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Por que Dany Lafferière escreve em francês?

Confira um excerto do texto "O imaginário, os espaços, as línguas", de autoria da tradutora Heloisa Moreira, que analisa as razões pelas quais o escritor adota a língua francesa e não o créole em sua produção literária*

Laferrière escreve seus livros em francês, e as razões que enumera para explicar essa escolha nem sempre são fáceis de compreender. Em mais de uma entrevista ele afirma: “sou um escritor americano escrevendo diretamente em francês, e não um escritor francófono”. Essa frase, contraditória à primeira vista, aponta para questões importantes.

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O termo “francofonia” teve sua criação institucional em 1970. Ele é, antes de tudo, um termo político, pois designa um espaço cultural e econômico delimitado pela língua francesa. No entanto, quando associado à literatura, costuma designar aquela que é feita fora da França ou por autores não franceses. Sendo assim, refere-se não a um campo linguístico, mas sim a um espaço geopolítico, que delimita uma zona de influência. Nas palavras do próprio autor:

“Nunca temos muita certeza se a palavra inclui a França ou se ela se aplica exclusivamente aos países onde se fala francês com exceção da França. Essa distância cria uma situação extremamente desagradável, temos a impressão de que a França está construindo um império.”

É clara sua recusa do termo. Afinal, francofonia e literatura de imigração não seriam formas de denominar o que está à margem, na periferia e não no centro?

A primeira língua do autor, a língua por meio da qual aprendeu a conhecer o mundo, foi o créole haitiano. A língua francesa veio depois:

“Antes de ir à escola, em Petit-Goâve onde passei minha infância com minha avó, eu falava principalmente créole. [...] Toda a vida cotidiana acontecia em créole. É a língua que falo sem pensar. E foi nessa língua que descobri que existia uma relação entre as palavras e as coisas. Em créole há palavras que eu adoro ouvir, palavras boas de ter dentro da boca. Palavras de prazer, ligadas principalmente às frutas, à variedade de peixes, aos desejos secretos (palavras que não podem ser ditas diante dos adultos), aos jogos proibidos.”

Percebemos a relação afetiva e quase material com a língua; ela traz em si não só o som, mas o cheiro, a forma e a concretude dos objetos. O francês era a língua que devia ser aprendida para se ter acesso à educação, à civilização e como possibilidade de abrir-se para o mundo. E se, por um lado, a nova língua entrou desvalorizando a primeira e criando uma deformação na imagem de si; por outro, ela tornou possível o acesso a outras culturas. Foi por meio da língua francesa que Dany afirma ter conhecido grandes escritores, não só os franceses, mas também autores traduzidos em francês. Essa cultura adquirida por meio da língua francesa o ajuda a defender-se dos americanos e é motivo de orgulho:

“Eu me sirvo da França contra a América, mostrando para eles esse refinamento cultural que vem da França, essa abertura para o mundo proibida aos negros fechados em guetos. [...] Essa cultura, eu a recebi da França.”

Outro elemento importante na escolha da língua foi o fato de, ao chegar a Montreal, encontrar uma língua francesa diferente: o francês falado no Québec não é o francês do colonizador, mas sim do colonizado, ou seja, uma língua inferior, como ele aprendeu a perceber o créole quando vivia no Haiti. A questão da língua e da independência é onipresente no Québec. Perceber essa relação entre o quebequense e sua língua ajudou a criar uma cumplicidade entre Dany e o país que o acolheu em seu exílio. Assim, escolhe o francês como língua de criação.

E o que explicaria a quase ausência do créole em seus livros? Segundo Dany, porque a maioria de seus leitores não sabe o idioma. Neste livro, ele aparece somente nos provérbios que abrem cada capítulo, com a tradução abaixo, e em alguns termos próprios do universo haitiano, que mantivemos em sua forma original, grafados em itálico e elucidados em nota. Além disso, o texto em francês traz, integradas à narrativa, diversas palavras e expressões provindas do créole haitiano, do francês falado no Haiti, do francês falado no Québec e do inglês dos Estados Unidos. Na tradução, esses termos foram incorporados da mesma forma que no texto-fonte, sem aspas nem uso do itálico.

O escritor insiste em dizer que, para ele, o que importa é a cultura, e não a língua (como separar as duas?), que é uma simples roupa que ele gostaria de eliminar. Acredita que o fato de tratar de situações do dia a dia da cultura haitiana já faz referência à língua que está sendo falada, pois todo o cotidiano está imerso no créole.

Texto publicado originalmente na 1ª edição brasileira do livro, lançada em 2011 pela Editora 34.

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