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“País sem chapéu tem uma prosa saborosíssima, que lida muito bem com símbolos”

Curador do mês, Allan da Rosa aponta as qualidades da obra de Dany Laferrière, menciona outras referências literárias e adianta novos projetos

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Oescritor brasileiro Allan da Rosa, nosso curador deste mês, nasceu em São Paulo, em 1976. Historiador e doutor em Educação pela USP, pesquisa temas como ancestralidade, imaginário e cotidiano negro. Editou o selo Edições Toró, fundado em 2005 e voltado a autores de literatura periférica, movimento do qual é expoente.

Textos de sua autoria, como os contos de Reza de mãe, tratam, entre outros assuntos, da realidade brasileira, da vida na periferia e dos desafios sociais envolvendo a precariedade econômica. Títulos como Águas de homens pretos (2021) e o infantojuvenil Zumbi assombra quem? (2017) trazem ainda à tona questões relativas à ancestralidade. São temas que remetem, em certa medida, ao livro de Laferrière que indicou ao nosso clube, do qual tomou conhecimento em meio a pesquisas sobre as diferentes manifestações da diáspora africana.

“É muito bacana lermos sobre o Haiti e outros países cujas imagens e situações nos chegam muito estereotipadas”, diz ele na entrevista a seguir, na qual revela os motivos que o levaram a recomendar País sem chapéu ao clube. Além disso, fala de outras referências literárias e adianta novos projetos.

Como você entrou em contato com País sem chapéu? Já conhecia a produção do autor?

Entrei em contato com essa obra porque eu sou pesquisador dos movimentos, das artes, dos pensamentos da diáspora africana e, assim, garimpo nas artes e literaturas da Jamaica, de Cuba, da Martinica e do Haiti. Quando li País sem chapéu, não sei se já havia a tradução de um outro livro dele, que li logo em seguida: Como fazer amor com um negro sem se cansar.

Por que você decidiu indicá-lo ao nosso clube? Eu sinto que há vários sabores, várias reflexões especiais quando lemos prosas escritas por pessoas das Antilhas, dos Caribes. Saímos um pouco da fonte da literatura negra dos Estados Unidos, que é muito valorosa, mas também impõe limites para compreendermos nossos espaços brasileiros. Repito: ela é muito valorosa, mas tem seus limites. E nós mesmos, por vezes, queremos transpor aquela realidade diretamente para a nossa, sem reflexões, sem filtros.

Quais são, na sua visão, as principais qualidades de País sem chapéu?

É um livro especialmente frutífero em relação a assuntos fundamentais do nosso viver — as relações que temos com a morte, com o sonho. O fundamento do livro é a relação entre sonho e realidade, que nos faz perguntar qual é a fronteira entre imaginado, imaginário, corpo… Realidade é algo que sentimos, sonhamos, pensamos, tocamos? Creio que esse livro traz uma coceira saborosa sobre essas relações. Também é muito bacana lermos sobre o Haiti e outros países cujas imagens e situações nos chegam muito estereotipadas. País sem chapéu tem uma prosa saborosíssima, que lida muito bem com símbolos. O chapéu é um símbolo, na cabeça, da vestimenta, da elegância, e também simboliza a demarcação de vida e morte. O humor aparece como chave de percepção da estranheza, de corrosão de certezas e de compreensão de maneiras de sentir o tempo, que vão além da maneira geral presente-passado-futuro. Outro detalhe bacana que perpassa o livro é a relação entre pertencer e se sentir alheio, entre reconhecimento e estranheza.

Além de Laferrière, que outros autores e leituras marcaram sua vida como leitor? Pode compartilhar algumas de suas referências literárias?

Tenho tantas referências apaixonantes. Por agora, eu poderia mencionar Toni Morrison, a romancista que ensina como o contexto racista é voraz e sempre, ao mesmo tempo, trança ao ambiente de seus livros a complexidade das personagens. Ela passa longe do simplismo, do qual nem sentimos o cheiro. Outra referência fundamental para mim é Cuti, craque nos ensaios, na ficção e na poesia, autor de livros inesquecíveis como Poemaryprosa. João Antônio está sempre presente, é o escritor que mais me arrepia, mais me emociona. Eles são três entre muitas outras fontes. Poderia citar ainda Maryse Condé, Hilda Hilst, James Baldwin…

Você pode nos falar de seus projetos atuais?

Podemos esperar novos livros em breve? Em breve, entre agosto e setembro, vai sair um livro resultante de uma pesquisa de quase três anos, obra minha em coautoria com Deivison Nkosi Faustino, com o título Balanço afiado — estética e política em Jorge Ben. É um estudo em que inventamos prosas, entrevistas, ficção; em que pesquisamos e dedilhamos fundamentos do canto, do toque e da poética de Jorge Ben. Abordamos as imagens de futebol, os fundamentos da alquimia, os fundamentos musicais de matrizes africanas que aparecem de inúmeras maneiras reinventadas por ele. Conversamos sobre masculinidade, sexualidade, políticas miúdas e políticas institucionais que atravessaram a invenção do artista. E, por agora, também componho o projeto de um novo livro, talvez para 2024, com contos que se passam na São Paulo do século XIX. São histórias sobre pessoas pretas, alforriadas, libertas, escravizadas, vendedoras, andantes, vigias, prostitutas, lavadeiras, barbeiros, médicos, músicos de orquestra, professores, integrantes de confrarias, com as suas traquinagens, aventuras, iras, projetos de nação, festas, vinganças, traições, prazeres. Esse é um livro que está brotando devagarinho, verdinho, no caule da minha caneta, neste instante. É a continuidade de minhas reflexões sobre modernidade e projetos transnacionais negros atravessando fronteiras do Brasil e das Américas, conectados pelas culturas, cotidianos e mentalidades de matrizes africanas.

Ilustração do mês

Gabriel Renner é ilustrador freelancer e designer. Passou pelas redações de Zero Hora, Diário Gaúcho, Notícias do Dia e Grupo Editorial Sinos, além de ter ilustrado para as revistas Superinteressante, Mundo Estranho e Sexy. @rennergabriel

A pedido da TAG, o artista interpretou uma passagem do livro do mês: “Há muito tempo que espero este momento: poder sentar à minha mesa de trabalho (uma mesinha bamba debaixo de uma mangueira, no fundo do quintal) para falar do Haiti com calma, com tempo. E o que é ainda melhor: falar do Haiti, no Haiti. [...] Escrevo a céu aberto no meio das árvores, das pessoas, dos gritos, dos choros. No coração desta energia caribenha. Com uma bacia de água limpa, não muito longe, para refrescar o corpo (o rosto e o peito) quando a atmosfera se torna insuportável”.

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