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“O VODU É CHAVE PARA COMPREENDER O MUNDO MATERIAL E SIMBÓLICO HAITIANO”

"País sem chapéu" inclui uma série de referências ao vodu haitiano, religião que mistura elementos cristãos e crenças africanas. Para entender a sua centralidade na cultura do país e aprofundar a experiência de leitura da obra de Laferrière, conversamos com Handerson Joseph, antropólogo de origem haitiana, professor do departamento de Antropologia e do Programa de Pós-Graduação em Antropologia da UFRGS.

Um dos temas que se destacam no livro de Laferrière é a presença do vodu, de suas práticas e de suas divindades. Quais são os aspectos centrais dessa religião?

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No Haiti, esse termo foi e continua sendo usado para denominar o conjunto de crenças e ritos de matrizes africanas com a influência do catolicismo e dos taínos (nativos da ilha de São Domingos). No final do século XIX, o vodu se apresentou como uma resposta à exploração do cativeiro, do imperialismo econômico, social e cultural dos europeus. Como diria o sociólogo haitiano Laënnec Hurbon, o vodu significou, desde cedo, a “linguagem própria”, a consciência de sua diferença em relação ao mundo dos senhores, a força que aguçaria a sua capacidade de luta. Ele é uma resposta a tais humilhações, aos trabalhos forçados, ao preconceito racial, características da sociedade colonial. Em outras palavras, o vodu representa o poto mitan (pilar) da sociedade haitiana.

Como pode ser vista a influência dessa religião no dia a dia das pessoas?

O vodu não tem só o conceito espiritual. Ele ordena um modo de vida, um modo de ser, de pensar e de “estar no mundo”. Existe uma cosmovisão por trás e um código ético a regular o comportamento social. Para uma boa parte da sociedade haitiana, o vodu dá sentido ao mundo e à sua existência. O seu universo está como o lugar por excelência em que se revela a existência haitiana. O vodu é uma peça-chave para compreender o mundo material e simbólico haitiano no que diz respeito a política, história, economia, cultura popular, ecologia e religião. Está em todas essas dimensões e em outras mais. Está enraizado no pensamento social haitiano, no modo de se relacionar com o outro, nos laços familiares e de vizinhança, no lakou e na bitasyon, na cultura popular, na língua kreyòl, na arte naïf, nos gestos, nas falas, nos contos e nas lendas.

Pode dar alguns exemplos?

Uma boa parte das pessoas, quando adoece, primeiramente desconfia que foi atingida por alguma magia (maji) do vodu ou, quando precisa alcançar algum projeto ou sonho, pede proteção aos lwas (divindades equivalente aos orixás) e às forças espirituais e ancestrais que os guiem. As plantas e receitas tradicionais desempenham um papel importante nas práticas de (auto)cuidado físico e espiritual no mundo cotidiano.

País sem chapéu mostra, em determinado momento, certo “embate” entre o catolicismo e o vodu. Como é a convivência entre essas duas religiões?

Desde o século XIX, há uma relação ambivalente entre o vodu e o catolicismo. As pessoas negras escravizadas foram obrigadas a mobilizar elementos do catolicismo para manter algumas práticas tradicionais, ancestrais e transcendentais trazidas do continente africano. No entanto, a primeira tentativa oficial da Igreja Católica para combater o vodu ocorreu em 1896, através de várias ações que resultaram na “liga contra o vodu”, com a punição de seus praticantes. Quase um século mais tarde, com a Constituição de 1987, o vodu passou a ser reconhecido pelo Estado do Haiti como religião. Antes disso, seus adeptos eram perseguidos, e inúmeras foram as campanhas “antissupersticiosas” realizadas pela Igreja Católica em tentativas infrutíferas para extirpar essa crença de boa parte da sociedade haitiana. Essa representação preconceituosa e estigmatizada que se tem do vodu é devida ao cristianismo e ao neocolonialismo. É comum um praticante ir diariamente à missa, comungar ou participar de procissões e de rituais da Igreja Católica. As orações da Igreja Católica, como o “Pai Nosso”, a “Ave Maria”, são igualmente rezadas no vodu. A ladainha dos santos da Igreja Católica faz parte do ritual voduísta. Cada lwa tem sua correspondência nos santos da religião católica. O sacerdote voduísta começa a sua cerimônia com o sinal da santa cruz, o mesmo da religião católica. É comum, no Haiti, escutar pessoas dizendo que, para ser um bom voduísta, deve-se ser um bom católico. Isso expressa o sincretismo do vodu, a articulação entre o vodu e o catolicismo, mesmo tendo sido imposto, fruto da violência colonial.

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