglia

85

86 131


THE BIG RED ONE

CRUISING

JOÃO PAULO COSTA

JOÃO PAULO COSTA

Estreado em 1980 numa versão de 113 minutos e “reconstruído” em 2004, a partir das notas do realizador, entretanto falecido, pelo crítico e historiador Richard Schiekel, numa versão de 160 minutos, The Big Red One é um dos melhores filmes de guerra alguma vez feitos na América. Sam Fuller, o realizador que andou 30 anos a tentar produzir esta jornada bélica da Segunda Guerra Mundial, viveu de perto o combate em terras europeias e africanas, baseando o argumento nas suas experiências pessoais. É impossível não nos deixarmos conquistar pela camaradagem do pelotão liderado pelo grande Lee Marvin, o Sargento veterano da Primeira Grande Guerra que regressa ao palco que anos antes lhe deixou uma dolorosa memória. Um clássico de barba rija, intenso e emocionante como se quer.

Recebido em 1980 como obsceno e provocador, este policial de William Friedkin situado no submundo gay-sadomaso novaiorquino é hoje filme de culto não apenas pelo retrato arrojado que faz de um universo poucas vezes explorado no cinema mainstream, mas também por ser mais um excelente título na carreira de Friedkin, capaz de manter o mistério em aberto até um final surpreendentemente enigmático e desconfortável. A presença de Al Pacino é mais contida do que seria de esperar, o que acaba por resultar numa contradição bastante interessante nesta obra de excessos, cuja narrativa segue a lógica típica do giallo italiano mas é ao mesmo tempo totalmente americana. Na sua época foi recebido com nomeações para os prémios Razzie. Nós por cá preferimos reconhecerlhe grande valor cinematográfico.

Título nacional: O Sargento da Força Um

Título nacional: A Caça

Realização: Wolf Rilla

Realização: William Friedkin

Elenco: Lee Marvin, Mark Hamill, Robert Carradine

Elenco: Al Pacino, Paul Sorvino, Karen Allen

87

88 132


THE HUNGER

GRAND PRIX

SAMUEL ANDRADE

SAMUEL ANDRADE

No Cinema, os vampiros sempre possuíram uma inegável aura de sensualidade, figuras sanguinárias pelas quais o espectador sempre nutriu fascínio pessoal e estético. Foi com Tony Scott, em The Hunger, que os vampiros tornaram-se definitivamente modernos. Exibindo todos os traços visuais de um videoclip, e com uma das escolhas de casting menos prováveis para o seu tempo – Catherine Deneuve, David Bowie e Susan Sarandon, um triângulo amoroso simultaneamente pop e elitista –, eis uma obra que pode ser observada, sem “remorsos”, puramente pelo seu estilo em detrimento de conteúdo temático ou narrativo. Fome de Viver é, portanto, uma experiência inteiramente sensorial, que não demorou a gerar o seu estatuto de culto, cativando os cinéfilos que responderam positivamente à atmosfera sombria, glamourosa e, a espaços, libertina engendrada pelo malogrado Tony Scott.

Produzido numa época em que a competição motorizada parecia ser motivada mais pela pura adrenalina da vitória do que na captação do patrocinador mais abastado, Grand Prix é um filme com argumento simples, vibrante trabalho visual e de montagem e com sincero respeito ao espírito da modalidade. Com câmaras acopladas a protótipos de Fórmula 1 em provas verdadeiras e na convocação de Saul Bass para desenvolver os créditos iniciais, o realizador John Frankenheimer concentrou todo o seu empenho na espectacularidade das imagens. Quando os actores saem dos carros e explana-se o “enredo”, Grand Prix revela-se menos cativante (não obstante o fabuloso elenco internacional aqui reunido, com nomes como James Garner, Yves Montand ou Eva Marie Saint). Este será sempre o definitivo objecto cinematográfico dedicado à Fórmula 1.

Título nacional: Fome de Viver

Título nacional: O Grande Prémio

Realização: Tony Scott

Realização: John Frankenheimer

Elenco: Catherine Deneuve, David Bowie, Susan Sarandon

Elenco: James Garner, Eva Marie Saint, Yves Montand

89

90 133


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GRETA GARBO & MGM ANÍBAL SANTIAGO

Existem muitos actores e actrizes. Vários têm talento, outros nem por isso, uns brilham mais alto e destacam-se mais do que os seus colegas, outros nunca passam do anonimato. Depois existem aqueles que conquistam a imortalidade, o direito a serem recordados por todos e nunca serem esquecidos, mesmo que a sua presença no Mundo terreno tenha terminado há várias décadas atrás. Greta Garbo, nascida Greta Lovisa Gustafsson, a 18 de Setembro de 1905, em Estocolmo, ultrapassou todas essas distinções e alcançou um patamar próximo das divindades cinéfilas, criando uma imagem misteriosa à volta da sua figura, arrebatando com o seu talento e sensualidade. Seja como as suas tentadoras Elena e Felicitas von Rhaden em The Temptress e Flesh and the Devil, seja como a aparentemente austera Nina Ivanovna "Ninotchka" Yakushova que acaba por ceder aos encantos do Conde Leon d'Algout (Melvyn Douglas) em Ninotchka, seja como a frágil Marguerite Gautier, Greta Garbo sobressai pela positiva, destacando-se pela profundidade, mistério e sobriedade que dava às suas personagens, pela sua capacidade de transmitir emoções, de nos embalar no seu doce olhar e carisma, rodeando-se da aura das grandes estrelas. Um dos primeiros grandes papéis de relevo de Greta Garbo foi o de Elizabeth Dohna em The Saga of Gösta Berling, um filme sueco realizado por Mauritz Stiller, seguindo-se a sua Greta Rumfort em The Joyless Street de G.W. Pabst, dois filmes de relevo, que permitiram à "esfinge sueca" destacar-se, até chegar aos Estados Unidos da América e fazer carreira na Steve McQueen, Tom Cruise, Metro-Goldwyn-Mayer. A sua Michael chegadaCaine, à MGM Kurt dá-se Russell em 1925, ou Sylvester sendo queStallone esta vinda foram surge apenas acompanhada alguns dospor protagonistas versões distintas: de filmesversão uma com muitos apontacarros, que Louis sobre B. carros Mayer, ou então mesmo vice-presidente em que apenas da um carro foi o centro das Metro-Goldwyn-Mayer, encontrava-se atenções deinteressado toda a narrativa no realizador ou parte dela. Bem, Mauritz Stiller, ditocom assim, este talvez último estes a colocar e muitos Greta outros Garbo actores comonão uma tenham das condições sido protagonistas para assinar mas contrato. apenas Outra acessórios versão aponta para osque verdadeiros Mayer ficou deslumbrado heróis das histórias, com a interpretação máquinas como de aGreta Eleanor Garbo de em GoneSaga The in 60ofSeconds Gösta Berling, ou o Mustang querendo GTdesde de Bullit. logoNuma contratar edição Garbo. dedicada Seja qual aformotores a versãoque mais marcaram correcta,a oSétima que parece Arte, aconsensual Take Cinema é Magazine que Greta Garbo analisou conseguiu então quinze um sucesso filmes, de surpreendente todas as épocas, na MGM, de todoster após os solidificado géneros e para a sua todos carreira os gostos, na Europa, em que comforam os já os citados carros quemSaga The brilharam of Gosta mais Berling alto. Gentlemen, e Joyless Street. start your engines!

15 FILMES EM QUE OS CARROS BRILHARAM MAIS ALTO


Sem saber ainda dominar totalmente a língua, Garbo chegou aos Estados Unidos da América junto de Stiller, vivendo momentos de incerteza, deparando-se com uma realidade distinta e assinando contrato com a Metro-Goldwyn-Mayer, um estúdio conhecido pela sua capacidade de manter algumas das maiores estrelas de Hollywood sob a sua alçada contratual. Veja-se que este foi o estúdio que manteve nas suas fileiras actores e actrizes como John Gilbert, Joan Crawford, Myrna Loy, Spencer Tracy, para além de cineastas como Clarence Brown, Victor Sjöström, Tod Browning, entre outros. Toda a carreira da actriz nos EUA foi efectuada na MGM, tendo conhecido com o realizador Clarence Brown a sua colaboração mais profícua (este realizou sete filmes de Garbo) e com John Gilbert uma química notável ao longo dos quatro filmes que protagonizaram, uma relação que em alguns momentos teve episódios fora do grande ecrã, embora a vida privada da lenda sueca esteja envolta em muitas dúvidas, mistérios e rumores, com quase todos os elementos que privaram com esta e até os que nunca a conhecerem a formarem teorias sobre a sua pessoa e personalidade. Ao todo protagonizou dez filmes mudos na MGM (e participou ainda em A Man's Man), para além de quinze talkies, numa carreira que contou com mais altos do que baixos, tendo terminado com um papel bem dicotómico das mulheres fadadas à tragédia ou ao amor de perdição a quem deu vida em várias das películas que protagonizou. Quando falamos do seu último filme, falamos claro de


Two-Faced Woman, o último trabalho cinematográfico da actriz, onde esta interpreta Karin, uma instrutora de esqui, que se casa com Lawrence Blake, o editor e chefe do Times. Two-Faced Woman aproveita a óptima química de Melvyn Douglas e Greta Garbo em Ninotchka, surgindo como um dos filmes menos apreciados da actriz embora seja uma comédia romântica bastante agradável, onde George Cukor revela mais uma vez a sua perícia para a construção de personagens femininas fortes. Se Two-Faced Woman marca uma incursão na comédia de Greta Garbo, depois do sucesso de Ninotchka (promovido com a frase de efeito "Garbo Laughs"), já Torrent, o seu primeiro filme na MGM, ficou marcado por uma procura inicial do estúdio em saber como deveria aproveitar o talento da actriz. Esta certamente esperaria trabalhar com Stiller, mas o seu primeiro trabalho na MGM foi realizado por Monta Bell, contando com Ricardo Cortez como colega, numa relação profissional que não viria a ter grandes frutos, visto que este último e Garbo não apresentavam a maior das amizades. A história de Torrent é bastante simples e centra-se em Lenora (Greta Garbo), uma jovem oriunda de uma família empobrecida, apaixonada por Don Rafael Brull (Ricardo Cortez), o herdeiro de uma família abonada, que se encontra a concorrer a um cargo político. Dona Bernarda Brull (Mattox), a mãe de Rafael, reprova por completo esta relação, obrigando


Lenora e o seu pai a saírem da propriedade rural onde habitam, ficando com a mãe da protagonista como sua criada. Lenora parte para França para ir viver junto do seu pai e tentar triunfar no mundo da música, algo que consegue, contando com o nome artístico "La Brunna", uma cantora conhecida pelos seus casos, talento e capacidade de sedução. Lenora decide regressar a casa, numa fase que coincide com o dia da eleição de Rafael. Por sua vez, Rafael encontra-se prestes a casar com Remedios Matías (Gertrude Olmstead), uma mulher recatada, com quem os pais esperam ver o protagonista masculino casar. Rafael ainda balança perante a chegada da antiga amada, que facilmente aquece o seu coração, embora a família logo o procure convencer a seguir o caminho mais seguro a nível profissional e familiar. Pelo meio, uma tempestade conduz a que uma barragem ceda e provoque uma inundação (a torrente do título, que simboliza ainda a relação frustrada dos protagonistas). Estes são bem sucedidos profissionalmente, mas falta-lhes amor, ao longo deste drama marcante da carreira de Greta Garbo. A "esfinge sueca" certamente esperaria colaborar com Mauritz Stiller, com quem viajou da Suécia em direcção aos EUA, mas acabou por protagonizar uma obra realizada por Monta Bell, tendo como base "Entre Naranjos", um livro de Vicente Blasco Ibáñez, que marcou a primeira colaboração desta com William Daniels, o seu director de fotografia preferido, cuja presença viria a impor em várias das suas obras. Frágil no início do filme, deslumbrante

como a vamp La Brunna, Garbo não se intimida na estreia em Hollywood, explorando as diferentes facetas da sua personagem, fazendo-nos acreditar nos seus sentimentos por Rafael e na dor provocada pela inconstância deste. Cortez não iguala Garbo, mas também não desilude, como este indivíduo que balança constantemente entre satisfazer a família ou o seu coração, enquanto o casal acaba por constantemente se afastar, embora os seus elementos pareçam amar-se. Quem se enamorou com o desempenho de Garbo em Torrent foi o público e a crítica. Veja-se que a Variety comentou sobre Garbo: "The Find of the Year. The girl has everything, with looks, acting, hability, and personality (...) The picture is not unusual, but the girl is". Estava dado o pontapé de saída para uma carreira magnífica nos EUA. O segundo trabalho de Greta Garbo na MGM, The Temptress, também foi baseado num livro de Vicente Blasco Ibáñez, embora tenha conhecido um processo bem mais complicado nos bastidores, com Stiller a ser afastado do cargo de realizador, após várias cenas estarem filmadas. Este não sabia falar bem inglês, não se adaptou ao sistema de estúdios de Hollywood e ainda conheceu alguns problemas com o actor Antonio Moreno, acabando por ser substituído por Fred Niblo. Os problemas não se reflectiram na interpretação de Garbo e no resultado final do filme. Greta Garbo, ou melhor, a personagem que interpreta, é a tentação em pessoa em The 138


Temptress, tendo em Elena uma vamp muito ao estilo de outras mulheres que vai interpretar ao longo da carreira. Elena é sedutora e sensual, aparentemente frágil e terna, carregando no seu olhar um mistério que apenas Garbo pode dar às personagens, encantando os homens e seduzindo os mesmos, embora como esta saliente estes sacrifícios são feitos "Not for me - but for my body! Not for my happiness but for theirs!". A primeira vez que encontramos Elena esta encontra-se num baile de máscaras em Paris, onde conhece Manuel Robledo, despertando a atenção do personagem interpretado por Antonio Moreno, sobretudo quando tira a máscara que tapa parte do seu belo rosto. As cenas surgem coloridas a azul, belas, exacerbadoras do jogo de sedução entre Manuel e Elena, com estes a fazerem juras de amor, até a segunda o abandonar na manhã seguinte. Manuel é um engenheiro que se encontra a trabalhar na construção de uma barragem na Argentina, residindo temporariamente em França, onde visita o seu amigo, o Marquês de Torre Bianca (Armand Kaliz), acabando por descobrir que este último é casado com Elena. O choque no rosto deste é evidente, sendo que Elena também não disfarça algum incómodo. O pior ainda está para vir, quando Fontenoy (Marc MacDermott), um banqueiro e amante de Elena, efectua um escândalo num jantar antes de cometer suicídio, revelando publicamente a relação adúltera que mantém com esta, que até é consentida por Torre Bianca devido aos apoios financeiros do falecido.


Manuel fica algo escandalizado e desiludido com tudo o que descobre sobre Elena, acabando por rejeitar os avanços desta e partir para a Argentina. Neste local é bem recebido pelos seus trabalhadores, onde constam Canterac (Lionel Barrymore), Pirovani (Robert Anderson), entre muitos outros. A estorvar o trabalho destes encontra-se Manos Duras (Robert D'Arcy), um criminoso que lidera um bando pronto a colocar em perigo a vida do protagonista, sobretudo quando Torre Bianca decide visitar Robledo e traz consigo a sua esposa, que logo aquece os corações de todos, incluindo do antagonista. Duras e Manuel acabam por disputar um duelo com chicotes, após o primeiro roubar um beijo a Elena e colocar em causa a autoridade do protagonista, resultando num momento emotivo e violento, embora não se compare aos efeitos que a chegada de Elena vai ter junto dos homens que se encontram no território.

aproveite de Fontenoy, enquanto todos a desejam embora nem sempre a pareçam amar. O seu final é extremamente moralista, muito próprio de alguns filmes norte-americanos da época, com Garbo a interpretar uma personagem muito próxima daquelas a que daria vida em The Flesh and the Devil, The Kiss, Mata Hari, entre outras obras, tendo chegado ao projecto devido à influência de Stiller, exibindo a aura e carisma das grandes lendas, criando uma sedutora nata, que domina e é dominada pelos homens. Garbo é bem acompanhada no elenco por Antonio Moreno, com este a interpretar um indivíduo que se deixa seduzir pela "tentadora", embora procure escapar-se desta, mas muitas das vezes não consiga cumprir esse difícil desiderato. O filme conta ainda com um elenco secundário que se destaca pela positiva, em particular Roy D'Arcy como o espampanante antagonista Manos Duras, Lionel Barrymore como Canterac, um indivíduo atolado em dívidas que se encontra na Argentina enquanto envia dinheiro para a esposa que se encontra em França, entre outros. Curiosamente, ou talvez não, também os personagens de Barrymore e D'Arcy se deixam encantar por Elena, ao longo de uma obra a espaços demasiado melodramática, que apresenta uma versão algo estereotipada dos argentinos, embora conte com vários elementos a ter em atenção pela positiva, não faltando uma complexa relação entre a personagem interpretada por Garbo e Robledo, um conjunto credível de cenários, uma procura em explorar e desenvolver as personalidades dos

Realizado por Fred Niblo, um cineasta com uma carreira bastante profícua durante a segunda e terceira décadas do Século XX, The Temptress surge como um melodrama intenso, capaz de aproveitar o talento de uma então jovem Greta Garbo, com esta a dar vida a mais uma mulher fatal, que tenta tudo e todos. Esta é bela, jovem, tem uma aura quase divina, tentadora, fazendo tudo e todos desejá-la e conduzindo vários homens à desgraça, embora também seja utilizada por estes. Veja-se a relação com Torre Bianca, com o marido a permitir que esta se 140


personagens e até uma emocionante luta com chicotes entre Manos Duras e o protagonista masculino. Fred Niblo realiza assim um drama onde a tentação, o desejo, as traições e paixões andam lado a lado, onde uma mulher tolda os sentidos dos homens, quer em pleno território francês, quer na Argentina, revelando-se uma sedutora nata, tal como a actriz que lhe dá vida, com Greta Garbo a deslumbrar com a sua Elena. O final demasiado moralista, embora algo comum na época, era escusado, mas nem por isso The Temptress deixa de se revelar um drama a ter em atenção, onde os sentimentos aquecem e uma mulher se revela capaz de inquietar todos aqueles que dela se aproximam. Apesar do sucesso a nível interpretativo e até junto da crítica, estes não eram tempos fáceis para que Greta Garbo, que teve ainda de lidar com a morte da irmã, tendo sido proibida pelo estúdio de viajar até à Suécia durante as filmagens de The Temptress, algo que a levou inicialmente a rejeitar protagonizar Flesh and the Devil. Esta não queria voltar a interpretar uma mulher tentadora, não tinha ficado particularmente sensibilizada com o trabalho que tinha entre mãos, chegando até a faltar a filmagens. No entanto, tudo acabou por se desenrolar da melhor forma, com Garbo a surpreender num desempenho carregado de erotismo e uma química sublime com John Gilbert, naquele que foi o primeiro filme protagonizado por ambos (e onde

iniciariam um caso amoroso). O desejo e erotismo andam lado a lado em Flesh and the Devil, uma obra onde Greta Garbo surge como uma vamp pronta a seduzir os personagens masculinos e trazer consigo a tragédia. Expressiva, misteriosa, sensual, intensa, aparentemente frágil mas feroz nos desejos, Garbo é tudo isto em Flesh and the Devil, ao dar vida a Felicitas von Rhaden, uma mulher casada com um conde, que trai o marido com Leo von Harden (John Gilbert). Leo é um jovem militar algo indisciplinado, amigo de infância de Ulrich von Eltz (Lars Hanson) com quem serve no exército. Os momentos iniciais do filme servem para estabelecer a amizade aparentemente à prova de tudo de Leo e Ulrich, com os dois a apresentarem uma cumplicidade evidente, quase de irmãos, ou, se quisermos esticar a corda, algo mais do que isso. Os dois parecem inseparáveis e regressam a casa durante a licença militar, onde são recebidos pela mãe do personagem interpretado por John Gilbert e Hertha (Barbara Kent), a irmã de Ulrich, que tem um fraquinho por Leo. O trio fez outrora um pacto de sangue na Ilha da Amizade, algo que relembram enquanto se preparam para participar no baile de Stoltenhof, um dos eventos relevantes da localidade. No baile Leo conhece finalmente Felicitas, a mulher que vira quando regressara a casa no comboio, despertando desde logo a sua atenção. Leo conversa com Felicitas, seduz e deixa-se seduzir por esta, até se 141


envolverem (as cenas entre estes dois surgem bastante quentes para a época) e o marido desta descobrir o acto adúltero. O conde Rhaden logo desafia Leo para um duelo, pedindo que o argumento seja uma querela num jogo de cartas para não manchar a sua reputação, acabando por ser eliminado pelo jovem militar. A morte do conde Rhaden conduz a que Leo seja enviado pelo exército para cumprir cinco anos de serviço em África, omitindo de Ulrich as razões do duelo e pedindo ao amigo para que este tome conta de Felicitas. Sem saber da paixão do amigo por Felicitas, Ulrich acaba por iniciar uma relação com esta, algo que conduz a uma grande comoção por parte de Leo, que se encontra com um conjunto fervilhante e dicotómico de sentimentos a regurgitar no interior da sua alma quando regressa ao território austríaco, após ter cumprido apenas três anos de serviço. Leo ama Felicitas, pese a traição efectuada por esta, mas acima de tudo é fortemente ligado a Ulrich, sendo que este último não sabe do caso que os ligou no passado. O momento da igreja em que os três estão juntos é paradigmático do quão errada é esta relação entre ambos, com o padre, uma das poucas pessoas a saber do romance de outrora entre Felicitas e Leo, a condenar o relacionamento de forma indirecta através do seu discurso. Tudo se prepara para a tempestade perfeita, com Felicitas a seduzir Leo, este a sucumbir e a amizade deste último com Ulrich a ser colocada em causa, ao longo deste drama intenso, onde a neve cobre os cenários mas não gela as

labaredas fervilhantes de sentimentos que envolvem este complexo triângulo amoroso. Clarence Brown realiza uma intensa e melodramática adaptação do livro The Undying Past, criando uma obra permeada por algum erotismo e sensualidade, onde uma mulher se intromete no meio dos homens e desperta o lado mais negro dos mesmos. Garbo destaca-se na primeira das suas sete colaborações com Clarence Brown (este viria a realizar A Woman of Affairs, Anna Christie, Romance, Inspiration, Anna Karenina e Conquest, todos protagonizados por Garbo), com o cineasta a revelar-se exímio a extrair o que de melhor os seus actores têm para dar, enquanto aproveita a química latente entre a divina "esfinge sueca" com John Gilbert. Greta Garbo e John Gilbert viriam ainda a trabalhar em Love, A Woman of Affairs e Queen Christina, com a MGM a aproveitar a química entre ambos (chegaram a ter um romance na vida real, embora a actriz não fosse dada a grandes paixões, pelo menos em público), tendo em Flesh and the Devil uma obra onde a primeira é a sedutora e o segundo o seduzido. Gilbert convence como este indivíduo apaixonado, militar meio indisciplinado, que desperta a atenção de Hertha mas ama Felicitas, procurando ser leal ao amigo mas traindo o mesmo. Garbo interpreta uma vamp, uma personagem trágica e sedutora, muito ao estilo desta actriz incrível, pronta a expressar uma imensidão de sentimentos. Felicitas é sedutora, algo maligna, mas ao 142


mesmo tempo frágil, escondendo na sua doçura um irresistível lado negro ao qual os homens sucumbem e o espectador não consegue ficar indiferente. Temos ainda a presença de Lars Hanson, deixado para último neste texto mas nem por isso menos importante neste filme, com o seu Ulrich a formar uma forte ligação de amizade com Leo e a deixar-se seduzir por Felicitas. Clarence Brown gere com eficácia este triângulo, apresentando-nos a um território austríaco ficcional, numa obra filmada com alguma beleza, sobressaindo a cena do duelo entre o Conde Rhaden e Leo, no qual vemos as silhuetas e os momentos exteriores na neve, com o trabalho de fotografia a destacar-se pela positiva. No entanto, o que sobressai mais ao longo de Flesh and the Devil não são algumas das suas belas imagens em movimento mas sim os sentimentos, vividos intensamente pelo triângulo amoroso, no qual Greta Garbo se destaca diante dos companheiros de elenco, ao longo de uma película marcada por um drama intenso, onde as paixões, traições e lealdades sobressaem, embora não sejam descurados alguns momentos de leveza, com Clarence Brown a iniciar uma parceria muito feliz com uma das maiores lendas da História do Cinema. O sucesso de Flesh and the Devil junto do público conduziu a que Greta Garbo tivesse "maior músculo" negocial diante da MGM, conseguindo a partir daqui ter um maior controlo sobre os projectos e os realizadores

com quem viria a trabalhar, para além de conseguir por várias vezes que William Daniels, o seu director de fotografia preferido, fosse escolhido para o cargo (foi director de fotografia de Torrent, The Temptress, Flesh and the Devil, Love, The Mysterious Lady, A Woman of Affairs, Wild Orchids, The Kiss, Anna Christie, Romance, Inspiration, Susan Lenox, Mata Hari, Grand Hotel, As You Desire Me, Queen Christina, The Painted Veil, Anna Karenina, Camille e Ninotchka). Nesse sentido, Greta Garbo rejeitou protagonizar Women Love Diamonds, aquele que seria o seu quarto filme, encontrando-se com pouca vontade de interpretar mais (segundo palavras desta) "uma sedutora estúpida". Não se pense que a negociação foi fácil, com Garbo a afastar-se durante o período aproximado de cinco meses, embora conquistando um salário semanal de quatro mil dólares no primeiro ano e um aumento de mil dólares semanais em cada ano subsequente, para além de ter conseguido ainda um direito então raro nos actores com quem o estúdio tinha contrato: receber o salário por cinquenta e duas semanas de trabalho. A política da Metro-Goldwyn Mayer passava por pagar quarenta semanas por ano, mas Garbo, com o apoio de Harry Edington, o empresário de John Gilbert, conseguiu esta proveitosa alteração. Diga-se que a influência de Gilbert não foi muito bem vista junto de Mayer, que em reunião administrativa chegou a proferir "that son of a bitch is inciting that damned swede and is going to cost us a fortune". As excentricidades ou conquistas desta não 143


se ficaram por aqui, veja-se que esta quebrava a regra das filmagens terminarem às 6h da tarde, recusando-se a ficar a filmar depois das 5h em ponto, saindo mesmo que existissem cenas para filmar. Com novo contrato e mais poder de decisão junto da MGM, o novo trabalho de Greta Garbo foi Love, a primeira das adaptações cinematográficas de Anna Karenina de Leo Tolstoy que Greta Garbo viria a protagonizar. O filme começou por ser realizado por Dimitri Buchowetzki e teria Ricardo Cortez como co-protagonista, mas o produtor Irving Thalberg, provavelmente tendo em atenção as queixas de Garbo, contratou Edmund Goulding para o cargo de realizador, John Gilbert para o lugar de Cortez, para além de William H. Daniels ter entrado para o lugar de director de fotografia. Love aproveita paradigmaticamente a química entre Gilbert e Garbo, com estes a darem vida ao Conde Vronsky e a Anna Karenina, respectivamente, numa obra que conta com diversas liberdades em relação ao livro de Tolstoy, para além de ser um exemplo paradigmático da política seguida por alguns estúdios da época de gravarem mais do que um final e darem ao exibidor a oportunidade de escolher. Nesse sentido, temos um final que respeita a obra, onde Anna Karenina se suicida, e temos outro onde o esposo da protagonista falece e esta volta para junto do filho, terminando feliz e reencontrando o Conde Vronsky. A história é sobejamente conhecida, embora Love tome diversas liberdades,


incluindo no final, distinto na versão dos EUA e na versão Europeia, com o filme a colocar-nos perante a história de Anna Karenina, uma mulher casada com o Senador Alexei Karenin (Brandon Hurst), com quem tem um filho, cuja vida conhece uma reviravolta quando conhece o Conde Vronsky (John Gilbert). No caso de Love estes conhecem-se durante uma tempestade de neve, quando Vronsky, um dos homens da confiança do Grão-Duque, se dirigia em direcção a São Petesburgo. Estes são obrigados a parar numa estalagem, com Anna Karenina a rechaçar os avanços de Vronsky, com este a desconhecer a identidade da bela mulher. Pouco tempo depois, durante a recepção ao Senador Karenin, Vronsky é apresentado a este e à sua esposa, Anna Karenina, ficando surpreso com a descoberta, embora essa situação não impeça os avanços junto desta, que gradualmente acaba por ceder. Karenina surge representada como uma mulher algo solitária, dedicada ao filho, que encontra em Vronsky a atenção que não tem no casamento, com os dois a compreenderem-se mutuamente. Quando Vronsky tem um acidente numa corrida de cavalos, Anna logo entra num ataque de histeria, deixando tudo e todos cientes da sua paixão pelo amante, incluindo o marido, acabando por fugir com o personagem interpretado por John Gilbert para Itália. O problema é que as saudades do filho apertam, deixando a aparentemente idílica felicidade do casal em perigo, algo que conduz a protagonista a regressar à Rússia, onde descobre que o filho pensava que esta estava morta.

A vida da protagonista sofre uma reviravolta: o marido proíbe Anna Karenina de rever o filho, a relação com Vronsky já conheceu dias mais radiantes e o futuro deste último até depende de um afastamento da sua pessoa. Love coloca-nos assim perante uma adaptação livre do clássico literário Anna Karenina, permitindo a John Gilbert e Greta Garbo protagonizarem alguns momentos tórridos (para a época) no ecrã e mostrarem algum do enorme carisma que os rodeava. Estrelas da MGM em plenos anos 20, Garbo e Gilbert brilharam em Flesh and the Devil e voltam a demonstrar uma química sublime. Greta Garbo como esta mulher frágil e sonhadora, mas ao mesmo tempo capaz de trair o marido e abandonar o filho, vivendo num tornado de sentimentos; Gilbert como um militar pronto a tudo para conquistar a amada, a mulher dos seus sonhos, que o inquieta e seduz. Consta que Gilbert terá também realizado as cenas mais íntimas entre o seu personagem e Anna Karenina, algo que diz bem da relevância deste casal para o desenvolvimento dos personagens que interpretam. Anna Karenina e Vronsky são a força motriz deste drama marcado por algum erotismo, alguns bons valores de produção (veja-se os cenários, guarda-roupa), enquanto Edmund Goulding realiza um drama agradável, que pode não agradar aos defensores mais acérrimos do livro, mas cumpre no desenvolvimento dos personagens e do relacionamento entre a protagonista e Vronsky. Poderia ter desenvolvido mais a história da protagonista com o filho (embora 145


protagonize algumas cenas ternas com o mesmo) e Karenin, mas tudo parece ter sido efectuado para aproveitar a popularidade, carisma e talento de Greta Garbo e John Gilbert. A dupla de protagonistas domina o filme, embora Greta Garbo sobressaia mais, com o seu olhar hipnotizante, as suas expressões que tanto dizem, ao longo de uma obra que cumpre ao longo da sua duração. O domínio da dupla foi também visível na campanha promocional, tendo como slogan: "Greta Garbo and John Gilbert in LOVE". Os próprios folhetos dos programas do filme apostavam imenso na química do casal e na promessa de momentos tórridos (para a época) entre ambos, embora a relação extra-ecrã entre Garbo e Gilbert não tenha durado muito tempo.

casada com Charles (Anders Randolf), um indivíduo mais velho e aparentemente saudável a nível de finanças, com quem tem uma relação pouco calorosa, ao contrário do relacionamento com André (Conrad Nagel), um jovem advogado com quem se encontra às escondidas. A relação com André sofre um forte revés quando o casal decide parar de se ver. Irene pretende fugir com André, enquanto este último pretende que a protagonista peça o divórcio, algo que esta considera impossível de obter. É então que Irene conhece Pierre (Lew Ayres, no seu primeiro papel), um jovem estudante universitário, filho de um homem de negócios abastado e amigo de Charles, que logo se sente seduzido pela bela mulher. Um beijo de despedida (que dá título ao filme) entre Pierre e Irene promete trazer a desgraça a esta última, despertar a fúria do seu esposo e conduzir a uma morte, naquele que é um dos episódios definidores deste filme eficazmente realizado por Jacques Feyder, uma obra que não dá mais do que aquilo que se propõe, permitindo a Greta Garbo espelhar um pouco do seu talento e fascinar-nos com a sua aura própria das divindades. Os close-ups exacerbam a expressividade de Garbo e o conflito interior da sua personagem, com esta a dar vida a uma mulher que é simultaneamente sedutora e seduzida, esposa e amante, um papel à sua imagem, ou não tivesse interpretado mulheres dadas à tentação em The Temptress, Flesh and the Devil, Anna Karenina, entre outras obras cinematográficas. Em The Kiss, Garbo interpreta uma mulher

Depois de Love, Greta Garbo protagonizaria ainda mais seis filmes mudos para a MGM, entre os quais, The Divine Woman (1928), The Mysterious Lady (1928), A Woman of Affairs (1928), Wild Orchids (1929), The Single Standard (1929) e The Kiss (1929). Último filme mudo da MGM e último filme mudo protagonizado por Greta Garbo, The Kiss, coloca a lendária actriz sueca num papel muito à sua medida, onde a tragédia e sedução andam lado a lado, ao longo de uma obra com uma narrativa simples, enxuta, sem grandes subtramas, centrada quase exclusivamente na história da sua protagonista, Irene, e nas complexas relações desta com as figuras masculinas. Irene é uma mulher sedutora e misteriosa, 146


que protagoniza três relações de cariz diferente ao longo do enredo: com André esta conhece o calor do amor (proibido); com o marido esta vive uma pálida relação matrimonial; com Pierre esta é alvo de desejo por parte de um jovem e concede-lhe um beijo que muda o figurino da narrativa, enquanto Greta Garbo surge sublime, encantadora e sedutora. O talento da actriz é aproveitado, bem como o dos seus colegas de elenco, embora o espectáculo seja quase todo de Garbo, numa obra que culmina com uma cena de tribunal, algo irrealista, mas emotiva, paradigmática de um filme movido pelas paixões e desejos. Na sua estreia em Hollywood, o belga Jacques Feyder é capaz de desenvolver um drama simples, competente, marcado por alguma sensualidade e um bom trabalho de fotografia, com o cineasta a ser capaz de explorar o talento da sua protagonista e o mistério em redor da mesma.

understand at all". James Oppenheim publicaria um artigo na Screenland em Novembro de 1929, intitulado "GRETA GARBO Psycho-Analyzed - An Amazing Psycho-Analytic Portrait of the Screen's Mystery Woman", onde se debruça exactamente sobre o mistério Garbo e as suas contradições: "She is genuinely shy, yet she broadcasts herself to the world; she loves solitude and is not a mixer, yet she stands in the glare of terrific publicity; it is not easy for her to express herself to others, yet she is today one of the truly remarkable actresses of the screen". Oppenheim não se ficaria por aqui, procurando ainda problematizar e analisar o apelo da actriz, que para si "Her appeal is not direct, like that of an Anita Page or a Mary Pickford; it is subtle, evasive, often unexpected. She is not changeless, like a Norma Shearer or a Marion Davies. Most actresses have what we might call one face. Greta Garbo is a woman of a thousand faces. She always looks different". Este artigo de Oppenheim vem expor de forma clara o mistério provocado por Greta Garbo junto do público e da imprensa, com esta a ser analisada, escrutinada, admirada e problematizada. A sua reclusão, ou, se preferirmos, o seu zelo pela privacidade, permitia exactamente este tipo de especulações em volta da sua figura, enquanto a popularidade de Garbo aumentava, com a MGM a saber aproveitar a mesma. Veja-se que em 1931 Winifred Aydelotte publicaria um artigo onde questionava logo no seu título "Garbo's Glamour - Is it Real?", onde aproveita para questionar uma série de figurantes que trabalharam com a actriz. Se o glamour

O sucesso de Greta Garbo nem sempre parece condizer com o seu prazer em estar nos EUA e nos eventos sociais. No artigo “Greta Garbo Breaks Her Silence", publicado na Screen Secrets em Maio de 1928, Garbo salientaria "(...) you will not see my name among those who attend the dinners and parties in Hollywood. I went to two dances at the Mayfair Club, that is all. I am not a great talker and you must remember here everyone is talking a language still almost foreign to me and I cannot catch the drift of the conversation. You all talk so fast, and the slang, I cannot 147


de Garbo é real ou não (parece-nos que sim, embora a MGM tenha tido um papel muito importante a alavancar Garbo ao estatuto de diva), o que é mais certo é o sucesso que esta viria a ter na transição para os talkies. Em 1930, esta viria a protagonizar o seu primeiro filme sonoro, Anna Christie. O filme foi promovido maioritariamente apenas com duas palavras "Garbo Talks", um pouco como mais tarde Ninotchka seria promovido com a frase "Garbo Laughs", ambos explorando elementos novos em relação à actriz. Garbo superou o teste e, ao contrário de grandes vedetas do cinema mudo que não conseguiram efectuar com sucesso a transição para o sonoro, conseguiu uma carreira sólida, tendo protagonizado quinze talkies para a MGM (incluindo Anna Christie e a versão alemã do filme realizada por Jacques Feyder).

o pai tinha saído do espaço para ir comer algo tendo em vista a atenuar o efeito do excesso de álcool ingerido: com andar algo desengonçado devido à sua mala pesada, um chapéu a cobrir parte do cabelo, casaco, uma camisa algo aberta e uma saia que cobre bem abaixo dos joelhos, a personagem logo fala "Give me a whiskey. Ginger ale on the side. And don't be stingy, baby". Estas são as primeiras falas de Garbo num talkie e servem desde logo para estabelecer que a personagem que interpreta está longe de ser o exemplo moral esperado pelo progenitor. Com o Chris fora, Anna dialoga com Marthy, numa cena típica do filme, reunindo um conjunto restrito de personagens nos espaços da narrativa, sendo que os próprios cenários são bastante limitados em termos numéricos e simples na sua constituição (temos acima de tudo esta espécie de tasca e a barcaça de carvão de Chris, embora algumas breves cenas se desenrolem numa espécie de feira popular). Anna revela alguns dos seus segredos do conturbado passado a Marthy, expondo alguma dor para com os homens e sofrendo com um passado de pouco orgulho, com o seu belo rosto a expressar alguma da sua angústia. Entra então em cena o seu pai, pronto a ver na filha aquilo que esta não é, pensando que Anna trabalhou como enfermeira, enquanto esta última vê no pai um temporário porto de salvação. Anna acaba por ir viver com o pai na barcaça, onde Chris procura penitenciar-se e compensar os anos de ausência, com os dois a desenvolverem uma relação nem sempre próxima. A relação entre Anna e

Os minutos iniciais de Anna Christie servem sobretudo para estabelecer Chris Christofferson (George F. Marion), o pai de Anna Christie (Greta Garbo) e Marthy Owens (Marie Dressler), uma mulher pouco cuidada e tão alcoólica como o progenitor da protagonista. Enquanto se encontrava na tasca onde bebe habitualmente, já meio alcoolizado, Chris recebe uma carta oriunda de St. Paul, no Minesotta, escrita por Anna Christie a dizer que se encontrava prestes a chegar. Chris logo começa a dialogar com Marthy sobre as expectativas que tem em relação à filha, esperando desta um exemplo de mulher. É então que entra em cena Anna, enquanto 148


Chris tem no momento em que este último salva um conjunto diminuto de marinheiros, onde se encontra Matt (Charles Bickford), o futuro interesse amoroso da protagonista, uma mudança notória. Rude nas suas acções, Matt gradualmente começa a conquistar Anna, algo que desagrada o pai desta, embora a relação avance de forma surpreendentemente positiva, pelo menos até a protagonista revelar alguns segredos do seu passado ao longo deste melodrama relativamente competente. Esta é a história da relação entre um pai e uma filha que são obrigados a ligar-se no presente, é a narrativa de uma mulher cujo futuro é uma incerteza e o passado uma tristeza, tendo em Greta Garbo uma actriz capaz de expor essas dúvidas que vão na alma da personagem. Garbo não brilha como mais tarde conseguirá em filmes como Queen Christina, Anna Karenina e Camille, mas domina a narrativa como esta mulher com um passado que a envergonha, com o filme a efectuar um comentário social em relação ao papel da mulher, a ponto de no último terço colocar Anna no meio de uma disputa de vontades entre os dois personagens masculinos principais. Não é só Garbo que se destaca, também Marie Dressler consegue sobressair como uma sem-abrigo beberrona, companheira de copos do pai da protagonista e com quem Anna primeiramente revela a sua personalidade. Vale ainda a pena realçar Charles Bickford como o interesse amoroso de Anna, embora a química entre o actor e Garbo nem sempre seja convincente, com este

a protagonizar um momento intenso com George F. Marion no último terço. Marion interpretou Chris pela segunda vez, após ter dado vida ao mesmo na obra realizada por John Griffith Wray. Os resquícios do cinema mudo ainda são visíveis nos intertítulos colocados em alguns momentos para indicar onde se desenrola o enredo, ao longo desta obra adaptada da peça escrita por Eugene O' Neill. O filme posteriormente seria ainda filmado numa versão alemã, uma medida normal dos estúdios na época para vender as obras nos mercados internacionais, tendo mantido os mesmos cenários e Greta Garbo como protagonista, embora com Jacques Feyder na realização e não Clarence Brown. O cineasta realiza este drama com alguma eficácia, embora por vezes o melodrama seja excessivo, tendo em Anna Christie a sua segunda de sete colaborações com Garbo. Em alguns momentos da narrativa o nevoeiro cobre os cenários envolventes da barcaça, simbolizando algum mistério e incerteza um pouco à imagem desta Anna Christie, uma mulher com um passado pouco memorável, um futuro pouco promissor e um presente onde procura refazer a sua vida, lutar contra os grilhões do destino e das figuras masculinas, embora esteja quase sempre presa a estes últimos. Garbo venceu esta aposta de risco, tendo rejeitado um elemento para treinar a sua voz, considerando-se já à vontade com o inglês para poder falar normalmente nos filmes. Para a sua primeira obra falada Greta Garbo conseguiu rodear-se de 149


alguns elementos da sua confiança, tais como Clarence Brown e o director de fotografia William Daniels, algo a que Irving Thalberg, o brilhante líder da divisão de produção da MGM (faleceria em 1936, mas coleccionaria êxitos no estúdio), e Louis B. Mayer acederam. O filme foi um sucesso junto do público, tendo a sua estreia a 22 de Janeiro de 1930 no Fox Criterion Theatre, confirmando que a MGM estava perante uma vedeta cuja voz não seria impeditiva de continuar a gerar aderência do público. Diga-se que a actriz não ficou totalmente satisfeita com a adaptação, em particular na forma como o filme retrata os suecos. Por sua vez, Anna Christie de Jacques Feyder aproveita a protagonista e os cenários da adaptação cinematográfica da peça da Broadway realizada por Clarence Brown, embora com diálogos falados em alemão e um elenco secundário distinto. Não temos Charles Bickford como Matt, mas sim Theo Shall; para o papel de Chris Christofferson entrou Hans Junkermann (interpretado no filme de Clarence Brown por George F. Marion); sai Marie Dressler como Marthy e entra Salka Viertel. Mantevese Greta Garbo como protagonista, enquanto Feyder apresenta-nos a uma história relativamente simples e muito semelhante ao filme de Brown, tendo como pano de fundo três cenários primordiais (a barcaça, a tasca e a feira popular) e centrada num conjunto bastante restrito de personagens. Esta versão de Anna Christie remete para um hábito da época de se aproveitar cenários e alguns elementos do elenco dos filmes

para efectuar versões faladas em outras línguas dos mesmos, de forma a chegar com mais facilidade ao público estrangeiro. O cinema mudo permitia chegar com enorme facilidade a todos os públicos, algo que não acontecia com os filmes sonoros (as legendas ainda não estavam tão disseminadas), uma situação que gerou diversas situações semelhantes à de Anne Christie. A história é idêntica à versão de Clarence Brown, embora Greta Garbo pareça estar um pouco mais à vontade como esta mulher com um passado negro, que finalmente se encontrou com o seu pai, expressando paradigmaticamente os seus sentimentos. Habituada ao cinema mudo, Garbo conseguiu efectuar com alguma facilidade a transição, notando-se até mais confiança nesta versão do que no filme realizado por Brown. Garbo surge bem acompanhada por um elenco secundário competente, destacando-se Hans Junkermann como o pai da protagonista, bem como Salka Viertel como a amiga deste último, para além de Teo Shall (que claramente apresenta uma química melhor com Garbo do que Charles Bickford) ao longo de um filme que parece respeitar vários elementos da peça teatral, deixando-nos perante um conjunto restrito de cenários e personagens, sendo muitas das vezes comum apenas encontrarmos dois elementos em simultâneo a dialogarem (vejase Anna Christie e Marthy, Anna e o pai, Anna e Matt). Com muitas semelhanças em relação ao filme realizado por Clarence 150


Brown, a versão de Anna Christie realizada por Jacques Feyder serve acima de tudo como um exemplo da política dos estúdios (no caso a MGM) de filmarem versões dos mesmos filmes em línguas distintas, contando com um trabalho de fotografia mais assertivo e deixando-nos perante um drama humano simples e competente. Depois de surpreender com a sua fala na dose dupla de Anna Christie e de ter protagonizado Romance (1930) e Inspiration (1931), ambos de Clarence Brown, Garbo teve em Susan Lennox: Her Fall and Rise a sua primeira e última parceria com a então estrela em ascensão Clark Gable. A presença de Gable e Garbo no mesmo filme foi o ponto de partida para a MGM procurar promovê-lo, algo visível nos programas das obras cinematográficas que se encontram disponíveis, onde podemos encontrar frases como: "The one and only Greta Garbo! - in the arms of fascinating Clark Gable", ou "Garbo in the arms of Gable - The Height os Screen Romance!". Perante o sucesso do filme, o The Hollywood Reporter chegou mesmo a afirmar: "The Garbo-Gable combinate was too much for any opposition even to dent". Susan Lennox: Her Fall and Rise surge como um drama de pendor romântico, onde Garbo e Gable interpretam um casal disponível para amar, cujas contingências e erros vários impedem durante boa parte do tempo a felicidade dos seus elementos. Parte do filme é marcada pelos encontros e desencontros deste casal, pelos acasos e contingências que os unem e separam, por vezes num tom demasiado melodramático e


com os diálogos a nem sempre soarem a verdadeiros, algo ultrapassado pelas sólidas interpretações de Garbo e Gable. Garbo dá vida a Helga Ohlin, uma mulher cuja mãe morreu a dar à luz (excelente decisão de colocar as silhuetas para apresentar estes momentos e a transição da protagonista para a idade adulta, com o filme a apresentar um assertivo jogo de luz e sombras), vivendo com um tio abusivo e uma tia que pouco poder tem na sua educação. Quando o pai a quer obrigar a casar com Jeb Mondstrum (Alan Hale) esta decide fugir, aventurando-se no meio de uma tempestade, conhecendo abrigo junto de Rodney Spencer (Clark Gable), um arquitecto que se encontra temporariamente numa casa das imediações.

do circo. Com roupas reveladoras das suas formas corporais, esta atrai os clientes e o chefe, tendo na visita de Rodney (numa coincidência narrativa bastante forçada) um momento de inesperada alegria, pelo menos até este descobrir o caso desta com Burlingham, algo que conduz a uma separação brusca destes elementos. Entre avanços e recuos, aproximações e separações, Helga e Rodney surgem como personagens marcados por erros do passado, um orgulho enorme que os impede de reconhecerem que nem sempre agiram bem, com o argumento a por vezes permear esta relação de alguns diálogos pouco elaborados, num filme que vale acima de tudo pela sua dupla de protagonistas. Baseado no livro homónimo da autoria de David Graham Phillips, Susan Lenox não poupa nos elementos dramáticos que envolvem a história de Helga e Rodney, dois elementos que parecem destinados a estar juntos mas afastam-se constantemente, enquanto o realizador Robert Z. Leonard procura a todo o custo aproveitar o talento e carisma da dupla de protagonistas para tirar este melodrama da mediania. O filme foi algo polémico para a época, ou não tivesse temáticas ligadas à protagonista utilizar o corpo para sobreviver, com Susan Lenox a explorar algo típico de algumas personagens interpretadas por Garbo, com estas a surgirem não só como sedutoras, mas também como seduzidas e até alvo de misoginia. Garbo é sublime na exposição dos sentimentos da sua personagem, embora já tenhamos visto esta efectuar pares

Rodney apresenta-se a Helga, revelando-se falador e galanteador, com os dois a apresentarem uma atracção mútua, a fazerem juras de amor e a protagonizarem alguns momentos românticos, embora a protagonista pouco fale, neste espaço quase idílico, até o personagem interpretado por Gable ter de partir temporariamente para apresentar o seu projecto para a construção de uma ponte em Detroit. No regresso a casa, esta depara-se com o tio e Jeb, que a querem forçar a casar, acabando novamente por fugir, apanhando o comboio de um circo ambulante, onde vai ficar conhecida como Susan Lenox e trabalhar como bailarina, vendo-se forçada a ter um caso com Burlingham (John Miljan), o dono 152


romântico bem mais convincentes ao longo da carreira (sobretudo com John Gilbert), com a dinâmica entre esta e Gable a nem sempre parecer funcionar. Gable encontrava-se ainda sem o mediatismo que viria posteriormente a conhecer, mas nem por isso deixa de aparecer seguro como este arquitecto que facilmente cede à bebida, duro e ao mesmo tempo romântico, conseguindo juntamente com Garbo superar algumas das lacunas do argumento. A dupla de protagonistas é talentosa, o seu argumento nem sempre consegue tirar proveito dos mesmos, enquanto o trabalho de fotografia revela-se a espaços digno de registo, embora não chegue para tornar Susan Lenox em algo de memorável. Romance convencional, permeado por uma enorme carga dramática, Susan Lenox vale sempre mais pela curiosidade de vermos Greta Garbo e Clark Gable reunidos pela primeira e última vez no grande ecrã, do que pelo seu valor narrativo e de entretenimento. De mulher forçada a vender o seu corpo a espia: a Susan Lenox: Her Fall and Rise seguiria-se uma espécie de filme de espionagem, Mata Hari, um dos êxitos de bilheteira de Garbo. Espia misteriosa e fadada à tragédia, Mata Hari é uma das personagens emblemáticas da carreira de Greta Garbo, na qual a "esfinge sueca" coloca mais uma vez a cabeça à roda aos personagens masculinos. Esta contribuiu para popularizar a lenda em volta de Mata Hari, uma espia condenada à morte em França,

durante a I Guerra Mundial, por supostamente espiar para o lado Alemão. Em Mata Hari, realizado por George Fitzmaurice, esta espia ganha a sua segunda adaptação ao grande ecrã (a primeira estreou em 1927, tendo sido realizada por Friedrich Feher), tendo em Greta Garbo uma intérprete capaz de conceder algum mistério à sua personagem, uma bailarina exótica (logo nos momentos iniciais temos esta a dançar para Shiva), sedutora e espia, que encanta e domina os homens, com excepção de Dubois (C. Henry Gordon), o líder do departamento de espionagem francês, que em plena I Guerra Mundial pretende evitar fugas de informação, desconfiando que Mata Hari se encontra ao serviço do inimigo, embora não tenha provas cabais contra esta. Esta trabalha para Andriani (Lewis Stone), seduzindo pelo caminho o General Serge Shubin (Lionel Barrymore) e o tenente Alexis Rosanoff (Ramon Novarro), com este último a transportar informação relevante que interessa à espia. Mata Hari seduz tudo e todos com o seu corpo e personalidade forte, incluindo Shubin, embora até acabe por se apaixonar por Rosanoff, um indivíduo de quem rouba informação, algo que irá despertar a fúria e ciúme do personagem interpretado por Lionel Barrymore. Entre uma paixão proibida e sentida em relação a Rosanoff, uma procura de manter Shubin sob controlo (de quem também retira informações), a tentativa de escapar às acusações de Dubois, a Mata Hari terá de utilizar todos os seus recursos para conseguir cumprir com sucesso os seus intentos, 153


embora mais tarde ou mais cedo esteja fadada à tragédia, ou não tivesse escolhido um estilo de vida para a qual a única fuga é a morte. A divinal Garbo encarna esta personagem com um estilo muito próprio, concedendo-lhe mistério, fragilidade, sensualidade e impetuosidade, com Mata Hari a surgir como uma mulher decidida a cumprir os seus intentos, mas também capaz de ceder ao amor, ao longo de uma obra que é sempre mais eficaz na exploração dos intrincados relacionamentos humanos do que no desenvolvimento das temáticas ligadas à espionagem e do que no contexto referente à I Guerra Mundial. Mais do que um filme de espionagem, Mata Hari é um melodrama, onde Garbo e Ramon Novarro surgem convincentes como um casal apaixonado onde a primeira apresenta uma postura mais activa e forte e o segundo uma postura mais fraca, sobressaindo o encontro final entre os dois, naquela que foi a primeira e última colaboração profissional entre ambos. Esta postura mais fraca de Novarro em relação a Garbo surge como algo propositado, deixando de forma subliminar uma mensagem para o público homossexual devido ao comportamento de Alexis (quase como se este fosse a figura feminina), algo defendido por Karen Swenson em Garbo: A Life Apart. Garbo encanta, deslumbra e convence ao longo deste drama marcado por um bom trabalho de fotografia, onde as sombras por vezes parecem tomar conta dos corpos,

uma espia procura roubar informações e um romance nasce numa altura improvável. O que não nasce numa altura improvável é Grand Hotel. A 12 de Abril de 1932 estreia nos Estados Unidos da América Grand Hotel, o primeiro filme da MGM no qual o estúdio decide reunir várias das suas estrelas sob contrato, entre as quais Greta Garbo, Joan Crawford, Lionel Barrymore, John Barrymore, Lewis Stone, entre outros, contando ainda com a realização de Edmund Goulding (que trabalhara com Garbo em Love). O Grand Hotel do título diz respeito ao espaço homónimo em Berlim, um local onde entram e saem constantemente diversos clientes, que vivem episódios esporádicos neste hotel de luxo e posteriormente dão lugar a outros elementos, que se preparam para viver novas experiências neste edifício cheio de histórias. No caso da obra realizada por Edmund Goulding, alguns destes personagens protagonizam momentos marcantes e definidores das suas vidas no local do título, com o argumento de Béla Balázs e William A. Drake (não creditados), adaptado da peça Menschen im Hotel de Vicki Baum, a explorar as idiossincrasias dos habitantes deste espaço, quer individualmente, quer em conjunto, criando uma narrativa coesa e recheada de interesse. Existe um plano que corrobora paradigmaticamente a citação que retirei do personagem interpretado por Lewis Stone, com a câmara no cimo do hotel a expor de forma fixa o que se passa no seu topo inferior, com os seus habitantes a circularem num movimento contínuo, em actos distintos, que espelham 154


as suas diferenças, enquanto saem e entram hóspedes na unidade hoteleira, como se nada acontecesse e ao mesmo tempo acontecesse tanto. Logo nos momentos iniciais somos apresentados a diversos personagens que habitam o Grand Hotel: Senf (Jean Hersholt), o porteiro principal, cuja esposa se encontra prestes a dar à luz; Otto Kringelein, um assistente de contabilidade com uma doença terminal, que quer dizer a Preysing (Wallace Beery), o seu chefe, aquilo que pensa sobre este; Preysing (Wallace Beery) um empresário desprezível, que necessita de ultimar um negócio para salvar a sua empresa; a temperamental e melodramática bailarina russa Grusinskaya (Greta Garbo), que ainda não lidou bem com as mudanças no seu país; a estenógrafa Flaemmchen (Joan Crawford); o falido e aproveitador Barão Felix von Geigern (John Barrymore), que procura assaltar a bailarina mas logo se apaixona por esta, entre outros elementos. Estes personagens são a base que sustenta a narrativa de Grand Hotel, cujo argumento assertivo permite explorar cada um destes elementos e dar espaço aos seus actores para sobressaírem, reunindo os mesmos em diversos espaços da narrativa, embora nunca una Joan Crawford e Greta Garbo, não fossem ambas as divas colidirem e protagonizarem um choque de titãs em pleno set de filmagens. Garbo e Crawford não se encontram, mas sobressaem. A primeira debita frases de

efeito como "I want to be alone", que ficariam coladas para a sua persona fora do campo cinematográfico, interpretando uma mulher que gosta de estar só, algo mimada, com tiques de diva e pouco dada a sentimentos equilibrados, que se apaixona pelo Barão, algo que proporciona alguns momentos de enorme química entre as lendas John Barrymore e Greta Garbo. Quem também nutre um fraquinho por Felix von Geigern é Flaemmchen, interpretada por uma intensa Joan Crawford, que pode não se cruzar com Garbo no ecrã mas quase a apaga, interpretando uma mulher hábil a lidar com os homens, sensual, com personalidade vincada, que sonha em ser actriz mas vive uma série de peripécias marcantes. Flaemmchen trabalha para Preysing, um empresário disposto a tudo para conseguir salvar os seus negócios, que despreza tudo e todos, procura seduzir a sua estenógrafa e humilha Kringelein, aquele que é o personagem a quem conseguimos desculpar quase tudo ao longo da narrativa. Kringelein é o paradigma de alguém que procura viver a todo o custo, que aproveita a descoberta de que padece de uma doença terminal para viver tudo aquilo que não conseguiu ao longo de uma vida marcada por rotinas, poupanças e pouca alegria. O anúncio da proximidade da morte de Kringelein surge como algo de perturbador mas ao mesmo tempo de libertador para este personagem, que procura gastar todas as poupanças no Grand Hotel, como se fosse 155


igual aos milionários que lá passam, embora raramente o vejamos perder os valores morais, protagonizando alguns momentos marcantes e tocantes, apesar do filme até contar com algumas pitadas de humor. Kringelein forma amizade com Flaemmchen e o barão. A estes elementos junta-se ainda o Dr. Otternschlag (Lewis Stone), um médico com parte da cara desfigurada devido a uma granada na I Guerra Mundial, que se revela como um elemento causador de frases de efeito como a da citação e um barómetro moral dos personagens. No meio de todos os personagens citados, explorados de forma a espelhar o talento dos actores que constam no elenco e a dar a cada um o devido "tempo de antena", a figura que mais sobressai é mesmo o Grand Hotel do título, o local luxuoso por onde um conjunto de elementos vive temporariamente e experiencia um turbilhão de emoções. Neste espaço entram e saem pessoas constantemente, enquanto este guarda memórias e experiências vividas, com os seus quartos e halls a serem palco de uma história marcada por uma miríade de personagens diversificados, na sua maioria algo solitários e com poucas perspectivas de conhecerem a felicidade. Ficamos assim com uma certa representação do ciclo da vida no interior deste espaço, onde uns nascem, outros morrem, amizades que se formam e paixões que se apagam, sentimentos de alegria que contrastam com a tristeza, onde um espaço fechado é capaz de conter uma imensidão de sentimentos. A representação e utilização do espaço narrativo são


efectuados com minúcia, notando-se uma procura de o integrar com os seus personagens, que raramente se aventuram por cenários exteriores, numa obra marcada por um ritmo muito interessante, revelando-se muito mais do que uma mera conjunção de estrelas. Greta Garbo, John Barrymore, Lewis Stone, Joan Crawford e Wallace Beery sobressaem pela positiva, mas é na forma como os seus personagens interagem que se centra a narrativa, numa história efectuada num período muito específico da história dos Estados Unidos da América.

recheado de estrelas, que exponenciam o valor da narrativa. Nos dias que correm é banal os estúdios elaborarem obras que reúnem várias caras conhecidas para tornar a obra mais apetecível junto do público, mas na época esta decisão da MGM revelou-se algo inovadora, com os executivos a reunirem vários elementos que tinham contrato com o estúdio numa única obra. O resultado final foi um êxito estrondoso, um orçamento que hoje seria equivalente a 80 milhões de dólares e um Oscar de Melhor Filme naquela que foi a primeira obra vencedora desta categoria a não ter uma única outra nomeação. O Oscar é um mero reconhecimento do trabalho coeso que Edmund Goulding conseguiu elaborar, lidando com os diferentes egos das estrelas e desenvolvendo um drama marcante, cujas limitações nunca chegam a fazer esquecer os seus momentos de grandeza. Garbo rejeitara inicialmente interpretar a bailarina cuja fala seria muito colada à sua pessoa, mas teve nesta obra um dos elencos mais coesos da sua carreira. Apesar do elenco recheado de estrelas, Greta Garbo surgiu quase sempre em lugar primordial de destaque nos materiais promocionais do filme, incluindo os programas, tendo neste filme mais um grande êxito da sua carreira.

Hoje pode parecer uma obra algo datada (embora deva ser vista à luz da sua época), com os seus personagens a personificarem alguns estereótipos conhecidos, onde não falta o empresário tirânico, o indivíduo com problemas que procura ser feliz, entre outros, não faltando alguns diálogos excessivamente melodramáticos, mas que servem acima de tudo para espelhar os problemas dos afortunados clientes do luxuoso Grand Hotel. Estamos em plena Grande Depressão, o território dos EUA não se apresenta dos mais aprazíveis para os seus cidadãos e o filme transporta o espectador para o interior de uma história onde os mais afortunados também sofrem as suas crises. Pode existir assim uma procura de confortar a população com este drama dos mais afortunados, que em última análise até se aproximam dos seus problemas, ao mesmo tempo que nos é apresentada uma história adornada com um elenco

Seguiu-se As You Desire Me, uma obra realizada por George Fitzmaurice (que trabalhara com Garbo em Mata Hari), que contava ainda no elenco com Melvyn Douglas (na primeira de três colaborações com a "esfinge 157


sueca") e Eric von Stroheim. O filme não teve grande expressão na carreira da actriz, destacando-se o visual peculiar desta, apresentando uma peruca loira, sendo uma obra desenvolvida pelo estúdio meio à pressa tendo em vista a aproveitar o contrato da actriz. A possibilidade de Garbo poder regressar a casa chegou mesmo a ser colocada pela imprensa da época. Em Dezembro de 1931, o Movie Mirror publicou um artigo onde era questionada a continuidade da "Vénus Viking" nos Estados Unidos da América, especulando-se sobre um possível regresso à Suécia. A possibilidade de Garbo abandonar a carreira ainda no topo da sua fama foi uma hipótese, com o Movie Mirror a recordar a longa ausência da actriz aquando da morte de Mauritz Stiller. O seu contrato terminaria em Abril de 1932, mas Greta Garbo acabaria por renovar o mesmo, após um longo período de "férias" e depois de ter protagonizado um conjunto de sucessos para a MGM, tendo em Queen Christina o seu primeiro trabalho depois de todo este imbróglio. Se a sua Grusinskaya queria ficar sozinha, já em Queen Christina (1933) a protagonista encontra o amor inesperado num enviado espanhol interpretado por John Gilbert, naquela que é a última colaboração profissional entre ambos (Gilbert viria a falecer em 1936, menos de três anos depois da estreia do filme). Diga-se que a escolha de John Gilbert foi uma prova da força de Garbo na MGM, visto que o actor era persona non grata para Louis B. Mayer. Enigmática dentro e fora do ecrã, Garbo teve em Queen Christina uma das suas obras de

maior relevo e um dos seus grandes papéis, onde a sua faceta misteriosa tem liberdade para contaminar o ecrã, enquanto a "esfinge sueca" dá vida à Rainha Cristina da Suécia. Esta adaptação bastante livre da história da Rainha Cristina marcou um regresso de Greta Garbo à representação, após um hiato de dezoito meses, com esta a dar vida a uma personagem que procura a todo o custo conciliar a sua independência com a vida como regente, algo expresso desde o início quando encontramos esta, ainda jovem, a ter de assumir o lugar do seu pai após este último ter sido morto em combate. O primeiro terço do filme serve para estabelecer o contexto histórico, nomeadamente a Suécia durante o Século XVII, tendo como pano de fundo a Guerra dos Trinta Anos, bem como a personalidade da Rainha, uma mulher dedicada ao seu povo e ao conhecimento, que procura rechaçar os possíveis candidatos a marido, entre os quais o primo Karl Gustav (Reginald Owen) e o Conde Magnus (Ian Keith). No sentido de se afastar temporariamente dos afazeres da corte e de toda a pressão sobre a sua pessoa, Christina decide disfarçar-se de cavaleiro e passar a noite numa estalagem, onde acaba por conhecer Don Antonio (John Gilbert), Conde Pimentel, Cavaleiro do Império Romano e enviado extraordinário de Sua Majestade Filipe, Rei da Leão, Aragão e Castela. Sem saber que estava a falar com uma mulher, Antonio fica a falar amenamente com 158


a protagonista, até ficar no mesmo quarto que esta e descobrir que a interlocutora é uma mulher. Os dois acabam por desenvolver uma relação amorosa, sempre sem que a protagonista revele a sua verdadeira identidade, procurando surpreender o seu interlocutor quando Antonio se reúne com a Rainha e descobre que esta e Christina são a mesma pessoa. Este tinha como missão entregar uma proposta de casamento de Filipe IV, mas o coração da Rainha Christina foi conquistado por este nobre, algo que promete trazer muitos problemas a ambos, com o Conde Magnus a procurar sabotar a relação e a incitar uma revolta popular contra o espanhol. Rouben Mamoulian realiza um drama de pendor histórico marcado por momentos sublimes, ficando particularmente na memória o olhar vazio da personagem interpretada por Greta Garbo num dos últimos planos do filme. Garbo é a alma deste filme, interpretando uma mulher com ideais vincados, aparentemente forte, mas também dada a romantismos, dando um carisma, sensualidade e presença muito próprios à sua personagem. Christina, mulher e Rainha, frágil e forte, sensual e comum, surge exposta em todas as suas vertentes e complexidade, expostas de forma exímia por Garbo, que tem no elenco a companhia de John Gilbert, um actor cuja transição do cinema mudo para os talkies não foi muito feliz, sobretudo devido aos seus problemas com Louis B. Mayer e com o álcool. Queen Christina marcou a quarta e última colaboração de Gilbert com Greta Garbo, após esta última exigir a

sua presença no filme, algo que não viria a revitalizar a carreira do actor que morreria precocemente. Gilbert tem uma química visível com Garbo, com ambos a interpretarem o casal improvável, cujo estatuto social e nacionalidades distintas deveriam afastar, mas nem por isso são suficientes para os separar ao longo deste drama recheado de liberdades históricas, mas também de elevados valores de produção. Não falta um guarda-roupa com algum cuidado, cenários bem aproveitados (sobretudo no quarto da estalagem), embora também estejam presentes anacronismos (a começar pelos diálogos), num filme que até causou alguma polémica para a época. Veja-se a possibilidade de Antonio poder dormir na mesma cama que outro homem, algo problemático para os censores da época, ao longo de um filme onde não faltam sacrifícios por amor, seja à nação ou à pessoa amada, duelos, uma morte marcante e alguns planos belíssimos. Drama de pendor histórico com momentos sublimes, Queen Christina deixa-nos perante uma magnífica Greta Garbo, naquele que é um dos grandes papéis da sua carreira, com a lendária actriz a mostrar o seu enorme talento, ao longo de um filme bem executado por Rouben Mamoulian. Queen Christina foi um sucesso junto de parte da crítica. Na Modern Screen salientou-se "Triumph for Garbo! One of the great pictures of the past few years, this historical epic makes a sustained drive for artistry", enquanto na Photoplay 159


o crítico não poupou elogios a Garbo: "The magnificent Garbo, after an absence of over a year, makes a glorious reappearance on the screen". O filme foi também um sucesso em termos de receitas, tendo alcançado mais de 2,6 milhões de dólares em receitas globais, valores superiores ao seu orçamento de 1,1 milhões de dólares. Diga-se que estes resultados positivos resultaram acima de tudo graças às bilheteiras internacionais, um pouco como acontecerá em vários trabalhos da actriz, algo que será analisado mais ao pormenor no decorrer do artigo. Quem também foi um sucesso foi o filme seguinte de Greta Garbo, The Painted Veil, que tem recebido mimos como "She is the most miraculous blend of personality and sheer dramatic talent that the screen has ever known and her presence in The Painted Veil immediately makes it one of the season's cinema events", na crítica de Andre Seenwald.

admirados, dando a Greta Garbo mais uma oportunidade de sobressair pela positiva, desta vez no exótico e fervilhante território de Hong Kong. Garbo dá vida a Katrin Koerber, a filha de um professor de medicina austríaco, que vê Olga, a sua irmã, casar-se. Esta tem uma visão algo idealista do amor, procurando apenas casar com o homem ideal, embora num impulso ceda ao pedido em casamento de Walter Fane (Herbert Marhsall), um bacteriologista britânico que trabalha em Hong Kong. A relação entre os dois está longe de parecer dar certo, mas a segurança dada por Walter e o amor que sente pela protagonista conduzem a que Katrin parta à aventura. No entanto, não existe grande tempo para o casal gozar a Lua de Mel, com o médico a ter de exercer rapidamente o seu ofício, num território que se encontra a debater com uma epidemia de cólera. Algo solitária, Katrin tem na companhia de Jack Townsend (George Brent), um indivíduo casado, que trabalha na embaixada britânica, um ponto de fuga, acabando por se envolver com este e trair o marido, embora inicialmente até rejeite os avanços do galanteador pretendente. Bloseslawski aproveita para explorar esta relação adúltera em conjunto com a exposição do território, das suas ruas, espaços culturais, procurando que esta exibição não seja uma espécie de "cartão postal em movimento", ao mesmo tempo que desenvolve o envolvimento entre os personagens interpretados por Greta Garbo e George Brent. Existe entre os dois todo um jogo de sedução, entre presa e caçador, no

De Rainha apaixonada a esposa infiel. Assim poderia ser descrito o próximo passo da carreira de Garbo com esta a protagonizar uma adaptação cinematográfica de O Véu Pintado. Publicado originalmente em 1925, The Painted Veil é uma das mais populares obras literárias da autoria de W. Somerset Maugham. Essa popularidade não está completamente alheia da adaptação cinematográfica do livro realizada por Ryszard Bolesławski, um cineasta polaco que dirigiu diversas obras nos EUA, tendo em The Painted Veil um dos seus trabalhos mais 160


qual ambos não estão inocentes, com Katrin a ser apresentada a uma nova realidade e conjunto de sentimentos que parece não ter vivido de forma tão intensa com o esposo. A relação entre Katrin e Jack logo é descoberta por Walter Fane, que se decide voluntariar para trabalhar em Kham Po Shian, um local onde a cólera está a dizimar a população e vitimou o anterior médico. Walter aceita conceder o divórcio a Katrin se Jack assinar uma carta por escrito a prometer que se vai divorciar, algo que não acontece, conduzindo a personagem interpretada por Garbo a acompanhar o marido. Os dois parecem cada vez mais afastados, mas a convivência com a morte parece mudar a vida de ambos, com The Painted Veil a desenvolver eficazmente esta mudança comportamental no casal.

alma ao trabalho e a salvar vidas. Num dos momentos mais poderosos do filme, quando a câmara de filmar se concentra no rosto de Katrin com um close-up que aproveita magnificamente a capacidade de Greta Garbo em expor emoções, esta descreve paradigmaticamente Walter: "In everything else he gives. His life, his work, everything he does... is love. Every second... Every hour... It's another language. It's another world". Garbo dá a esta personagem os elementos necessários para que nunca a odiemos nos momentos de menor correcção moral, deixando-nos evidente que a sua Katrin é uma mulher solitária, disposta a amar, embora o esposo pouco tempo tenha para si. Já Herbert Marshall dá uma credibilidade necessária a este personagem que nem sempre é capaz de exibir a sua afeição pela esposa, tendo em Jack o seu oposto, com este último a surgir como um homem bem falante, pronto a expressar os sentimentos que sente e não sente. Está aqui muito mais em jogo do que o amor ou paixão, mas sim sentimentos humanos complexos, onde a maior mostra de humanidade destes personagens resulta não só da sua capacidade de perdoarem, mas acima de tudo de errarem. Katrin erra, Walter erra, Jack erra. Todos erramos, os personagens de The Painted Veil não são diferentes, enquanto a adaptação toma diversas liberdades em relação ao excelente livro de W. Somerset Maughm (recomendado por estas bandas), sobretudo no último terço, mas resulta como um drama competente, marcado por uma interessante exposição do território e

Se não é competente a desenvolver o contexto social e cultural de Hong Kong e da China na época retratada, The Painted Veil revela uma enorme capacidade de criar um conjunto de personagens e relacionamentos complexos, que nos mantêm agarrados ao longo de toda a narrativa. Katrin é uma mulher algo sonhadora, que se casa num misto de aventura e interesse, de procurar algo de novo e ceder aos desejos da família em verem-na casada, embora não pareça amar intensamente o marido. Por sua vez, Walter ama Katrin mas teima em não mostrar os seus sentimentos correctamente, procurando dedicar-se com toda a sua 161


boas interpretações. A certa altura de The Painted Veil, Jack Townsend questiona Katrin: "Why can't we be unhappy together?". Os personagens de The Painted Veil erram, são infelizes, cedem ao desejo e aos impulsos, mas nem por isso deixam de fazer-nos acreditar que podem ultrapassar as adversidades e as diferenças.

que a aproxima da tragédia. Entre galanteios, danças no baile, troca de gestos e olhares, Anna Karenina e Vronsky cedo começam a evidenciar sinais de que podem ter algo mais do que uma simples amizade, uma relação adúltera na qual a protagonista conhece o amor e felicidade, uma paixão que nunca conhecera com Karenin, o seu marido, que logo procura encobrir as infidelidades da esposa e manter o bom nome junto da sociedade do seu tempo. O marido é bastante claro em relação a toda esta situação, se Anna Karenina sair de casa, esta nunca mais poderá voltar a ver o filho, um castigo severo que serve acima de tudo para punir a traição e a má fama que esta colocará na família, fazendo as delícias da alta sociedade russa, um acto que promete condenar a protagonista à desgraça, enquanto a relação da personagem interpretada por Greta Garbo e Vronsky começa a apresentar alguns sinais de desgaste. Baseado na obra literária homónima de Leo Tolstoy, Anna Karenina de Clarence Brown é uma das mais notáveis adaptações cinematográficas inspiradas neste livro, que tem servido de base para um conjunto assinalável de obras cinematográficas, entre as quais Anna Karenina de Vladimir Gardin, Love de Edmund Goulding, Anna Karenina de Julien Duvivier (protagonizado pela lendária Vivien Leigh), o recente Anna Karenina de Joe Wright, entre muitas outras adaptações. Se muitas foram as adaptações desenvolvidas, a verdade é que poucas atingiram

Quem também erra e promete não ser capaz de ultrapassar totalmente as adversidades é Anna Karenina, a personagem novamente interpretada por Greta Garbo, desta vez numa obra realizada por Clarence Brown. Casada com Karenin (Basil Rathbone), um oficial do Governo com quem esta tem um filho (Freddie Bartholomew), a bela mulher cedo cede às tentações carnais e ao desejo ao conhecer o Conde Vronsky (Frederic March), algo que promete condená-la à tragédia. Diga-se que não faltaram sinais do destino para a protagonista afastar-se de Moscovo e do Conde, entre os quais a aterradora visualização de um atropelamento por um comboio quando chegara à cidade, tendo em vista a ajudar o seu irmão a reconciliar-se com a esposa. Esse sinal que deveria ter deixado Anna Karenina em estado de alerta logo acaba por ser ignorado pela bela mulher, algo que lhe promete trazer muitos dissabores, sobretudo quando a protagonista começa gradualmente a ceder às investidas de Vronsky e coloca em causa o casamento, a sua relação de proximidade com o filho, o seu estatuto na alta sociedade da Rússia imperial, numa atitude 162


o mediatismo e o estatuto de clássico da versão realizada por Clarence Brown, uma adaptação que consegue transmitir a aura trágica em volta da protagonista, uma desgraça que surge associada ao amor adúltero e à luxúria, à procura da protagonista em ser verdadeiramente feliz, algo visível na citação acima colocada quando a personagem interpretada por Greta Garbo mostra pouco entusiasmo em relação ao que o futuro lhe pode reservar, enquanto desafia o destino e as convenções da sociedade na Rússia imperial. Anna Karenina ganha uma dimensão trágica e frágil com Greta Garbo, uma actriz cujo talento e presença ajudam esta complexa personagem a ganhar traços memoráveis, sendo capaz de transmitir ao espectador os sentimentos dicotómicos de Karenina, enquanto Frederic March revela-se o par perfeito da protagonista, como o galanteador Conde Vronsky, um homem que se deixa encantar pela bela Anna Karenina e está disposto a tudo para conquistar o seu coração. No meio destes sobressai ainda Basil Rathbone como o austero Karenin, o marido da protagonista, que não perdoa o facto desta pretender abandoná-lo por amar outro homem, sendo visível o contraste entre a frieza de Karenin e o emotivo Vronsky. Ao mesmo tempo que este trio brilha nos seus papéis Clarence Brown revela a sua capacidade na realização cinematográfica, naquela que é a sua sexta colaboração com Greta Garbo, ao criar um filme clássico que tem marcado gerações, conseguindo entender como poucos o material que tinha em mãos,


algo que contribuiu para criar uma apaixonante versão de uma das mais marcantes obras de Tolstoy, na qual se nota toda uma atenção ao pormenor. Desde a capacidade de explorar o melhor que os actores têm para dar (Garbo surge soberba) até à qualidade dos diálogos, passando pela atenção aos gestos subliminares dos personagens, aos eventos do quotidiano (desde a vida familiar de Karenina, passando pelo período que vive com Vronsky) e extra-quotidiano (o baile permite apresentar algumas cenas belíssimas, a corrida de cavalos), um magnífico trabalho de fotografia que tira partido de toda a expressividade dos protagonistas (a utilização dos close-ups é muito frequente) e dos cenários, um guardaroupa sumptuoso (as vestes de militar de Vronsky e as vestes de Anna Karenina), tudo parece combinar para dar a esta adaptação uma energia e encanto que a tornam numa obra cinematográfica memorável. Longe de apresentar uma relação sentimental floreada, Anna Karenina explora o conturbado relacionamento extraconjugal entre Anna Karenina e o Conde Vronsky de forma intensa e verdadeira, uma relação que coloca esta mulher algo distante do estereótipo da esposa ligada ao ideal de lar e de família, mostrando uma mulher mais independente, que cede aos seus desejos e ao amor, mesmo que isso coloque em risco o seu casamento e a relação com o filho, uma relação destinada à tragédia e a afastar os próprios amantes, algo que surge exposto de


forma paradigmática ao longo do filme. Se o romance entre Vronsky e Karenina, bem como a afeição da protagonista ao filho são temáticas desenvolvidas de forma bastante eficaz ao longo do filme, não deixa de ser evidente a incapacidade da narrativa em desenvolver algumas subtramas, em particular o romance entre Lili (Joan Marsh) e Levin (Gyles Isham), que surge sempre de forma superficial e pouco elaborada, bem como a representação dos elementos da alta sociedade russa. Na segunda vez que interpreta Anna Karenina no grande ecrã, Greta Garbo volta a demonstrar o porquê de todo o culto criado em volta da sua figura, uma actriz misteriosa, sensual, talentosa, que conseguiu transportar essa aura de diva para as suas personagens, parecendo que o papel de Anna Karenina foi feito à sua medida, transmitindo todo esse pathos da personagem, a sua sensualidade e fragilidade, toda a tragédia que parece carregar no seu interior, enquanto Clarence Brown transporta-nos para uma obra cinematográfica cheia de classe. Com uma história de amor destinada à tragédia, recheada de sinais tenebrosos que auguram o pior, esta adaptação do clássico livro de Tolstoy surge como um melodrama memorável, onde Greta Garbo expõe o seu talento e interpreta uma Anna Karenina inesquecível. O filme viria a vencer o prémio de Melhor Filme Estrangeiro na edição de 1935 do Festival de Veneza, com o desempenho de Garbo a ser elogiado pela crítica. A Photoplay salienta que "This is a weak and dull picture, yet the persuasive genius of Garbo raises it into

the class of art". Nobert Lusk do Picture Play também elogiou a actriz: "Garbo's greatness as supreme star of the screen is here exhibited for all who have eyes to see, ears to hear, and imagination to be stirred". Se Anna Karenina foi uma personagem inesquecível da carreira de Garbo, então a sua Marguerite Gautier foi provavelmente um dos papéis mais bem conseguidos da carreira da actriz. Uma das obras literárias mais populares de Alexandre Dumas, A Dama das Camélias, tem em Camille de George Cukor uma das adaptações cinematográficas mais conhecidas, tendo em Greta Garbo uma intérprete pronta a mesclar na perfeição as vertentes luxuosas e trágicas da sua protagonista. Garbo dá vida a Marguerite Gautier, uma mulher pouco instruída, financeiramente depauperada, mas que vive no luxo graças à companhia dos homens cuja atenção esta procura despertar disputar. Esta é aparentemente cínica, disputando homens com Olympe (Lenore Ulric), tendo em Prudence Duvernoy (Laura Hope Crews) uma amiga (embora esta última revele sempre um comportamento interesseiro e a espaços desprezível), em Nanine a sua fiel criada. Prudence arranjou um encontro entre Marguerite e o Barão de Varville (Henry Daniell), um indivíduo abastado financeiramente mas austero a nível de sentimentos. Uma troca de olhares errada conduz a que Marguerite pense que Armand (Robert Taylor), um jovem estudante de advocacia, é o Barão, trocando com este 165


Marcado por uma atmosfera romântica contagiante, Camille é um dos mais belos filmes protagonizados por Greta Garbo, permitindo a esta ter um dos desempenhos mais marcantes e desafiantes da sua carreira. Esta Marguerite Gautier tem muito das vamps que Garbo outrora interpretara nos filmes mudos, pragmática e sedutora, mas o seu lado mais doce e altruísta leva quase sempre a melhor, com esta mulher a amar Armand acima de tudo, mesmo que este sentimento implique alguns sacrifícios dolorosos. O poder de atracção que esta gera nos homens perpassa para o ecrã, com o filme a explorar, ainda que com alguns anacronismos, este quotidiano da vida boémia francesa no Século XIX, colocando-nos não só perante um belo romance, mas também diante dos contrastes sociais, e pelo caminho efectuando uma interessante dicotomia entra o espaço urbano ligado à corrupção moral e dos corpos, e os idílicos momentos da protagonista com o amado no campo. É também no espaço rural que assistimos a uma decisão moralmente elevada por parte de Marguerite, bem como ao casamento de Nichette, um conjunto de cenas que contrastam com a aspereza sentimental entre a protagonista e o Barão de Varville no espaço urbano, na qual existe uma troca entre o dinheiro do segundo e o corpo da primeira, embora os sentimentos estejam reduzidos ao mínimo. Existe ainda toda esta concepção idealista do amor puro que é capaz de lutar contra o interesse (associado a Armand, um dos personagens que mais é desenvolvido ao longo do filme), ideais muito

olhares e contactando com o mesmo. Existe todo um clima de sedução entre ambos, pelo menos até Marguerite descobrir a identidade do jovem, embora não o rechace por completo. Esta acaba pouco tempo depois por contactar com o Barão de Varville, que logo se encanta pela protagonista, oferecendo-lhe tudo o que esta pretende. Por sua vez, o contacto posterior com Armand faz nascer uma paixão entre Marguerite e o jovem idealista em relação ao amor, algo que conduz a protagonista a organizar uma ida para o campo com o amado, que resulta numa separação temporária do Barão. A ida para o campo parece um espaço aparentemente idílico para o casal, com os dois elementos a viverem alguns momentos de romantismo, alguns deles associados ainda ao casamento de Nichette (Elizabeth Allan), a melhor amiga de Marguerite. Garbo surge exímia na exposição dos sentimentos da sua personagem, vagueando entre a vaidade e a humildade, a alegria radiante de um amor puro e o vazio da perdição, denotando uma química evidente com o seu colega de elenco. O clima de felicidade dos personagens interpretados por Taylor e Garbo muda quando o pai (Lionel Barrymore) de Armand se desloca em segredo ao local e pede a Marguerite para abandonar o filho, de forma a não prejudicar o mesmo, algo que promete colocar a protagonista num dilema moral e a relação desta com o amado em perigo. Entretanto, a doença de Marguerite agrava-se ao longo deste sólido drama realizado por George Cukor, onde o amor luta para vencer a realidade. 166


românticos ao longo de uma obra que contrasta constantemente esta luta entre o pragmatismo da vida de Marguerite com os seus sentimentos quentes por Armand, com George Cukor a aproveitar a química de Garbo com Robert Taylor e a marcar a obra por algum erotismo. Mais tarde Cukor voltaria a trabalhar com Garbo em Two-Faced Woman, o último filme da actriz, revelando mais uma vez uma capacidade de construir personagens fortes e relacionamentos credíveis e bem desenvolvidos, algo visível não só neste filme, mas também em Sylvia Scartlett, The Philadelphia Story, entre outros. Em Camille, George Cukor deixa-nos perante uma atmosfera de grande romantismo e doçura, onde Greta Garbo tem uma das melhores interpretações da sua carreira, Robert Taylor convence e assistimos a uma obra bastante competente, marcada por um bom trabalho a nível de caracterização e um argumento adequado. Tem alguns momentos demasiado melodramáticos, é certo, mas nem por isso se revela menos apaixonante.

you. You watch carefully what she's doing and you make suggestions, but you let the impulse come out of her". O cineasta acrescentou ainda "Garbo has a magic that can't be defined (...) She is a rare creature who touches the imagination and no one will replace her (...)". A crítica também foi bastante positiva para com o desempenho de Garbo. Howard Barnes do New York Herald Tribune comentou que "The incomparable Greta Garbo has returned to the screen in a breathtakingly beautiful and superbly modulated portrayal of Camille", enquanto Frank S. Nuggent do New York Times salientou "Greta Garbo's performance is in the finest tradition: eloquent, tragic, yet restrained. She is as incomparable in the role as legend tells us that Bernhardt was". Emanuel Levy também foi bastante positivo: "Garbo gives her most accomplished and touching performance in Cukor's 1937 version of Camille". A "esfinge sueca" teve em Camille um dos pontos altos da sua carreira, com esta personagem que protagoniza um amor aparentemente condenado à tragédia a conquistar praticamente tudo e todos. Os amores proibidos e as traições amorosas marcaram a carreira de Greta Garbo. Em Conquest, realizado por Clarence Brown, esta volta a protagonizar um romance que tem em Marie Walewska uma personagem complexa, uma mulher casada que gradualmente cede aos avanços de... Napoleão Bonaparte. Realizado por Clarence Brown, Conquest não se interessa pelo rigor histórico nem pelas políticas de Napoleão Bonaparte, mas sim no romance deste com Marie Walewska, uma condessa polaca que aqueceu

Camille obteve um êxito considerável, marcando também a primeira colaboração entre Cukor e Garbo. Ao cineasta foi dado a escolher entre Anna Karenina e Camille. Escolheu Camille e conseguiu retirar de Garbo uma das grandes interpretações da carreira da actriz. Citado no artigo Camille: Revisiting Garbo's Greatest Performance de Emanuel Levy, Cukor salientou que com Garbo "you must make a climate in which she trusts 167


o coração do poderoso ditador. O filme tem como balizas cronológicas a chegada de Napoleão Bonaparte (Charles Boyer) à Polónia até ao seu exílio na Ilha de Elba, explorando a crescente ambição do Imperador, bem como a contestação que gradualmente foi sendo criada à sua volta, ao mesmo tempo que nos deixa perante o cortejo deste a Maria Walewska (Greta Garbo). Greta Garbo tem em Charles Boyer um colega de elenco à altura do seu talento, com o actor a brilhar em bom nível como este indivíduo ambicioso, galanteador e com uma forte personalidade. Garbo surge mais frágil, distante das vamps que interpretara nos filmes mudos como The Flesh and the Devil ou da sua Mata Hari, revelando uma candura latente como esta mulher que até reluta em iniciar uma relação com Napoleão mas aos poucos deixa-se encantar pelos seus ideais. No início do filme Walewska encontra-se casada com o Conde Anastas Walewski, um individuo financeiramente abastado, muito mais velho, que conta com um neto quase da sua idade, respeitando o marido e o seu estatuto. A chegada de Napoleão à Polónia traz consigo uma réstia de esperança para a libertação do território, com os nobres a procurarem convencer Maria a aproximar-se do líder francês, tendo em vista a conseguir os apoios deste. Maria reluta, mas gradualmente deixa-se conquistar, envolvendo-se com Napoleão, enquanto Clarence Brown nos envolve para este drama de época que retrata de forma interessante um affair relativamente conhecido, ao longo de uma obra marcada por bons

valores de produção. Existe todo um cuidado no guarda-roupa e cenários, enquanto Conquest nos transporta para o interior deste romance adúltero, nascido por interesse mas envolvendo posteriormente amor, onde duas figuras históricas surgem representadas por dois actores de grande quilate. Esta foi a obra protagonizada por Greta Garbo que mais prejuízo deu à MGM, contando com um orçamento elevado para a época e uma receita pouco condizente com os gastos, com esta sétima e última colaboração entre a actriz e Clarence Brown a ter algum valor histórico e cinematográfico, apesar do seu argumento ser incapaz de articular com sagacidade e eficácia o romance e o contexto histórico-político da época. Temos ainda alguns elementos associados às conquistas de Napoleão, não faltando a presença de Talleyrand (Reginald Owen), um diplomata com alguma influência junto do personagem interpretado por Boyer, no entanto, a vertente política e militar nunca é representada com a mesma eficácia da relação entre os personagens interpretados por Boyer e Garbo. A maior conquista deste Conquest é mesmo a sua dupla de protagonistas, à prova de quase tudo e capaz de elevar um filme simples e transportar-nos para o seio de uma relação longe de fulgurante, mas geradora de algum interesse. Perante o fracasso de Conquest, que resultou num hiato de praticamente dois anos da carreira de Garbo, o estúdio decidiu apostar na actriz num 168


registo algo distinto dos papéis até então interpretados em Ninotchka, um filme promovido com o slogan: “Garbo Laughs”. Para realizar esta comédia protagonizada por Garbo, o estúdio contratou o mestre alemão Ernst Lubitsch, um cineasta de distinto valor, cujo toque de Midas, ou, se preferirem, "toque de Lubitsch", revelou-se aprimorado em Ninotchka, com o realizador a explorar o talento da "esfinge sueca" e a desenvolver uma comédia magnífica, onde não falta bom humor, romance e uma sátira corrosiva à União Soviética. Lubitsch nem era a primeira opção para Garbo, que pretendia ter na realização George Cukor (que lhe proporcionara o êxito Camille), enquanto o estúdio chegou a cogitar Edmund Goulding. A chegada de Ernst Lubitsch significou também uma mudança para o projecto, visto que o cineasta não apreciou o argumento de Gottfried Reinhardt e S.N. Behrman, tendo contratado o trio formado por Billy Wilder, Charles Brackett e Walter Reisch para rescrever o mesmo. O enredo de Ninotchka desenrola-se em Paris, no período anterior à Segunda Guerra Mundial, num tempo em que quando um francês apagava as luzes "não era por causa de um ataque aéreo”, numa alusão directa ao conflito que decorria durante o desenvolvimento do filme. Devido aos problemas financeiros sentidos pela União Soviética, Iranov (Sig Ruman), Buljanov (Felix Bressart) e Kopalsky (Alexander Granach), três enviados soviéticos, deslocam-se a França tendo em vista a negociarem as jóias que outrora pertenceram à Duquesa Swana (Ina 169


Claire), considerando que estas são propriedade do Governo e devem ser vendidas para ajudarem a equilibrar as contas do país, enquanto esta pretende recuperar os seus bens. No entanto, os elementos do trio cedo começam a deslumbrar-se pelos encantos de Paris e do Capitalismo, divertindo-se como nunca tinham feito durante toda a sua vida. Perante a passividade do trio, o Comissário Razinin resolve designar uma enviada especial para desbloquear a situação. Esta enviada é Nina Ivanovna Yakushova (Greta Garbo), mais conhecida por Ninotchka, uma mulher com uma personalidade dicotómica do trio interpretado por Sig Ruman, Felix Bressart e Alexander Granach. Se estes têm uma adaptação bastante fácil a Paris e cedo cedem aos ideias capitalistas, no caso de Ninotchka vamos assistir a um enorme choque cultural, de alguém que se considera como uma “pequena engrenagem na grande roda da evolução”. Em Paris, tudo é diferente dos valores que Ninotchka defende, desprezando a forma de vestir, de viver, de falar dos franceses, sentindo-se insultada por ter de estar numa suite que custa uma vaca por dia ao povo russo. Durante uma tentativa para conhecer as estruturas da cidade e uma das obras arquitectónicas mais imponentes do Mundo, a Torre Eiffel, Ninotchka acaba por travar conhecimento com o Conde Leon d'Algout (Melvyn Douglas), o representante da Duquesa Swana, na disputa pela posse das jóias. A interacção entre estes

dois gera alguns dos melhores momentos do filme, com o caloroso e engatatão Conde Leon d'Algout a procurar seduzir a fria e bela Ninotchka, que se sente pouco impressionada pelos avanços pouco subtis do “macho arrogante da sociedade capitalista (…) um produto infeliz de uma sociedade em extinção”. No entanto, esta resistência da protagonista não dura muito, com Ninotchka a começar a ceder aos encantos de Paris, do Ocidente, do Capitalismo, e sobretudo do Conde, algo paradigmaticamente representado quando este a faz rir. Aos poucos Ninotchka liberta-se das suas amarras ideológicas e começa a extravasar os sentimentos que sempre reprimiu. Esta felicidade não dura muito, com um forte revés a colocar em causa a felicidade do casal, com Ninotchka a ser forçada a partir para a União Soviética tendo em vista a não desiludir os seus camaradas em dificuldades. Ninotchka, Iranov, Buljanov e Kopalsky ficam desolados por terem de partir tão repentinamente da Cidade Luz, indo unir-se em Moscovo para recuperarem e recordarem aqueles momentos da Primavera de Paris, que nada se parece com a Primavera moscovita. Por sua vez, o Conde procura a todo o custo partir em direcção à União Soviética para juntar-se à sua Ninotchka ao longo desta sublime comédia romântica, onde Greta Garbo surpreende pela positiva, Ernst Lubitsch apresenta o seu toque refinado na realização cinematográfica e o argumento de Charles Brackett, Billy Wilder e Walter Reisch revela as suas enormes qualidades. 170


Ninotchka é a prova de que uma boa comédia não precisa de ter um enredo desprovido de conteúdo e sentimento, apresentando-nos a um romance improvável entre uma rígida e fria enviada soviética e um Conde Francês bonacheirão, colocando em contraste os valores que estes defendiam antes de se conhecerem, ao mesmo tempo que nos apresenta uma sátira algo contundente à União Soviética e aos valores defendidos pelo Regime Comunista de Josef Stalin. Estas vão ser as duas unidades temáticas principais, com Lubitsch a utilizar um estilo muito próprio e discreto para abordar um tema tão problemático como a crítica ao comunismo. A relação entre Ninotchka e o Conde é a alma deste filme, com a química e dinâmica fantástica entre Melvyn Douglas e Greta Garbo a concederem uma dimensão de excelência a Ninotchka, a ponto de os seus personagens figurarem em quadragésimo lugar na lista das cem maiores paixões elaborada pelo American Film Institute. Melvyn Douglas foi um dos parceiros com melhor química com Greta Garbo a par de John Gilbert, tendo em Ninotchka a segunda colaboração com a actriz. O Conde interpretado por Douglas é um personagem nas antípodas ideológicas da protagonista, embora esse choque de culturas não impeça o amor entre ambos, com os dois a protagonizarem momentos marcantes de cinema, onde o estilo descontraído do actor serve magnificamente o personagem que interpreta. Greta Garbo tem um desempenho notável como Ninotchka, uma rígida enviada soviética, que

é seduzida por Paris, pelo capitalismo e pelo Conde d'Algout. Esta surge no grande ecrã com um tom de voz quase mecânico, uma extrema rigidez física, num visual quase masculino, no estereótipo do ideal soviético de agir, um comportamento que aos poucos se vai diluindo, em grande parte graças ao personagem interpretado por Melvyn Douglas, com as dicotomias entre os personagens que interpretam a proporcionarem alguns momentos de enorme humor e até romantismo. Uma das cenas mais hilariantes desenrola-se na Torre Eiffel, quando o Conde procura demonstrar a Ninotchka toda a beleza da cidade, vista do cimo da Torre, enquanto esta está indignada com o desperdício de electricidade que há em Paris. Este é um dos exemplos da rigidez de Ninotchka em contraste com o Conde, embora esta aos poucos mostre ser uma mulher sensível, pronta a demonstrar os seus sentimentos e até a rir. A cena do riso de Ninotchka marca um ponto de viragem para a personagem de Greta Garbo, a partir daqui a enviada extraordinária Yakushova começa a perder toda a rigidez inicial e começa a extravasar os seus sentimentos e a ser feliz. Vale ainda a pena recordar a cena do primeiro beijo do casal, em que a bela soviética parece impassível, ou quando rejeita os avanços do Conde quando este lhe explica a localização da Torre Eiffel, para aos poucos começar a ceder ao calor da paixão. A juntar a este dueto temos ainda o trio formado por Iranov, Buljanov 171


e Kopalsky, o alívio cómico desta belíssima comédia que contrasta de forma satírica os estereótipos associados às sociedades capitalistas com os estereótipos ligados à União Soviética e ao Comunismo. Esta dicotomia a nível ideológico entre capitalismo e comunismo é paradigmaticamente exposta através das distintas representações de Paris e de Moscovo. Paris aparece representada como a cidade da liberdade, onde os cidadãos podem desfrutar de uma vida agradável, as diferenças entre os distintos grupos sociais são encaradas como algo natural e todos parecem viver em harmonia, é a Cidade Luz em todo o seu esplendor, no cenário anterior à II Guerra Mundial. Já o cenário da União Soviética é bem diferente, ao sermos apresentados a um cenário cinzento de uma parada militar, onde não faltam cartazes com símbolos comunistas, com figuras de Estaline e Lenine, no culto da personalidade, numa demonstração clara de propaganda política de pendor fascista. Moscovo aparece representada como uma cidade em que os habitantes vivem em condições miseráveis e num clima de suspeição, em que tudo o que é dito tem de ser controlado e as inovações e diferenças reprimidas. Esta crítica aprofunda-se se tivermos em consideração a personagem da Duquesa Swana, com esta a representar a antiga aristocracia despojada dos seus bens após a Revolução Russa, que coincidiu com a nacionalização dos bens e propriedade privada. A própria Duquesa não 172

está desprovida de defeitos, representando a avareza e a mesquinhez que levaram a que muitos dos cidadãos russos se revoltassem contra a estrutura hierárquica da sua Nação. A venda do colar da Duquesa serviria para comprar mais tractores, para alimentar o programa de industrialização intensiva e de colectivização da agricultura soviética. As purgas efectuadas pelo regime soviético, sobretudo com Estaline, não são esquecidas, sendo abordadas através de uma frase de Ninotchka, que no início do filme não tem pudores ao afirmar que as purgas foram um sucesso, ao comentar “The last mass trials have been a great success. There are going to be fewer but better Russians”. Ninotchka referia-se à Grande Purga, uma acção movida pelo ditador soviético contra os seus opositores políticos, verdadeiros ou não, entre 1934 e 1939. Os ideais soviéticos e os seus planos a longo prazo acabam por ser satirizados através dos vários personagens ao longo do filme. Iranov, Buljanov e Kopalsky cedem facilmente ao luxo e boa vida que a cidade parisiense oferece. Nesta cidade estes podem falar livremente, beber, divertir-se e conhecer belas mulheres, como nunca antes o fizeram, a ponto de desertarem na primeira oportunidade que encontraram. O Conde d'Algout não se cansa de mostrar os benefícios do sistema capitalista, que facilita a demonstração de sentimentos, que proporciona a felicidade e bem estar aos cidadãos, mesmo que estes estejam falidos como o Conde. Este ainda vai ao ponto de efectuar uma crítica corrosiva aos planos


a longo prazo elaborado pelos comunistas, salientando ser fascinado pelo Plano Quinquenal Soviético “desde os últimos quinze anos”. No entanto, não deixa de ser curioso verificar como o filme viria a tornar-se algo constrangedor para os Estados Unidos da América, no decorrer da II Guerra Mundial, após a União Soviética entrar no lado dos aliados. Por sua vez, irá ganhar uma grande popularidade durante a Guerra Fria, período em que os Estados Unidos e União Soviético viveram num clima de paz armada, que ameaçava a paz mundial, com Ninotchka a surgir como uma obra paradigmática de valorização dos valores capitalistas e de alguma crítica em relação ao comunismo. Nas mãos de outro realizador Ninotchka poderia facilmente tornar-se numa sátira desprovida de interesse, apresentando críticas fáceis a um regime antagónico ao capitalismo yankee, algo que raramente acontece ao longo do filme. Lubitsch consegue conciliar de forma sublime os elementos satíricos com um romance sincero e improvável entre dois personagens que teriam tudo para cair nos estereótipos fáceis, ao longo de uma obra maior da sua carreira, uma comédia leve, inteligente e agradável, que apresenta uma Greta Garbo magistral naquele que viria a ser o penúltimo filme que a “esfinge sueca” protagonizaria. Ninotchka marcou um êxito de Garbo a nível do público e da crítica, com elementos como Howard Barnes do New York Herald Tribune a salientarem que "Now

that she has done it, it seems incredible that Greta Garbo never apeared in a comedy before Ninotchka". Seguiria-se então Two-Faced Woman, um dos maiores fracassos da carreira de Greta Garbo, ainda hoje algo mal visto pela crítica, embora de forma algo injusta, não só por ser um filme relativamente agradável (está longe de apresentar a melhor Garbo, mas a MGM já nos brindou com obras bem piores). Para o fracasso do filme não devemos ficar alheios aos problemas que o filme teve com a censura, com a premissa inicial do filme a ser desde logo rejeitada, que passava pelo protagonista masculino ter um affair com a suposta irmã gémea da esposa (que na realidade é mesmo a cônjuge) e engravidaria a mesma. O filme foi ainda alvo de diversos cortes, embora não tenha estado livre de polémicas, em particular com a Catholic Legion of Decency, que classificou o filme como de “Class C” (condemned) devido à sua “Immoral and unChristian attitude toward marriage and its obligations. Imprudently suggestive scenes, dialogue and situations and suggestive costumes". A procura dos grupos religiosos em boicotar o filme teve em Spellman, o líder da Igreja de Nova Iorque, uma das figuras mais activas, com este a apelar aos crentes para não verem o filme. Diga-se que Spellman não foi o único elemento ligado à igreja a fazer este apelo, com Two-Faced Woman a chegar a ser proibido em alguns territórios dos Estados Unidos da América. Por sua vez, os elementos responsáveis pelo Production Code salientaram que o filme defende os valores familiares e que os 173


elementos da administração: "fails to see anything immoral or unchristian in the picture's attitude toward marriage. The marriage was entered into as a permanent institution. The wife came to recognize the proper relationship between a husband and wife, and went back to him. In conclusion, the wife came to recognize that her duty was by the side of her husband". Estes dados são muitas das vezes deixados de fora nas análises ao fracasso do filme (um filme não ter qualidade não é sinónimo de má bilheteira), quando tiveram um papel fundamental em grande parte do falhanço de Two-Faced Woman.

e oferecendo a esta um papel que marca um contraponto interessante com os seus primeiros filmes da MGM. Veja-se em The Temptress e Flesh and the Devil, onde Garbo dava vida a mulheres prontas a seduzir os homens, com estas no final a terem um destino trágico e moralista. Em Two-Faced Woman, Garbo dá vida a Karina Borg, uma instrutora de esqui, que se casa num impulso com Lawrence Black, o editor do Times, que se encontra na estância onde esta trabalha para se afastar da azáfama do trabalho e da vida citadina. Lawrence casa-se com Karina na perspectiva de escrever um livro e tomar um novo rumo para a sua vida, mas a chegada de O.O. Miller (Roland Young), o seu sócio, e Ruth Ellis (Ruth Gordon), a sua secretária, conduzem a que rapidamente este mude de ideias e até apresente um comportamento nem sempre correcto com a esposa. Como esta salienta, Lawrence junta duas personalidades dicotómicas na sua pessoa: "Há o jovem poeta que quer viver com simplicidade... e Napoleão" (numa referência para Conquest, onde Garbo interpretava Marie Walewska, a amante de Napoleão), com esta última a levar a melhor e conduzir o protagonista de regresso a Nova Iorque. Perante a ausência prolongada do marido, Karina decide partir em direcção a Nova Iorque, onde acaba por fingir ser Katherine, a irmã gémea da protagonista, uma mulher interesseira, pronta a conquistar tudo e todos, embora seja descoberta pelo esposo, com este último a fingir desconhecer a situação, algo que resulta em alguns mal-entendidos,

Em Ninotchka, Greta Garbo já tinha demonstrado um agradável timing e talento para a comédia, sobretudo a partir do momento em que a sua personagem começa a ceder aos encantos do Conde Leon d'Algout (Melvyn Douglas) e da cidade de Paris. Em Two-Faced Woman, George Cukor volta a aproveitar a magnífica química de Garbo com Melvyn Douglas (a química entre os dois só é superada pela química entre Garbo e John Gilbert), exibindo mais uma vez a sua perícia para a criação de personagens femininas interessantes e na construção de deliciosos relacionamentos humanos (não esquecer que este é o realizador de filmes como The Woman e o magnífico The Philadelphia Story). No caso deste último filme de Greta Garbo, George Cukor extrai dela a interpretação mais leve da carreira, revelando a versatilidade da actriz 174


muito humor, romantismo e muito humor de situação.

por Douglas e Garbo. Esta foi a última obra de Greta Garbo para a MGM e da sua carreira, com a actriz a decidir abandonar a mesma no auge, prevalecendo nas imagens em movimento a sua figura ainda jovem, algo que associado à sua reclusão e protecção da vida privada conduziu a um aumentar do mistério em volta da sua figura, ainda nos dias de hoje. Two-Faced Woman não é nem pouco mais ou menos a melhor obra de Garbo, a cena do último terço na neve com o casal a esquiar é bastante mal conseguida a nível de efeitos, mas Cukor consegue ultrapassar essa situação ao desenvolver uma comédia romântica bastante satisfatória, que marca o terminar da carreira de Garbo num registo muito distinto daquele a que nos habituámos a ver durante boa parte dos filmes do seu currículo.

George Cukor desenvolve uma comédia romântica com um conjunto de ingredientes que tornam Two-Faced Woman numa entrada irresistível no género: uma dupla de protagonistas talentosa e com enorme química, um conjunto de diálogos relativamente agradáveis, um argumento simples mas coeso e uma capacidade enorme de colocar os personagens em situações que resultam em bons momentos de humor (veja-se desde logo a procura de Karina em fingir ter uma gémea). Nota-se que existe toda uma procura em mostrar uma faceta mais cómica e popular de Garbo, ao mesmo tempo que a sua sensualidade é explorada através do guardaroupa e personalidade das suas personagens. Como Katherine, a irmã gémea imaginária da protagonista, Garbo surge mais vigorosa, pronta a dançar, sensual. Como Karina surge mais séria, pronta a conquistar o marido, com o filme a ter ainda contado com alguma polémica, ou não estivesse o Código Hays em pleno vigor, devido à forma como trata os valores do casamento. O filme procura ainda esboçar uma possibilidade de Lawrence ter um caso com Griselda Vaughn (Constance Bennett), mas o argumento revela-se incapaz de abordar devidamente esta questão (e, acrescentamos, de manter durante mais tempo a identidade de Katherine em segredo e aumentar o mistério junto dos personagens), algo que poderia incrementar o enredo e a relação dos personagens interpretados

Entre Torrent e Two-Faced Woman encontramos diferenças de estatuto e papéis de Garbo, mas também de salário, tendo passado de um salário de 400 dólares semanais no primeiro a 150 mil dólares no último, valores bem distintos de uma actriz que viria a terminar precocemente a carreira. Diga-se que Garbo chegou a receber 250 mil dólares por filme, mas a 20 de Novembro de 1940 esta viria a assinar um novo contrato com a MGM, que reduziria o seu salário para 150 mil dólares devido à II Guerra Mundial e consequente quebra de receitas. Importa agora analisar brevemente a importância da bilheteira internacional nos filmes de Garbo (que 175


exprimem a sua influência para além dos Estados Unidos da América), mas também as receitas globais dos seus filmes em comparação com o orçamento dos mesmos. The Torrent, o primeiro trabalho de Greta Garbo na MGM, tinha um orçamento de 250 mil dólares, alcançando uma receita global de 668 mil dólares (460 mil nos EUA e o restante ao redor do Mundo). The Temptress custou algo a rondar os 669 mil dólares para uma receita a rondar 965 mil dólares (587 mil nos EUA e 378 mil fora dos EUA). Flesh and the Devil marcou a grande viragem na carreira de Greta Garbo, transformando-a numa vedeta à escala internacional. Se as críticas foram bastante positivas, então as receitas ainda foram melhores para o estúdio: 1.261.000 dólares em receitas (603 mil nos EUA e 658 mil no resto do Mundo), para um orçamento de 373 mil dólares. Ou seja, em Flesh and the Devil assistimos ao primeiro filme de Greta Garbo na MGM a ter mais lucro a nível internacional do que nos EUA. Seguir-se-ia Love, que voltou a ter no mercado yankee o seu maior financiador, embora os números sejam bastante bons: 946 mil dólares em receitas internas e 731 mil dólares em receitas em territórios externos aos EUA, superando e muito os 488 mil dólares do seu orçamento. Parece que o estúdio soube aproveitar bem a química entre Garbo e Gilbert, algo visível no slogan de Love: "Greta Garbo and John Gilbert in LOVE". The Divine Woman voltaria a dar lucro e a manter a tendência dos filmes de Garbo renderem mais nos EUA, mas The Mysterious Lady voltou a recuperar a importância das

receitas internacionais dos filmes de Garbo: 543 mil dólares nos EUA e 551 mil dólares ao redor do Mundo. A Woman of Affairs, Wild Orchids, The Single Standard e The Kiss tiveram todos eles lucro, sendo que em todos os casos as receitas internas superaram as receitas externas. Diga-se que o primeiro talkie de Garbo mantém esta tendência, com Anna Christie a obter 1.499.000 dólares em termos globais, dos quais cerca de um milhão de dólares surgem das receitas internas. Vale a pena realçar que as receitas externas incluem ainda a versão alemã realizada por Jacques Feyder. Romance, Inspiration, Susan Lenox e Mata Hari viriam todos a dar lucro ao estúdio, embora apenas este último tenha alcançado maiores bilheteiras internacionais. Foram 1.296.000 dólares ao redor do Mundo, 931.000 dólares nos EUA e uma enorme receita para o estúdio (o orçamento do filme era de 558 mil dólares). Grand Hotel, a reunião de vedetas da MGM, continuou essa tendência das receitas internacionais superarem as receitas internas, algo contrariado por As You Desire Me, mas confirmadíssimo por Queen Christina que obteve valores estrondosos ao redor do Mundo: 1.843.000 dólares, uma verba que ultrapassa e muito os 767.000 internos. O orçamento do filme foi de 1.144.000 dólares e apresenta uma das primeiras vezes em que a receita interna fica bastante distante do valor do orçamento de um filme protagonizado pela actriz. 176


Segue-se The Painted Veil e mais uma vez Greta Garbo a liderar nas bilheteiras internacionais, dependendo destas para os seus filmes terem lucro: 538.000 dólares nos EUA e 1.120.000 dólares fora dos EUA. A nível de orçamento, os valores ficam por 947 mil dólares. Estamos assim perante uma tendência nova na carreira de Garbo, que será mantida em Anna Karenina e Camille, mas que se revela problemática com Conquest, aquele que é o primeiro grande fracasso na carreira de Garbo na MGM, tendo um prejuízo avaliado em 1.397.000 dólares. As receitas internas foram de 730 mil dólares, praticamente metade das receitas externas, mas não chegaram para igualar o seu orçamento a rondar os 2,73 milhões de dólares. O alarme soou bem alto junto da MGM que logo procurou "vender" a imagem de Garbo de forma distinta: "Garbo Laughs" dizia a frase promocional de Ninotchka e o filme alcançou 2.279.000 dólares ao redor do Mundo, 1.092.000 dólares internos, ou seja, valores que permitem ao estúdio ter lucro, mesmo com um orçamento de 1.365.000 dólares.

ninharia comparado com Conquest). Perante o fracasso de Two-Faced Woman nas bilheteiras e um decréscimo das receitas das bilheteiras internacionais durante o período da II Guerra Mundial (Garbo era bastante popular além-fronteiras), a actriz encontrava-se perante uma nova e pouco positiva situação na sua carreira, embora as ofertas de trabalho continuassem a chegar. The Girl from Leningrad chegou a estar em andamento, tal como uma adaptação cinematográfica do livro "La Duchesse de Langeais" de Balzac, que seria realizado por Max Ophüls, no entanto, os projectos não chegaram, a avançar. Ainda foi convidada para interpretar Norma Desmond em Sunset Boulevard mas rejeitou a oferta, num passo que poderia ter sido bastante feliz para a sua carreira, embora Gloria Swanson tenha brilhado em grande nível no papel. Diga-se que este impasse na carreira da actriz, entre o continuar ou terminar, também resulta em muito da vontade de Garbo, algo salientado por Salka Viertel, uma amiga da actriz: "Greta is impatient to work. But on the other side, she's afraid of it". Garbo revelaria a Sven Broman em Conversations with Greta Garbo a sua vontade de afastar-se da representação: "I was tired of Hollywood. I did not like my work. There were many days when I had to force myself to go to the studio... I really wanted to live another life". Terminada a carreira, aos trinta e seis anos de idade, Greta Garbo ficou a viver nos Estados Unidos da América, um local onde, apesar de tudo, podia viver com algum anonimato, habitando um espaçoso apartamento

A Ninotchka seguiria-se Two-Faced Woman, um filme que trouxe algo de preocupante ao estúdio: a perda de receitas internacionais. O filme realizado por George Cukor obteve 875.000 dólares nos EUA e 925.000 dólares no resto do Mundo, ou seja, uma queda brutal em relação a Ninotchka e um prejuízo a rondar os 62 mil dólares para o estúdio (uma 177


em Manhattan, no qual viveria até ao fim dos seus dias, após uma carreira de sucesso nos EUA e na MGM. O estúdio soube aproveitar o talento que tinha sob contrato durante os anos em que a actriz esteve no activo. Inicialmente existiu alguma relutância, mas Garbo logo se destacou, passando a ser a cabeça de cartaz de vários filmes do estúdio e uma das estrelas mais rentáveis, com as suas obras a deixarem marca até aos dias de hoje. Esta viria a receber em 1954 o primeiro Oscar da sua carreira, nomeadamente, o Oscar Honorário, após ter sido nomeada para Anna Christie, Romance, Camille e Ninotchka. O facto de Garbo nunca ter vencido um Oscar pela prestação individual nos filmes que protagonizou e ser recordada como uma das maiores lendas da História do Cinema não deixa de ser algo caricato e lança ainda o debate sobre a relevância destes prémios para memória futura.

recebeu o prémio no lugar da diva, com o Oscar a ter sido entregue dois anos depois da cerimónia e a ir directamente para o armário desta mulher de personalidade fortemente vincada. Garbo raramente concedia entrevistas, muito menos era vista regularmente em eventos, não dava autógrafos, evitava fotografias de paparazzi, viajava muitas das vezes sob pseudónimo, não respondia a cartas dos fãs (nem compreendia as razões destes enviarem correspondência), algo que o estúdio soube habilmente potenciar, envolvendo-a numa aura de mistério, pronta a gerar especulação em volta da sua figura, numa atitude muito dicotómica do que encontramos nos dias de hoje na relação entre o público e as estrelas de cinema. Esse mistério em volta da sua figura foi algo que esta também procurou manter nas filmagens, obrigando a que estranhos não entrassem no local, fossem este familiares de elementos da produção, elenco ou até quando eram figurantes a mais, tendo em vista a que não se perdesse a ilusão em volta das suas personagens. Foi isso mesmo que Greta Garbo respondeu a George Cukor quando este a questionou sobre o que a incomodava tanto na presença de estranhos no set: "Eu sou apenas uma mulher a fazer caretas para a câmara. Isso destrói a ilusão". Misteriosa, talentosa, sensual, complexa, Greta Garbo viria a falecer a 15 de Abril de 1984, tinha oitenta e quatros de idade. Vários anos depois o seu talento continua a ser recordado e raramente esquecido, a sua obra descoberta por cinéfilos de todo o Mundo e o seu nome continua

Garbo não apareceu na cerimónia de atribuição do Oscar honorário, tal como não aparecera nas restantes vezes em que fora nomeada, algo explicado pela aversão da actriz a eventos públicos. Não é que esta não tivesse amigos, nem saísse, mas preservava imenso a sua intimidade. No caso do Oscar honorário tínhamos ainda a pouca importância que esta parecia ter dado ao mesmo, tendo rejeitado um pedido do realizador Jean Negulesco, que produziu a cerimónia nesse ano, de gravar um vídeo breve de agradecimento. Nancy Kelly, uma actriz que Garbo nem conhecia, 178


a ser incontornável. John Bainbridge publicou na revista Life um artigo intitulado Greta Garbo - In Her Glory She Reigned Supreme, As a Beuty, An Actress, A Legend. Acrescentamos: uma lenda que vence a vida e a morte, que supera o que é meramente humano, comprovando que as divindades também assinam contratos, sobretudo com aqueles que as seguem, ou não continuasse Greta Garbo a fascinar quem ama cinema com o seu magnífico talento. Garbo revelou-se assim como um enorme achado da MGM e um exemplo paradigmático da política do estúdio em manter algumas das grandes estrelas sob a sua alçada, tendo colhido os frutos e popularizado uma das maiores lendas da história do cinema.




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